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História Trust me - Costumes de Lobisomem


Escrita por: LauraEllyse

Notas do Autor


bom dia meu povo <3 <3 <3

Capítulo 126 - Costumes de Lobisomem


Antes do exército, Parrish sempre odiou as manhãs. Odiava ter que acordar para a escola, e nunca se levantava antes das onze nos fins de semana. Mas, desde que voltara do Afeganistão, eram raras as vezes que conseguia ficar na cama muito depois do sol nascer. No começo eram pelos pesadelos, depois pela adrenalina acumulada. Levou um tempo até seu corpo entender que não estava mais em uma zona de guerra, e não precisava temer um bombeamento, ou um ataque repentino. Mas, depois de certo ponto, simplesmente se acostumou. Mesmo quando tinha turnos noturnos na delegacia, era como se simplesmente estivesse programado daquele jeito. Acordava cedo pelas manhãs, e isso não o incomodava tanto quanto antes.

Sua rotina era um tanto rígida pelas primeiras horas do dia, mas o ajudava a sentir que estava no mundo real. Fazia café, primeiramente, porque era a parte mais importante de todo o seu processo para despertar. Então tomava um banho e escovava os dentes. Nico normalmente o esperava na porta do banheiro. Após checar se o gato tinha comida e água, Parrish se exercitava uma hora e meia, e tomava outro banho logo em seguida. Só então, seu dia podia começar.

Nos dias em que, por algum motivo, tinha que quebrar aquela rotina, levava algum tempo para que seu cérebro funcionasse normalmente. Era como se agisse no automático, como se estivesse sonâmbulo, principalmente antes de seu café.

Foi por isso que, naquele dia, enquanto a cafeteira ainda esquentava a água, simplesmente foi até a porta quando ouviu alguém bater. Não pensou que era muito cedo demais, nem que nunca recebia visitas. Não sabia o que esperava. O correio, talvez. Mas definitivamente não esperava Lydia.

- Bom dia. - ela sorriu. Seus cabelos ruivos estavam amarrados em um coque frouxo, e vestia uma jaqueta larga fechada, acompanhada com uma calça de ginástica e tênis. Pendurada em seu ombro, estava uma bolsa comprida, do tipo que era considerada bagagem de mão em aeroportos. Quem a visse pensaria que estava indo para a academia, ou algo parecido. Mas tudo o que Parrish podia pensar, era que aquele era o mais casual que já a vira, e estava linda, e que era cedo demais para processar exatamente como se sentia com ela estando ali.

Então, os olhos da garota, que antes estavam em seu rosto, abaixaram, escaneando seu corpo. Quando voltaram para os de Parrish, estavam levemente arregalados, e seu sorriso já não era mais aberto. Ao invés disso, agora sorria de lado, com o lábio inferior preso entre os dentes.

Parrish demorou alguns segundos para entender sua reação. Foi só quando olhou para si mesmo que percebeu que não havia se vestido ainda. Não usava absolutamente nada na parte de cima, e sua calça de pijama era tão velha que o elástico quase não funcionava mais.

- Lydia! - seu cérebro finalmente entendeu o que estava acontecendo. Suas mãos imediatamente agarraram o cós da calça, erguendo-a até o umbigo em um movimento brusco. Ela não estava baixa o suficiente antes para que alguma coisa estivesse… aparecendo, mas ainda assim. - Lydia, eu não… ah… - limpou a garganta, tentando fazer sua voz funcionar. - Eu não estava te esperando. Esperando te ver. Aqui. Eu não…

- Você estava esperando outra pessoa? - ela ergueu uma das sobrancelhas.

- Sim. Não! Ah… - balançou a cabeça. - O quê?

- Quem você estava esperando?

- Ninguém! Eu não recebo visitas a essa hora. Ou nunca, para falar a verdade. Ah… - suspirou. Era cedo demais para aquilo. - Desculpa, eu ainda não tomei meu café. Minha cabeça ainda não está… - gesticulou vagamente o resto da frase.

- Que bom que eu te trouxe um, então. - Lydia estendeu a mão para ele. Realmente, ela carregava um copo de café em cada uma. Era uma informação completamente nova para o cérebro lento de Parrish. - Americano médio, preto.

Sua mão agarrou o copo quase em um impulso. Com o primeiro gole, um pouco da névoa em sua mente clareou. Talvez devesse diminuir seu consumo de café. Em momentos como aquele, não tinha como negar o quanto estava dependente.

- Obrigado. - disse, passando a língua pelos lábios. Foi quando finalmente percebeu que Lydia estava ali. - O que você… por que… aconteceu alguma coisa? Alguma coisa sobrenatural?

- Eu te disse que vinha.

Parrish piscou.

- Não, não disse.

- Sim, eu disse. Você prometeu me ensinar a lutar, lembra?

- Mas… - repassou a conversa do dia anterior. - Nós concordamos em esperar. Por causa da cirurgia. Temos que esperar você tirar os pontos.

- Concordamos mesmo? - ela fingiu pensar. - Se me lembro bem, você sugeriu esperar, e eu escolhi te ignorar.

- Oh, você escolheu? - um sorriso incrédulo se espalhou por seu rosto. - Simples assim?

- Simples assim.

- Bom, isso foi rude da sua parte.

- Eu te trouxe café para compensar.

- Você não tem aula?

- Eu só tenho duas aulas à tarde, e seu primeiro turno começa depois do almoço. É perfeito.

- E se eu tiver planos para essa manhã?

- Você não tem. - ela tentou dar um passo para frente, mas Parrish bloqueou sua entrada.

- Eu podia ter.

- Tem algum motivo para você não querer que eu entre? - Lydia cruzou o braços, em um desafio. - Você tem uma mulher aí?

- Não! - sua voz saiu um pouco mais alta do que o planejado. - Não, não, eu não… é claro que não.

- Algum cara? - deu de ombros.

Parrish riu.

- Só se aquele carinha contar. - se afastou um pouco para que Lydia pudesse ver Nico, que estava parado embaixo da mesa, em uma posição alerta e rígida, desde que Parrish abrira a porta. Seus grandes olhos amarelos eram a única cor em todo seu pelo escuro.

- Que lindo. - Lydia apoiou as mãos nos joelhos, se abaixando um pouco para poder vê-lo melhor. - Você nunca me disse que tinha um gato.

Antes que Parrish pudesse fazer alguma coisa, Lydia entrou. Quase imediatamente, Nico correu para o quarto, provavelmente para se esconder embaixo da cama.

- Não leve para o lado pessoal. - disse. - Ele odeia gente nova.

- Ele vai se acostumar. - ela respondeu, com completa segurança. Mais tarde naquele dia, quando seu cérebro estivesse funcionando, Parrish perceberia que aquilo implicava que Lydia estaria visitando seu apartamento mais vezes. Essa revelação o atingiria com tudo, e ficaria encarando a tela do computador, em sua mesa na delegacia, por cinco minutos, em choque. - Então é aqui que você mora.

Oh, Deus, seu apartamento estava uma bagunça. Em sua defesa, Parrish nunca recebia visitas. E sempre sabia onde suas coisas estavam, então não era como se organização fosse algo tão importante. Ainda assim, não pôde deixar de se sentir levemente envergonhado com todas as roupas jogadas no sofá, e a pia cheia da louça do dia anterior, e da estante cheia de coisas que provavelmente iriam para o lixo se tirasse um dia para analisar o que ainda era útil para ele. Contas, correspondências, alguns papéis que nem sequer sabia de onde vieram. Sem falar nas caixas da mudança ainda empilhadas na sala.

Seu apartamento era pequeno, muito menor do que tinha em sua cidade antiga. Desde que se mudara para Beacon Hills, ainda não havia se adaptado completamente. Agora que sabia que o único motivo por estar ali era uma atração sobrenatural de uma árvore cortada, sua motivação para se acomodar despencara consideravelmente. Aquelas caixas provavelmente nunca seriam desempacotadas.

- Eu não estava esperando receber visitas. - tentou se defender, mas Lydia não parecia incomodada. Na verdade, ela parecia completamente à vontade, e muito interessada nas coisas ao redor. Parrish não tinha certeza se isso era bom, ou ruim.

- Você toca violão? - ela se voltou para ele com um sorriso enorme. Ruim, Parrish decidiu.

- É só um passatempo. - tentou esconder o rosto ao beber outro gole de seu café. Esperava que ela não pedisse para ouvi-los. Suas tentativas na noite anterior foram deploráveis. Queria ter se lembrado de guardá-lo, ao invés de deixá-lo abandonado sobre o sofá. - Eu não sou bom, nem nada.

- E isso aqui? - ela andou mais para dentro da sala. Não tinha que andar muito, não era como se houvesse alguma divisão entre a cozinha, sala de jantar, e sala de estar. O interesse de Lydia era em sua mesa, ao lado da estante com a pequena televisão. - Você também nunca me disse que se interessava por robótica.

- Não é… - foi até ela. A ruiva olhava nas mãos várias das peças espalhadas pela mesa. Resistores, fusíveis, sensores, algumas placas simples, uma ferramenta de solda, e outras coisas. - Não é robótica, exatamente, eu só… - limpou a garganta. Não estava acostumado a falar sobre seus interesses para as pessoas. Ou nada de sua vida pessoal, para ser sincero. - Eu fiz um curso técnico de mecatrônica, durante o ensino médio, antes do exército. Eu gostava bastante, então às vezes eu… - deu de ombros, se sentindo idiota, de repente. - Sei lá, eu só… desmonto e monto algumas coisas. Faço uns experimentos. Não é nada.

- Esse é um passatempo interessante. - Lydia sorriu, enviando um olhar provocativo com o canto dos olhos. - Você também nunca mencionou isso. Você é uma pessoa difícil de conhecer, Jordan Parrish. Está tentando manter o mistério?

- Eu sou um livro aberto. - bebeu o resto de seu café. Lydia riu.

- Claro. - olhou em volta. - Oh, nós vamos usar isso?

Ela foi até o saco de boxe que Parrish usava para treinar, preso no teto do outro lado da estante. Deu alguns socos de brincadeira, sorrindo de maneira adorável. Parrish queria estar bravo por ela ter aparecido e entrado sem consultá-lo antes, mas estava feliz de tê-la ali. Fazia um tempo desde que tinha companhia.

- Viu? - a Banshee deu outro soco desajeitado. - Eu já sou praticamente uma profissional.

- Melhor do que eu. - ele concordou, sem hesitar. - Talvez você devesse me ensinar.

- Eu vou pensar no seu caso. - se virou para ele. - Mas eu vou te dar um tempo para se ajeitar, antes.

- O quê? - foi quando lembrou que continuava seminu. Não havia escovado os dentes, ou tomado banho, e nem sequer estava usando nada por baixo da calça de pijama. Tentou manter a pose casual, mesmo com o rubor que subiu por seu pescoço. - Sim, sim, eu vou… - apontou para seu quarto, já dando passos para trás.

- Eu espero. - sem cerimônias, ela liberou um espaço para si no sofá. Quando Parrish fechou a porta do quarto atrás de si, pôde ouvir algumas notas simples serem tocadas em seu violão.

