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História Unwell - Tipos de cerveja, poker e confrontamento


Escrita por: caulaty

Capítulo 6 - Tipos de cerveja, poker e confrontamento


Craig Tucker, Clyde Donovan e Token Black se encontravam uma vez por semana para jogar futebol há cerca de doze anos, com raras exceções eventuais. Naturalmente, havia outros amigos envolvidos na atividade; alguns até conhecidos de longa data, que frequentaram a mesma escola que eles, outros foram conhecidos na adolescência e vida adulta. Em uma cidade como South Park, era bastante fácil preservar os amigos de infância e conhecer toda a pequena população desde o nascimento. Esse era um traço que Craig detestava na cidade. De qualquer forma, o ritual pertencia aos três. Pessoas iam e vinham, trocavam de time, mas os três estavam sempre lá. Quando nevava demais e o jogo era cancelado, ainda assim eles se encontravam para a cerveja que marcava o final de todas as quintas-feiras. Kyle achava curioso esse combinado, a princípio, talvez por nunca ter sentido a necessidade de marcar para ver os amigos importantes com certa frequência. Ele sentia que não importava o tempo que passasse, as coisas sempre seriam iguais entre amigos de verdade. Token justificava dizendo que não era uma tentativa de preservar nada, mas sim uma vontade genuína de estar com eles.

E essa era a verdade.

Aquela foi uma das raras noites em que eles só estavam em dois, sentados lado a lado no balcão do bar de costume, cada um segurando uma garrafa de cerveja. Há ainda o detalhe de que eram cervejas diferentes, pois Token e Craig pouquíssimo tinham em comum no que se tratando de gostos. Craig preferia as cervejas artesanais montanhesas, que eram escuras e encorpadas, enquanto Token – sendo o rapaz urbano que era – gravitava para as importadas, preferencialmente da Alemanha, de empresas antigas e refinadas.

Clyde estava com uma terrível infecção no intestino e permaneceu em casa naquele dia. As cervejas de Clyde eram as mais simplistas e baratas possíveis, não muito diferente dele. Não houve partida de futebol devido à neve que estava prevista para aquela noite, mas no fim das contas, acabou nem caindo. Token e Craig foram mais cedo ao bar e brindaram as primeiras quatro garrafas enquanto conversavam amenidades.

-E o Tweek, como está? – Token perguntou, os dois cotovelos apoiados sobre o balcão, a espinha um pouco curvada. Sob a luz de uma luminária laranja de vidro pouco acima de suas cabeças, podia-se enxergar alguns cabelos grisalhos bastante prematuros que nasciam na raiz do seu couro cabeludo. Kyle os achava charmosos e Token não se incomodava.

Craig lambeu os lábios depois de um longo gole, deixando a cerveja sobre a superfície de madeira de forma barulhenta, pois nada do que fazia podia ser delicado. Assentiu positivamente com a cabeça primeiro, segurando a garrafa com as duas mãos e brincando com o rótulo dela como se não prestasse muita atenção.

-Bem. Quer dizer, você sabe. – Parou um instante. - Bem do jeito dele.

-Você parece cansado.

-É, eu estou. Mas não é culpa dele, sabe? Eu tenho trabalhado pra caralho e ele não fica bem sozinho durante muito tempo.

Token entendia muito bem. Aquelas duas pessoas estiveram desde sempre presentes em sua vida, e desde a adolescência, um alimentou coisas no outro que não eram necessariamente saudáveis. Token jamais diria a Craig que acreditava que Tweek nunca melhoraria enquanto seu companheiro o tratasse como alguém que constantemente precisa de ajuda, que Tweek acreditava nisso porque Craig o encorajava. E também não diria a ele que percebia nos dois uma necessidade de ficar juntos desde a adolescência porque encontraram uma equação que dava certo, porque se complementavam nas coisas que precisavam que alguém suprisse. Craig precisava de Tweek tanto quanto o contrário, embora fosse preciso conhecê-los mais intimamente para perceber isso. Craig gostava de pessoas que precisassem dele, gostava de se sentir provedor e necessário, porque era controlador.

