Tudo não passava de um borrão para Junhui, flashes de memória. Mingyu fechando os olhos da cabeça decepada do tio, Wonwoo tirando o machado da mão dele, Minghao sendo puxado para fora da cozinha, alguém falando que precisavam cuidar das feridas. Ninguém pegou nada na casa, saíram sem nem olhar para trás, deixando roupas, corpos, as galinhas, tudo. Duvidava que um deles conseguiria pisar naquele lugar de novo.
Em algum momento pararam em um antigo posto de saúde, completamente acabado agora. Junhui nem viu quem dirigiu, ficou ocupado demais abraçando Minghao que ainda estava agitado, só começou a absorver o que estava acontecendo quando desceram do trailer, todos deixando a água molhar suas roupas, a chuva começando a lavar o sangue seco em seus corpos. Entraram na primeira sala que acharam, aliviados ao verem as prateleiras cheias.
A mãe de Mingyu era enfermeira e Wonwoo já se meteu em muitas brigas para saber se cuidar, então ambos tomaram a frente na hora de cuidar dos ferimentos. Após algumas horas, estavam sentados no chão da sala, uma luz de emergência acesa no meio dela e cada um com algumas gazes presas ao corpo. Estavam quietos, pensando sobre o que aconteceu, o barulho da chuva não deixando o espaço completamente silencioso.
— Deixa eu te ajudar. — Junhui murmurou, se aproximando de Minghao.
Entendeu a falta de resposta como um sim, então, após dar um selinho na testa do rapaz, começou a tirar a calça dele. Com um pouco de ajuda do ruivo foi fácil, após um minuto o tecido molhado já estava no chão, as roupas de todos fazendo um bolinho no canto da sala, um cheiro bem duvidoso saindo delas.
— Obrigado. — o ruivo disse, logo se acomodando no chão duro.
Junhui levantou para pegar um lençol que havia visto em um armário. Pegou dois de uma vez, jogou um para Wonwoo e voltou para perto de Minghao. O menor não reclamou quando se sentou colado nele, muito menos quando os cobriu com o tecido. Jun entrelaçou os dedos com seu namorado, olhando o pulso dele, seus olhos fixos na carne machucada.
— Está se sentindo melhor? — murmurou, metade por sua voz estar fraca demais e metade por querer que o casal sentado no outro canto da sala não os ouvisse.
Minghao suspirou, com certeza não estava melhor. Toda hora que fechava os olhos se lembrava dos olhos dele, arregalados enquanto o ruivo enfiava uma faca em suas entranhas.
— Estou menos… assustado. — ele murmurou de volta, apertando a mão do maior.
Junhui devolveu o aperto, colando ainda mais os corpos. Minghao relaxou um pouco, olhos indo até os amigos do outro lado da sala. Wonwoo abraçava Mingyu, o mais alto sentado entre as pernas do menor. Mingyu olhava para o chão sem nenhuma expressão, a luz refletindo em suas írises escuras. O Jeon estava com os olhos fechados, sua cabeça repousando no ombro do loiro. Pareciam exaustos.
— Ele vai se sentir culpado. — sussurrou.
— Ele já está se sentindo culpado. — Minghao respondeu, seus olhos presos nos amigos.
Todos poderiam ter percebido, e meio que eles perceberam. Ninguém espera algo assim de uma pessoa querida, Mingyu nem deve ter imaginado algo assim. Junhui se irritou por uns instantes, poderia ter ido atrás do idoso e ter descoberto tudo pelo cheiro podre que o corredor provavelmente deveria ter. Poderia ter percebido algo, mas por ser alguém de confiança provavelmente nem entenderia o que era aquele cheiro estranho.
Não iria chegar a lugar nenhum pensando sobre isso.
— Não adianta pensar nisso agora. — Junhui disse, sua voz saindo rouca. Não sabia se estava falando para acalmar Minghao ou a si mesmo. — O importante é que estamos vivos.
Minghao ficou quieto, seus dedos apertando os de Junhui com mais força. Não continuou a conversa, pensando que o ruivo deveria estar refletindo sobre algo. Quando Jun estava prestes a chamá-lo para dormir, o menor começou a falar.