***

Scott estava exausto. Sempre foi um pouco devagar para ler, e havia se recusado a ir dormir antes de terminar o livro, mesmo tendo aula no dia seguinte. Pareceu uma boa ideia no momento, considerando que talvez ele mesmo fosse uma quimera, mas se arrependia profundamente, agora que andava pelo corredor da escola.

- A gente precisa de um gatilho para nossa memória voltar, certo? - Nathan dizia, andando ao seu lado. - A minha é a mais fácil de conseguir, porque a gente sabe o que vai ser.

- Eles fizeram experimentos com você. - disse Isaac. - Que tipo de gatilho poderia…

- Provavelmente foi alguma cirurgia, certo? Então… sei lá. Se eu deitar em uma daquelas mesas, ou… levar uma injeção, ser cortado com um bisturi…

- Nate, a gente não vai te torturar para conseguir a memória.

- Uma injeção não é tortura, para de ser medroso.

- É a mesma coisa que ser esfaqueado! - Isaac argumentou, mas Nathan apenas revirou os olhos, como se fosse a milésima vez que tivessem aquela conversa.

- Você tem medo de agulhas? - Scott perguntou para o namorado.

- Você não sabia? - Nathan abriu um sorriso. - Quando ele teve que tomar a vacina de tétano…

- Cala a boca. - Isaac o empurrou. - E não, sua ideia é péssima.

- É uma ideia válida, na verdade. - Scott contrapôs, logo recebendo um olhar feio do loiro.

- É uma ótima ideia! - disse Nathan. - Scott, sua mãe pode fazer isso, não pode?

- Ainda acho péssimo. - Isaac resmungou.

- O Scott segura a sua mão, não se preocupa.

- Eu te odeio.

- Fiquem atentos. - Scott falou. - E prestem atenção nos outros, também. Malia quase bateu o carro quando a memória dela voltou. Se vocês virem os outros agindo estranho...

- A gente tem que prestar atenção em qualquer pessoa agindo estranho, não só nós. - disse Isaac. - Tem dez novas quimeras, lembra?

- E prestar atenção no barulho. - Nathan completou. - Sabe, o barulho que os doutores fazem quando estão por perto. Sabe, para o caso de eles virem me matar, e tal.

- O que não vai acontecer. - os lobisomens falaram ao mesmo tempo.

- Certo, certo. - o sinal bateu, e todos no corredor começaram a andar mais rápido. - Espero que não. Eu tenho muitas histórias constrangedoras do Isaac para contar no casamento de vocês.

***

- De novo.

Derek olhou para o teto e suspirou, como se perguntasse para o universo o porquê de sua vida ser tão injusta. Stiles não se deixou comover, apenas o encarou firmemente, mantendo o braço esticado para o beta, até Derek ceder.

Como se fosse uma tarefa árdua, Derek pegou o cobertorzinho de bebê da mão do namorado e o esticou na cama, ao lado de onde Stiles estava sentado no colchão. Em seguida, Stiles o entregou a boneca de pano que estavam usando para praticar. Era a quarta vez, mas a prática leva à perfeição.

Derek dobrou uma ponta do cobertor, e então deitou a boneca ali, com a cabeça de fora. O rosto de Stiles se manteve imparcial enquanto o beta manipulava o pano branco para que enrolasse o brinquedo, até que Derek por fim devolveu a boneca, agora em um perfeito pacotinho.

Stiles a pegou, analisando-a com um olhar crítico e duro. E então suspirou.

- Por que o seu fica melhor que o meu? - reclamou, fazendo um biquinho. - Isso não é justo, fui eu que te ensinei!

Derek quase sorriu, vitorioso, mas apenas deu de ombros.

- Algumas pessoas apenas têm o dom para a paternidade, não sei o que te dizer.

- Há há. - Stiles jogou a boneca nele. - É pior para você. Toda vez que tivermos que enrolar o Miguel, vou trazer ele para você.

- Esse não é...

- Tá bom, agora a fralda.

Ele tentou se levantar sozinho, mas Derek precisou puxá-lo para que conseguisse. Aproveitou que suas mãos estavam se tocando para sugar um pouco de sua dor. Como suspeitou, o mal estar - que Stiles não admitia ter - subiu por suas veias.

- Stiles, a gente não tem que praticar colocar uma fralda. Não é difícil.

- Como você sabe? Você já tentou, por acaso?

- A gente podia usar esse tempo para fazer coisas mais importantes. - argumentou, pegando a boneca, onde havia caído aos seus pés. - Você poderia ler o livro, por exemplo.

- Eu vou! - Stiles começou a andar de um lado para o outro. - Mas não adianta eu tentar agora, estou muito agitado. Eu não vou conseguir sentar e ler.

- Mas você sabe que precisa? E rápido.

- Ontem mesmo você não queria que eu lesse!

- Eu ainda não quero, mas você tinha razão. Se eles fizeram alguma coisa com você…

- Eu sei. - suspirou. - Mas qual é, Der, colabora comigo. Eu estou fazendo o que eu posso.

Houve uma pausa, e então Derek assentiu.

- Okay. - desenrolou a boneca do pequeno cobertor. - Por favor, Stiles, me ensine a colocar uma fralda, porque os mil vídeos que você me obrigou a assistir não foram claros o suficiente.

- Dramático. - Stiles lhe deu a língua, e agarrou a mão do beta para puxá-lo até o quarto do bebê. - Foram uns três, no máximo.

- Três dezenas, você quer dizer.

Dramático.

***

Scott olhou para o assento vazio ao seu lado, onde Kira normalmente se sentava. A Kitsune estava na biblioteca naquele momento, matando algumas aulas para poder terminar de ler o livro. Do outro lado, o assento que pertencia a Lydia também estava vazio, já que a Banshee dissera a todos que não iria para a escola por alguns dias para se recuperar da cirurgia.

- Enquanto introduzir o sapo-boi africano parecia uma boa forma de lidar com a infestação de besouros na Austrália, - a senhora Collins dizia, ao mesmo tempo que montava o esquema no quadro. Scott tentava prestar atenção, mas seu olhar sempre voltava para o formulário de desistência preenchido que aparecia parcialmente embaixo de seu caderno. - infelizmente, os sapos também comeram tudo o que viram pela frente...

Queria que alguma delas estivesse ali. Talvez desistisse da ideia se não estivesse sozinho. Mas a ausência delas só provava o quão grande era o problema dos doutores, e o quão mais importante era do que a escola.

- ...e tudo o que tentava comer o sapo, morria rapidamente envenenado. - a professora continuou. Scott puxou o papel para o lado, para conferir os dados de novo. Seu número de identidade estudantil, telefone, código da aula… - Este é um perfeito exemplo de uma espécie invasora. Sr. McCall, está prestando atenção?

Não pela primeira vez, Scott se arrependeu profundamente de ter escolhido uma das carteiras da primeira fileira. Rapidamente, escondeu o formulário novamente, erguendo o olhar para a professora.

- Estou. - engoliu em seco. - Desculpe.

- Você já não me entregou os exercícios hoje. - ela o repreendeu, mal alterando seu tom frio. - Suas últimas notas foram boas, mas não excelentes. Não comece a relaxar agora.

Scott apenas assentiu, se sentindo pequeno demais para conseguir responder. Dez novas quimeras. Os doutores do medo. A vida de Nathan em perigo. Stiles e a aura do Nogitsune. O bebê, que estava tão perto, e deixava Scott tão ansioso. Não tinha tempo para uma das aulas mais difíceis da escola, mesmo que estivesse sacrificando a faculdade que sonhou em entrar por anos.

- Os cento e dois sapos introduzidos se tornaram um bilhão e meio em menos de cem anos. - Scott foi se afundando em sua cadeira, enquanto a Sra. Collins prosseguia. - Uma vez que uma espécie invasora é introduzida, tudo muda.

***

Seus olhos doíam. Não importava o quanto Kira tentasse, as palavras simplesmente embaçavam e distorciam em sua visão. Era estranho, porque nunca havia acontecido antes. E era só com aquele livro, porque não tinha problema nenhum lendo qualquer outra coisa.

Ela fechou sua cópia com força, não conseguindo conter sua frustração, e largou as folhas sobre a mesa. Deixou seu corpo relaxar sobre a cadeira onde estava, olhando para as outras pessoas estudando na biblioteca. Estava matando aula pelo maldito livro, e não estava nem na metade. Se não estivesse em uma biblioteca, gritaria.

- Hey. - alguém disse ao seu lado, fazendo-a pular no lugar. - Desculpa! Foi mal, não quis te assustar. Ah… Kira, certo?

Kira se virou para encontrar Mason em pé ao seu lado, segurando ambas as alças da mochila em seus ombros.

- Mason. - o garoto se introduziu. - Amigo do Liam. Eu não sei se…

- Eu lembro. - ela sorriu, tentando esconder sua vontade de socar alguma coisa.

- Sério? - seu rosto se iluminou. - Bom, ah… eu não quero atrapalhar, mas eu notei como você também odeia esse livro.

Ele se soltou de uma das alças da mochila, deixando-a pendurada em apenas um braço enquanto a abria. De lá, tirou uma das cópias. Havia um marcador de página na metade do livro.

- Liam me deu a cópia dele na primeira aula. - Mason explicou. - E é horrível.

Oh, Mason havia começado a ler algumas horas antes, e já havia passado Kira. Ótimo, ótimo. Bom saber. Bom para ele.

- Eu não sei qual o meu problema. - esfregou os olhos doloridos. - Eu não consigo ler nada. Praticamente todo mundo já leu, mas eu… - suspirou.

- Sério? - ele puxou uma cadeira. Estava quase se sentando, mas parou no meio do caminho, inseguro. - Ah… eu posso…?

Ela assentiu, e ele se sentou.

- Okay, então. - largou a mochila e o livro sobre a mesa. - Isso vai parecer estranho, mas… você fala japonês?

- Não. - ela fechou o rosto. Perdera a conta de quantas vezes as pessoas a perguntaram isso ao longo de sua vida. Qual era sua língua materna, onde havia nascido. Às vezes, precisava mostrar sua identidade para provar que era americana. - Também sou metade coreana, e não falo coreano. Nem chinês, nem...

- Não, eu não quis… - Mason arregalou os olhos. - Desculpa, isso pareceu muito racista. Eu só perguntei porque… okay, então, eu andei pesquisando bastante sobre Kitsunes, e…

- Por quê?

O garoto a olhou como se aquela fosse uma pergunta estranha.

- Porque eu conheci uma. - respondeu, como se fosse óbvio.

- Oh, claro.

- Enfim. Você sabe porque, no Japão, se diz “moshi moshi” ao atender o telefone?

- “Moshi” é “alô”, certo? - tudo bem, não era como se não soubesse nada de japonês. A dublagem em animes era péssima.

- Sim, mas eles dizem duas vezes. Segundo o folclore japonês, espíritos de raposa têm dificuldade com idiomas. Então o jeito mais fácil de reconhecer uma raposa, é confundindo ela com uma figura de linguagem, como “moshi moshi”. Se a pessoa do outro lado se atrapalhar para responder…

- É um Kitsune. - Kira assentiu. - Bom, essa é uma boa desculpa para meu C nas aulas de inglês.

- Esse livro - Mason pegou sua cópia nas mãos. - é cheio de metáforas. O tempo todo. Algumas nem fazem sentido. Ele é um longo, longo, truque de linguagem.

