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História Transcendental - Capítulo 02. O campo de papoulas


Escrita por: Nathymaki

Capítulo 4 - Capítulo 02. O campo de papoulas


— Uau, você tem olhos lindos.

Não era bem a resposta que Katsuki esperava. Não quando segurava uma lâmina deveras afiada e estava a um passo de separar a cabeça do outro do corpo.

— Eu perguntei quem diabos é você.

— Oh, sim, lamento. — Ele tentou se aprumar, mas foi empurrado novamente contra o pedestal. Bakugou não cederia só porque a expressão dele o lembrava de um animal inocente encurralado. Um beicinho emburrado se formou naquele rosto estupidamente bem delineado. — Sou o Kirishima. Eijirou Kirishima. E agora que sabe disso poderia fazer o favor de me soltar?

— Não tão rápido, Kirishima. Tenho outras perguntas que precisam de respostas. Como chegou aqui? Onde está o dragão? E o que foi aquilo?

— Eu sempre estive aqui — respondeu com grande seriedade. — E me diga você o que foi aquilo, foi culpa sua afinal. — Bakugou recuou como se houvesse sido atingido.

— Não foi culpa minha!

— Não vejo mais ninguém aqui que achou genial profanar uma caverna sagrada e mexer em algum tipo de objeto que com certeza deve estar carregado de alguma maldição explosiva. — Ele revirou os olhos teatralmente, o vermelho tão feroz quanto a pedra no cajado. — Então sim, a culpa foi sua.

— Tsc — Foi o máximo que conseguiu retrucar, as palavras lhe escapando como areia por entre os dedos. Pelos deuses, ele era Bakugou Katsuki, e não ficava sem palavras!

O estranho – Kirishima – prosseguiu, satisfeito pelo efeito provocado.

— E quanto ao dragão, bom, está olhando para ele nesse exato momento.

— Você? Dragão?

— Meio — o garoto corrigiu com um sorriso, expondo os dentes pontudos e muito brancos.

— Como alguém pode ser só meio dragão? — Demandou.

— Sendo, oras!

Bakugou bufou, exasperado.

— Não tenho tempo para isso agora! Onde está o artefato?

— Quer dizer tirando a parte em que ele explodiu em mil pedacinhos? Você continua olhando para ele. Aliás, isso é mesmo necessário? Você me libertou, logo eu não irei te atacar.

A imagem do cajado explodindo, a forma reptiliana que havia visto sair dele e então esse garoto estranho afirmando ser meio dragão, os pontos começaram a se ligar em sua cabeça. Ele tinha olhos rubros e profundos, ardendo em chamas contidas e perigosas, tão parecidos com a pedra que encimava o cajado… Só então ele se deu conta que o artefato que estivera buscando com tanto afinco e esperança era aquele meio-dragão. O choque da realidade o fez retroceder, perplexo demais de que tudo havia acabado de tal modo.

— Vamos todos morrer — foi o que conseguiu resmungar para si mesmo, a sensação de derrota impregnando-se amargamente em cada parte do seu corpo. Pai, mãe, eu falhei, pensou arrasado.

— Perdão? — O garoto recuou, afastando a lâmina com a ponta dos dedos, o rosto franzido. Bakugou permitiu, abatido demais para se importar. Em menos de um segundo todos os seus planos de batalha e imagens da vitória haviam ruído por completo. — Isso é grosseiro, sabia? Seus pais não te ensinaram a ser educado com as pessoas que acabou de conhecer?

— Educação não ganha guerras — E porque o tom avermelhado e muito vívido era por demais irritante, ele acrescentou: —, cabelo de merda. E dragões mestiços definitivamente não o podem fazer. — Abandonou a posição de ataque, deixando Kirishima caído onde estava e pôs-se de pé, dando meia volta e marchando a passos duros de volta para a única entrada/saída disponível. — Mas que porra! Eu esperava que o artefato fosse a resposta, eu pensei que podia mudar tudo com ele. E agora, agora não há nada que eu possa fazer. — O punho atingiu a parede rochosa antes que o jovem dragão pudesse impedir.

A câmara rugiu em resposta àquela demonstração de violência, as rachaduras se estendendo mais fundo, as estalactites estremecendo a segundos de caírem. Não havia tempo para mais palavras. A estrutura abalada estava a um segundo de ruir. Bakugou olhou em volta, irritado, perguntando-se o que mais podia dar errado naquele dia.