Mas em vez de fazer qualquer um desses apontamentos, Token apenas sorriu com gentileza e apertou o ombro de seu amigo em um gesto de apoio.

Porque apesar de tudo, os dois se amavam. Token também acreditava que essa era a parte realmente importante.

Craig havia começado um negócio de jardinagem na primavera daquele ano, depois de passar boa parte da sua vida adulta trabalhando como carpinteiro. Ele e Tweek ficaram juntos muito jovens, e até onde Token sabia, nenhum deles tinha tido experiências românticas com mais ninguém. Sabia que Craig devia ter dado uma escapada ou outra quando estavam no início turbulento do casamento. De qualquer forma, os pais de Craig não aceitaram a relação muito bem e nunca tiraram um tostão do bolso para pagar a faculdade. Ele começou a fazer trabalhos braçais para poder sair de casa e acabou sendo particularmente talentoso nisso. Tweek também teve problemas para concluir a faculdade, muito mais por ataques de pânico do que qualquer outra coisa. Acabou largando no último ano e o único emprego seguro que conseguiu foi no café dos pais, que apoiavam a relação e acreditavam que Craig fazia bem ao filho deles.

Token constantemente oferecia dinheiro quando eles tinham problemas, mas Craig era sempre teimoso demais para aceitar. Isso quase se tornou uma briga entre eles diversas vezes, até Token entender que a melhor forma de ajudar Craig é fazê-lo sem que ele perceba que está sendo ajudado.

-É, vida doméstica não é fácil. – Token comentou em resposta, tomando a cerveja com sua mão direita, onde reluzia um grosso anel prateado. Era uma espécie de aliança.

Craig, mesmo sendo casado, tinha os dedos nus.

-Como assim? Problemas no paraíso? – Perguntou com a mesma expressão apática de costume.

Ele correu a língua por dentro da bochecha, pensativo, incerto de se gostaria de compartilhar com Craig o que vinha acontecendo nos últimos dias. O único motivo pelo qual cogitara contar sobre isso a outra pessoa era porque, ultimamente, Token fazia as pazes com a ideia de que não era uma situação tão passageira assim. E Craig não era qualquer um.

Entregou a resposta com um sorriso tenso, levando a boca da garrafa aos lábios para entorna-la rapidamente, comentando um pouco antes:

-Você não acreditaria se eu contasse.

-Vamos testar. – Craig disse, apoiando o cotovelo na mesa a descansando a bochecha sobre a palma, pronto para ouvir uma história longa. Era um bom ouvinte, ou pelo menos era isso que Token pensava. A maioria das pessoas discordava porque não conseguia ver através da face blasé que Craig sempre tinha no rosto.

-Você se lembra do Kenny, não é?

A face blasé então se transformou em alguma outra coisa. Craig franziu as sobrancelhas e virou o rosto de lado, o queixo voltado para o chão. Token podia ver que ele pensava em alguma coisa.

-McCormick?

-O próprio. E você se lembra daquelas histórias macabras de que ele...

-Ficou fodido das ideias e atacou um cara que nem um javali selvagem, tá andando por aí sozinho falando com árvores, tô ligado. – Craig interrompeu, falando apressadamente. – O que tem ele?

-Kyle o encontrou, cara.

-Como assim “encontrou”?

-Ele tava morando dentro de um carro. Um carro não, um fusca que mal deve andar. – Token segurou a cerveja próxima ao seu rosto, fungou uma vez e diminui o tom da voz. – É tão triste. Ele tá tão esquisito, mas ainda é o Kenny, sabe? Agora ele tá ficando na casa do Kyle, mas... Eu sei lá o que vai ser disso. Eu tentei conversar com ele, dizer pra gente pensar melhor nisso, mas você sabe como ele é. Aí... O cara não tem emprego, não tem pra onde ir, a gente vai jogar na rua de novo? Não tem como. – Fez uma breve pausa, ainda concentrado na própria linha de pensamento, sem buscar uma reação de Craig. O propósito era desabafar, afinal de contas. – Eu me sinto uma pessoa horrível por querer que ele saia de lá. Ele deve ter passado tanto inferno, mas ele não conta nada. Ou conta pro Kyle e ele tá escondendo de mim as coisas que o Kenny fez. Mas você acredita nisso?