- Por isso eu não consigo ler. - folheou as páginas, encontrando onde havia parado. - Mas então, o que vou fazer? Eu não posso simplesmente não ler.

- O que acontece quando você tenta?

- As palavras distorcem. - balançou a cabeça. - É estranho.

- Então… eu não sei. Talvez, se você pular as linhas que te causam problema? - naquele momento, o sinal bateu, e Mason prontamente se levantou. - Eu tenho que ir, foi mal.

- Obrigada. - Kira disse. Também tinha que ir, em teoria. Não queria matar outra aula, mas também não queria desistir. - Pela ajuda.

- É claro. - ele sorriu de lado, e deu passos rápidos para fora da biblioteca. Kira voltou o olhar para a folha. O problema, era que todas as linhas eram ilegíveis, não só algumas.

***

Era a quinta vez que faziam aquela mesma sequência. Parrish avançava com dois socos e uma joelhada, e Lydia os bloqueava. Não paravam de andar em círculos em volta do outro. Parrish havia dito que ela nunca podia ficar em um lugar só em uma luta de verdade. Fazia sentido. Era pura física, certo? Lei da inércia.

- Levante os braços para bloquear golpes na cabeça. - Parrish levantou os próprios braços, os punhos fechados na frente do rosto para mostrar o que queria que a garota fizesse. Lydia apenas assentiu e o copiou, respirando pesadamente com o esforço da última hora. - Mas não os coloque na frente de seu campo de visão. Nunca tire os olhos do seu oponente. Pronta?

Ele avançou com o punho novamente. Lydia sabia que o movimento do policial era aberto demais, e que estava facilitando para ela. Tudo bem, era só a primeira aula. Mais para frente, o faria se arrepender de pegar leve.

Mesma sequência. Dois socos, uma joelhada. Mas, dessa vez, Parrish lançou um terceiro soco. Lydia não o viu a tempo, antes de ser atingida no ombro.

- Está tudo bem. - Parrish lhe disse. - É só treino.

- Eu estou bem. - ela respirou fundo, tentando recuperar o fôlego. Suor pingava de sua testa, e o ferimento em sua cintura doía, mas nada que não pudesse lidar. - Vamos lá. - ergueu os braços de novo, esperando a próxima sequência.

- Tem certeza? - o policial a olhou de cima a baixo. - Talvez seja melhor parar um pouco.

- Por quê? - ela aproveitou a conversa para apertar seu rabo de cavalo, e então voltou em posição.

- Eu não quero que seus pontos abram.

- Eles estão bem. - revirou os olhos. - Eu estou só mexendo os braços, não vão abrir.

- Mesmo assim, movimentos rápidos podem…

- Jordan. - ela abriu o zíper da jaqueta. Por baixo, estava usando apenas um sutiã esportivo, o que deixava os curativos a vista em sua cintura, até onde desapareciam sob a barra da calça. - Viu? Não tem sangue.

Parrish analisou as bandagens, mas não cedeu.

- Só porque eles não abriram ainda, não quer dizer que não vão. - argumentou, cruzando os braços sobre o peito. - Vamos fazer uma pausa.

- Se os pontos abrirem, a gente para.

- Então a gente só vai parar se eu tiver que te levar correndo para o hospital?

- Não vai acontecer.

- Eu achei que você não era psíquica. - ele sorriu de lado. - Você não prevê o futuro.

- Eu estou prevendo uma morte muito próxima se você não continuar agora. - então tirou a jaqueta, jogando-a no sofá, entre outras roupas abandonadas. Não perdeu a maneira que os olhos do outro se arregalaram levemente, mesmo que por um segundo. - Pronto. Agora, se sangrar, nós vamos saber.

Voltou em posição. Parrish suspirou, mas também ergueu seus punhos na frente do rosto, mesmo que ainda parecesse incerto.

Dessa vez, Lydia avançou primeiro, apenas para atiçá-lo. Parrish se defendeu, e entendeu o recado. Voltaram a circular um ao outro, mas não antes de Parrish aproveitar o momento para também tirar sua jaqueta.

Lydia sabia que não devia tirar a atenção dos movimentos do outro, mas deixou os olhos passearem apenas um pouquinho. Depois que Jordan terminara seu café, colocara uma roupa para treinar. Sem a jaqueta, ficava com uma regata azul, sem nada cobrindo os braços musculosos.

Felizmente, não estava distraída demais para não bloquear o primeiro soco. Então mais um, uma joelhada, e mais outro. Tentou atacar, mas mesmo enquanto o fazia, sabia que tinha errado. Seu golpe estava aberto demais, e muito alto.

Parrish facilmente se abaixou, desviando do soco. O corpo da garota praticamente girou com a força que havia colocado em seu punho, e Parrish usou essa vantagem para puxá-la, prendendo-a entre seus braços, de costas para ele.

Lydia suspirou.

- Esqueci de manter os braços juntos. - admitiu o erro, mas não fez nada para se afastar.

- Sim. - Parrish falou. Seu rosto estava tão próximo. Sua boca a centímetros do ouvido da garota. - Mas não se preocupe. Seus músculos têm memória. Com treino, vão se lembrar sozinhos. Você não vai ter que pensar em cada movimento.

Sim, ela sabia como memória muscular funcionava. O problema, era todo o trabalho que teria até chegar àquele ponto.

Quase sem querer, seu corpo relaxou contra o do outro. Sua respiração estava pesada com o esforço, e a dor pulsava em sua cintura, mesmo que não quisesse admitir. Então deixou que sua cabeça caísse para trás, no ombro de Parrish, e tentou acalmar seus batimentos fortes.

A postura de Parrish tornou-se rígida à sua volta. Ele estava tão quente quanto ela, suando pelo esforço da última hora. Lydia levou as mãos até às de Parrish envolta de sua cintura. Não para tirá-las, mas para que pudesse segurá-lo também.

O calor que subiu por seu pescoço não tinha a ver com a luta. E o jeito que seu coração continuou rápido em seu peito não tinha a ver com o esforço, não mais. Ela virou o rosto levemente para o lado. A respiração rasa de Parrish batia contra sua bochecha, fazia os pelos de sua nuca se arrepiarem.

Por um momento, tudo o que existiu foram eles ali. Seus olhos se encontraram, até os de Lydia se abaixarem para os lábios entreabertos do policial.

E então, o momento acabou.

Parrish limpou a garganta e se afastou, olhando para qualquer lugar, menos para ela.

- A gente devia fazer uma pausa. - disse, e deu passos para fora da sala, deixando Lydia para pensar o que diabos havia acabado de acontecer.

***

- O que é “voz de Alpha”?

Ajoelhado no chão da lavanderia, Derek olhou para cima, onde Stiles estava sentado de pernas cruzadas em cima da máquina de lavar.

- O quê? - perguntou, mas não parou de pegar as roupas de bebê do cesto e colocá-las dentro da boca circular da máquina.

- No outro dia, você disse que sua mãe usou a “voz de Alpha dela” em você. Isso literalmente acabou de vir na minha cabeça. Do que você estava falando?

- É como um comando. - explicou. - Força os betas a obedecerem.

- Tipo um rugido? Tipo como o Scott obrigou a Malia a se transformar em humana de novo?

- Não, é com palavras. É um comando verbal.

- Espera, então o Scott pode obrigar vocês a fazer qualquer coisa com essa voz? - ele franziu as sobrancelhas. - Por que é que a gente não sabe disso? Oh, é melhor não contar. Isaac provavelmente vai achar sexy.

- Ele pode, em teoria. - Derek resolveu ignorar o último comentário, em favor de sua sanidade mental. - Mas quando eu digo que um beta não pode desobedecer, eu quis dizer que é difícil, não impossível. Precisa de bastante força, e, se o beta conseguisse desobedecer, seria considerado um desafio.

- Desafio para quê?

- Para a autoridade do Alpha. - jogou a última peça e fechou a porta circular da máquina. - Eles teriam que lutar por dominância.

- O quê? - seu queixo caiu. - Quem foi que inventou essas coisas? O que acontece com quem ganhar?

- Se o beta ganhar, - Derek se levantou. - ele se torna o Alpha. Se o Alpha ganhar, ele pode escolher apenas expulsar o beta, ao invés de matá-lo.

- Okay, vocês têm umas tradições um tanto bárbaras, você não acha?

- Eu não fiz as regras. - teve que passar o braço ao redor de Stiles para poder programar a lavagem, já que o garoto não deu nenhuma indicação de que desceria da máquina.

- Por que você nunca nos disse isso?

- Eu não sei. - deu de ombros. - Não me ocorreu.

- Derek, todos os lobisomens no pack foram mordidos. Menos a Malia, mas ela é um caso à parte. Como você acha que a gente vai saber dessas coisas?

- É um tanto instintivo. - pegou o cesto de roupa, agora vazio, e começou a levá-lo de volta para o quarto do bebê. - E o Scott não faria isso com ninguém.

- Por que não? - Stiles o seguiu. - Me parece bastante útil. Isso funciona com qualquer beta, ou tem que ser um beta do seu pack?

- É útil, mas não é… - Derek deixou o cesto no chão, ao lado do trocador de fraldas que Stiles insistiu em comprar. - Não é uma coisa que ele iria querer usar.

Stiles apoiou o ombro no batente da porta e cruzou os braços, encarando Derek enquanto esperava pelo resto da explicação. Oh, ótimo. Por que não podia haver um manual? Por que Derek tinha que explicar aquele tipo de coisa?

- Quando um Alpha faz isso, é… - tentou achar as palavras, mas acabou apenas balançando a cabeça. - Isso quebra parte da confiança entre ele e o beta. Seus betas têm que te seguir por lealdade, não porque foram obrigados. Os piores Alphas usam isso como vantagem para manipular os membros mais fracos do pack, e o resto apenas em situações extremas.

- Como o que sua mãe fez.

Derek assentiu.

- Ela se desculpou, depois. - ele se virou para pegar a próxima leva de roupas que iria para a máquina quando a lavagem atual terminasse, tentando não pensar muito naquilo. - Não é algo que bons Alphas vão querer fazer.

Stiles ficou quieto por um momento, e então se pôs a ajudar o namorado. Abriu uma das gavetas da cômoda, tirando mantas e pequenos cobertores que também precisariam ser lavados.

- Eu acho que entendi. - ele disse, mas Derek duvidava. Se lembrava de como se sentira quando sua mãe usara aquela voz com ele. Entendia o motivo de tê-lo feito, mas o relacionamento dos dois não foi o mesmo por semanas. - Ainda assim, é melhor não contar para o Scott. Ele e o Isaac vão transformar isso em algum fetiche estranho.

- Eu não acho que seja possível.

- Oh, nunca subestime eles.

***

Após o sinal bater, todos começaram a se levantar e sair da sala. Scott guardou suas coisas na mochila, deixando apenas o formulário sobre a mesa. A maioria das pessoas já havia saído quando finalmente se pôs de pé, e foi até a mesa da Sra. Collins.

Deixou o formulário em um canto livre, arriscando um olhar rápido para a professora. Ela não parecia feliz, mas nunca parecia feliz, então talvez aquilo simplesmente quisesse dizer que não se importasse. Com passos pesados, foi até a porta.