Ele definitivamente não devia ter feito esse questionamento tão cedo.

Uma das estalactites se desprendeu de sua base e iniciou uma queda lenta e mortal em direção a cabeça do guerreiro que ainda fervilhava.

— Cuidado! — Kirishima gritou, lançando-se sobre o outro com força e velocidade muito além das capacidades humanas. Bakugou virou apenas a tempo de ver um borrão avermelhado avançando contar si. Ele sentiu o choque do corpo contra o seu enquanto era empurrado bruscamente para fora do caminho. — Temos que sair. Agora. — Adicionou ao ver mais duas estalactites caírem.

Bakugou queria discutir, mas o som das rachaduras se espalhando o fez engolir as palavras e guardá-las para mais tarde. Ele agarrou a espada e aceitou a mão de Kirishima para se erguer. Os dois correram pelo túnel, as botas derrapando na água que respingava no chão pelas rachaduras. O som de pedra desabando sobre pedra os fez correr mais rápido e uma parte ínfima do cérebro de Katsuki se perguntou como diabos aquele mestiço parecia tão equilibrado usando todas aquelas roupas folgadas; a outra parte, mais urgente e focada no momento presente, constatou que eles não conseguiriam a tempo. Ele se perguntou se era assim que tudo acabaria, longe de sua terra natal, longe seus pais, morrendo esmagado por um punhado de rochas e sem nenhuma glória, na companhia de um dragão mestiço que mal conhecia.

Mais rochas deslizaram e ele viu ao longe a luz que indicava a saída ser lentamente engolida pela escuridão. A boca da caverna estava se fechando e eles pereceriam ali como o seu alimento.

— Não vai dar tempo — berrou o outro, como se o guerreiro ainda não houvesse reparado. Bakugou sentiu a mão dele agarrar a sua e lutou contra isso, o instinto lhe gritando que ele o arrastaria para o fundo. — Segura! — Ele disse.

E então, no instante seguinte, eles estavam voando rapidamente em direção a saída. O vento cortava seu rosto enquanto seus olhos absorviam a verdade. As roupas folgadas escondiam um par de asas reptilianas com mais ou menos o comprimento do seu braço. O túnel não era grande o bastante para comportá-las em sua totalidade, suas pontas raspavam nas rochas, derrubando os archotes pelo caminho com uma facilidade invejável.

Ele piscou e a luz tomou sua visão. Eles estavam a poucos metros da saída; não, estavam passando por ela agora, os dentes da fera desprendendo-se do topo e caindo como estacas sobre suas cabeças. Ele ouviu um esgar rouco vindo do outro e no instante seguinte ambos estavam rolando pela grama de forma brusca, arrancando tufos e deixando uma trilha de sua passagem. O ombro de Katsuki bateu contra uma das árvores sem vida e ele praguejou com a pontada que sentiu. Ao seu lado, grunhidos de dor indicavam que Kirishima não estava tão bem assim. A caverna ruiu com um estouro, uma avalanche de terra soterrando a entrada, a montanha estremecendo de forma suspeita. A última coisa que precisavam naquele momento era desta tombando sobre suas cabeças e, conhecendo pouco sobre bolsões mágicos, seus instintos lhe diziam que a probabilidade de tal fato acontecer era alta.

— Minha asa — ele resmungou.

Bakugou rolou, seu treinamento o impulsionando a se pôr em movimento e empurrar a dor para algum lugar insignificante em sua mente. Conferiu rapidamente seus pertences e apanhou a espada curva de onde ela havia escorregado de sua mão, correndo até onde o meio dragão ainda estava caído.

— Vamos logo, temos que sair daqui. A magia que sustentava esse lugar não vai aguentar muito tempo depois de um estranho de tal intensidade.

Era como ele havia dito. Nas bordas se sua visão, as árvores tremularam, as ilusões perdendo a potência. O chão começou a rachar e ceder sob seus pés.

— Vamos logo, cabelo de merda!

Impaciente e com o cronômetro se aproximando perigosamente do zero, Katsuki ajudou o outro a se levantar, puxando seu braço e o passando por cima de seus ombros, ao mesmo tempo que lhe rodeava a cintura para firmá-lo. A asa esquerda arrastou desengonçadamente no chão, enquanto Bakugou cerrava os dentes para lidar com o seu peso. Eles cambalearam até o arco que o havia trazido até ali e desabaram do outro lado ofegantes e empoeirados, mas vivos.

