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História Transcendental - Capítulo 03. A cidade no meio do caminho


Escrita por: Nathymaki

Capítulo 5 - Capítulo 03. A cidade no meio do caminho


O dia chegava ao seu ápice quando eles enfim pararam para descansar. Bakugou se via forçado a admitir que estava impressionado com o vigor de Kirishima e, acima de tudo, com o pouco cansaço que ele parecia demonstrar. Após sete dias e sete noites de árduas caminhadas e escaladas, ele já havia se habituado a companhia do outro e ao jeito efusivo e entusiasta com que ele parecia agir com tudo. O fato mais incrível, no entanto, era que Katsuki gostava de sua companhia.

Ele se pegava ocasionalmente o observando, estudando o sorriso fácil que sempre lhe aparecia nos lábios, o impulso de liberdade que o acometia ao se jogar nos céus e navegar por entre as copas com os braços estendidos e giros graciosos. Por mais que temesse ser avistado e ter sua localização exposta, o guerreiro não conseguia impedi-lo de voar, ele não seria capaz de lhe negar essa autonomia, aquele momento que lhe parecera um escape de tudo, no qual somente os céus e o vento poderiam compreendê-lo. Com Eijirou ali, a floresta parecia menos solitária e mais vívida, como se de algum modo sua presença despertasse nela partes há muito adormecidas.

Eles colheram maçãs frescas das frondosas macieiras que cercavam a trilha gasta pela qual seguiam, amoras doces e carregadas dos arbustos, e mergulharam as mãos nas águas límpidas da nascente. Kirishima rolou na grama repleta de flores silvestres e se espreguiçou confortavelmente antes de esticar bem as asas ao sol. Katsuki apenas observou em silêncio, as mãos trabalhando no ato repetitivo de mover a pedra de amolar pela lâmina curva da espada, o chiar do contato contra o metal sendo o único som a retumbar pelo espaço.

Ele precisava dar o braço a torcer, aquele era um daqueles raros momentos onde todas as coisas pareciam estar no lugar a que pertenciam e o mundo girava em sua perfeita harmonia. Bakugou havia dito que aprenderia a confiar nele, agora via que essa não seria uma tarefa tão difícil quanto havia pensado. Um suspiro satisfeito veio de onde Kirishima se encontrava deitado, o vermelho das escamas refletindo a luz do sol como as chamas ardentes de uma fogueira. Bakugou considerou a questão que vinha corroendo sua mente desde o incidente com as papoulas. Além do voo, ele não o vira demonstrar mais nenhuma outra habilidade fantástica que era dita ser parte de sua espécie. Fazendo algo a que não estava habituado, ele quebrou a aura de tranquilidade e resolveu externar suas dúvidas.

— Então — começou, um pigarro rouco lhe saindo da garganta evidenciando seu desconforto de ser aquele que inicia a conversa. —, dragões não deviam ser seres cheios de poderes fenomenais e labaredas de chamas de tamanho espetaculares?

No chão, Kirishima fez um muxoxo descontente. Ele se virou de bruços e passou a arrancar as pequenas flores brancas que se espalhavam pela grama verde e torcê-las juntas em um complicado arranjo. O meio dragão permitiu que a pergunta pairasse no ar entre eles e brincou com o que deveria responder em sua mente. No entanto, antes que Bakugou perdesse sua já pouca paciência, ele disse em um tom brincalhão, mas não muito feliz:

— Você tinha que tocar no assunto. — Afastou uma folha murcha do seu trabalho e observou o perfil do loiro que se manteve em silêncio, aguardando a resposta. Suspirou. Não fazia sentido esconder isso dele agora, não depois da promessa que havia feito e para o que eles estavam se encaminhando. — Sim, você tem razão, dragões são criaturas de poderes incríveis, mas por algum motivo os meus não estão funcionando como deveriam. — O canto de sua boca se inclinou, descontente. Admitir sua quase inutilidade além de ser doloroso era um golpe forte em seu orgulho. — Tenho sorte, imagino, de ainda ter as minhas asas. Tudo seria bem pior sem elas.

— Como pretende lutar sem poderes? — A pergunta soou rude, mas arrancou uma risada do ruivo.

