São três da tarde.
Antes de seguir para Paraty, resolvo fazer um desvio de última hora. Giro o volante de Lúcifer e pego a péssima estradinha que me levará até Trindade, um dos meus lugares preferidos no mundo.
O Jeep Troller vermelho adere bem ao terreno, ainda assim, sou jogada para cima e para baixo no banco conforme desço a estrada esburacada a caminho da praia. Abro a janela e desligo o ar-condicionado. Respiro fundo e o aroma de maresia me remete a tempos passados, num saudosismo intermitente.
O peito se enche novamente e fecho os olhos por dois segundos, talvez menos. Sinto-me abraçada pela atmosfera, pela natureza que me rodeia. Como é bom estar em casa.
Paro Lúcifer sob as areias da praia. Recosto a cabeça e mordo o lábio para segurar o riso, enquanto rememoro uma das cenas mais hilárias que já protagonizei: meu primeiro beijo. Que fiasco total. Mas vamos a ele...
Foi nessa praia, num luau desses que deveriam constar dos livros de história da cidade. O beijo foi estranho, úmido e engraçado. Eu tinha quatorze anos e ela quinze. Sim senhoras e senhores, isso mesmo que vocês estão pensando. Estou falando da Clara, ou Clarinha como todos nós a chamávamos. Que posso fazer, apesar de ser uma adolescente conturbada no fundo eu era tímida e não conhecia nada dessa vida maluca. Pensa bem, eu morava numa cidade pequena e não tinha nenhuma experiência nesse assunto. Minha única amizade próxima era com uma garota tímida também, toda desengonçada diga-se de passagem e nenhuma de nós tinha beijado antes e é bem provável que, por esse motivo, as coisas não tenham saído como deveriam. Ou porventura, a culpa tenha sido minha, como sempre. Aff!! Merda de vida.
Eu estava toda sem jeito porque tinha colocado na cabeça que queria deixar de ser uma bv, ai q vergonha admitir isso mas é a mais pura verdade. Ela tinha aquela cara de nerd, usava aparelho nos dentes e trancinhas tipo pessoas do interior, bem aquelas garotas esquisitas mesmo, além disso usava óculos de grau ao estilo John Lennon mas apesar disso sua timidez me deixava mais a fim ainda.
Enquanto a galera se matava de dançar na pista improvisada sobre a areia, ela tomou uma das minhas mãos, numa confiança que eu nunca tinha notado antes. Sob a luz do luar e da iluminação bruxuleante dos candelabros, ela me puxou para a beira do mar, bem longe dos olhares curiosos.
Confesso que estava tensa. Eu já tinha anos de treinamento básico com o dorso da mão. Mas ela não era a minha mão, afinal, tinha lábios e uma língua. Só de pensar nisso, senti um frio congelante na espinha.
Ela era uns dez centímetros mais alta do que eu. Comecei a divagar sobre as possibilidades: ela se abaixaria na minha direção ou eu deveria ficar na ponta dos pés? Não sei porque pensava sobre isso, mas na época me pareceu importante.
Descalça, senti a água morna se aconchegar. Observava um navio lá no horizonte, as cabines ainda acesas. Meus cabelos esvoaçavam com a leve brisa e o cheiro do mar me entorpecia.
Ela tomaria a iniciativa ou eu deveria agarrá-la? Remoí aquela dúvida por pouco tempo. Suas mãos rasgaram o ar e tomaram meu rosto em chamas. Seu olhar era fixo, tão profundo que não consegui me segurar. Eu desatei a rir, desenfreadamente.
Acho que a constrangi, não sei dizer. Ela mordeu o lábio e ficou me encarando vermelha feito um pimentão, com uma baita interrogação no semblante. Eu juro que tentei, mas a risada nervosa me dominou, sem parada. Se fosse qualquer outra pessoa, teria virado as costas e se mandado. Bem, ela até fez isso mais tarde e eu a entendo perfeitamente.
Descontrolada, afundei meu rosto em seu peito franzino. Seus dedos se enroscaram em meus cabelos e acho que ela bufou, talvez inconformada com minha atitude. O riso estava frouxo, ainda assim, contive o acesso por tempo o bastante para ouvir o que ela disse a seguir:
— Nina, você está me zoando? Tirando uma com a minha cara? Pensei que quisesse também poxa.
— Não! É claro que não. – estava envergonhada demais para mirar seus olhos esverdeados. – Escute, vamos tentar novamente?
— Acabou o clima, Marina.