A floresta ao seu redor retinia com vida e sons e os últimos raios de sol que batiam em sua pele nunca haviam sido mais quentes. Ele havia sobrevivido.

— Obrigada pela ajuda – Kirishima murmurou ainda ofegante.

— Tsc. — Fez o guerreiro, sentando-se para conferir o ombro dolorido e garantir que não o havia deslocado. — Você me tirou da caverna, estamos em pé de igualdade agora. Não quero sua gratidão ou nada do tipo.

— Mas... — Kirishima começou a protestar.

— Mas nada. Eis o que vai acontecer: nós vamos nos afastar o máximo possível desse lugar e depois cada um vai seguir o seu caminho.

— Mas… — tentou novamente, segurando o ombro cuja asa curvava-se de um jeito estranho.

— Nada de mas. Vamos indo, logo vai escurecer e é melhor encontrarmos logo um lugar para acampar. Cavernas mágicas que explodem não são a única coisa perigosa nessas matas.

Kirishima assentiu, recolhendo a asa machucada e envolvendo-a no que havia sobrado de suas roupas. Eles seguiram por entre as árvores, Bakugou a frente examinando os recônditos e nichos pelo caminho. Ele tinha muita experiência quando se tratava de ocultar-se pelas matas e sabia que as chances de serem pegos acampando em um espaço mais aberto eram muito mais altas. Caminharam por entre os arbustos até o Sol consumir-se por completo e os deuses tomarem os céus noturnos. Corujas piavam ocultas nos galhos mais altos e o vento murmurava sua canção quando enfim ele encontrou um lugar que lhe parecesse adequado. Curvou-se contra o tronco caído e tocou a madeira agradecendo pela longevidade daquela árvore e pedindo para que ela lhe protegesse aquela noite.

— Aqui é um bom lugar. Vou cortar alguns galhos para montar uma fogueira, enquanto isso você… — Ele se interrompeu ao ver Kirishima escorregar contra o troco soltando um longo suspiro cansado. — Faça como quiser. — Balançando a cabeça, ele saiu para recolher a madeira e retornou alguns minutos depois com um bom número de galhos bons para fazer fogo.

Bakugou montou a fogueira e se encostou em um dos troncos, escolhendo um pedaço da madeira que não havia usado e a faca que trazia na bota, ele começou a entalhar. As chamas crepitavam com vontade. Os olhos rubros de Kirishima fitavam o fogo, o alaranjado refletindo neles e parecendo dançar. Bakugou puxou um pouco de carne seca de seus suprimentos e muito a contragosto estendeu um pouco para o outro. Afinal, havia de alguma forma contribuído para que ele estivesse de alguma forma naquele mundo, não podia simplesmente deixá-lo morrer de fome. O encarou enquanto este devorava as tiras e uma parte sua debateu sobre o que havia feito. O que seria de sua tribo agora quando retornasse de mãos vazias e contasse que não existia artefato mágico que pudesse salvá-los. Ele já podia ver a desolação em seus rostos, a voz da mãe a lhe dizer que nunca deveria ter partido, pois ele havia jurado permanecer e proteger. No fundo, de algum modo, ele sabia que havia falhado e os decepcionado completamente.

Kirishima estudou seu libertador com atenção. Ele tinha um rosto interessante, afiado como uma lâmina e expressões tão mortais quanto. Era fácil perceber que sorrisos eram raros, e os lábios marcados lhe diziam que ele tinha o hábito de mordê-los enquanto pensava. O cabelo loiro estava bagunçado e mesclado em tons de luz e sombras, ondulando com o movimento da fogueira entre eles.

— Seus olhos são bonitos.

— Eu sei, você já disse antes — o loiro resmungou. — Por que insiste nisso?

Kirishima abraçou os joelhos e fitou o fogo.

— São vermelhos e vermelho é a cor dos olhos de todos os dragões. Você deve ter algum tipo de sangue de dragão em sua linhagem.

— Isso é ridículo. — Bakugou afastou a ideia com um agitar de mãos, voltando a sua tarefa de entalhar a madeira. — Dragões estão extintos há mil anos, não passam de lendas, histórias para dormir.

— Dizer isso só prova o quanto está errado. Ou vai me dizer que não viu um dragão recentemente? — E apontou para si mesmo, provando seu ponto.

O guerreiro preferiu ignorar isso.

— Sua asa está quebrada? — Perguntou ao vê-lo deixar escapar uma careta, mais para se livrar daquele assunto do que por estar preocupado.