— Você vai lutar e não tem nenhum poder que eu saiba. — Apontou. Bakugou fechou a cara diante esse cutucão.

— Não — admitiu a contragosto. —, mas ao menos eu tenho treinamento. E você? Ao menos sabe o que está fazendo? Quem não me garante que sabe mesmo o modo certo de voar?

Foi a vez de Kirishima fazer uma careta. Ele se sentou, expandindo as asas nas laterais do corpo sem, entretanto, erguer os olhos do que tinha em mãos. Exibido, Bakugou pensou, estranhamente divertindo-se com o fato.

— Primeiro de tudo: não há um modo certo de voar. É instintivo, uma espécie de impulso primário que ressoa em seus ossos. Você simplesmente sabe. É como respirar. Ou vai me dizer que você precisou aprender como se respira?

Bakugou ignorou a provocação.

— E quanto ao resto?

O sorriso dele diminuiu.

— O resto você aprende como tudo mais na vida: com prática e repetição. Passei mil anos adormecido, não pode me culpar por estar um pouco enferrujado.

Era um bom ponto. O silêncio se prolongou por alguns instantes enquanto Kirishima refletia acerca de seus poderes. Ele ainda podia senti-los ali, pairando logo abaixo da superfície, mas de algum modo inalcançáveis. Não importava o quanto ele tentasse evocar para si aquela chama, a faísca primordial de todo o seu ser, ela permanecia silenciosa e distante, como se ainda não houvesse despertado por completo.

— Mas eu sei que algo está errado. É como se houvesse uma barreira me impedindo de alcançar os poderes e, por mais que eu me jogue contra ela, não consigo quebrá-la. — Ele bufou, frustrado.

— O que é isso em seu pescoço? — Prosseguiu o guerreiro, olhos astutos e pensamento desconfiado, encarando o brilho de bronze que havia aparecido após o lenço feito do próprio manto que o cobria se mover. Kirishima devolveu a peça ao seu lugar, tocando brevemente o colar sem entender o propósito da pergunta.

— Um colar.

Bakugou revirou os olhos.

— Quero dizer: como o conseguiu?

— Não lembro exatamente. Provavelmente foi há muito tempo. — Ele franziu a testa, o lampejo do momento lhe escapando da mente. — Serve para proteção, eu acho. — Bakugou nada disse, apenas o encarou de um modo avaliativo. — Não me diga que está chateado por não ter um. Posso mudar isso se assim deseja. — Os dedos trançaram a última flor e as mãos logo ergueram o que se mostrava ser uma delicada coroa feita com elas. Não tinha mais de dois dedos de altura, mas era evidente a habilidade com que havia sido feita. — Aqui, está pronto. É toda sua.

Bakugou ergueu as sobrancelhas ao perceber o brilho predatório tomando conta daqueles olhos rubros e sua mente não tardou a processar o que ele desejava.

— Não — disse curto e seco, segurando o cabo da espada com mais força. — Nem pensar. Eu definitivamente não uso coroas de flores trançadas a mão, muito menos coroa de flores alguma.

— Mas eu fiz especialmente para você. — Ele lhe lançou seu melhor olhar magoado.

— Não me interessa. Nem mesmo se a minha vida dependesse disso, nada nessa terra me faria usar.

O mestiço apenas piscou, se era para ser assim então cabia a ele mudar os fatos. Afinal, ele não era exatamente uma criatura pertencente unicamente a terra. Logo suas asas batiam com uma força muito superior à que Katsuki esperava enquanto ele se lançava pelo ar em sua direção a uma velocidade impressionante. Não houve tempo para se colocar em posição de combate, muito menos para erguer a espada e desferir algum golpe; houve apenas o silvo do ar e o peso súbito depositado sobre sua cabeça enquanto Eijirou planava para longe, observando o seu feito.

— Combina com você. — Ele riu, satisfeito.

Katsuki piscou ao perceber o que havia acontecido. Seus lábios formaram uma exclamação surda e então se curvaram para baixo, em uma fúria descontente.

— Você… — ele quase rosnou, como um animal acuado e muito, muito perigoso.

Kirishima, temendo por sua vida, se afastou mais alguns palmos da espada de aparência muitíssimo afiada e das mãos estendidas e ameaçadoras do guerreiro.