Agora sim, Token o encarava esperando que ele dissesse alguma coisa. E Craig encarava a própria cerveja em silêncio, os olhos estreitos, a boca e uma linha reta que dava ao seu semblante um aspecto terrivelmente sério. Token lembrava-se que, na pré-adolescência em diante, Craig e Kenny eram bastante próximos. Faziam partes de grupos diferentes, e era verdade que esses dois grupos (Tweek, Craig, Token e Clyde sendo um, Stan, Kyle, Cartman e Kenny sendo outro) não passavam mais tanto tempo juntos depois que pararam com as brincadeiras infantis, mas de todos eles, Craig e Kenny eram os mais próximos. Kenny vendia maconha no ensino médio e Craig normalmente estava com ele, ou como sócio, ou como cliente.

Token nunca foi muito de se meter no que não lhe dizia respeito e Craig, diferente de Clyde, não compartilhava as coisas abertamente e com facilidade. Então Token nunca soube ao certo qual era o grau de proximidade entre Kenny e Craig na época. Quando todo o drama com a família de Kenny aconteceu, Token nem morava em South Park e estava ocupado com a faculdade. Ele não sabia até que ponto Craig – que sempre esteve na cidade natal – ainda conversava com Kenny naquela época e o quanto se abalou pelos boatos deprimentes em torno daquele velho amigo de infância. O que Token sabia era que Craig, debaixo daquela casca grossa de sempre, parecia profundamente chateado em ouvir isso tudo.

-Acredito, Token. – Ele finalmente respondeu.

-Sempre disseram que ele virou mendigo ou coisa do gênero, mas eu nunca achei que fosse verdade. A família dele sempre teve problemas, mas eles sempre se viraram.

-É, bom, a gente nunca sabe o que acontece de portas fechadas.

Craig não fazia mais contato visual com ele. Token achava aquela postura toda muito estranha, pra dizer o mínimo. Os dois passaram tempo suficiente quietos para perceberem o jazz suave que tocava no plano de fundo do bar, um lugarzinho pequeno que servia mais ao escasso público “alternativo” da cidade, ou pelo menos era assim que eles se promoviam. Provavelmente fechariam portas dentro de poucos anos, como todo lugar diferente em South Park. Havia uma mulher a alguns metros deles, gargalhando alto, sentada na banqueta do balcão conversando com um homem ruivo em pé. Ela mexia o drink de abacaxi com um canudinho e os dois flertavam descaradamente. O homem era Ralph Muller, dono da loja de artigos de jardinagem de onde Craig comprava seus materiais. Era marido de Red, uma garota que estudou com eles desde o quinto ano. A garota escandalosa definitivamente não era Red. Ralph tinha uma fama de apreciar a companhia de moças que não necessariamente eram sua esposa, todo mundo sabia disso.

Craig parou de observá-los e suspirou fundo, revirando os olhos. Fechou as pálpebras, sentindo a testa esquentar devido a uma dor de cabeça leve.

-Desculpa, eu não quis te chatear com isso. Eu sei que deve ser difícil saber dessas coisas. – Token disse gentilmente, naquele tom calmo e sereno, observando Craig com seus olhos de jabuticaba que incomodavam o outro profundamente.

-Você não sabe de nada, Token.

E com isso, Craig levantou um pouco a bunda da banqueta para alcançar a carteira no bolso de trás, tirou duas notas de dez e as deixou sobre a bancada. Enquanto fechava a carteira, Token o olhava confuso.

-Craig, aconteceu alguma coisa?

-Nada. Eu tenho que ir.

Craig saltou da banqueta – não era um homem particularmente alto – e ajeitou a jaqueta de couro que era inapropriada para um tempo tão gelado. Token apressou-se para pagar sua metade da conta enquanto Craig andava até a porta que dava para uma pequena varanda enfeitada com samambaias, onde as pessoas comiam hambúrgueres com nomes de filmes clássicos e bebiam coquetéis. O frio fazia seus olhos arderem. Craig coçou embaixo do nariz e procurou a carteira de cigarros no bolso da jaqueta enquanto descia a escadinha da varanda para a calçada, sabendo que Token viria logo atrás dele. E dito e feito. A primeira coisa que disse a Token quando ele saiu do estabelecimento foi:

-Você tem isqueiro? Eu esqueci o meu em casa.