— Foi assustador. — murmurou, dessa vez não disse baixo porque queria privacidade, Minghao estava com medo de falar mais alto e acabar desmoronando. — Eu não precisei pensar quando vi ele te enforcando, só saí correndo… você estava ficando sem ar. No começo eu fiquei parado, eu fiz o que você pediu.
Junhui virou a cabeça, ignorando a dor que sentiu ao fazer isso, seus olhos indo para os de Minghao. O menor o olhou de volta, seus lábios tremendo um pouco, sujos de seu próprio sangue.
— Não me orgulho de ter feito aquilo, eu… eu matei um homem. — ele levou a mão livre até a boca, tentando roer as unhas quase inexistentes, apenas fazendo com que mais sangue saísse de seus dedos. — Mas não sinto tanta culpa quando deveria, Junnie. Sempre que fecho os olhos eu me lembro, me lembro de tudo, do sangue respingando no meu rosto, dos olhos…
— Ele iria te matar. — sussurrou, incerto do que deveria falar.
Queria que Minghao parasse de se sentir assim, mas até ele se sentia culpado pela morte do idoso. Mesmo quando se lembrava do bebê no chão do quarto, apodrecendo. Mesmo quando pensava que poderia ter sido um certo bebê, um que tinha um nome incomum e um quarto adorável. Mentiria se dissesse que não passou o dia inteiro pensando no quarto com a porta amarela, na foto que enterrou no meio das raízes da árvore.
Até rezou para que ela sentisse um pouco de pena da situação e também tomasse conta da família que jazia morta na mansão.
— Eu sei, Junnie.
Voltou a prestar atenção ao seu redor quando Minghao suspirou ao seu lado, seus olhos voltando a focar nos do rapaz.
— Minha vida vale mais que a dele? Ele merecia morrer? Fizemos a coisa certa? Tomamos a melhor decisão?
Não parecia que ele queria uma resposta, e assim Junhui fez. Ficou calado, olhando Minghao desistir de comer as próprias unhas, seus dentes passando a mordiscar a carne de seu lábio. Parou apenas para continuar a falar, seu olhar nunca deixando os olhos de Jun.
— Eu sei que você não sabe a resposta. Eu também não sei. — Minghao suspirou, sua voz soando cada vez mais fraca. — E se alguém sabe, eu não quero ouvir, não agora. É só que…
Ele fechou os olhos, enchendo os pulmões de ar.
— Quando eu penso que ele não se importaria de ter que matar o próprio sobrinho, nosso amigo desde antes do fim do mundo, não me sinto tão mal. Quando penso no machucado no braço do Wonwoo, minha ação não parece tão bárbara. — ele abriu os olhos, dessa vez sua atenção indo para o pescoço de Junhui.
Minghao levantou o braço, seus dedos tocando os curativos que Wonwoo fez há alguns minutos.
— Quando lembro dele tentando te matar, sinto que posso viver com esse sentimento sem me deixar ser corroído por ele.
Não respondeu o menor, não sabia o que dizer. De certa forma fizeram isso juntos, e Junhui faria a mesma coisa por ele, mas sabia que não iria mudar o que Minghao sentia. Provavelmente o ruivo já sabia disso, ele foi o nerd da turma afinal.
— Fiquei com medo do Joshua estar certo. — disse tão baixinho que Jun mal ouviu. — Em um sonho que eu tive, mais de um na verdade, ele disse que eu iria acabar te matando. Eu fiquei com tanto medo, Junnie. Tanto medo que só percebi o que estava fazendo quando Wonwoo me puxou.
Abraçou o menor, sussurrando que estava bem agora, que estavam bem. Sentiu Minghao tremer entre seus braços, lágrimas molhando seu peito, mas não se importava. Começou a fazer carinho nos fios rubros, duros pelo sangue e vômito seco. Sentiu ele o apertar de volta, puxando Jun para perto.
— Estou fedendo mais que um zumbi. — ouviu a voz chorosa reclamar, seu corpo ainda tenso. — Você também ‘tá fedendo.
— Eu sei. — beijou a cabeça dele, tentando os acomodar de um jeito mais confortável.
— Estou me sentindo um lixo. — começou a soluçar, fazendo com que Junhui também começasse a chorar. — Minha orelha dói cada vez que soluço, minha bochecha ‘tá ardendo.