— Acho que desloquei.

— Deixe-me dar uma olhada. — O ruivo o estudou, surpreso, mas permitiu que ele se aproximasse. Um gemido de dor escapou dos seus lábios ao sentir os dedos tocarem a pele coriácea no exato ponto que estava machucada. — É, foi uma torção feia. Mas se colocar no lugar e amarrar com firmeza deve se curar bem em algumas semanas.

— Faça isso — Kirishima lhe disse, os olhos completamente sinceros, sem medo algum.

— Vai doer — avisou em um tom sombrio.

— Eu não me importo. Passei muitos séculos adormecido naquele orbe, suspenso em um vazio absoluto e interminável. — O brilho naqueles olhos escureceu, as lembranças despertando a sensação de completa solidão que ainda não se atrevera a examinar desde que haviam saído. — Sentir qualquer coisa agora é francamente um alívio.

Katsuki assentiu, compreendendo o que ele queria dizer. Mal conseguia imaginar como seria estar isolado no escuro e no silêncio. Letargia era uma morte lenta e dolorosa. Ele nem mesmo sabia como o outro continuava são. Rasgou a parte das roupas largas que escondiam as asas e Kirishima o ajudou a retirar a camisa de tons berrantes que usava por baixo, expondo os músculos fortes e bem definidos, cheios de sombras e ângulos provenientes pela iluminação.

— Preparado?

Kirishima apenas envolveu os tornozelos com as mãos e cerrou os dentes, todos os seus músculos ficando tensos a espera. Ele assentiu. Katsuki tocou os pontos que pareciam torcidos na direção errada e se preparou.

— Vou fazer no três. Faça a contagem — comandou.

O mestiço assentiu e começou:

— Um-

Ele puxou. Uma pontada dolorosa e súbita partiu do ponto realocado como um raio e percorreu todo o seu corpo. Kirishima gritou, um rosnar poderoso que pareceu se infiltrar pelas árvores e se espalhar por toda a floresta.

— Não era para esperar chegar no três? — Reclamou, o rosto contorcido de dor.

— O elemento surpresa funciona melhor. — Ele se permitiu um meio sorriso ao ver a indignação expressa com clareza em suas feições.

Bakugou enfaixou a asa com as tiras feitas das roupas rasgadas, os dedos trabalhando cuidadosamente, mas de forma rápida. Algo na textura, na disposição flexível dos músculos o prendeu. Elas pareciam frágeis de perto, mas havia visto a sua força, o poder de seu impulso enquanto ambos disparavam em direção à saída daquela caverna. Seguiu os nervos em direção a base e tocou a junção das peles, o modo como o vermelho se fundia a estrutura dos ossos das costas. Ele percebeu os olhos de Kirishima pousados sobre si e só então se deu conta de o que estava fazendo, como aquilo pareceria para ele.

— Não tem problema — Kirishima falou antes que ele pudesse se justificar que estava apenas fazendo seu trabalho e não curioso. Absolutamente de modo algum ele estava curioso. — É apenas, bem… — As bochechas se tingiram de um avermelhado que rivalizava com o de seus cabelos.  — Muito bom — concluiu baixinho.

Katsuki se calou antes que pudesse falar algo indesculpável e por alguns segundos o silêncio se tornou carregado entre eles. Ao seu redor a floresta murmurava suavemente, a brisa noturna varrendo suas faces como um beijo, o cricrilar e ocasionais piados de seus habitantes noturnos se tornando o único som a reverberar no espaço.

— Terminei — o guerreiro disse, afastando-se dele e estudando seu trabalho. Assistiu enquanto ele testava o movimento e estremecia ao sentir os resquícios da dor.

— Ainda dói, mas está muito melhor agora. Meus mais sinceros agradecimentos, Bakugou Katsuki. — Aqueles olhos vermelhos pareciam tão implorativos e a face exibia um sorriso tão sincero que precisou desviar o olhar.

Com um último suspiro resignado, desabotoou seu manto e o estendeu para ele. Algo ele sabia sobre dragões: eram criaturas que viviam para o calor. O frio da noite já serpenteava ao redor deles, envolvendo-os em um cobertor de névoa e umidade. A pele arrepiada do outro comprovava isso. Como havia sido o responsável por deixá-lo sem um agasalho decente, isso era o mínimo que podia fazer para compensar. Afinal, Bakugou Katsuki não gostava de ficar devendo nada a ninguém.