- Você esqueceu de assinar. - a Sra. Collins o chamou de volta. Scott suspirou, parado na porta, mas deu meia volta.

Tirou a mochila de seu ombro e abriu o zíper, procurando por seu estojo. Quando o achou, deixou a mochila aos seus pés, agora procurando por uma caneta.

- Vai me dizer por que está desistindo?

Scott ergueu o olhar para ela, surpreso.

- Ah… - tentou pensar em uma desculpa plausível. - Eu tenho um conflito de horários.

- Por que se matriculou? Essa aula não é pré-requisito para a faculdade?

- Não importa. - deu de ombros, encarando a linha vazia onde devia pôr sua assinatura. - É muito trabalho. Eu não tenho tempo.

- Muito trabalho? - a professora sorriu de lado, o que era raro para ela. - Eu tenho péssimas notícias, então, se você quer mesmo ser veterinário.

Veterinário.

A garganta de Scott se fechou de repente. Seus dedos apertaram a caneta com força, trincando o plástico, como haviam apertado a corrente da coleira de sua cachorrinha tantos anos atrás.

Os latidos. As pessoas gritando na rua. O sangue em seu braço.

Estava vagamente ciente de alguém chamando seu nome, mas as imagens e os sons pareceram sobrepor todos os seus sentidos. E então, de um segundo para o outro, não conseguia respirar.

***

- Cadê o Scott? - Liam perguntou, balançando o taco de lacrosse nas mãos.

Isaac olhou pelo campo. Também se perguntava a mesma coisa. Aquele não era um treino oficial, mas a maioria do time estava ali, dividindo o campo com o time de futebol. Scott disse que viria, mas Isaac esperaria mais alguns minutos até se preocupar de verdade. Nem tudo significava que um desastre estava acontecendo.

- Ele deve estar vindo. - falou, e então viu um rosto familiar se aproximando. Kira carregava seu próprio taco de lacrosse, vestida com o mesmo uniforme que todos do time usavam. Quando chegou perto, não parecia nada feliz. - Hey. Você conseguiu terminar o livro?

Kira bufou. Claramente, aquela foi a coisa errada a se perguntar.

- Vamos só jogar. - ela resmungou. - Scott não vem?

- Ele vai vir. - Liam respondeu. Estava prestes a dizer alguma coisa, quando algo no canto de sua visão capturou sua atenção. - Ah, não.

Isaac e Kira seguiram o olhar do beta, até uma garota de cabelos escuros e encaracolados no time de futebol. Ela não parecia notá-los, apenas conversava com uma das outras garotas do time, com a bola nas mãos.

- O que foi? - Isaac perguntou, atraindo o olhar de Liam de volta. - Quem é ela?

- Ninguém! - Liam encolheu os olhos. - Uma garota da minha aula de história.

Oh. - Kira abriu um sorriso, como se seu humor tivesse melhorado de uma hora para outra. Isaac olhou para a garota de novo, e para Liam, e então entendeu. - Ela é legal?

Liam apenas deu de ombros, o que não diminuiu nem um pouco a curiosidade dos outros dois.

- Interessante. - disse Kira.

- Muito interessante. - Isaac teve que concordar. - Qual o nome dela?

- Hayden, por quê? - Liam levou alguns segundos, mas logo arregalou os olhos. - Não! Não é assim.

- Ela é bonita. - Kira provocou.

- Isso não tem nada a ver. - o garoto revirou os olhos, e se abaixou para pegar uma das bolas de lacrosse na grama com o taco. Alguns dos jogadores formaram pares pelo campo para praticar jogar a bola um para o outro, e alguns fizeram uma fila para praticar no gol, que era para onde eles provavelmente iriam.

- Tem certeza? - oh, aquilo era tão divertido. Liam estava começando a ficar vermelho. Isaac se virou para a garota de novo. - Como você disse que ela se chamava, mesmo? Hey, Hayden!

- Isaac! - Liam praticamente chiou, e tentou cobrir a boca de Isaac com uma das mãos. O loiro apenas riu e o empurrou para longe. Era tarde demais, de qualquer jeito, o dano já estava feito.

Liam segurou o taco de lacrosse contra o peito, como se pudesse esconder-se atrás dele. Mas aquilo não o protegeu do olhar confuso de Hayden, que abriu os braços para ele, à distância, como se perguntasse “o quê?”. O beta apenas respondeu abanando as mãos, enquanto Isaac e Kira sorriram e acenaram.

- Qual é. - Liam suspirou, assim que Hayden voltou sua atenção para o treino. - Gente, ela me odeia!

- Por quê? - Kira perguntou.

- Espera. - Isaac falou. - Ela é a Hayden que trabalha no Sinema?

- É. - Liam desviou o olhar. - Eu meio que fiz ela perder duzentos dólares na outra noite, e agora ela me odeia.

- Aw. - a Kitsune deu tapinhas em suas costas. - Você vai conseguir ela de volta.

- Não é assim! - o garoto protestou novamente. Isaac continuaria a irritá-lo, mas o momento foi interrompido por uma voz:

- Lahey! - alguém chamou. Os três se viraram para trás, para ver um dos membros do time de lacrosse correndo até eles. - É o McCall! Parece que tem alguma coisa errada.

***

Havia uma pequena plateia do lado de fora da sala de aula. Isaac não se importou, apenas abriu passagem por entre as pessoas e entrou, seus olhos imediatamente encontrando o namorado no chão.

Malia estava ali. Provavelmente havia ouvido a comoção. A garota segurava os ombros de Scott, que estava sentado com as costas apoiadas na escrivaninha da professora. Isaac se ajoelhou ao seu lado, mas Scott não pareceu vê-lo. Seus olhos estavam abertos, mas completamente vidrados, sem enxergar nada. Sua respiração era tão rasa e forçada que seus lábios estavam ficando roxos.

- Scott! - Isaac tentou chamá-lo, mas não conseguiu nenhuma reação. - Malia, isso é…?

- Eu acho que sim. - Malia assentiu. Atrás dela, Kira e Liam também se abaixaram no chão, olhando preocupados para o Alpha. - Tem que esperar passar, eu acho. A professora foi chamar a enfermeira.

- Esperar passar? Como foi que passou para você?

- Eu estava no meio da rua. Um carro quase passou por cima de mim, mas meu pai me empurrou para longe, e eu bati a cabeça no asfalto.

Okay, Isaac tinha que fazer alguma coisa. Os olhos arregalados de Scott tinham vasos vermelhos em torno das pupilas, indicando o quão pouco oxigênio estava recebendo. Mesmo com isso, seu corpo estava paralisado no lugar.

- Scott? - Liam o chamou, sua voz transbordando medo, mas era inútil. - Scott?

- Scott! - Isaac tentou de novo, sem sucesso. - Scott, qual é, você tem que respirar. - chacoalhou seus ombros, ainda sem resultado nenhum. - Scott!

Daquela vez, havia um rugido por baixo de sua voz, e seus olhos brilharam. Os olhos de Scott brilharam de volta, o vermelho respondendo ao dourado, e ele puxou o ar com força.

Graças a Deus, Isaac pensou, mas havia comemorado rápido demais. Scott havia acordado, e podia se mexer agora, mas isso apenas piorava o problema. O Alpha levou uma das mãos ao pescoço, arfando desesperadamente por ar. Malia e Isaac seguraram seus ombros, impedindo-o de cair, mas não havia nada que pudessem fazer.

Isaac podia ver em seus olhos o mesmo medo que sentia. Continuou chamando-o, tentando acalmá-lo, mas nada parecia funcionar. Seus lábios estavam completamente roxos, agora. Era um milagre que ainda estivesse consciente.

De repente, outra pessoa se ajoelhou ao lado deles. Isaac estava esperando a professora, ou a droga da enfermeira que nunca chegava. A última pessoa que esperava ver era Theo.

- Scott, pega isso! - Theo empurrou algo na mão de Scott. - Usa ele! Vai te fazer ficar bem.

Scott voltou seus olhos desesperados para Theo, e então para o objeto em suas mãos. Isaac, no meio de seu pânico, levou alguns segundos para perceber que era um inalador.

Não sabia como diabos aquilo podia ajudar, mas Scott pareceu entender perfeitamente. Ele chacoalhou o inalador antes de levá-lo aos lábios, sugando a ponta com toda a força que lhe restava.

Foi como mágica. O ar finalmente passou por sua garganta, e chegou aos seus pulmões. O corpo tenso de Scott relaxou aos poucos contra a escrivaninha. As únicas partes que se mexiam eram seus ombros e peito, para cima e para baixo, com a quantidade de oxigênio que entrava e saía de uma vez.

- Scott? - Isaac o chamou novamente, mais gentil, dessa vez. Suas mãos trêmulas foram para o rosto pálido do namorado, os dedões limpando os traços de lágrimas que escorreram por suas bochechas. Seus próprios olhos estavam marejados, mas apenas piscou para poder colocar toda a sua atenção no outro. - Hey, Scott? Tudo bem? Você está bem?

Obviamente, não. Mas Scott assentiu mesmo assim. Isaac o puxou para si, abraçando-o com força. Deixou alguns beijos na lateral de sua cabeça, tentando assegurá-lo de que tudo estava bem, agora. Os batimentos do outro começavam a normalizar quando a professora finalmente voltou para a sala.

- Afastem-se! Todos se afastem! - ela exigiu, entrando na sala com a enfermeira da escola. - Scott?

Mesmo que fosse a última coisa que queria fazer, Isaac teve que soltá-lo para que pudesse ser examinado. Até a enfermeira finalmente dar o veredicto, o horário de prática de lacrosse já teria terminado.

***

- Tem algum outro costume de lobisomem que a gente não sabe? - Stiles perguntou, passando os olhos pela prateleira do supermercado.

- Provavelmente. - Derek respondeu ao seu lado, e então escolheu um dos potes de fórmula e o entregou. - Esse aqui parece bom.

- Tem que ser para bebês prematuros. - Stiles negou com a cabeça e devolveu o pote a onde estivera, e Derek prontamente o entregou outro. - Oh. É, tipo esse aqui. - o girou nas mãos, para poder ler o rótulo. - Mas tem todas essas vitaminas e fibras a mais. Ele é um lobisomem, isso sequer vai fazer efeito nele?

- Não vai fazer mal. - Derek deu de ombros.

- O que é que ele vai fazer com essa força extra? E se isso deixar ele mais agitado? Você sabe que ele já vai ser hiperativo, não sabe?

- Está bem. Então vamos pegar o mais básico. - o beta começou a procurar de novo, mas agora Stiles estava confuso.

- Espera, talvez a gente deva pegar o mais potente. - ponderou. - Você acha que o leite materno de mães lobisomens é mais potente do que o normal?

- Não. - foi sua resposta imediata, mas então seu rosto ficou neutro enquanto ele considerava as possibilidades. - Eu não sei. Por que você pensa nessas coisas?

Stiles colocou as mãos na cintura, um sorriso incrédulo se abrindo em seu rosto.

- Que bom que um de nós pensa, não é mesmo?

- Oh, é assim?

- É exatamente assim. - voltou o olhar para a prateleira. - Vamos levar o mais simples. Umas sete latas devem dar para o primeiro mês.

- Três.

Três?

- Três.

- Cinco.