Junhui também sentia seu corpo reclamar, cansado, dolorido, machucado. Mas seu coração parecia ter o primeiro sentimento reconfortante em séculos, mesmo que os sentimentos ruins que sentiu no dia ainda estivessem presentes.
— Seu cafuné é horrível. — sentiu a mão de Minghao começar a fazer um carinho em suas costas, seus soluços fazendo o ritmo ficar meio estranho. — Eu te amo.
Junhui relaxou um pouco, seus ombros ficaram mais leves.
— Eu te amo muito. — respondeu, sentido o corpo de Minghao relaxar em seu abraço.
— Eu quero um cigarro.
— Desculpe, não tenho nenhum.
— Eu sei que não, seu idiota. — se Minghao queria fingir que estava irritado, falhou miseravelmente. — Tudo bem, eu não jogaria fora meu progresso por causa dele.
Minghao se afastou, mas antes que Jun pudesse olhar o rosto dele com atenção, o menino já estava deitado no chão gelado.
— Vamos deitar abraçadinhos? — perguntou baixinho, com medo do ruivo pedir para ficar sozinho.
— Sim. — Minghao se enfiou entre seus braços assim que deitou, apoiando seu pescoço no braço de Jun.
— Vamos ter que conversar mais amanhã, não é?! — perguntou, seus olhos pesando ao sentir um carinho em suas costas.
O ruivo ainda fungava, e Jun sentia seus olhos deixarem escapar algumas lágrimas.
— Podemos conversar quando quisermos, Haohao. — Minghao fechou os olhos ao sentir a mão de Jun em seus fios, seus soluços indo embora.
— Temos que falar para Mingyu que ele não teve culpa.
— Fazemos isso amanhã.
— Você não ‘tá com fome?
— Não consigo pensar em comer agora. — Minghao suspirou com a quantidade de perguntas do namorado. — Se acalma, Junnie, se pensar muito vai acabar saindo fumaça da sua cabeça.
Mesmo rouco após tanto choro, Junhui ainda achou a voz de Minghao doce.
— É bom ter amigos por perto. — não conseguiu sorrir, mas esperava que Minghao entendesse o quão grato se sentia mesmo assim. — Mas é melhor ainda ter um melhor amigo.
Sentiu o carinho de Minghao parar, sua mão travando no meio do caminho. Não teve tempo para pensar besteira, logo ela voltou a se mexer, dessa vez mais suavemente.
— Melhor amigo e namorado. — aumentou a fala do maior.
— Sim, melhor amigo e namorado.
Deveria ter sido alguém muito bom na última vida para ter tido a sorte de conhecer Xu Minghao nessa.
🧟♀
Wonwoo acordou um pouco confuso, seu corpo doendo como não sentia há meses. Se mexeu, sentindo seus músculos reclamarem e seu braço doer ainda mais.
— Durma mais. — uma voz rouca disse, dedos penteando seus fios.
Abriu os olhos, vendo Mingyu sentado ao seu lado. Parecia que ele havia chorado de novo.
— Ainda não amanheceu? — perguntou.
O maior negou, se virando para olhar a sala mais uma vez e logo depois voltando a olhar o Jeon. Wonwoo olhou a expressão do namorado, analisando com cuidado, preocupado com o que achou nos olhos do Kim.
— Não faça essa cara. — Mingyu pediu, seus olhos indo para longe de novo.
— Que cara? — pensou em levantar, mas a dor em seu braço logo o fez desistir da ideia.
Levantou o braço bom, puxando Mingyu para baixo.
— A cara que diz que eu não deveria me sentir culpado e que você me ama muito.
— Não precisa me olhar para deduzir como eu me sinto. — falou suavemente, relaxando ao sentir o corpo do maior fazer o mesmo.
Mingyu deitou ao seu lado, ambos ficaram olhando o teto. O som da chuva deixando a atmosfera mais confortável.
— Os meninos ainda estão dormindo? — perguntou após uns instantes.
— Sim, Minghao acordou um tempo atrás, mas voltou a dormir.
Suspirou, se lembrando de como o ruivo estava a horas atrás. Demoraria para voltarem ao normal, se bem que é impossível esquecer o que aconteceu, não conseguirão ignorar os últimos acontecimentos. Espera que ao menos possam criar um novo “normal ”, longe dessa cidade, juntos.