Kirishima abriu a boca para recusar, porém Bakugou foi mais rápido.

— Ande, pegue logo e não diga mais nada. Não adianta passar por tudo aquilo apenas para te assistir morrer de frio.

O ruivo balançou a cabeça e aceitou, vendo-o voltar a sentar em sua posição de origem, retomando a madeira e a faca, e se enrolou no tecido, seu calor sendo muito bem-vindo. A madeira crepitou e Kirishima não soube muito bem o que fazer dali para a frente. Ele não sabia onde estavam seus pais ou qualquer outro membro de sua espécie. Se o guerreiro estivesse correto, àquela altura não restavam mais dragões e ele seria o único sobrevivente de uma raça que outrora havia dominado céus e terra. O pensamento o fez estremecer e uma solidão sem fim se instalar em seu peito.

Puxou o manto para mais perto e sacudiu a cabeça, afastando esses pensamentos para um recanto longínquo no qual não precisasse tocar por um longo tempo. Sua atenção foi atraída para as linhas negras que decoravam as costas marcadas de Bakugou e qual não foi sua surpresa ao perceber o que aquele padrão sugeria. A expressão dele não parecia muito receptiva a conversas, mas a curiosidade de Kirishima era forte demais para que ele soubesse se conter. Perguntou:

— Por que você tatuou escamas de dragão se nem sequer acreditava na nossa existência?

Bakugou parou o que fazia e baixou a faca apenas para encontrar os olhos rubros e curiosos a lhe encararem com intensidade. Era uma pergunta feita com uma curiosidade genuína e ele hesitou antes de responder.

— Eu as vi em um sonho — admitiu a contragosto, relembrando a sensação que lhe parecera tão real no momento. — Havia uma espécie de pássaro que me disse para voar, mas como eu não tinha asas ele me deu essas marcas e avisou para usá-las com sabedoria, pois um dia salvariam minha vida. Fiz a tatuagem no dia seguinte.

A risada rouca que Kirishima soltou o surpreendeu. Era um som estranhamente contente para o ar estático da floresta.

— Acho que não é tão cético quanto diz ser, hum?

Katsuki ignorou o fervilhar que se espalhava abaixo de sua pele e agarrou com mais força o cabo de couro da faca, respondendo com o máximo de dignidade que pôde reunir:

— Vá se ferrar.

Kirishima apenas riu ainda mais.

— Como quiser, grande guerreiro.

Bakugou engoliu algumas palavras bem escolhidas e preferiu o tratamento de silêncio. O ruivo se acomodou mais em seu lugar, as pálpebras pendendo lentamente. Algo martelava na cabeça de Katsuki e ele não conseguia identificar a origem. Repassou a última conversa e então se deparou com a resposta. Quebrando a própria promessa de silêncio, perguntou:

— Como sabia o meu nome?

Foi um Kirishima muito sonolento que piscou em sua direção ao ouvir sua voz. Ele respondeu em voz baixa e rouca, não mais que um sussurro ecoando na noite e em cada célula de seu corpo:

— Eu ouvi você declarar ao dizer que seria o meu mestre. — E, com um último suspiro, sua cabeça pendeu para o lado e ele adormeceu profundamente, deixando um atônito Bakugou a lhe encarar.

Naquela noite, Katsuki não conseguiu dormir. Seus olhos atentos fitavam o ruivo profundamente adormecido e quando ele não suportou mais, se embrenhou na floresta tocando os troncos das árvores até que sua mente anuviasse e lhe desse as respostas as quais precisava.

Sob sua cabeça, as estrelas brilhavam, piscando em sua linguagem secreta por um acontecimento que fora premeditado há séculos. Afinal, duas almas destinadas a se encontrar transcenderiam os limites do tempo e do espaço para assim fazê-lo.

Ele pensou novamente no sonho e em sua tatuagem que agora ardia com um calor agradável, como o beijo cálido de uma chama preenchendo seu corpo e o fortalecendo, e seu olhar voltou a pousar no mestiço adormecido. Uma parte sua se perguntou o que tudo aquilo significava; a outra, mais impulsiva e agitada, lhe disse para fazer aquilo que fazia de melhor: caçar.

Puxando a nova espada adquirida e certificando-se de que o acampamento estava seguro e bem oculto, ele se embrenhou pelas árvores e se deixou levar para onde quer que os caminhos da floresta quisessem ir.

