O choro baixinho era quase inaudível aos ouvidos menos atentos, mas aos de Marco não passava desapercebido.
Julian estava ali, escondido, entre o sofá e a parede, chorando enquanto as mãozinhas gordinhas seguravam o corpinho penoso.
– Jule?
O loirinho levantou a cabeça, as bochechas marcadas pelas lágrimas, a tristeza estampada nos olhos verdes azulados.
– Ah, mein Schatzi. – Julian tentou limpar as lágrimas, não queria que fosse visto chorando.
– Ele morreu, papai. – Mostrou o passarinho.
Não era o primeiro bichinho que Julian via morrer, odiava quando em algum desenho morria algum animal de estimação ou quando via no jornal na TV, notícias de morte de animais, principalmente os marinhos.
Sabia que a vida não durava para sempre – seus papais tiveram àquela conversa com ele e o irmão quando um vizinho deles, já velhinho, veio a falecer. Mas doía tanto o seu coraçãozinho.
– Vamos fazer um enterro para ele, tá bem? Para ele ir descansar em paz. – Assentiu, subindo para o colo do pai.
Julian não queria enterrar no fundo do quintal, tão pouco no cemitério para animais que havia na ilha, queria que o passarinho fosse velado na água. O oceano era seu fascínio, tão vasto, tão belo, tão curioso. Seus pais lhe diziam que ele parecia brisa do mar e Julian gostava de ouvir isso porque a brisa era sempre calma, fresca e passava uma sensação de que tudo ficaria bem.
– Para onde o oceano leva as coisas que jogam nele? – Perguntou baixinho vendo o papai Toni e o irmão mais novo mais adentro do mar, empurrando o caixãozinho improvisado para as águas claras.
– Para muito longe. – Reus respondeu.
– Todas as coisas? As boas e as ruins?
– Aham.
Julian escondeu o rosto na curvatura do pescoço do pai, muito bem agarrado ao colo dele.
– Um dia ele vai voltar?
– Vai, em forma de outra coisa, um peixinho, quem sabe? – Sentiu o carinho do pai em seu cabelo e bocejou. – Tudo que o oceano leva, mein Schatzi, um dia ele traz de volta.
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– Eu te odeio! Odeio!
Julian tremia de raiva, o rosto antes queimado de sol agora avermelhado também pela cólera. Não existia pessoa mais odiável em toda a Tortola que Kai Havertz. Não mesmo; se existia, Julian queria conhecer, porque não tinha como.
Por que convivia com aquela criatura ainda? Não sabia. O infeliz, que Julian conhecia há um mês, era seu avesso. Se Kai gostava de algo, Julian gostava de outra.
Noite e dia, roxo e amarelo, Tom e Jerry, frio e calor, doce e salgado, Mariah Carey e Eminem, desorganizado e metódico, ativo e passivo, norte e sul, positivo e negativo, moreno e loiro, alto e baixo. Antagônicos até demais, Julian dizia para sim mesmo e sempre se lembrava do que seus pais falavam.
Pois se Brandt era brisa do mar, Havertz era furacão.
Julian lembrava bem do dia que Kai chegou ali. Havia sido um dos dias mais lindos dos últimos anos, o sol esquentando a pele enquanto surfava nas ondas perfeitas e de repente o tempo mudou, uma tempestade das grandes. Pela madrugada, quando a chuva era forte ainda, Julian viu da janela do quarto o farol piscar, e pela manhã, com o tempo calmo, ele e o irmão foram até o porto ver o Meeresbrise.
Kai foi o primeiro tripulante da embarcação que Julian conheceu e pareceu absurdo para ele que aquele moleque de dezoito anos, barulhento e desinibido, fosse o que dizia ser, um oceanógrafo recém-formado. Mas era como Marcos, inteligente acima da média.
E para desgosto de Brandt, ele virou motivo de interesse para o viajante dos mares. Não foram necessárias mais do que algumas horas para perceberem que a única coisa compatível entre eles era o amor pelo oceano.
– Odeia nada! – Os braços de Kai o alcançaram e o envolveram em um abraço antes dos dois irem ao chão, rolando pela areia clara e fina, começando a esfriar naquele fim de tarde. – Não odeia quando eu faço isso. – Sentiu a boca do outro correr pelo seu pescoço, assim como os dedos pelos seus braços. – Ou isso. – Beijou Julian, um beijo rápido e com o gosto doce do sorvete que haviam tomado a pouco. – Então, não me odeia. E se odiar até nisso a gente é oposto, não é? Porque eu gosto de você.
Julian revirou os olhos.