Derek suspirou, mas não discutiu, provavelmente pensando que não valia a pena. Stiles puxou o carrinho para perto, e ajudou o namorado a encontrar algum lugar livre entre as compras.

- Então. - Stiles falou. - Não quer compartilhar os costumes da espécie com a gente? Eu sinto que são coisas que devíamos saber.

Ele pareceu pensar por alguns segundos.

- Se você se aproximar de um lobisomem descontrolado, não mostre os dentes para ele. Mesmo se for um sorriso. Ele provavelmente vai interpretar o gesto como agressão.

- Huh. - Stiles considerou a nova informação por um momento. - É, isso era um pouco intuitivo.

- Mais alguma coisa que você quer levar? - o beta olhou para o carrinho cheio, passando por cada uma das compras como se conferisse uma lista em sua mente.

- Bom, no corredor da frente têm fraldas que a gente devia ter por precau…

- Não.

***

- Eu gostei daqui. - Lydia olhou envolta. Era um restaurante agradável. Não muito chique, mas tinha classe. Era o tipo de lugar que alguém como Parrish levaria alguém em um encontro, ela achava. Não que aquilo fosse um encontro. Não tinha certeza. Sinceramente, esperava que não. Haviam praticado por horas, e ela simplesmente não estava apresentável o suficiente para estar em um encontro.

- Eu sempre quis vir aqui. - disse Parrish, dando uma garfada em seu almoço. As refeições não eram muito caras, e as batatas de Lydia tinham um pouco mais de gordura do que ela gostaria, mas a comida era boa.

- E por que nunca veio?

- Eu não sei. - o policial deu de ombros. Ele também estava nojento por causa do treinamento, mas ambos tinham tempo o suficiente para voltar para casa e tomar um banho antes de seus compromissos naquela tarde. - Eu nunca tive ninguém para vir comigo.

- Você poderia ter vindo sozinho.

- Não aqui. - negou com a cabeça. - Normalmente, eu almoço sozinho do lado de fora de um foodtruck perto da delegacia.

Lydia o olhou por um momento. Para seu cabelo penteado com os dedos, e o físico que ela sabia que ele escondia por baixo das roupas. Teria vindo ali com ele tantas vezes antes. Ele tinha que saber disso, certo?

- E você nunca teve ninguém para trazer aqui? - perguntou, tentando parecer inocente. - Deve ter alguma garota que você podia ter convidado.

Parrish manteve seu olhar em seu prato, e deu de ombros.

- Eu não conheço tantas pessoas assim. - foi o que respondeu. - Você foi a primeira pessoa que entrou no meu apartamento, na verdade.

- Bom, não faz muito tempo que você se mudou para Beacon Hills.

- Mesmo assim. Eu não… sou muito bom nisso.

- Isso não é verdade. - Lydia franziu as sobrancelhas. - Você é sempre tão simpático. Eu duvido que tenha muitas pessoas que não gostem de falar com você.

- Obrigado. - ele sorriu de lado. - Mas eu não… eu não sou do tipo que tem muitos amigos. Não mais.

- Bom, - seu peito se apertou. - se é de consolo, eu só consegui minha primeira amiga de verdade no ano passado. Ela era incrível. E ela falava comigo porque realmente gostava de mim, não porque eu era popular.

- Vocês não são mais amigas?

- Vamos ser para sempre. - ela tomou um gole de seu suco. - Mas ela se foi.

Parrish pareceu espantado, por um momento, e então sua expressão mudou para compreensão. Não pena, apenas entendimento.

- Meu primeiro amigo de verdade também se foi. - ele revelou. Pelo jeito que evitava seu olhar, Lydia podia apostar que aquele não era um assunto que falava muito. - Eu conheci ele no exército.

Podia esticar sua mão, Lydia pensou. Segurar a dele, e oferecer conforto. Por algum motivo, não o fez. Parrish não o havia feito. Não havia necessidade de conforto, porque ambos conheciam a mesma sensação. Era apenas… respeito. Era empatia e certeza. Era o que ambos mereciam.

- Eu sinto muito. - ela disse, e sentia mesmo. - E antes dele?

Parrish riu, sem humor, e negou com a cabeça.

- Eu era uma pessoa horrível, na escola. - confessou. - Você não gostaria de ter me conhecido naquela época.

- Não tenha tanta certeza. - rebateu, um tanto amarga. - Eu nem sempre fui assim.

- O que quer dizer?

- Que eu também era horrível. Não faz nem tanto tempo assim. - ela forçou um sorriso. - Meus pais se divorciaram, essa é a minha desculpa. Não é boa, eu sei. Qual a sua?

- Minha desculpa?

- É. Qual a sua tragédia?

Houve um momento de silêncio.

- Minha mãe morreu de overdose quando eu tinha onze. - Parrish contou.

- Eu sinto muito.

- Minha desculpa é bem melhor que a sua, você tem que admitir.

Isso a fez rir.

- Com certeza. - assentiu.

O momento durou pouco. Parrish abaixou a cabeça, encarando seu prato.

- Eu estava no último ano do ensino médio quando meu pai morreu. - ele mexeu na comida com o garfo. - Eu não queria tomar as minhas próprias decisões, ou viver com os meus tios, então eu entrei para o exército.

- Você se arrepende?

- Não exatamente. Isso me levou a ser policial, hoje, e eu gosto do meu trabalho. Não foi fácil, mas… eu não sei. Não sei o que eu teria feito se tivesse ficado. Eu não tinha nada.

- E agora?

- Eu… - considerou. - Ainda não tenho muita coisa. Eu tenho o Nico. Ele é provavelmente meu amigo mais antigo.

- E os mais novos? Na delegacia? Ou no seu prédio?

- Nunca falei com ninguém do meu prédio. - ele deu de ombros. Sua voz foi diminuindo, o que podia ser um sinal de que Lydia estava forçando demais com as perguntas. Parrish nunca falara de si mesmo tanto assim antes. - E na delegacia… quer dizer, Clarke é ótima, mas… não é o que você está pensando.

- E o que eu estou pensando? - sorriu de lado, tentando um tom divertido e provocativo, como normalmente faziam. Parrish não a acompanhou.

- Que eu tenho algo como vocês têm. - seus ombros e braços pareciam tensos. - O seu conceito de amigos é… quer dizer, vocês têm um pack. E é ótimo, mas eu não… nunca seria algo assim comigo, entende? Eu nunca teria isso. Não importa se fosse um grupo de pessoas, ou uma só.

- Por que não? Você prefere ficar sozinho?

Parrish abriu a boca para dizer alguma coisa, e então pensou melhor. Depois de alguns instantes, acabou assentindo.

- Não necessariamente sozinho, mas só… sempre foi assim. - respondeu. - Acho que eu só é melhor assim.

- Eu costumava pensar assim. - pensou em Jackson, e em como levava sua vida antes de Allison entrar nela. As pessoas daquela época se misturavam em sua mente, já que todas as amizades eram igualmente rasas e superficiais. Nunca conseguiria ser assim de novo. E esperava que nunca precisasse tentar. - Isso é, até eu tentar a alternativa.

- Eu não acho que funcionaria para mim. Eu nunca fui o tipo de pessoas que outros quisessem manter por perto.

- Eu quero. - as palavras saíram de sua boa quase imediatamente. Já fazia um tempo que ela sabia que era verdade. A sensação de finalmente dizê-las de boa, mesmo que um pouco intimidadora.

Parrish a analisou, como se procurasse por sinais de que era mentira, ou de que aquelas palavras não significassem para ela tudo o que significavam para ele. Lydia sustentou seu olhar, sem recuar. No fim, foi Parrish quem cedeu, mas não com a certeza que Lydia tentou passar.

- Vamos ver quanto tempo isso dura. - ele disse como um desafio, forçando um tom leve. Dizia como se fosse uma brincadeira, mas Lydia podia sentir a verdade em seu tom.

- É. - ela respondeu. - Vamos ver.

***

- Digamos que eu encontre um lobisomem descontrolado, então. - Stiles começou, abrindo a geladeira para guardar as compras em sua sacola. - Eu não vou mostrar os dentes para ele, okay. Tem alguma coisa que eu devia fazer?

- Mostrar o pescoço. - Derek respondeu de imediato, sem pensar muito. Abriu a porta do armário de parede, guardando as coisas de sua sacola. - Mostra submissão.

- Por que eu ia querer me mostrar submisso para um lobisomem descontrolado?

- Depende do lobisomem. Se for um que você conhece... a Malia, por exemplo. Se você mostrar o pescoço para ela, ela provavelmente vai se acalmar o suficiente para reconhecer o seu cheiro, e não vai te atacar.

- Faz sentido. - ele fechou a geladeira, e pegou outra das sacolas na mesa para desempacotar. - E se for um lobisomem que eu não conheço?

- Então é questão de sorte. - jogou sua sacola, agora vazia, de lado. - Talvez eles te matem mesmo assim, talvez não. Depende do tipo de pessoa que eles são.

- É, okay. - assentiu. Analisou o pacote de torradas em sua mão, e decidiu abri-lo ao invés e guardá-lo. - Viu? Esse não era exatamente intuitivo. Você tem que nos contar essas coisas.

- Stiles, para de comer. Eu vou fazer o almoço.

- Você não manda em mim.

- São as minhas torradas.

- Eu só estou tentando alimentar o seu filho, mas tudo bem. Se você quer tanto assim que ele passe fome…

Foi interrompido por uma batida na porta.

- Seu pai está aqui. - o beta esticou o braço e arrancou o pacote de torradas de suas mãos. - Vai abrir a porta.

- Rude.

***

- Você vai ficar bem. - a enfermeira da escola finalmente deu seu veredicto. - Se você quiser ir para casa…

- Não, não. - Scott balançou a cabeça. - Eu estou bem.

- Você tem certeza? - a Sra. Collins perguntou. - Foi um ataque muito forte, Scott.

- Eu já estou me sentindo melhor. - olhou para o lado de fora. A plateia que havia se juntado antes não estava mais lá, mas o pack ainda não se fora. Quer dizer, o pack, e Theo, que continuava ali, por algum motivo. Isaac era o único na sala, porque foi o único que a enfermeira não conseguiu expulsar. Ele ainda parecia preocupado. O ataque deve mesmo ter sido tão ruim quanto estavam falando. - Eu devia ir. Não quero perder a aula de história.

- Se você tem certeza. - a enfermeira concordou.

- Você ainda quer assinar? - Sra. Collins empurrou o formulário de desistência pela mesa, para mais perto de Scott. - Talvez você devesse pensar mais um pouco, Scott. Leve-o para casa e…

- Assinar o quê? - Isaac se levantou da carteira em que havia se sentado e foi até eles. 

Podia-se ver o exato momento em que Isaac descobriu o que era. Scott estava preparado para que o namorado estivesse bravo quando contasse para ele, mais tarde naquele dia, mas definitivamente não estava preparado para toda a decepção que emanou dele naquele momento. O atingiu como um soco, e ele abaixou a cabeça, envergonhado.

- Ele vai levar isso. - o loiro puxou o formulário da mesa, amassando-o com a força do movimento. - Claramente, ele não está muito bem hoje, então se pudermos esquecer sobre isso, senhora… - ele tentou se lembrar de seu nome, mas logo desistiu. - ...professora.