— Ora, vamos, vai me dizer que você nunca usou uma dessas antes? — Ele sorriu, brincalhão, tentando aliviar a tensão que via nos músculos dele.

 — Não – ele rosnou de volta. — E não é agora que isso vai mudar. — Com um movimento rápido, ele puxou a coroa de sua cabeça e a deixou cair no chão ao seu lado, voltando-se a se sentar em um silêncio irritado e taciturno.

— Sem graça. — Kirishima suspirou, decepcionado, planando de volta e parando a alguns metros seguros de Katsuki, dando-lhe o tempo necessário para que pudesse se acalmar.

Ele o analisou com curiosidade perguntando-se o que havia de tão mal em apenas algumas flores que pudesse ser tão ofensivo. Ah, a masculinidade frágil dos guerreiros, ele nunca a entenderia. Sem medo, caminhou até onde o enfeite havia caído e o tomou de volta em mãos, parando apenas para averiguar se ele o havia de algum modo estragado. Não havia. Ele se permitiu sorrir, pois embora zangado com a brincadeira, o outro não tivera o impulso de destruir aquilo que havia lhe infligido tanto aborrecimento. Contendo os comentários provocativos que gostaria de fazer, se contentou em explanar aquela dúvida simples que vinha flutuando em sua mente desde o momento em que haviam se encontrado pela primeira vez.

— Se você é mesmo um guerreiro, por que não tem nenhuma marca?

Embora irritado, Katsuki virou-se para fitar o outro que o encarava com uma curiosidade inocente. Não conseguiu manter a pose de durão, então se regelou a responder de um modo não muito paciente.

— Marcas? Não usamos marcas, elas só atraem atenção indesejada e se destacam em meio as matas. É o mesmo que virar um alvo fácil.

— Mas são importantes. – O ruivo teimou. — As marcas falam sobre sua coragem e pedem pela sua proteção. Ninguém pode partir em batalha sem elas.

— E o que você espera que eu faça? – Ele revirou os olhos, desconsiderando o fato. — Encontre um bando de dragões inexistentes e peça a eles? – Só quando notou a luz se apagar dos olhos dele foi que percebeu o que havia dito e como as palavras o haviam magoado. Recuou, uma coisa era aquela menção tácita pairando entre eles de que não haviam mais dragões ou outros membros de sua espécie percorrendo o mundo; outra, era ele atirar assim a verdade em sua cara, sem considerar o quanto ele já tinha consciência desse fato. — Kirishima, eu não quis...

— Sei disso. – Ele respondeu, a voz rouca, dura demais, como se estivesse se forçando a engolir de volta os sentimentos que lhe subiam pela garganta. Pigarreou, respondendo à questão como se esta não fosse nada. — Você podia me deixar fazer.

Bakugou piscou com aquele pedido inesperado, toda a irritação desaparecendo num rompante. Ele não compreendia muito bem a motivação por trás dele, mal sabia o quanto Kirishima vinha sonhando ao longo dos dias com sua infância perdida, com os cheiros esquecidos e puros que o ar antes ostentava, com a confusão de cores e linhas fortes que estavam em toda parte, adornando, contando sobre atos de bravura e agradecendo aos céus pela sua vida na terra. Não havia durado, mas ele ansiava por aquilo de novo, uma parte daquela familiaridade que um dia havia conhecido e que agora estava morta para sempre.

Ele não viu tudo aquilo em seus olhos, mas sentiu um formigamento em seu estômago, as escamas em suas costas aquecendo-se de um modo incentivador, como se quisessem lhe mostrar o quanto aquilo era importante. Engolindo em seco, ele finalmente se rendeu. Algo naqueles olhos implorativos e convincentes era mais forte do que a sua teimosia em manter a postura de guerreiro poderoso e impenetrável.

— Que seja rápido – resmungou, perguntando-se o que havia acontecido consigo para estar cedendo assim com tanta facilidade.