– Conversa de marinheiro. Caio nessa não, você é navio errante, Kai, e eu sou porto que sempre tá no lugar. – Envolveu os dedos nos frios negros bagunçados.
– Essa sua personalidade calma e passiva... saia dessa defensiva, Schatz. – Kai sorriu, vendo o rosto se avermelhar mais ainda.
– Que ódio, Havertz! Já falei para não ficar com esses apelidos!
O loiro sabia que no começo Kai fazia para debochar, depois de ouvir Marco chamá-lo de meu tesourinho, sempre que tinha a oportunidade agora, lá estava o rapaz de olhos azuis o chamando de tesouro.
– Mas combina tanto com você!
Brandt empurrou o outro de cima de si e com raiva marchou até a prancha de surf esquecida alguns metros deles.
– Vai entrar na água e me ignorar? – Kai questionou enquanto Julian voltava a colocar a camisa térmica.
– É o que estou fazendo. – Respondeu já sentindo a água tocar seus pés.
– Pois bem, então vou ficar esperando até você parar com essa birra!
Balançou a cabeça. Kai era teimoso até demais, e persistente. Isso matava com Julian, porque ele sabia que aquele rolinho deles era só aquilo mesmo. Assim que o Meeresbrise estivesse concertado, ele partiria.
Furacões eram passageiros e Kai era um.
Ali, em cima da prancha, Julian esquecia um pouco daquilo. De costas para a praia, a vastidão do Oceano Atlântico enchia os seus olhos.
– Julian! – Virou ao escutar o chamado.
Kai não desistia.
– Eu tô com fome. – Ouviu ele gritar.
– E o que eu tenho a ver? Sou seu pai para ficar te dando comida por acaso? – Gritou em resposta, em um alemão carregado de sotaque, fazendo o outro rir. – Para de ri, caramba!
– Você tá fazendo aquele bico fofo? Se tiver eu paro. Mas tem que vir aqui para eu ver!
Mesmo com ódio, Julian voltou até a praia, o bico nos lábios, a cara de mal.
– Vamos, vem jantar com a gente. – Falou passando direto pelo Havertz.
– Você fica lindo emburrado assim.
Julian largou a prancha. Hoje não era seu bom dia.
Odiava aquilo que sentia quando Kai lhe elogiava, ou quando tocava sua pele, ou quando se beijavam e, mais alarmante ainda, quando transavam. Julian era virgem até um mês atrás. Mas em poucos dias estava confiante o suficiente para conversar com os pais mais uma vez sobre sexo e entrar em uma farmácia para comprar camisinhas.
Odiava ter tão bem detalhado em sua mente cada momento que passava com Kai.
Odiava porque Kai era filho do oceano. Nasceu e cresceu dentro de um navio, era navegante como o pai, não guardava morada em terra firme – não como Julian queria, como ele precisava.
Odiava que fosse tão agarrado a um pedaço de terra. Nasceu e cresceu em Tortola, sua vida era ali, mas sabia que podia fazer morada em qualquer outro lugar que tivesse o oceano perto – não sabia viver longe, não conseguia suportar a saudade.
Kai amava o oceano e vivia nele.
Julian amava o oceano e vivia com ele.
A mesma coisa que os unia, também os separava.
– Para com isso. – Pediu entre as lágrimas. – Para com isso porque você vai embora, vai passar sabe-se lá quantos meses embarcados. Atracarem aqui foi coisa do acaso, a gente nem ia ter se conhecido se não fosse a tempestade. Para com tudo isso, Kai, porque eu gosto de você e vai doer quando você se for.
Pela primeira vez em horas, Brandt aceitou o abraço do outro; pela primeira vez deixaram as diferenças e opiniões contrarias de lado e apenas aproveitarem as duas semanas seguintes como se fossem os seus últimos dias de vida.
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Doí como o inferno, como doí. Sentado entre o sofá e a parede, Julian tentava não chorar muito alto para não chamar a atenção de sua família.
– Jule?
Julian ergueu os olhos.
– Ele foi embora, papai. – Tentou secar as lágrimas.
Tinha sido uma despedida tão dolorosa. O choro dos dois, as promessas, os últimos toques, os últimos beijos.
– Venha cá, mein Schatzi.
O mais novo não hesitou em ir para os braços do pai. As lágrimas caindo copiosamente pelas bochechas.
Olhou pela janela da sala, o mar no horizonte e um pontinho que ele sabia bem o que era. Meeresbrise se distanciava cada vez mais. Brisa do mar, que belo nome para um navio que carrega um furacão.
– Vai ficar tudo bem. – O pai sussurrou, desejando poder tomar a dor do filho para si.
Julian balançou a cabeça, esperava que sim.