- É claro. - a Sra. Collins concordou, facilmente. Havia até um pequeno sorriso em seus lábios, mas Scott não conseguia apreciar esse fato enquanto Isaac ainda o olhava com uma expressão tão fechada.

- A gente agradece. - Isaac forçou uma expressão simpática. - Bom, Scott não pode perder a aula de história, então…

Com essa desculpa, Isaac agarrou o braço do namorado e o arrastou para fora da sala. Eles passaram pelos outros na porta, e foram prontamente seguidos, mas Isaac apenas percebeu eles ali quando viraram o corredor.

- Scott? - Liam chamou, e eles todos pararam de andar. - O que era? A sua memória?

Todos esperaram. Theo estava um pouco afastado, como se quisesse ir com eles, mas estivesse inseguro de sua posição. Talvez ele tivesse algo para dizer, ou perguntar. Ele tinha uma cópia do livro, afinal. Talvez também houvesse se lembrado de alguma coisa.

E foi Theo que o entregou a bombinha. Scott não sabia o que tinha acontecido. Não era como se fosse possível que tivesse ataques de asma. O fato de que Theo tinha pensado nisso era estranho. E o fato de que havia funcionado, mais ainda.

- Nada com os doutores. - Scott respondeu. - Eles não fizeram nada comigo.

- Talvez eles não façam nada com quem já é sobrenatural. - Kira ponderou.

- Não vamos tirar conclusões tão cedo.

- E o que aconteceu lá? - Malia perguntou, e então se virou para trás, para Theo. - O que foi aquilo que você deu pra ele?

Theo se encolheu quando todos os olhares se focaram nele. Mas isso foi o incentivo que precisava para se aproximar, para poder conversar como se fizesse parte do grupo.

- Uh… - Theo tirou a bombinha de seu bolso. - Eu tinha asma, antes de ser mordido.

- Você teve um ataque de asma? - Liam perguntou para Scott, que apenas balançou a cabeça, sem saber o que responder. Seu peito ainda doía, e se sentia um tanto fraco, mas estaria bem em pouco tempo.

- Um ataque de quê? - Malia franziu as sobrancelhas.

- Asma. - Kira explicou rapidamente. - É uma doença que não te deixa respirar direito, às vezes.

- Eu costumava ter. - Scott disse, olhando para Theo. - Como você sabia?

- Ah… uma vez, na quarta série, eu tive um ataque bastante forte. Eles iam me levar para o hospital, e você estava esperando do lado de fora da diretoria. Eu estava assustado, mas você explicou o que ia acontecer. Que eles iam me dar oxigênio e… prednisona? Eu não lembro direito, mas… você ajudou. Fez parecer que tudo ia ficar bem.

Scott se lembrava disso vagamente. Conforme foi ouvindo as palavras, a memória foi se montando em sua mente. Talvez esse fosse um dos motivos que Theo queria tanto entrar no pack. Momentos como aquele que Scott, ou até Stiles, não haviam dado importância no passado, mas que significavam muito para Theo. Ele parecia ser solitário. Scott não achava que tivesse tido algum amigo de verdade desde a morte de sua irmã, e definitivamente não tinha nada do tipo no momento.

- Eu lembro disso. - foi o que acabou dizendo. - Mas… eu ainda não entendo. Por que…?

- Eu acho que foi um ataque de pânico. - Theo o mirou com um olhar preocupado. - Do que você lembrou?

Scott não respondeu. Theo abaixou o olhar.

- Certo, desculpa. É pessoal. - o ômega brincou com a bombinha de asma em suas mãos. - Quando eu tenho ataques de pânico, isso ajuda. Eu acho que meu cérebro associa o inalador com conseguir respirar. É basicamente placebo.

- É inteligente. - disse Scott. Já havia passado por uma situação exatamente como aquela, um pouco depois de ser mordido. Tivera um ataque de pânico no vestiário, e Stiles havia feito a mesma coisa que Theo. Talvez Scott devesse carregar uma bombinha em sua mochila.

- Valeu. - houve uma pausa. - É… eu li o livro, aliás. Ontem a noite.

- Ótimo. Nos avise se você lembrar de algo sobre os doutores. - Scott deu um meio sorriso, tentando assegurá-lo. Theo havia ficado muito confuso no dia anterior, principalmente porque não se lembrava de nada do interrogatório. Era compreensível que estivesse um pouco inseguro perto deles. - E obrigado. Por ter ajudado.

- É, Scott estava ficando roxo. - Malia assentiu. - Valeu, Theo.

- É. - Isaac também concordou. - Foi esperto.

Theo sorriu, um sorriso genuíno, e guardou a bombinha de volta no bolso.

- Bom, eu vou… - deu um passo para trás, mas pareceu lembrar de algo de repente. - Oh, ah… Scott, você disse para prestar atenção em pessoas agindo estranho, certo?

- Você encontrou alguém que pudesse ser uma quimera?

- Eu não sei, mas tem uma menina na minha aula de geografia, Sydney. Ela estava bastante ansiosa hoje. Mais ou menos como a Tracy.

- Nós vamos investigar. - Scott disse. - Obrigado pela ajuda.

Theo assentiu. Por um momento, agiu como se tivesse outras coisas a dizer, mas desistiu da ideia. Ele se despediu, então, e se afastou pelo corredor.

***

- “Não correr” também se aplica a vocês?

- Como assim? - Derek perguntou, pegando um dos bichinhos de pelúcia do berço para passar o pequeno aspirador de pó de mão por ele.

- Dizem que nunca se deve correr de um animal feroz. - Stiles explicou, separando as roupinhas de bebê, agora limpas, que queria colocar na bolsa de hospital. - Porque ele vai te perseguir por instinto.

- Oh, sim. - assentiu. - Isso também se aplica a lobisomens descontrolados.

- É, essa era um pouco óbvia.

Um pequeno macacão vermelho caiu de suas mãos, e Stiles soltou uma reclamação com o fundo da garganta. Derek não disse nada, apenas se abaixou para pegar a roupinha e devolvê-la. O jeito que Stiles o olhou, como se aquele fosse um grande ato humanitário, o fez revirar os olhos.

- O que mais? - Stiles colocou o macacão na pilha que estava separando. - E tradições? Lobisomens têm tradições?

- Tipo o quê? - pegou outro bichinho para aspirar. Não se importava que lobisomens não podiam ter alergias, não iria deixar seu filho viver no meio da sujeira.

- Eu não sei, um uivo coletivo para a lua? Visitar sete cemitérios antes do sol nascer? Uma caça anual de veados na floresta? Oh, não, esse último é uma péssima ideia. Se começarem a caçar viados, não vai ter mais ninguém no nosso...

- Nós temos a tradição de matar pessoas irritantes. - Derek o cortou com uma ameaça. - Devorar sua carne, e tudo mais.

Stiles apenas riu.

- Você já me come quase todo dia, Derek. Eu não estou preocupado.

- Não foi o que eu… - começou, mas imediatamente se esqueceu do que ia dizer quando viu Stiles cambalear para frente. O garoto apoiou a mão no guarda-roupa, para se manter em pé. Derek largou o aspirador de pó no berço e logo se pôs ao seu lado, pronto para agir se acontecesse de novo. - Stiles? Hey, tudo bem?

- Aham, foi só… - suas palavras morreram, e fechou os olhos com força.

- Vem, senta aqui. - ajudou Stiles a dar alguns passos para trás, até chegar à poltrona branca ao lado do berço. Stiles sempre parecia pálido nos últimos dias, mas agora seus lábios estavam completamente sem cor. Ele continuava com os olhos fechados, como se tentasse controlar a tontura.

O beta se ajoelhou no chão. Quando sugou o máximo que pôde para si, um pouco da coloração voltou ao rosto do namorado, mas sua boca ainda se contorciam em uma expressão desconfortável.

- Eu estou bem. - Stiles forçou um sorriso. - Eu só fiquei de pé muito tempo.

- Eu te disse que a gente devia fazer uma pausa.

- “Eu te disse”, Derek? Sério?

Derek revirou os olhos.

- Eu vou trazer água para você.

- Sabe o que ia me fazer sentir melhor? Chocolate quente.

- Stiles, eu fiz ontem.

- Mas eu quero. - ele fez um biquinho. - Mas, tudo bem. Se você quer tanto que o seu filho passe vontade...

- Não. - Derek se levantou. - Não vai funcionar dessa vez. Eu vou te trazer água, e é só.

Então Derek saiu do quarto, jurando a si mesmo que não iria deixar Stiles ganhar daquela vez.

***

Depois que Theo se fora, não demorou muito para que os outros também fossem. Kira e Liam tinham que tirar o uniforme de lacrosse, e Malia foi para a aula de história. Isaac também usava o uniforme, mas não saiu do lugar. Os braços cruzados no meio do corredor, ainda segurando o formulário com uma expressão fechada, esperando uma explicação. Scott suspirou.

- Eu disse que estava pensando em desistir. - Scott se defendeu. Não era uma defesa boa, mas a lembrança de doze anos atrás ainda estava muito vívida em sua mente, e era difícil se concentrar. A sensação fantasma ainda não o havia deixado, e era como se seu corpo todo pesasse.

- Você não disse que era o que ia fazer. - Isaac retrucou, muito irritado para perceber. - E eu te disse que era uma péssima ideia. Eu não acredito que você ia mesmo desistir.

- Isaac, qual é o ponto? Eu vou reprovar de qualquer jeito.

- Não, você não vai. E você não vai desistir.

- Eu vou pensar mais no assunto, okay? - concedeu, porque estava disposto a encontrar um meio termo. Isaac, por outro lado, não estava. Quando Scott tentou pegar o formulário de volta, o namorado o ergueu sobre a cabeça, fora de seu alcance. - Isaac, me devolve!

- Não! Você não vai desistir dessa aula.

- Isaac. - tentou de novo, mas o loiro ergueu o papel ainda mais alto. - Isaac, essa decisão não é sua.

- É sim. - Isaac teimou. Ele abriu a boca mais algumas vezes, tentando pensar em algum argumento. - Você não… eu… eu te proíbo. - decidiu, finalmente.

Houve uma pausa. Scott cruzou os braços.

- Você me proíbe? - um sorriso incrédulo se espalhou por seu rosto. - Sério?

- Aham. - Isaac não cedeu. - Eu estou sendo o homem da casa.

- Oh, você está?

- Eu estou.

- Você não queria ser o homem da casa semana passada quando…

- Irrelevante! - Isaac apontou um dedo para ele. O sorriso que se esforçava para esconder indicava que o beta sabia exatamente do que Scott estava falando. - Eu estou sendo o homem agora, e eu te proíbo de desistir dessa aula. Você vai passar nela, e passar na UC Davis.

- Isaac…

- Não, isso não é negociável. - ele deu alguns passos para trás, até estar perto o suficiente para poder jogar o formulário, agora amassado em uma bola de papel, na lixeira. - Se você não acredita em você, então eu vou acreditar por nós dois.

- Isaac! - Scott olhou boquiaberto para a lixeira. - Você não pode só…

- Claro que eu posso, eu até já fiz. - voltou até o namorado, e agarrou seus ombros. - Qual a sua próxima aula, mesmo? História, certo? - fez Scott dar meia volta, e começou a empurrá-lo pelo corredor. - Para a aula de história!