— Por favor? – e então, fiz uso da mais poderosa arma feminina: a sedução, já tinha chegado até aqui não iria desistir assim tão fácil, afinal ela era a minha melhor opção nesse momento. Então na ponta dos pés, comecei a beijar o seu ombro, até chegar ao pescoço.
Ela tombou a cabeça de lado e acho que arfou. Seus dedos, ainda enroscados em meus cabelos, escorregaram para as minhas costas. Senti seus lábios em minha testa, têmpora, bochecha e então, colaram-se em minha boca.
Uau!
O toque era macio, úmido, até gostoso. Sentia choques elétricos por toda a extensão da pele e havia uma conexão entre nós, algo surreal. Eu não sabia o que fazer com a droga da minha língua, portanto, ela permaneceu dentro da boca. Mas então, algo muito esquisito aconteceu. A língua dela entreabriu meus lábios e ela entrou, sem pedir licença.
Puta merda, aí foi demais.
Um novo acesso de riso se instalou e dessa vez, não teria volta. Ela jogou as mãos para o céu, entregando os pontos. Pelo visto, eu não iria colaborar. Até tentei dissuadi-la, dizendo entre engasgos que eu iria me controlar. Ela não acreditou, virou as costas e me deixou ali, rachando de tanto rir.
Apesar dos pesares, foi muito legal, uma lembrança que realmente vale a pena guardar. Para falar a verdade, estou sentindo um aperto no peito nesse exato segundo. Essa memória veio carregada de fortes emoções, afinal foi o meu primeiro beijo cara, isso é inesquecível pra uma garota. Tenho certeza que ela também deve se lembrar desse momento só nosso, ou será que não....
Saio do carro e o vestido floral esvoaça com a brisa. Meus cabelos dourados, na altura do queixo, também se espalham, livres como o vento. Inspiro e expiro por várias vezes, chegando a ficar zonza. Abro os braços e dou um grito: “Cheguei!”. Sempre faço isso e na maioria das vezes alguém grita de volta: “E daí?”.
Bando de estraga prazeres.
Ouço a voz de Vanessa gritando dentro de Lúcifer. Ela fez essa gravação há séculos e sempre que escuto, acabo rindo sozinha. A musiquinha que ela compôs é assim:
“Marina, atende logo essa bagaça por que sou eu. Alô, Nina, me atende logo. Atende logo esse celular, Ninanaaaaaaaaaa!”
— Oi, Van.
— E aí, Nina? Chegou?
— Ainda não. Adivinhe onde estou.
— Se eu bem conheço você, deve ter feito um desvio básico a caminho de Trindade, acertei? E como você é um tanto óbvia, sei que deve estar sentada sobre o capô de Lúcifer, contemplando o mar azul e relembrando os melhores momentos da sua vida, dentre eles, seu primeiro beijo para lá de cômico.
Antes que me perguntem...sim, contei esse episodio que acabei de lembrar aqui na praia pra Vanessa. Claro... ela é a minha melhor amiga né gente, não escondo nada dela. ...óbvio que escondi dela a identidade da pessoa. Agora pensando bem, nem sei dizer ´porque escondi isso dela. Sei lá, talvez ela não teria acreditado mesmo. Afinal depois da Clarinha nunca mais estive com uma mulher.
— Poxa, você deveria ganhar dinheiro com isso. – sorrio sobre o capô do Jeep, um tanto decepcionada por ser tão óbvia. – Fui parada por um policial no caminho, mas ele era gente boa e batemos um papo interessante.
— Foi multada? Se foi, prepare-se. Chegou uma multa hoje cedo para você por excesso de velocidade na Marginal Pinheiros. Com essa, acaba de estourar os pontos da carteira de motorista.
— Nem isso vai tirar meu bom humor no momento. – dou um soco em Lúcifer, só para aliviar a pressão. – Como estão as coisas por aí?
— Vou sentir a sua falta. A casa está tão vazia sem as suas caixas de sapatos…
Dou uma gargalhada, engasgando. Van também ri do outro lado da linha, mas sei que está sofrendo com a minha mudança. Ela tinha sugerido umas férias, mas acabei optando por voltar a morar com o meu pai e ajudar meus avós a tocarem a pousada. Aliás, o sonho deles é que eu aprenda os macetes do negócio para herdar o hotel quando eles se forem. Gosto da ideia, não é de toda má.
— Não acredito que estamos conversando pelo celular. Esse troço nunca dá sinal por aqui. – digo, estreitando os olhos para observar melhor o horizonte.
— Estamos no Brasil, esse troço nunca dá sinal em lugar algum. Erga as mãos para o céu, você está vivendo um milagre dos grandes. – Van faz uma pausa curta. – Nina, se precisar de qualquer coisa me ligue, está bem?