 ……………………………….

— Você está me seguindo. — Foram suas primeiras palavras após algumas horas de caminhada silenciosa.

Eles acordaram cedo no dia seguinte. Bakugou havia cochilado apenas por algumas horas ao retornar da caçada e sentia um leve desconforto percorrer seu corpo à medida que atravessavam arbustos cerrados e lagos de águas intocadas e cristalinas.

— Não estou, não. — Kirishima rebateu, bem-humorado.

Ele usava as roupas que Katsuki lhe trouxera – ou melhor, lhe atirara pela manhã. Pelo que havia entendido, ele havia se deparado com um caçador que tratava de estraçalhar um cervo já morto sem a devida consideração para com a perda de uma vida. Após apagá-lo e amarrá-lo em um galho a uma altura considerável do chão, roubara-lhe as roupas e as trouxera para Kirishima, já que as dele, bem, não eram adequadas para a época em que se encontravam. Com os lábios franzidos em descontentamento, ele havia usado a faca para rasgar uma parte do seu manto e dado a Kirishima para que este o amarrasse ao redor do pescoço e assim escondesse o colar de bronze que rodeava seu pescoço. Andar por aí com coisas brilhantes era o mesmo que pendurar uma bandeira atraindo ladrões.

— Ainda continua me seguindo.

— É apenas uma coincidência.

Os dois sabiam que não era. Bakugou suspirou e perguntou novamente aos deuses por que, entre todos, tinha que ser ele.

— Por que não procura outro lugar para ir? Você disse que ficou trancado por mil anos naquela pedra, não foi? Certamente deve estar curioso para ver o quanto o mundo mudou nesse meio tempo.

— Então quer dizer que não posso ver o mundo mesmo que esteja seguindo você? Pensei que vivesse nele. — Bakugou não soube como responder aquilo, então apenas estalou os lábios, irritado. — Além do que, você me despertou. É meu dever assegurar sua segurança até que atinja seus objetivos.

Ele pensou em como havia declarado ser seu mestre e se havia algo nisso afetando as ações de Kirishima. Não tinha tempo para ligar com isso, precisava retornar a sua aldeia e pensar em uma estratégia para defendê-los agora que sua última esperança havia se perdido.

— Faça o que quiser, apenas não espere que eu vá ajudá-lo caso caia em alguma armadilha.

Kirishima sorriu vitorioso e começou a assobiar uma melodia.

— Não. Apenas não. Nada de música.

— Ora, vamos, não seja tão turrão assim. Todos sabem que música faz bem para a alma. Até mesmo nessa época isso deve ser verdadeiro.

E era. Bakugou perdera a conta sobre quantas vezes havia ouvido isso de seu pai. Eles tocavam em sua tribo, um ritmo rápido e frenético para ser dançado ao redor da enorme fogueira central, acompanhado pelo bater dos pés no chão e pelas palmas. Ele gostava de assistir à distância, gostava de sentir o pulsar daquela batida como se fossem seus próprios batimentos, reverberando no solo e nos corpos de todos, uma música de gratidão e felicidade. Entretanto, se a guerra chegasse a eles, não haveria mais tempo ou espaço para música.

O assobio persistiu e ele desistiu, focando-se apenas em manter um pé atrás do outro e sustentar um ritmo relativamente rápido. As asas de Kirishima estavam encolhidas ao máximo, tentando serem discretas, no entanto, sua cor e brilho ainda se destacava em meio a tanto verde. Ele precisaria lembrar de lhe comprar um manto caso passassem por alguma aldeia no caminho de volta. Depois percebeu o que estava pensando e sacudiu a cabeça. Ele não precisaria lhe comprar nada pois em breve o mestiço tomaria seu caminho para longe de Bakugou.

Ao menos, era o que queria acreditar.

Ele o ultrapassou e correu a sua frente, os pés ágeis no chão e o corpo ligeiro nos movimentos. Bakugou imaginou o quanto de energia acumulada ele teria para gastar após tanto tempo adormecido.

— Acho que você precisa ver isso.

Sua voz veio em um tom alerta que o fez imediatamente acelerar o passo. Bakugou o alcançou e estacou na margem das árvores sem entender o que estava vendo.

— Não lembro de ter um campo aberto no caminho.