- Eu espero que você saiba que eu estou muito irritado nesse momento.

- É, eu sei. Eu cuido disso depois.

***

- Hey, Scotty. - Stiles atendeu o celular. Segurava o aparelho contra o ouvido com o ombro, já que suas mãos dobravam as roupinhas que haviam acabado de sair da secadora. As separava em pilhas sobre a cômoda, no quarto do bebê, para depois transferi-las para o guarda-roupa. - Aconteceu alguma coisa? Mais doutores, mais quimeras, mais alguma lembrança?

- Hey, Stiles. - Scott respondeu. Havia pessoas conversando no fundo, e Scott parecia estar andando. Fazia sentido, as aulas haviam acabado de terminar. - Está todo mundo bem, relaxa. A gente acha que encontrou outra quimera. Malia, Kira e Liam vão vigiar a casa dela essa noite. Como você está?

- Bem. - deu de ombros, mesmo que Scott não pudesse vê-lo. Na cozinha, ouviu Derek mexer no armário de panelas, provavelmente procurando a que usaria para fazer o chocolate quente. - Eu fiquei o dia inteiro de olho no Derek, mas nada de memória para ele.

E a sua?

- Ah… - mordeu o lábio. - Eu ainda… não terminei de ler? Eu juro que eu vou cara. É que eu estava ocupado. Eu e o Derek estamos arrumando as coisas do Miguel.

Cara, isso me lembra. - aquilo pareceu animá-lo. - Minha mãe disse que estava mexendo nas coisas antigas e ela achou um negócio… nossa, qual é o nome? - no fundo da linha, Stiles ouviu a voz de Isaac, mas não o que estava dizendo. Havia barulho demais na ligação. - A gente não lembra, mas é um negócio que você coloca o bebê, e aí passa a alça pelas costas, e o bebê fica tipo, aconchegado contra o seu peito, sabe? E aí você pode carregar ele pelos lugares sem usar as mãos.

- Oh! - Stiles assentiu. - Eu sei do que você está falando. Eu comprei um que… espera, sua mãe achou o que ela usava com você?

É, ela disse para eu te perguntar se você queria, mas se você já tem um…

- Cara, eu vou jogar o meu no lixo, você está brincando? É claro que eu quero. - abriu um sorriso, mesmo sem perceber. - Isso é tão fofo. Eu estou imaginando a sua mãe carregando o Scottinho por aí. Aposto que você nem chorava.

- Cala a boca, Stiles.

- Eu já vi as suas fotos bebê, cara, você era uma gracinha. Sabe, quando seu queixo ainda era certo.

Eu estou me arrependendo de ter te ligado.

- Tá, eu parei. - Stiles riu. - E ninguém conseguiu a memória de volta? Quanto tempo a gente vai ter que esperar?

Oh, eu consegui. A memória, quero dizer.

- Sério? - pegou o celular na mão, se concentrando apenas na ligação por um momento. - O que era? Eram os doutores?

Não. Você lembra que eu tinha uma cachorrinha? Roxie?

Stiles semicerrou os olhos.

- Lembro, cara. Vagamente, muito vagamente. Uma pequenininha, marrom?

- Isso. Eu não lembrava dela. Você lembra como ela morreu?

- Aí você já está pedindo demais.

- Um cachorro gigante atacou ela. Eu tentei ajudar e fui parar no hospital.

- Oh. - essa história era familiar, mas Stiles não conseguia se lembrar de nada concreto. Aquilo fora há muito tempo. - Eu sinto muito, cara. Isso não deve ter sido divertido de lembrar.

Eu estou bem. - disse, mas Stiles tinha suas dúvidas. - Agora eu sei porque minha mãe nunca me deixou ter outro cachorro.

- E ela tem razão. Você tentou lutar com o cachorro, Scott? Que ideia genial.

Ele estava atacando ela!

- Se jogando no meio do perigo, algumas coisas não mudam mesmo. - deu um meio sorriso. - E aconteceu alguma coisa? Com a Malia, ela quase bateu o carro.

Ah… eu meio que… tive um ataque de pânico?

- Oh. Cara, que merda.

- É, foi. A gente não devia estar sozinho. Nenhum de nós, para o caso da nossa memória voltar. Essas alucinações são perigosas. E são muito fortes. É, literalmente, como se você estivesse vivendo de novo tudo aquilo.

- Que divertido. - um arrepio passou por sua espinha. - Okay. É uma boa ideia. Ninguém fica sozinho até todo mundo ter lembrado. E… e o Theo?

Scott levou alguns segundos para responder.

O que tem ele?

- Ele leu o livro?

- Oh, sim. Mas não se lembrou de nada ainda.

- Okay. - houve outra pausa. - Ah… e você… você pensou mais no pedido dele? Sabe, a questão de ele entrar no pack, ou não.

Cara, sinceramente, tem coisas demais para pensarmos. - ele respondeu. - Vamos ver isso depois que tudo acabar, okay?

- Okay. - concordou, e Derek escolheu aquele exato momento para entrar no quarto, trazendo uma caneca cheia de chocolate quente. Stiles sorriu. - Der!

- Cuidado. - Derek avisou, entregando-o a caneca. - Eu esfriei um pouco, mas cuidado.

- Obrigado. - Stiles a pegou com a mão livre, segurando firmemente em sua alça. - Você vai acabar me dando diabetes.

- Vai ser culpa sua.

- Completamente culpa sua. - levou a bebida aos lábios. - Meu Deus, Derek, essa é a coisa mais gostosa do mundo, sério. Depois da sua bunda, é claro. Oh, e depois do seu p…

Stiles, você ainda está em ligação. - a voz de Scott veio do celular. - Não me traumatize, obrigado.

- Oh, foi mal, cara. Eu tinha esquecido. - tomou mais um gole, ignorando o olhar irritado que o namorado o lançava. - Mas, em minha defesa, você já viu ele pelado, certo? Você sabe do que eu estou falando.

Stiles… - o amigo começou a falar, mas Derek roubou a atenção de Stiles mais uma vez:

- É isso. Você perdeu esse direito. - sem cerimônias, Derek tirou a caneca de sua mão. Stiles piscou, sem entender, e então Derek estava saindo do quarto com ela.

- Derek! - Stiles o chamou, ultrajado. Não recebeu uma resposta, então chamou de novo. E de novo. E mais uma vez, ainda encarando o espaço vazio na porta do quarto, onde Derek havia atravessado e desaparecido pelo corredor. - Scott, ele roubou meu chocolate quente!

Vai atrás dele. - Scott aconselhou, sabiamente. - A gente se fala mais depois. - com isso, encerrou a ligação.

***

Scott guardou o celular no bolso. Isaac havia saído de seu lado, em algum momento, então olhou em volta. Mesmo com os estudantes passando por eles no estacionamento, entrando em seus carros para ir para casa, não era difícil encontrá-lo. A cabeça de Isaac normalmente ficava por cima da maioria.

O namorado estava a alguns carros de distância, onde o carro de Nathan estava estacionado. Nathan tinha as mãos no bolso, e mudava o peso de um pé para o outro, visivelmente nervoso.

- Eu sei, Isaac. - Scott o ouviu dizer, e começou a andar até eles. - Mas eu tenho mesmo que ir para casa. Minha condição está melhorando, certo? Talvez...

- Nate, a gente não sabe o que isso quer dizer. - Isaac contra argumentou. - Se os doutores vierem atrás de você…

- Eu sei! Mas não tem como eu explicar isso para a minha mãe. Ela vai dar queixa do meu sequestro, daqui a pouco.

- A gente pode achar um meio termo, então. - Scott disse, já perto o suficiente. - Sua mãe gosta do Isaac, certo?

***

A delegacia inteira percebeu a presença de Lydia ali, antes de Parrish. O policial estava tão concentrado na tela de seu computador, que apenas a notou quando a Banshee puxou uma cadeira - fazendo questão de que os pés se arrastassem pelo chão - para se sentar ao seu lado.

- Lydia? - Parrish piscou, e então esfregou os olhos, que ardiam por encarar o monitor por tempo demais. - O que você…?

- Você se lembra do livro que todos tivemos que ler? - ela falou, já limpando um espaço na mesa de Parrish para que pudesse colocar sua mochila.

- Aham. Sobre os doutores, que vai fazer vocês lembrarem.

- Exatamente. Acontece que essas lembranças podem vir a qualquer momento, e são bastante violentas. Se acontecer comigo, eu quero estar com alguém em que eu confie.

Parrish não soube o que dizer, por um momento. Quando pessoas confiavam nele, normalmente era com algo que envolvia uma habilidade, ou competência profissional. O xerife confiava nele com missões - apesar que, já nem tanto nos últimos meses -, seus parceiros confiavam nele no campo, e seus superiores no exército haviam confiado nele para desarmar bombas. Não tivera muitas pessoas em sua vida que confiavam nele pela pessoa que era. Que confiavam que Parrish poderia ajudá-los, mesmo que não soubesse exatamente o que fazer, ou o que viria. Era uma sensação boa.

- Então você vai ficar aqui? - perguntou. - Até meu turno acabar? Acabou de começar.

- Você vai sair em patrulha, por acaso?

Com isso, Parrish suspirou. A pilha de arquivos ao lado de seu computador quase parecia caçoar dele.

- Você sabe que não. - respondeu, como uma lamentação.

- Bom, - Lydia abriu o zíper da mochila, de onde tirou seu notebook. - parece que eu vou ser obrigada a te fazer companhia, não é mesmo?

***

Havia sido uma luta dura e cruel, mas Stiles eventualmente conseguiu seu chocolate quente de volta. Sua performance em batalha o deixou cansado, porém, e era por isso que estava sentado na poltrona, enquanto Derek arrumava o resto das roupinhas sozinho. O sol já havia se posto, e John traria o jantar em pouco tempo. A máquina de lavar trabalhava em outra remessa de roupas, e o barulho, assim como o da secadora, podia ser ouvido no apartamento inteiro.

- Ugh, eu odeio eles. - Stiles reclamou, encarando descontente a tela de seu celular. Sua terceira caneca de chocolate quente estava pela metade, e seu estômago cheio demais. Isso, e a náusea que as cápsulas causavam não eram nem um pouco uma boa combinação. Não que ele fosse parar de tomar, obviamente. Apenas tirariam aquele chocolate quente dele se fosse dos dedos frios de seu cadáver.

- Quem? - Derek perguntou, guardando a pilha de pequenas toalhas na gaveta. Com uma expressão emburrada, Stiles mostrou o celular para ele, onde uma foto de Scott e Isaac sorrindo para a câmera brilhava na tela.

- Eles acabaram de me mandar. - explicou. - Estão na casa do Nathan. Sabe, para vigiar ele.

- E por que você odeia eles?

- Eles são tão bonitinhos! Que ódio. - bufou, ao mesmo tempo que recebeu outra foto. Nessa, Scott tinha o rosto deitado no ombro de Isaac, e Nathan fazia um V com os dedos no fundo da foto. - Aqui, mas uma! - resmungou, e virou um olhar acusador para o namorado. - Por que você nunca tira foto comigo?

- Stiles, você tem um milhão de fotos minhas. - revirou os olhos.