O olhar animado que recebeu de volta o fez sentir a necessidade de desviar os olhos. Era brilhante e feliz demais para uma simples permissão. Algo em seu peito queimou com uma certa insistência e ele engoliu o sentimento, franzindo a testa ao vê-lo abandonar a coroa de flores em um canto e saltitar em direção ao arbusto de amoras, colher várias frutas e ervas do chão, para então esmagá-las entre as palmas com uma expressão concentrada. Kirishima retornou ao lugar onde ele se encontrava sentado e todo o seu corpo se contraiu ao senti-lo se aproximar mais, a tensão se espalhando pelos músculos, preparando-o para reagir em caso de um ataque súbito.

— Eu não vou te machucar — ele sussurrou baixinho, olhos vermelhos suaves nos seus, a mão estendida pingando o sumo vermelho e rico enquanto esperava que Bakugou consentisse.

— Você não conseguiria — resmungou de volta, relaxando minimamente a postura. O meio dragão riu, divertindo-se com a certeza que ele parecia ter e como os olhos dele o encararam de volta avisando para não o provocar. Piscou em resposta e começou a trabalhar.

Bakugou sentiu os dedos em sua pele, o toque leve e preciso, a fluidez dos movimentos como se estes estivessem tão gravados em seu corpo quanto as linhas em sua pele. Ele observou os olhos dele firmes e focados, a boca contraída enquanto o tracejado seguia por seu pescoço, queixo, bochechas e têmporas. O sumo morno escorria por sua pele enquanto o torso de suas mãos era marcado e os pulsos contornados.

Katsuki se perguntou se era assim que os dragões se sentiam, se as chamas percorrendo as veias sob sua pele lhes eram tão corriqueiras quanto as que sentia no momento. Havia a respiração constante de Kirishima tomando o parco espaço entre eles, a pele do rosto se avermelhando conforme o fim se aproximava. Bakugou mordeu os lábios e respirou fundo, controlando-se. Sua tatuagem ardeu em certeza e simpatia. Ele a mandou se calar. Sabia que o outro podia sentir o movimentar agitado do seu corpo e o peso irregular que sua respiração tomou. Não importa o que ele vai pensar, disse a si mesmo. Então, quando já não podia mais suportar e estava prestes a empurrá-lo para longe, o ruivo se afastou com um largo sorriso e uma aura de entusiasmo e satisfação o rodeando.

— Terminei! — Exclamou. — Por que não dá uma olhada?

Bakugou lhe lançou um rápido olhar feroz e então caminhou até a beira da nascente, inclinando a cabeça de modo a se ver refletido nas águas calmas. Ele encarou o próprio rosto, as linhas brutas e angulosas nas laterais de sua face, o modo como cruzavam-se impetuosamente entre si e destacavam seus olhos, e sentiu novamente aquela onda de poder e certeza perpassar seus ossos. Era algo belo e brutal, marcas que contavam sobre coragem em batalha e entidades que um dia haviam dominado céus e terra. Aquelas marcas faziam-no se sentir invencível.

— O que achou? — Kirishima perguntou timidamente as suas costas.

Ele se afastou da água e juntou novamente seus pertences.

— Precisamos continuar — foi tudo o que respondeu, não percebendo o pequeno sorriso apreciativo que insistia em curvar seus lábios.

Kirishima riu para si mesmo com a atitude dele e o quanto parecia lhe custar dizer um simples elogio ou mesmo um agradecimento. Porém, lá no fundo ele sabia, de algum modo conseguia sentir a satisfação bruta que agora pulsava em seu peito.

Sem dizer mais uma palavra, Eijirou o seguiu novamente para a floresta.

……………………………….

Após mais três dias de caminhada incansável, eles enfim avistaram uma cidade localizada ao sopé de uma pequena elevação. Bakugou estudou o mapa e descobriu que seu nome era Al-Kurah e se tratava de um dos três grandes pontos de comércio da região. Ele não gostava da ideia de se afastar da cobertura segura das matas, no entanto, com os suprimentos em baixa e relembrando o pensamento que havia tido anteriormente, acabou por ceder a necessidade.