— Ele falou alguma coisa? — perguntou ao notar o jeito que o namorado estava se mexendo, inquieto.
Mingyu suspirou, parando de se contorcer.
— Ele me disse uma coisa, mas não sei se acredito. — sentiu o Kim se mexer, e logo o rosto dele entrou em sua linha de visão. — Por que vocês não ficaram bravos? Por que estão agindo como se eu não tivesse culpa? Vocês não entendem…
— Você é que não consegue perceber que não é culpado, Mingyu. — cortou o maior, seus olhos se suavizando ao ver o namorado hesitar em continuar a falar. — Aposto que Minghao estava certo.
Já haviam conversado sobre isso antes de ir dormir, não que tenha falado tudo que queria falar, poderia esperar mais um pouco para ter uma conversa mais séria. Sabia que levaria bastante tempo até que Mingyu começasse a acreditar que não tinha culpa pelo tio ter enlouquecido, e não se importaria de repetir as mesmas coisas todos os dias.
— Realmente pensei que você concordaria com ele. — o maior respondeu calmamente, voltando a se deitar ao lado do namorado. — Talvez eu esteja errado, mas não consigo parar de me sentir assim.
Wonwoo levou sua mão até a do namorado, entrelaçando os dedos.
— Tudo bem, Mingyu. Tivemos um puta de um dia ruim hoje, você precisa descansar. — sentiu Mingyu se aconchegar ao seu lado, se surpreendendo ao ouvir o namorado fungar. — Pode pensar sobre isso depois, vai acabar desmaiando por exaustão.
— Não consigo parar de pensar que matei meu tio. — sussurrou fracamente. — Pior ainda é não me sentir um monstro.
Fechou os olhos, sentindo vontade de chorar. Pensou que elas haviam acabado há muito tempo, quando estava sentado na lama junto com Junhui.
— Você não é um monstro, e nunca vai ser. Acredita no que eu estou falando, ok?! Eu sempre estou certo, confia em mim.
Mesmo sua voz saindo quebrada, Mingyu não pareceu se importar.
— Eu confio em você. — Mingyu beijou sua mão, a apertando com mais força. — Eu juro que vou tentar.
Agora as lágrimas caiam como uma cachoeira, tantas que nem sabia mais o motivo exato para estar chorando.
— Vamos começar outra vez.
— falou um pouco mais alto, se Junhui ou Minghao estivessem acordados eles iriam ouvir. E era isso que queria. — Longe daqui.
Mingyu apertou sua mão de novo, dessa vez muito mais forte que antes.
— Só nós quatro? — ele perguntou.
— Sim. — Wonwoo sentia que seria só os quatro por muito tempo, e isso era mais que o suficiente. — Eu, você, Junhui e o projeto de Chucky.
Alguém bufou do outro lado da sala.
— Você me ama tanto. — Minghao respondeu, sua voz soando abafada. — Temos que escolher para onde vamos.
— Seria legal ir morar em uma fazenda. — Junhui soou levemente animado. — Poderíamos criar bichinhos.
— Desde que não sejam galinhas. — Mingyu pediu alto até demais, fazendo sua voz quebrar no meio da frase. — Não quero ver uma por bastante tempo.
— Acho que todos nós concordamos. — Junhui suspirou.
Ouviu Minghao murmurar que sentiu pena delas, mas que também não queria ver uma por alguns anos. Mingyu falou mais alguma coisa, mas Wonwoo estava muito ocupado se sentindo aliviado. Estava com medo do outro casal não gostar da ideia, mesmo que essa insegurança soasse ridícula agora.
— Podemos ir para o Leste. — Minghao parecia cansado.
— Podemos escolher um lugar legal. — Mingyu concordou, estava parando de chorar.
— Não tenho certeza se vamos precisar criar tantos animais. — Minghao continuou, e Wonwoo já sentiu o canto de seus lábios subirem um pouco. — Wonwoo já é um burro.
— E você uma maritaca. — respondeu suspirando.
O clima parecia mais leve, mais confortável.
— Será que conseguimos achar um gatinho? — Junhui ignorou os dois rapazes.
— Sempre quis ter um. — Mingyu respondeu fungando.
Wonwoo abriu os olhos, não se importando com as lágrimas que ainda caíam, muito menos com sua visão borrada.
É… parece que vai dar certo.
Vamos ficar bem.
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