- Mas nenhuma delas é voluntária! - aquilo o fez perceber que não tinha nenhuma foto de Derek no quarto do bebê. Então abriu a câmera do celular, e tirou cinco fotos seguidas, só para começar. - Vai, Der. Tira uma foto comigo. Uma só. Por favor, por favor?

- Não.

- Dereeeeeek. - outra notificação. Stiles não precisava abri-la para saber que seria alguma coisa adorável. Seria eles fazendo careta, ou algo do tipo. - Ugh, eles são nojentos. Eu preferia quando eles estavam brigando.

- Eles estavam brigando? - Derek voltou o olhar para ele, parecendo preocupado.

- "Brigar" é uma palavra forte. - tirou mais fotos, aproveitando que Derek estava de frente para ele. - Eles só estavam… estranhos um com o outro, esses dias.

- Eu lembro. Por quê?

- Você é muito fofoqueiro, Derek Hale, sabia disso?

- Stiles.

Stiles riu, e bebeu mais de seu chocolate quente. Derek voltou ao que estava fazendo, de costas para o outro. Não era um problema, porque era uma ótima oportunidade para capturar a incrível visão que era seu traseiro.

- Foi idiota. - contou, enquanto virava o celular de um lado para o outro, testando ângulos diferentes para a foto. - Basicamente, o Scott falou sem querer sobre eles se casarem, e aí eles ficaram morrendo de vergonha um do outro por uma semana. Foi engraçado.

- Huh. - Derek pareceu pensar no assunto, e acabou assentindo. - Não me surpreende.

- É, acho que a mim também não. Scott sempre foi muito exagerado. Eu lembro que quando ele estava com a Allison…

- Mas é diferente agora. - Derek o interrompeu. Havia alguma coisa estranha em sua voz. - Não é a mesma coisa.

- Por quê? Porque os relacionamentos gays são sempre superiores aos héteros? - pensou um pouco. - É verdade, tem razão.

- Não, Stiles. - Derek revirou os olhos. - Porque eles são lobisomens.

Nisso, Stiles abaixou o celular, se concentrando em enviar um olhar confuso para o namorado. Derek, porém, não se virou para ele, apenas usou a desculpa de estar ocupado demais organizando o guarda-roupa.

- E…? - Stiles o incentivou a elaborar. - Ai, meu Deus, isso é mais algum costume de lobisomem que a gente não conhece? Derek, você tem que nos falar essas coisas, sério.

- Não é nada. - Derek negou, visivelmente arrependido. - Deixa para lá

- Oh, não, não, não. Agora eu quero saber. O que é? O que é diferente? - virou o resto de seu chocolate quente de uma vez, sem tirar os olhos da postura rígida do outro.

- Stiles, lobisomens… - ele suspirou. Encarou um ponto qualquer no chão por alguns instantes, decidindo quais palavras usaria. - Lobos, quando eles encontram…

- O quê? - Stiles insistiu. Estava começando a ficar nervoso, por algum motivo. Derek estava demorando demais para terminar suas frases, e aquilo não melhorava sua ansiedade. - Quando lobos encontram o quê?

- Quando lobos escolhem um... companheiro, é…

- É o quê, Derek? - estava quase se levantando. Tinha uma ideia de qual seria o final da frase, mas precisava ouvir. Seus dedos apertavam o celular e a caneca com força, e ambos os seus pés batiam contra o chão.

Derek suspirou mais uma vez, como se estivesse irritado.

- É para a vida toda, Stiles. Está bem? - ele explodiu, ainda de costas para o garoto. Suas costas estavam tão tensas que alguém pensaria que algo horrível havia acabado de acontecer.

Os pés de Stiles pararam de bater. O lugar mergulhou no silêncio, exceto pelo barulho da máquina e da secadora, na lavanderia. Lentamente, seus braços se abaixaram, até a caneca e o celular estarem apoiados em suas pernas. Não conseguia parar de olhar para a imagem nervosa de Derek - que provavelmente imitava a sua própria -, tentando entender o que aquilo queria dizer.

Devia dizer alguma coisa, certo? É, provavelmente devia dizer alguma coisa. Derek estava falando sobre eles? Oh, Deus, o que aquilo queria dizer? Stiles precisava de respostas.

Havia tantas coisas passando por sua cabeça, que ninguém podia culpá-lo que a que escapou foi:

- Igual lagostas?

Stiles quase não percebeu o que havia dito, e, quando percebeu, precisou resistir à vontade de estapear o próprio rosto. Igual lagostas? Deus, Stiles, cale a boca.

- O quê? - agora Derek se voltou para ele. Stiles sinceramente preferia quando o namorado estava de costas. Era bem menos embaraçoso.

- É uma referência de Friends. - explicou, com o rosto queimando. - Sabe, porque as lagostas nos aquários ficam de mãos dadas e…

- Oh. - Derek entendeu, e revirou os olhos. - Claro, Stiles. Pode ser.

- Ou, como penguins, então? - ele ainda estava falando. Por que ainda estava falando? Por que ninguém o havia feito calar a boca, ainda? Ele tinha que calar a boca. - Sabe, quando um pinguim escolhe outro para acasalar…

- Sim, Stiles. - Derek felizmente o interrompeu. Stiles prontamente mordeu os lábios, tentando impedir a si mesmo de dizer mais alguma coisa vergonhosa, como "acasalar”. - Scott e Isaac provavelmente escolheram um ao outro, okay? Você já pode deixar isso para lá?

- Scott e Isaac. - Stiles ecoou, e algo em seu peito imediatamente se quebrou. Scott e Isaac, certo. - Claro, okay.

- Não! - Derek exclamou, de repente. Quando Stiles ergueu o olhar de volta para o namorado, Derek parecia aterrorizado. - Eu não… eu não quis dizer que… - ele limpou a garganta e deu um passo para trás, se apoiando na cômoda, onde o cesto com as roupas limpas do bebê estava quase vazio. - Eu não quis dizer que era… só eles. Isso vale para todos os lobisomens. Nossos relacionamentos não tendem a durar muito tempo, a menos que… a menos que tenhamos escolhido. A menos que tenhamos decidido que encontramos a pessoa certa para nós.

- Oh. - Stiles assentiu, devagar. - Mas… mas Scott estava com a Allison. Isso quer dizer que ele não escolheu ela?

- Eu não sei. - desviou o olhar. - Ele pode ter. Mas foi ela quem terminou com ele, não foi? Se ela não tivesse, Scott nunca teria. Foi por isso que o término foi tão difícil. Ele até fez uma tatuagem para ela.

- Eu odeio aquela tatuagem. - resmungou para si mesmo, e então voltou a atenção para o namorado. - Espera, então… vocês podem escolher outras pessoas, mesmo que já tenham escolhido alguém?

- Stiles, não é… - Derek suspirou, frustrado. - É, eu suponho que sim. Em alguns casos.

- Em alguns casos. - engoliu em seco. Seu pé voltou a bater contra o chão. - E no seu?

Derek não respondeu imediatamente.

- O que você está me perguntando?

- Eu só… - começou a esfregar os dedos uns nos outros. - Eu acho que eu só… eu quero saber o que isso quer dizer. Para a gente. Porque eu não quero que você se sinta obrigado a estar comigo só porque…

Com isso, Derek riu. Stiles estaria ultrajado, se não estivesse tão nervoso.

- Não é isso. - disse o beta, um pequeno sorriso ainda em seu rosto. Estava muito mais relaxado, agora, como se estivesse em um território familiar. - Isso não é uma coisa consciente, Stiles. É o que eu sinto. Eu te escolhi, não porque é o que lobisomens fazem, mas porque eu te amo.

Seus olhos lacrimejaram, e Stiles abaixou a cabeça para disfarçar. Malditos hormônios. Era tudo culpa deles, tinha certeza.

- E não muda nada. - Derek continuou. - O que estou te dizendo agora, é o que eu já te disse antes. É o que eu te prometi, alguns dias atrás. Eu não vou para lugar nenhum. Eu vou sempre estar aqui. O tempo que você quiser.

- Isso podia ser bastante tempo. - sua voz saiu mais baixa do que pretendia, mas não importava, de qualquer jeito. O sorriso de Derek suavizou, agora tão gentil quanto seus olhos.

- Eu conto com isso.

Foi a vez de Stiles rir. Então tentou se levantar, e Derek teve que ajudá-lo de novo. Assim que se equilibrou nos dois pés, passou os braços pelos ombros do namorado, trazendo para si em um beijo. Derek não envolveu sua cintura, como normalmente fazia, mas espalmou as mãos na grande curva de sua barriga. O bebê se virou, agitado, como sempre ficava quando Derek estava tão perto dele. Stiles desconfiava que ele estava tão ansioso para sair, quanto eles estavam para finalmente vê-lo.

- Eu te amo. - Stiles disse, e passou a beijar seu pescoço. - E eu quero que você saiba que eu também sou seu. Eu sei que você não disse essas exatas palavras, mas…

- Eu podia muito bem ter dito. - Derek arrastou as mãos para baixo, até adentrar o moletom de Stiles. - Seu. - sussurrou, seus dedos subindo pela espinha do menor, fazendo-o se arrepiar. - Meu.

Stiles praticamente gemeu com a maneira que Derek pronunciou a última palavra. E com o jeito que Derek possessivamente o trouxe mais para perto, capturando o lóbulo de sua orelha com os dentes.

- É isso. - o garoto declarou, levemente sem fôlego. - A gente vai ter que transar. Vai, me leva para o quarto.

- Você sabe andar.

- Derek, será que dá para você ser romântico de vez em quando?

- Vai ter que ficar para depois. - sua cabeça se inclinou para o lado, como quando ouvia algo que Stiles não podia. - Seu pai acabou de chegar com o jantar.

E, é claro, foi quando ouviram batidas na porta da frente.

- Oh, qual é. - Stiles se lamentou. - Eu vou te cobrar, mais tarde.

- Eu tenho certeza. - Derek o beijou uma última vez, e então se foi.

Sozinho no quarto do bebê, Stiles repassou tudo o que aconteceu em sua mente. Deu alguns passos para frente, alcançando uma das roupinhas ainda no cesto, esperando ser guardada. Era um macacão azul claro, com bolinhas brancas. Não tinha mangas, ou as pernas, e era tão pequeno.

Pensou no que Derek disse. Quanto tempo quisesse. Derek falou com tanta certeza. Talvez Stiles devesse se sentir intimidado com um compromisso como aquele, mas se algum jeito, apenas parecia natural. E parecia com tudo o que poderia querer.

Ergueu o macacão até o rosto, respirando o cheiro suave do amaciante. Podia ouvir Derek e seu pai conversando no outro cômodo, e sentia a náusea, que era um lembrete constante de que tudo podia dar errado a qualquer momento.

Mas escolheu ignorá-la, naquela noite. Quando sorriu contra o tecido macio da roupinha, tudo estava bem.


Notas Finais


Quase chamei esse capítulo de foreshadowing.

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.

“Foreshadowing é um artifício literário pelo qual um autor insinua fragmentos da história que ainda está por vir. É uma espécie de "truque narrativo" no qual um elemento é colocado em cena de maneira que o público não o decifre de imediato, e sua volta posteriormente abala a trama de maneira significativa.”

Aiai u.u

comentem! me digam o que acharam <3


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