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Julian gostaria de dizer que as coisas haviam ficado bem, mas passou longe disso.
Primeiro fora a indisciplina, as brigas com os pais, o cansaço de pensar que vivia a sombra de um irmão mais novo superdotado. Depois a irresponsabilidade, as notas baixas, a quase reprovação. Por último, a prisão.
Aquela situação tinha sido o divisor de águas. Porque Julian viu tanto medo e desgosto no olhar dos pais que se sentiu ingrato, infantil, idiota.
Ouvir Toni gritar aos prantos que não aceitaria nunca um filho roubando como um dia ele fez ultrapassava qualquer definição de hipocrisia porque era um pai preocupado com o futuro do filho e tendo fantasmas do passado ressuscitados. E doeu muito ver Marco chorar, se perguntar o quê havia acontecido.
Naquela noite Julian tomou decisões sobre sua vida.
A primeira delas foi colocar Kai Havertz em um estado de inércia em sua memória. Passou os últimos meses escrevendo cartas que nunca eram respondidas e com aquela desilusão ele estava cansado de lidar.
Pediu perdão aos pais, desculpas ao irmão pela inveja, misericórdia a si mesmo para que fosse capaz de mudar um pouco.
E se mudou.
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Frio e neve eram os terrores de Julian. Do tempo que passou morando na Suíça enquanto estudava, o loiro só tinha lembranças aterrorizantes do clima nas épocas mais frias.
Ficou muito aliviado quando retornou a sua ilha natal, pronto para exercer sua profissão de biólogo em um dos institutos de pesquisa de Tortola e começar sua vida de adulto.
Mas infelizmente ali estava ele, agasalhado, ouvindo o amigo rir da cara de bravo dele.
– Não devia nem ter vindo para cá. O frio lá na Espanha tava mais agradável. – Murmurou emburrado.
– É, mas lá na Espanha só tem o chato do Marcos, não sei como Reguilón aguenta. Mas aqui tem sua priminha mais linda! – Karim o abraçou, o fazendo rir no final.
Reclamava do frio, mas valia a pena para visitar Adeyemi e ajudá-lo com algumas coisas na nova cidade que estava morando. E tinha o adicional que Rostock era linda.
– Vamos ao porto?
Rostock era delimitada pelo Mar Báltico e apesar das águas frias, tinha sido bom para Julian estar perto do oceano – era louco pensar que era o mesmo oceano que banhava seus pés desde criança, só que mais frio.
A ideia de ir ao porto também agradava. Porém não agradou tanto assim quando dentre tantos navios, Julian reconheceu um em especial.
Meeresbrise estava ancorado ali. E bem a próximo a ele Brandt reconheceu o homem.
A esperança de ver Kai veio como um tapa em sua cara a medida que arrastava Karim até o navio, o nervosismo batendo, as mãos suando, tudo voltando a sua cabeça em flashes.
Tocou de leve o ombro do homem e viu surpresa nos olhos de Mats Hummels ao reconhecê-lo.
Era coincidência que se encontrassem e que conversassem por horas. Julian ficou sabendo de muitas coisas dos últimos anos: Meeresbrise continuava com seu papel de pesquisa e Hummels ainda o habitava, mas nesse meio tempo haviam ficado um tempo em terra firme para Kai fazer uma especialização.
– Kai quis te procurar, Julian. Muitas vezes. Mas ficou com medo, vocês crescem rápido e às vezes o pensamento de que foi só um caso atrapalha. – Hummels disse. – Ele... respondia suas cartas, mas nunca enviava. – Suspirou.
– E ele tá por perto? Por favor, gente, esses dois têm que voltar a se ver! – Adeyemi tomou a frente.
Hummels riu, mas balançou a cabeça. Abriu a mochila que carregava consigo e pegou duas fotos.
– Ele tá trabalhando para uma companhia privada, quinze meses na Antártida, alterna o tempo entre uma base e um quebra-gelo. Já está lá há sete meses.
Julian olhou com atenção as fotos. Kai ainda mantinha a cara de garoto enquanto ele já tinha um projeto de penugem no rosto. Em uma das fotos Kai estava em um porto, com um grupo de pessoas, e com muitos barcos de pesca ao fundo e só um pouco do que parecia ser um navio de porte maior era visível.
E na outra, o plano de fundo era uma imensidão branca, o nome do navio visível, Kai logo abaixo dele. Eis Hurrikan. Furacão de gelo.
Aquele era um navio com o nome adequado para o viajante que levava.
– Ele parece bem. – Sorriu para o homem diante de si.