-Craig, eu não fumo.

-Ah, é. Aquele pessoal ali deve ter.

Mas não saiu do lugar. Continuou de pé olhando para as pessoas na varanda, distraídas demais por suas próprias conversas. Estava bem cheio para uma quinta-feira, havia até alguns rostos conhecidos.

-Você já sabia disso, não é? – A voz de Token trouxe sua atenção de volta. – Já sabia que o Kenny estava passando dificuldade.

Agora, Craig desviou o olhar para a rua e engoliu o acúmulo de saliva na boca, deixando que o silêncio respondesse àquela pergunta retórica. Ficou brincando com o cigarro entre os dedos durante alguns segundos, encarando os carros estacionados. Não passava nenhum em movimento.

-Por que você não disse nada? – Token prosseguiu. – Kyle era um dos melhores amigos dele, nós podíamos ter ajudado muito antes.

-Pelo amor de Deus, Token. – Ele respondeu rindo com amargura. – Você acabou de dizer que quer que ele saia de lá. E o seu namorado não dava a mínima também, nunca foi procurar por ele. Vocês dois estão ocupados demais viajando pra Europa e fazendo degustação de vinho, vocês não sabem merda nenhuma sobre passar dificuldade. O Kyle deve estar se sentindo muito altruísta por ter recolhido ele da rua como se fosse um vira-lata. Você quer o quê, um tapinha no ombro?!

-Por que você tá tão puto? – Token perguntou praticamente sem alterar o tom de voz, o que deixava Craig ainda mais irritado. Talvez fosse o álcool no seu organismo, talvez fosse outra coisa. O palpite de Token era a segunda opção.

-Eu tenho que ir, o Tweek tá me esperando.

Token não tentou impedi-lo quando Craig foi trotando até o carro. Bateu a porta de forma estrondosa e arrancou o mais rápido possível. Porque havia coisas que ele não podia explicar a Token, coisas que ele não entenderia. E que, se entendesse, poderia machuca-lo. Se Craig já teve um calo com relação a Kenny, esse calo se chamava Kyle Broflovski.


 

* * *


 

-Você tá roubando. – Kyle disse, fechando um pouco as pálpebras em desconfiança. Mas o pokerface de Kenny era de maestria tal que ele segurou a expressão séria, com as cartas bem próximas ao rosto.

-Você acha que eu faria uma coisa dessas?

Os dois usavam a mesinha de centro da sala como apoio, as cartas distribuídas em uma ordem estranha que só os dois seriam capazes de entender. Estavam sentados no chão, Kyle sobre uma das almofadas pretas, usando o sofá branco como apoio para as costas. Kenny estava ajoelhado diretamente no tapete felpudo, a língua pra fora no cantinho da boca – era sua “cara de pensar”, segundo o próprio – extremamente concentrado na próxima jogada. O vaso grego cinza que normalmente enfeitava a mesinha de centro estava agora sobre a estante, e as revistas estavam sob um cinzeiro de vidro quadrado que Kenny usava de vez em quando durante a partida. Também havia um copo sujo de suco de uva no chão, pertinho do loiro.

Ao fundo, tocava um disco do James Taylor. Kenny cantava de vez em quando, mas parava de repente quando precisava jogar sério.

-Eu vou te massacrar, McCormick. – Kyle disse com um sorriso de quem sabia que ia perder.

-Quero ver só, hein.

Antes que o confronto final pudesse acontecer, entretanto, a campainha tocou. Kyle franziu a testa e ajeitou os óculos de aro fino na face, aqueles que faziam com que ele parecesse o homem elegante que era, e repousou as cartas na mesinha, voltadas para baixo.

-Ué. – Disse, depois de olhar o relógio analógico da estante, um que herdou de sua avó. – É tão cedo, será que o Token já voltou?