Bakugou franziu a testa, examinando com cuidado a ampla extensão a sua frente, vários e vários metros de grama e pequenas flores vermelhas estendendo-se até a margem na qual a floresta continuava. Ele não gostava daquilo. Atravessar um campo como aquele significava estar completamente exposto a ataques, sem qualquer tipo de cobertura em que pudessem se apoiar. Por outro lado, eles estavam com pressa e aquele era o caminho mais rápido de volta a sua tribo.

— É só um campo florido? Que mal pode fazer?

— Se você soubesse como os deuses amam ouvir essas palavras não as diria assim tão levianamente — ele resmungou, puxando a espada curva para mais perto, apenas por precaução, claro.

Havia algo no ar que deixava seus instintos alertas, mas eles estavam ficando sem tempo, não podiam se dar ao luxo de procurar uma rota que contornasse aquele campo, significaria dias perdidos e mais sangue em suas mãos. Bakugou suspirou, cedendo ao caminho de má vontade.

— Tudo bem, vamos atravessar. Mas quero que fique de olhos e ouvidos atentos, tem alguma coisa nesse lugar que não parece certa.

Kirishima assentiu, lançando um sorriso sobre o ombro como se quisesse assegurar que tudo ficaria bem. Katsuki temia isso. Era quase um consenso geral de que o caminho mais simples acabava por se revelar o mais perigoso.

Lado a lado eles entraram no campo. Passos lentos e cuidadosos, olhos atentos e orelhas antenadas aos menores movimentos. O ar ali parecia estático demais, Bakugou sentia falta da brisa e do cheiro terroso que esta trazia. Ali, havia apenas o perfume intoxicante das flores a lhe subir à cabeça. Mas era o silencio que mais o perturbava, a ausência completa de quaisquer ruídos indicando que outros seres vivos habitavam aquela área. Não havia nada e a ausência de barulho era completamente aterradora. 

— É estranho não termos encontrado nada ainda – murmurou mais para si mesmo, como se quisesse se certificar de que não estava imaginando coisas.

— Você está reclamando? É algo bom, não é?

— Nada pássaros trinando ou o ruído das cigarras, isso não pode estar certo. Algum dia já passou por um lugar tão silencioso assim? E essas flores, elas são familiares, mas minha mente está muito pesada para que eu possa me lembrar. O que está acontecendo?

— Não acho que esteja acontecendo nada. – Ouviu um barulho vindo do outro que se assemelhava muito com um bocejo. — Mas, por algum motivo, eu estou me sentindo meio tonto.

Katsuki também sentia uma letargia incomum se infiltrando em suas veias. Os olhos pesaram, de repente cansados demais para manter-se abertos por mais tempo. Ele beliscou o próprio braço para se manter alerta, eles já haviam atravessado metade da extensão do campo. Mas foi somente quando ele avistou o cervo adormecido que finalmente entendeu.

— São papoulas! — Exclamou, a voz saiu grogue e sua energia parecia haver desaparecido. — As flores do sono da morte.

A sonolência se espalhava por seu corpo, puxando-o para baixo e mais baixo, convidando-o a deitar-se na relva e se entregar a um sono tranquilo e sem preocupações. Ele lutou contra aquilo, mas suas pernas amoleciam a cada passo. De algum modo sabia que se cedesse, nunca mais acordaria. E então tudo pelo que viera lutando estaria perdido.  Não. Ele era Bakugou Katsuki, um guerreiro, um protetor, defensor de sua tribo, e não seria derrotado por algo assim.

— Vamos lá, cabelo de merda, fique acordado, está ouvindo? — Tateou às cegas, encontrando o braço dele e o chacoalhando. — Você não pode dormir!

Doces sussurros o chamavam. O cheiro entorpecente das papoulas rodopiava a sua volta. Talvez se ele apenas parasse um minuto para descansar poderia recuperar sua energia o suficiente para continuar. Seus pés pararam de se movimentar e ele sentiu Kirishima colidir contra suas costas, o corpo tombando para o lado e os olhos quase completamente fechados.

Com um esforço hercúleo, Bakugou alcançou sua adaga na base da coluna e a puxou, aproveitando-se do movimento para perfurar sua coxa de uma só vez. A dor que subiu pelos nervos afastou parte da dormência em seus músculos e ele conseguiu pensar novamente. Guardou a adaga e puxou Kirishima pelo braço, apoiando seu corpo e o tratando de fazê-lo andar novamente.

— Estamos quase lá, quase lá — murmurou para ele, ou talvez para si mesmo. — Só mais alguns passos agora.