Bakugou foi primeiro, uma vez que as asas e o cabelo muito vermelho de Kirishima não só chamariam muita atenção indesejada como poderia levantar comentário e até mesmo ser um motivo para que os atacassem. Ele não gostou muito da ideia de ser deixado sozinho na floresta e Katsuki precisou prometer que o levara para conhecer a cidade quando retornasse. Sem conseguir dizer não para aqueles olhos de corça, ele o fez. Sua passagem foi rápida e quando voltou trazia uma capa cinza a qual estendendo para o ruivo em um pedido mudo para que ele a usasse. Agora, com as asas bem ocultas, eles partiram.

Adentraram a cidade e Kirishima mal conseguiu se conter. Sua cabeça se voltava a todo instante em todas as direções, os olhos rubros absorvendo cada detalhe que podiam, os cheiros deliciosos de comida quente e doce, o murmúrio agitado das pessoas que passavam comentado o seu dia e diversos outros assuntos, o formato das construções elevando-se em direção aos céus como se estas tentassem alcançá-lo.

Contra seu desejo, Bakugou sentiu a carranca em seu rosto se suavizar ao observá-lo caminhar ao seu lado. Kirishima era todo curiosidade inocente e ações desprovidas de segundas intenções. Ele trocou suas últimas moedas de bronze por comida para vários dias e encarou enquanto o ruivo corria ao redor da fonte localizada na praça central da cidade cercado por crianças que pulavam em contentamento. Quando elas enfim se cansaram, o mestiço retornou ao ponto onde Bakugou observava, um largo sorriso em seu rosto e quase pulando no mesmo lugar de empolgação, e aceitou o brioche recheado de geleia que ele lhe estendia.

Haviam risos no ar, o cabelo de Bakugou brilhava a luz dos últimos raios de Sol enquanto ele o observava devorar o pão, a bochecha marcada com o recheio. O coração de Kirishima estava ardendo com um calor ameno em seu peito como há muito tempo ele não havia sentido. Ali, com os sons de fim de tarde se espalhando entre as pessoas, ele enfim sentia cada peça do mundo em seu devido lugar. Porém, exatamente como a calmaria antes da tempestade, aquele momento não duraria por muito tempo.

E quando a tempestade caiu, eles não estavam preparados para ela.

Tudo começou com um pequeno ponto de luz descendo do céu como um presságio feito de chamas, crescendo mais e mais conforme se aproximava. Os olhos de todos os habitantes se voltaram para aquele ponto, a atenção convergida e focada, até que o primeiro grito veio. O som apenas se espalhou, aumentando em tamanho e intensidade por toda a aldeia, partindo de cada um dos presentes. De olhos arregalados, eles assistiram a pedra banhada em piche e coberta de chamas atingir a padaria onde há apenas alguns minutos Bakugou havia estado. As paredes desabaram, as cestas foram lançadas no chão e o pão fresco rolou pela rua enquanto todo o prédio se incendiava.

De repente, a balbúrdia estava em toda parte. Caos. Pessoas correndo para se salvar ao mesmo tempo em que uma nova rocha era lançada sobre a cidade. Bakugou puxou Kirishima para o chão, protegendo-se do impacto que trouxe a fonte a poucos metros de onde estavam ao chão. O choro das crianças se misturou a confusão, mas nem mesmo isso conseguiu abafar o ruído de milhares de pés em marcha, pisando em um ritmo sincronizado. Tambores soaram, martelando juntamente ao ritmo irregular de seus corações, e soldados despontaram na entrada da cidade em suas armaduras brilhantes e armas mortais.

Bakugou empurrou o pedaço de madeira que caíra sob eles e puxou a espada, correndo com agilidade para a aglomeração bem a tempo de enfiar a lâmina no pescoço de um dos soldados que brandia sua espada contra uma das crianças cujo pé se encontrava preso embaixo dos escombros. Kirishima correu para ajudá-la a se libertar enquanto um segundo e um terceiro inimigo apareciam para substituir o companheiro agora morto no chão. Ao seu redor, vários homens moviam-se em direção aos seus ancinhos e forcados determinados a defender seu lar do modo que podiam. Eles tinham o próprio orgulho, a própria convicção em sua plena liberdade, e não se deixariam dominar sem antes apresentar resistência.