-Sei lá quem é que te visita quando seu namorado não tá. – O loiro respondeu com um sorriso provocativo, rearranjando as próprias cartas nas mãos.

-Se você olhar as minhas cartas, eu arranco o seu couro. – Kyle disse, levantando-se para atender a porta.

-E eu lá preciso disso, rapaz?

Os dois continuavam rindo quando o ruivo a destrancou e abriu, esperando ver o rosto sorridente de Token, mas não foi o caso. O que viu, em vez disso, era um rosto que não fazia parte do seu cotidiano. Kyle e Craig nunca foram muito próximos. Para ser honesto, Kyle nem sequer gostava muito dele quando eram garotos; depois que Kyle e Token voltaram para South Park como um casal, os amigos de Token acabaram fazendo parte da sua vida com muito mais frequência. Aí ele teve a oportunidade de perceber que Craig era mais do que um imbecil grosseiro. Kyle aprendeu a admirá-lo de alguma forma por ser o tipo de pessoa que diz o que tem que ser dito e pronto. Era alguém que Token amava como um irmão e Kyle respeitava muito isso.

-Craig? – Perguntou confuso.

Ele parecia nervoso. Tinha as mãos cerradas em punhos, uma ruga entre as sobrancelhas, o maxilar tenso.

-Onde é que ele tá?

-O Token não tá aqui, achei que ele estivesse com você.

-Eu não tô falando do Token.

A essa altura, Kenny já estava de pé, mais ou menos um metro atrás de Kyle. Craig o avistou e sua expressão mudou imediatamente, agora mais puto do que propriamente nervoso. Kyle virou o rosto na direção que Craig olhava; o outro aproveitou o espaço para adentrar o apartamento sem cerimônia, sem pedir licença, empurrando Kyle para o lado. O ruivo ficou tão perplexo que não fez nada além de fechar a porta atrás de si.

-O que você tá fazendo aqui? – Kenny perguntou. Kyle o observou e se deu conta de que Kenny parecia tão confuso quanto ele, mas era superficial. Ele sabia exatamente o que Craig fazia ali. Como já foi dito, o pokerface de Kenny era magnífico.

-Eu é que pergunto que merda você faz aqui. Eu tô há semanas te procurando, achei que você estivesse morto.

-Qual é. Você saberia se eu estivesse morto. – Kenny disse com um sorriso, mais de nervosismo do que qualquer outra coisa.

-Essa merda não tem graça.

Kenny então voltou sua atenção a Kyle, que continuava parado em frente à porta. Alternou o olhar entre eles, pegando na barra da camiseta branca que usava como fazia quando se encontrava em qualquer sinuca de bico. Umedeceu os lábios e tentou falar mais baixo:

-A gente pode conversar lá fora?

-Não precisa, eu vou pro quarto. – Kyle respondeu de repente, mantendo os olhos em Craig, mesmo que estivesse falando com o loiro. Não fazia muita questão de esconder o incômodo, mas Craig não dava a mínima também. Nem olhou de volta. Com isso, Kyle se retirou do cômodo.

-Você é inacreditável. – Craig disse com os olhos fixos em Kenny, sem nem mesmo esperar que Kyle chegasse à porta do corredor. – Ele passou anos cagando pra você, agora você tá morando com ele?!

Kenny não sabia ao certo o que responder; não por falta de argumento, mas sim por não querer ferir ainda mais os sentimentos de Craig. Não queria fazê-lo se sentir ridículo, louco, vulnerável, nada do gênero. Craig lidava muito mal com esse tipo de coisa. Seus olhos faiscavam de uma maneira que Kenny não via há muito tempo.

O mais calmamente possível, Kenny tentou encontrar as palavras certas (ou as menos erradas, ele não era bom com esse tipo de coisa):

-Desculpa, eu deveria ter te procurado. Mas Craig... Ele me ofereceu uma cama. Um teto. Isso não deveria ser uma coisa boa?

-Engraçado que você não aceitaria esmola de mais ninguém.

Kenny separou os lábios para responder, mas eles continuaram assim; abertos, sem emitir som algum, dando ao seu rosto inteiro um tom de incredibilidade. As sobrancelhas estavam erguidas, as mãos com as palmas viradas para Craig, gesticulando.