Ele já podia ver a beira das árvores, o verde reconfortante que gritava vivacidade. Um passo. Mais um. Logo os dois tropeçavam para o interior da floresta, colidindo de modo desajeitado com os troncos até atingirem o chão. Bakugou enfiou os dedos no corte que causara em si mesmo, deixando a dor fluir por seu corpo até que houvesse recuperado o pleno controle novamente. Quando isso aconteceu, ele se sentou para conferir como Kirishima estava e se pôs em alerta ao ver que seus olhos estavam fechados. Virando o corpo dele de busto, agarrou seus ombros e o sacudiu com força.

— Acorde — ordenou. — Acorde! Vamos logo, seu meio dragão de merda, acorde!

Não estava funcionando, apenas chama-lo não era o bastante. Outra ideia lhe ocorreu e ele o puxou pela gola, erguendo sua cabeça um pouco do chão. Felizmente, Bakugou não era alguém muito chegado a cortesias, pois o que estava prestes a fazer não entrava para a lista de boas maneiras. Ergueu a mão e a desceu com força, estapeando-o nas bochechas e esperando assim que a dor fizesse o seu trabalho de despertá-lo.

— ACORDE – gritou, a voz tomando o comando de quem dá uma ordem.

Os olhos vermelhos se abriram, atordoados, mas alertas. Bakugou parou o próximo tapa a tempo e o largou novamente no chão enlameado, exalando pesadamente.

— O que aconteceu? Por que você estava me batendo? — Ele perguntou confuso, tocando o local dolorido.

— O campo aparentemente inofensivo era na verdade um campo da morte de papoulas. Se você dormir ali é o fim – explicou, recostando-se na árvore para respirar ar novamente puro. — É uma armadilha mortal para qualquer um que caia nela. Tivemos sorte dessa vez.

— Você me salvou — ele disse, surpreso, percebendo o que havia acontecido. Olhos vermelho muito arregalados o encararam descrentes. As bochechas vermelhas denunciavam o esforço necessário para acordá-lo. — Mesmo depois de ter dito que caso eu caísse em alguma armadilha não iria se incomodar em ajudar.

— Tsc. — Ele fez. — Preferia morrer? Ainda pode retornar lá se assim desejar.

— Não, mas você me salvou.

— É claro, cabelo de merda! — Irritou-se. — Eu sou a porcaria de um guerreiro protetor, fui treinado para isso. — Bakugou se ergueu e caminhou até a beira do lago que havia acabado de notar estar perto, mergulhando as mãos em concha e jogando a água no rosto para se livrar de qualquer vestígio do aroma daquelas flores. Quando se virou para ver o que o dragão idiota estava a fazer, encontrou-o ajoelhado no mesmo lugar, o braço cruzado contra o peito, encarando-o como se fosse um súdito aos pés de seu rei. — Que porra você está fazendo?

— Você salvou minha vida. Meus ancestrais sempre disseram que esse ato é uma promessa, uma ligação entre os envolvidos, e que toda boa ação deve ser devolvida. Portanto, agora eu o seguirei e auxiliarei em sua batalha.

— Já disse que não preciso da sua ajuda. Encontrarei outro modo de vencer e você está livre para buscar o que quiser, então pode parar com isso agora.

Ele prosseguiu como se não houvesse escutado.

— Eu o ajudarei a vencer essa guerra, Bakugou Katsuki — disse solenemente, os dedos cruzados sobre o coração e a cabeça inclinada de forma respeitosa. — Serei seus olhos e asas no céu. Serei o fogo que queimará seus inimigos. Serei a força que os enviará para o outro mundo. Tudo que peço em troca é que deposite sua confiança em mim. Pode fazer isso?

Bakugou engoliu em seco, a declaração ressoando em seus ossos. Sua tatuagem ardeu com a certeza, aquilo é o que devia acontecer. Sua mente estratégica questionou seus princípios e venceu sua raiva. Ter um dragão ao seu lado seria uma vantagem, um trunfo não esperado. Isso se Kirishima reaprendesse a usar seus poderes e conseguisse conjurar sua verdadeira forma até a batalha. E ainda havia os olhos, a confiança impregnada naqueles rubis, a promessa da vitória. Ele pigarreou. Se confiar era a única coisa que precisava fazer, ele poderia aprender durante o caminho. Ajoelhou-se a frente dele e imitou o gesto sobre o peito que ele fazia.

— Confiarei em você com a minha vida.



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