Os sons da batalha rugiram como uma melodia intensa ao seu redor. Kirishima viu as ações em câmera lenta, o balançar das espadas, o ruído agudo de metal raspando contra metal enquanto eles dançavam pela cidade derrubando qualquer um que aparecesse pelo caminho, a expressão feroz no rosto de Katsuki ao erguer a lâmina curva e se lançar em direção a uma mulher que corria abraçada ao seu bebê, abatendo quantos podia pelo caminho, manchando as ruas com um carmim brilhantes e quente. Ele sabia que devia ajudá-lo, que eram inimigos demais e, por mais formidável guerreiro que fosse, uma hora ele sucumbiria. Além disso, ainda havia o seu juramento: havia prometido a Bakugou que ajudaria.

No entanto, com o urrar dos soldados e os gritos dos cidadãos a fugirem desesperados se mesclando no ar, ele se viu paralisado. Os membros não se moviam, a mente presa em uma espiral de memórias também regadas a fuga e medo; urros mais poderosos tomando conta do ar e a cidade desaparecendo, dando lugar as montanhas íngremes e picos altos onde um dia havia sido o seu lar. O cenário se formou ao seu redor, fogo se espalhando, serpenteando pelo ar, rochas voando em todas as direções, o brilho de um poder mais escuro e sombrio sobrepujando tudo. Guerra, caos, destruição. Em meio a tudo, uma voz rouca que lhe pedia desculpas e então nada. O nada aterrador e absoluto que lhe tomara tudo por um milênio.

— Kirishima – a voz o chamou, fraca demais, longe demais para que ele pudesse sequer ouvi-la com clareza. Tudo que havia era o rugir daqueles que haviam sido seu bando, sua família, em seus últimos segundos antes da completa aniquilação. — Kirishima, você tem que acordar! Vamos logo, cabelo de merda, estamos na porra de uma batalha, não pode simplesmente entrar em transe assim!

Bakugou o sacudiu, o capuz escorregando e descobrindo deus cabelos vivos, puxando-o por entre os camponeses que debandavam desordenadamente em direção a floresta ou qualquer outro lugar que não ali. Os soldados do Rei marchavam brutal e imperiosamente, o eco de suas botas reverberando no ar, o cheiro das cinzas e o calor súbito do fogo implodindo de diversas construções as quais logo não seriam nada mais além de pó. Ele derrapou na lama de um chiqueiro no meio do caminho e agarrou os ombros do mestiço com mais força, a cabeça partindo em direção a dele com tudo o que tinha. Katsuki sentiu a pancada o atordoar e o sangue quente escorrer por sua testa, pingando bem diante dos seus olhos da mesma cor dos olhos desfocados que Kirishima exibia.

Assim, cara a cara, olhos vermelhos fitando seus similares, as respirações se mesclando na pouca distância que ainda separava seus rostos, Bakugou sussurrou furiosamente:

— Você me fez uma promessa. Como pode se chamar de dragão se nem mesmo consegue cumpri-la? Eu preciso que você acorde. AGORA!

E assim ele o fez.

Arrancado da lembrança de sangue e fogo, ele se viu em um ambiente semelhante. Olhos vermelhos o encaravam muito ferozes, mas inegavelmente aliviados.

— Já era hora – ele grunhiu, afastando-se e limpando o sangue no manto. — Vamos agora, precisamos sair antes que nos cerquem.

Ainda confuso, Kirishima o seguiu pelos becos arruinados, os sons das trompas e do arrastar de pés se tornando perigosamente mais próximos. Eles se uniram para derrotar os inimigos avulsos que encontravam pelo caminho, Bakugou girando sua espada com habilidade, não sendo preciso mais de dois golpes de cada para liquidá-los, demonstrando todo o seu treinamento e experiência em batalha, enquanto Kirishima os atingia com os punhos nus, mas força o suficiente para lançá-los em direção a parede. Mesmo com seus poderes em baixa, ele ainda tinha força o bastante para auxiliá-lo e não se tornar um peso morto para o loiro. Eles correram, olhos fixos naquele mar verde que agora parecia tão acolhedor, perdendo por isso o momento exato em que seu caminho foi interceptado.

— Capturem o ruivo! – Uma voz gritou em meio ao mar de soldados. — Nosso Rei o quer vivo!