-Não tem nada a ver com isso.

-O caralho que não tem.

Os dois sabiam a que estavam se referindo, mas nenhum deles queria dizer em voz alta. Mesmo assim, estava muito viva na memória de cada um a primeira noite em que eles se beijaram. Foi no fim do verão de oito anos antes, uma semana antes do início do semestre nas faculdades. Kyle, Stan, Cartman, Token, boa parte das pessoas que eles amavam e conheciam estavam envolvidas demais fazendo as malas e viajando para conhecer o campus, se instalarem em seus dormitórios, conhecer os colegas de quarto, tudo isso. Enquanto Craig e Kenny ficavam para trás. Até mesmo Tweek logo ia viajar, ainda esperançoso de que poderia ter uma vida normal, e Craig realmente queria isso para ele. Mas que estava deprimido, estava.

Convidou Kenny para ir até o Stark Pond jogar umas pedras no lago e encher a cara. Eles quase não conversaram, fumaram um baseado e acabaram dando um amasso deitados na grama, até que Kenny começou a chorar um choro típico de quem está bêbado demais para enxergar as próprias mãos em frente ao rosto. Kenny se contorceu no chão e disse repetidas vezes que amava Kyle, que deveria ter dito alguma coisa enquanto havia tempo. Depois dizia que era patético por sentir essas coisas, porque Kyle nunca iria querer um merda como ele que nunca vai sair daquela cidadezinha medíocre, o próprio buraco do inferno.

“Ele nem vai se lembrar de que eu existo”.

Craig não disse uma palavra, apenas abriu o zíper de Kenny e começou a chupá-lo.

Era nessa ocasião embriagada de tantos anos atrás que os dois estavam pensando.

-Craig, você é casado. – Kenny disse de repente. Ele evitou tocar nesse aspecto o quanto foi possível, mas sua resistência era baixa. – Você já dá conta de si mesmo e do Tweek, eu não deveria ser uma responsabilidade a mais. Você não pode querer que eu recuse comida porque dói no seu orgulho.

Pela primeira vez desde que adentrou o apartamento, Craig pareceu desmontado. Não deixou a mágoa transparecer no rosto, mas Kenny o conhecia bem o bastante para saber que havia fisgado em uma ferida. O acordo entre Kenny e Craig sempre foi muito fácil, muito leve. Eles eram amigos; transavam às vezes, supriam uma necessidade um no outro, apoiavam-se incondicionalmente. Kenny nunca quis que Craig se separasse de Tweek, nunca teve pretensão de ser mais do que era na vida dele. Isso não mudava o fato de que Craig era a pessoa mais importante de sua vida, a única com quem ele pôde conversar durante anos. E Kenny sentia um aperto medonho no peito por vê-lo dessa forma.

-Eu não vou jogar na sua cara tudo que eu fiz pra te ajudar. - Craig disse com uma voz densa e baixa, quase sem separar os dentes. Seus olhos tinham pupilas dilatadas e um brilho estranho. - Com dinheiro que eu não tinha. É muito fácil sumir agora que chegou o Broflovski num cavalo branco pra te salvar dessa vida de merda que você leva. E você não me dá uma porra de um telefonema.

-Me desculpa. Você sabe porque eu fico com medo de ligar.

“Vai que o seu marido atende”, foi o que Kenny disse com os olhos. Não tentou soar maldoso, mas provavelmente soou.

-Vai à merda, McCormick. - Craig esbravejou antes de dar meia volta para deixar o apartamento, mas parou na porta, virou-se apontando o indicador na direção do loiro. - O Token é meu amigo. Se você comer o namorado dele, eu te seguro pra ele bater.

-É tão irônico ouvir isso de você.

Kenny honestamente esperava que Craig voltasse trotando pra pegá-lo na porrada, mas não aconteceu. Em vez disso, Craig mostrou-lhe o dedo do meio e saiu andando. O que foi melhor. Uma sala com tanto vidro e tantas estátuas caras não era o melhor lugar para rolar no chão com alguém.



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