— Pode deixar. E, Van, peça suas férias vencidas naquela agência do capeta. Não aceite nada menos do que trinta dias, vamos nos divertir muito por aqui.
— Será a primeira coisa que farei na segunda-feira. Promete se cuidar?
— Prometo. E pique essa multa em mil pedaços e depois queime, talvez os pontos na carteira sumam por magia.
— Pode deixar.
Dois quilômetros para a entrada de Paraty.
Essa é uma cidade colonial, preservada pelo Patrimônio Histórico Nacional devido ao conjunto arquitetônico de suas construções. Sempre que entro no Centro Histórico, sinto-me automaticamente levada a outras épocas, onde andar de salto alto era impraticável devido às pedras pés-de-moleque do calçamento. Bem, andar de salto continua sendo impossível para mortais desastradas como eu. Por sorte, tenho inúmeros sapatênis, sapatilhas e tênis confortáveis.
Paraty foi fundada em 1667 e teve grande influência econômica no Brasil, devido aos engenhos de cana-de-açúcar. A pinga produzida na região é incomparável até os dias de hoje. Adoro uma boa caipirinha com camarões à beira mar. O que dizer? Gosto das boas coisas da vida.
A cidade é cercada pela Mata Atlântica e tornou-se, com o passar dos anos, um polo de turismo nacional e internacional. Nasci aqui há vinte e oito anos e sei por que deixei tudo para trás. Além da master burrada que fiz há dez anos, minha mãe também contribuiu para essa decisão tresloucada, mas não estou a fim de falar sobre isso agora.
A pousada dos meus avós situa-se no Centro Histórico e lá não é permitido o tráfego de automóveis. Por esse motivo, faço um desvio e sigo por uma rua lateral ao centro. Embico Lúcifer no estacionamento que fica na parte de trás do estabelecimento e desço do carro, abrindo a portinhola de madeira.
Não avisei ninguém sobre a minha mudança. Gosto de entradas triunfais e inesperadas. Só espero que minha avó não tenha um ataque do coração. Ela é do tipo emotiva e fica extremamente irritada quando não aviso que estou chegando. Coisas de gente mais velha.
Desligo o motor e preciso de algum tempo para me localizar. Faz dois anos desde que vim pela última vez e só passei o final de semana. Estranhamente, parece fazer mais tempo. Estive tão comprometida com o meu trabalho e os meus relacionamentos destrutivos que, sei lá, acabei deixando minha vida familiar de lado. Estou me sentindo culpada, é isso.
Com um friozinho esquisito na barriga, aprumo-me em direção à recepção do hotel. As palavras do policial Pacheco de repente ecoam em minha mente, como um presságio: “Encare sua chegada em Paraty como um recomeço, uma nova chance.”
Ok, Pacheco, você tem toda a razão. Farei desse o primeiro dia do resto da minha vida.
Minha avó, com seus cabelos que mais se parecem navalhas de tanto laquê, não para de me beijar, apertar, beliscar. Ela chora e ri ao mesmo tempo. E também vocifera:
— Por que não ligou? Eu teria arrumado o seu quarto, feito bolo de cenoura e comprado aqueles camarões graúdos que você tanto gosta. Odeio quando chega sem avisar.
Não disse que a vovó é doida?
Meu avô se limita a um abraço longo, daqueles que não necessitam de palavras. Ele é o tipo de pessoa que dá vontade de apertar as bochechas só por existir. Emana uma calma tão sublime que, ao seu lado, sinto-me flutuar.
— Avisou ao seu pai que viria? – vovô vinca a testa.
— Não.
— Marina, o que houve? – ele deve possuir algum poder do além, sempre sabe quando estou em apuros.
— Podemos falar sobre isso mais tarde, vô? Não almocei e estou varada de fome.
— Como assim não almoçou? – estridente, vovó sacode meus ombros. – Marina, já são quase cinco da tarde, não pode ficar tantas horas sem comer. Venha, vou preparar algo para você.
Enfim...lar do lar...aqui realmente me sinto em casa. Como tenho saudades desse lugar e principalmente dessas pessoas maravilhosas que moram aqui. Minha família, meu bem mais precioso. Me levanto e acompanho minha vó para que ela possa me preparar uma de suas maravilhosas especiarias. E como por encanto meu coração se aquieta nem que seja um pouco e posso me desligar por um minuto de minha vida maluca e voltar a ser apenas uma menininha em busca do colo caloroso e familiar.
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