Os olhos de Bakugou se voltaram para ele arregalados em espanto e compreensão súbita. Kirishima girou, desviando das espadas afiadas e das mãos estendidas prestes a lhe agarrar, sendo puxado pela capa que logo se rasgou, deixando suas asas expostas. Um murmúrio percorreu as fileiras, antes que uma nova ordem do Comandante os fizesse calar. A alguns metros adiante, Katsuki lutava ferozmente, tentando abrir caminho por entre os inimigos para chegar até si. Ele sentiu a dor de ter a pele cortada, o choque da vulnerabilidade que se apresentava em gotas vermelhas. Não durou, pois, no momento seguinte, ele assistia à queda do guerreiro, uma espada atravessada em seu abdômen e ainda assim ostentando uma expressão selvagem. Não reconheceu o urro que lhe escapou pelos lábios, mas o som se espalhou por entre o exército, forte e perigoso, tilintando o metal e fazendo os soldados vacilarem.

— NÃO!

Ele se lançou naquela direção, varrendo aqueles em seu caminho para o lado com uma batida poderosa das asas, e lançou os braços ao redor do guerreiro cujos olhos agora exibiam um ar desfocado. O corpo dele tremeu em seus braços, inconscientemente ainda tentando voltar para a batalha e lutar. O cerco se fechou mais ao seu redor e, naquele momento, Kirishima percebeu que só havia um caminho pelo qual poderiam fugir. 

Com um último esforço, ele agarrou Bakugou com mais firmeza e estendeu as asas, lançando-se para os céus. Sua asa ainda não totalmente curada protestou pelo esforço, o corpo desmaiado do guerreiro pendendo molemente em seus braços. Não ia durar, ele sabia. Pedras em chamas choveram ao seu redor e ele sentiu as pontas afiadas das flechas se fincarem em suas costas, resfolegando pela dor que subia por sua espinha e se espalhava entorpecendo seus músculos. Eles já estavam perdendo altitude, as bordas de sua visão se tingindo de preto enquanto desciam em direção a copa cerradas das árvores.

Eles caíram como uma bala, colidindo contra os troncos e tendo o corpo arranhado pelos galhos no caminho. Kirishima rolou pela grama e pela lama, a cabeça chacoalhando de um lado para o outro, desorientado demais para saber onde estava, mas não o suficiente para se perguntar o que havia acontecido com Bakugou que fora arrancado de seus braços assim que haviam atingido o chão.

Não longe o suficiente, ele pensou, ainda ouvindo o barulho dos gritos e dos tambores odiosos a preencherem o ar. Alguns metros adiante, ele o viu. Os cabelos loiros manchados de sangue, os olhos fechados sem qualquer firmeza, o corpo imóvel. Tudo naquela imagem lhe parecia errado e em nada o lembrava do guerreiro que havia conhecido e com quem vinha convivendo ao longo dos dias. Bakugou não descansaria daquele jeito, não enquanto havia uma batalha em andamento. Sob seu corpo, a poça de sangue crescia e ele pode ver um pedaço reluzente de metal despontando do ferimento em seu abdômen.

Ele rastejou em direção ao outro, ignorando os ferimentos que se espalhavam por seu corpo e o sangue rubro que pingava no verde da grama. Seus dedos deixando marcas pelo solo as quais usava para se içar para a frente. Tudo que havia em sua mente era a necessidade de chegar até ele e se certificar que ele ainda estava vivo, aplacar aquela angustia que lhe tomava a garganta e lhe enchia os olhos de lágrimas. Não. Ele não podia mais perder ninguém. Kirishima não sabia se suportaria.

Mal havia conseguido se aproximar quando passos ligeiros se fizeram ouvir por entre as folhas. Ele se preparou, a visão borrada nos cantos, mas a expressão feroz e pronta para trucidar quem quer que ousasse se aproximar. Para sua surpresa, o que saiu por entre os arbustos não era um soldado, muito menos um animal assustado, mas sim uma coisa tão completamente verde que o fez paralisar. A criatura o encarou com olhos grandes e astutos, bochechas sardentas e pele esverdeada, antes de se curvar em uma profunda reverência. Quando falou, sua voz pareceu ecoar vinda de toda a floresta:

— Último dos dragões, aguardávamos sua chegada.



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