– Por fora, claro, ele está. Mas é aqui que importa. – Tocou no lado esquerdo do coração de Julian. – Deixe seu número, por favor, e qualquer outra forma de contato. Quando Kai retornar e eu contar disso, ele vai querer te procurar.
Julian assentiu, mas no fundo não acreditava que ia haver algum contato da parte de Havertz.
Por isso continuou sua viagem sem pensar naquilo, passou dias com o irmão e o cunhado na Espanha e depois voltou para seu trabalho, para seus pais, para seu lar.
No entanto, oito meses depois do encontro com Hummels na Alemanha, em uma manhã ensolarada que não condizia com a tempestade que havia caído durante a noite, o celular de Julian tocou.
Kai Havertz estava de volta a terra firme e queria vê-lo.
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O quarto estava quente, assim como a pele de Julian, ardendo como quando o sol a tocava. Os dedos de Kai correndo por seu corpo causavam aquilo.
Mesmo depois de cinco anos. Mesmo depois de Julian ter estado com outras pessoas. Mesmo depois do seu coração ficar machucado.
Jogou a cabeça para trás, as mãos apoiadas nos ombros de Kai, enquanto subia e descia, sentindo o moreno deslizar dentro de si e gemer junto dele.
Estavam naquilo há horas, mas era pouco ainda para recompensar toda a saudade, todo o tempo que passaram sem tocar um ao outro, apenas se satisfazendo com imagens das primeiras experiências juntos.
Julian podia dizer, ali, deitado ofegante, com Kai ao seu lado igualmente, que havia sido o melhor sexo da sua vida porque era diferente.
Não havia aquele turbilhão de sentimentos com outras pessoas como havia com Kai.
– Sua casa tem cheiro de brisa do mar. – Havertz murmurou, a mão procurando a de Julian.
– É o que se espera quando se mora na beira da praia. – Julian riu.
– É o que se espera porque é você. Você é brisa do mar, Julian...
–... e você furacão, Kai.
Encararam-se. Algumas horas juntos e as diferenças deles se fizeram notáveis mais uma vez, mas eram mais velhos agora, podiam lidar com aquilo como não saberiam fazer se ainda com dezoito anos tivessem começado um relacionamento.
– O oceano sempre vai te levar para longe de mim. – Julian sentou-se, Kai estava consigo agora, mas até quando aquilo ia durar o loiro não sabia.
– Sim, ele sempre me leva. – Kai o abraçou por trás, colocando o queixo em seu ombro e focando os olhos na enorme porta francesa aberta de frente para a cama, que dava diretamente para o cantinho de praia deserto que Julian morava só.
– Aprendi muitas coisas na vida em alto-mar; a me orientar só pelas estrelas, aproveitar meu tempo de diferentes formas, me virar em situações extremas, reconhecer a velocidade do vento só pela maneira que a água ondulava... no meu tempo no oceano antártico e naquele monte de gelo, meses com o sol no céu o dia todo e meses no completo escuro, me deixaram muito mais atento a coisas simples de que precisei abrir mão estando ali.
A brisa que invadia o quarto fez Julian respirar fundo, as costas coladas ao peito de Kai, as pernas uma em cima da outra e as mãos entrelaçadas a frente do abdômen de Brandt. Eles eram opostos, e nada mudava isso, mas se completavam. Duas peças que se encaixavam perfeitamente.
– Experimentei a saudade de uma maneira que nunca havia experimentado antes. Conheci pessoas que assim como eu nasceram e cresceram no mar, e sabe o que sempre me diziam? Que viver lá. – Apontou para água cristalina que banhava a areia clara. – Não vale a pena se não tiver alguém para quem voltar aqui. – Kai o abraçou mais forte. – E por isso, Jule, que o oceano me levou, mas ele também me trouxe de volta para você.
Julian chorou. Dessa vez, não era de dor.
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Kai precisou partir alguns dias depois; não foi uma despedida dolorosa porque algumas semanas depois o Schatz, novo navio hidroceanográfico do instituto para qual Julian trabalhava atracou na ilha, trazendo novos pesquisadores e um oceanógrafo que o coração do biólogo marinho conhecia bem.
Julian quis rir ao ver o nome do navio e depois mais ainda com a desorganização que era Kai e suas coisas, bagunçando a ordem completa que era a casa e vida do mais velho.
– Eu te amo. – Kai soltou a frase de repente, com os dois sentados em pranchas de surf, curtindo agora apenas a calmaria da água e a brisa leve.
Ele sabia que o outro o amava, claro, mas ainda não tinha ouvido daquela forma.
Sorriu e se inclinou, dando um beijo demorados nos lábios rosados do outro.
– Também amo você.
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