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História Utopias - (U)Topia


Escrita por: R_Panda

Capítulo 1 - (U)Topia


(U)TOPIA 

 

O festival de primavera havia finalmente chegado em Chellbeur. As ruas da cidade nunca estiveram tão coloridas; as folhas dos jacarandás criavam um extenso tapete roxo pelas calçadas, recebendo os turistas animados na estação de trem. 

O mar ficava tão límpido nestes dias, que era possível ver até as mais pequenas conchinhas enterradas na areia fofa. Os peixes eram frescos e saborosos, e vinham aos montes para a beira do mar, alegrando os pescadores locais. 

Quando o sol finalmente se escondia nas colinas do oeste, as festas começavam. A praça pública virava um parque de diversões; carrosséis para as crianças, boliche para os adultos, teatros de rua para a família inteira e muita comida. Assim os moradores e turistas ficavam a madrugada inteira; cantando, dançando, brincando, e desejando nunca terem que voltar à suas casas. 

 

As manhãs sempre vinham silenciosas, apenas com o canto dos pássaros e o som das ondas do mar. Esta manhã não havia sido diferente. Levantei preguiçosamente de minha cama, arrastei-me preguiçosamente até o armário e vesti preguiçosamente a primeira roupa que vi. 

O sol já brilhava no céu, mas o movimento nas ruas era pouco. Olhei para meu relógio de pulso. Eram dez e vinte e sete. Droga, estava atrasado. Victoria era capaz de me ignorar por uma semana se não chegasse em segundos. 

Escovei meus dentes apressadamente e saí pelas ruas, ignorando a garrafa de leite morno à minha porta. A casa em que morava era banhada pelos raios de sol nestas horas, sua estrutura estreita brilhava como as outras do quarteirão inteiro. Tinha a vista para a beira da praia; era perfeita para quem vivia sozinho. 

As ruas estavam desertas, todos deveriam estar cansados pela festança da noite passada. Ainda assim, era possível ver o aglomerado de funcionários em frente a prefeitura. Sempre se reuniam com o Sr. William Klek, o carismático prefeito de Chellbeur, para discutir os assuntos de todos os dias. 

A praça pública também estava deserta, a não ser por uma jovem sentada em um banco. Era Victoria.  Me aproximei. 

- Está atrasado, Aidan. – ela enroscou seu braço no meu. – É um sábado encantador hoje, não? Que tal irmos à praia? 

Assenti com a cabeça e puxei-a em direção ao calçadão. A areia era úmida e fofa como algodão-doce. Victoria e eu costumávamos caminhar pela praia durante as manhãs, a água do mar aos nossos pés. 

- Sabe... – ela parou por um momento. – Papai adora estes dias... Gostaria que trabalhasse menos, para aproveitar a primavera, ele iria gostar. 

- Seu pai é o prefeito, Victoria. – suspirei. – Deveria ter orgulho dele, ele trabalha duro pelo bem de todos aqui. O Sr. Klek é de longe um homem forte e admirável. 

E ele era, principalmente para mim. O prefeito sempre me tratara como seu próprio filho, mesmo tendo apenas filhas mulheres. Sua esposa, a Sra. Klek, era como uma mãe para mim. Atenciosa, trabalhadora e cheia de vida, assim como uma mãe deveria ser. 

Era uma família perfeita. E eu era parte dela. 

- É claro que tenho orgulho do meu pai, Aidan! – a loira sorriu. – Mas, diga-me... Gostaria de ser como ele? Como meu pai? 

Victoria me olhava esperançosa, um sorriso animado preenchia seu rosto. Senti minhas bochechas esquentarem. 

- Talvez, em algum dia. 

O sorriso da loira pareceu aumentar. Seus braços me envolveram em um abraço eufórico e apertado enquanto soltava gritinhos de animação.  

Voltamos a caminhar pela praia. Victoria saltitava pela areia, seu vestido voando e os pés mergulhados no mar.  

Ficamos assim por mais ou menos duas horas, até o sol quase derreter nossas cabeças. Quando marchamos de volta à praça, um grupo de vereadores conversava com o Sr. Klek, que esperava a filha para o almoço. 

O prefeito era um homem muito vaidoso. Suas roupas nunca estavam manchadas e eram muito bem passadas. O cabelo grisalho era escovado com perfeição todas as manhãs. Hoje o homem trajava um paletó azul-marinho e gravata executiva. 

O velho logo nos avistou e veio em nossa direção. 

- Aidan, meu garoto! – ele agarrou meu ombro. – Como é bom ver você, meu filho! Nunca mais almoçou conosco... Talvez devesse fazer isto hoje, o que achas? 

- Ele adoraria! – a loira ao meu lado se intrometeu. – Vamos! 

Chegamos à casa de Victoria antes da uma da tarde. Um aroma delicioso invadiu minhas narinas quando a porta se abriu, revelando uma espaçosa sala de estar. 

A casa do Sr. Klek era muito bem decorada e grande, assim como a de um prefeito deveria ser. Em frente a lareira, a pequena Maia brincava com suas bonecas, enquanto o gato branco de Victoria recebia-nos na porta. Logo a cabeleira loira da Sra. Klek apareceu em nossa frente. 

- Querido, que bom que chegou! – ela me encarou encantada. – Aidan, meu menino! Que bom que veio também, é muito bom revê-lo! 

- Olá, Sra. Klek. – sorri. 

- Vamos, família. Vamos almoçar! – o homem largou seu casaco e nos guiou até a sala de jantar. 

A extensa mesa estava repleta das mais deliciosas comidas. Mas algo chamou-me atenção: almôndegas. Senti minha boca salivar. Eu amava almôndegas, principalmente as da Sra. Klek. 

Todos sentamos e começamos a comer. As almôndegas pareciam mais deliciosas do que nunca. Eram saborosas e sequinhas, do jeito que gostava. Senti a carne quente entre meus dentes, era tão bom.  

Victoria pigarreou. 

- Trago boas notícias, papai. Você nem vai acreditar! – ela me olhou rapidamente. – Aidan contou-me que pretende ser prefeito, como o senhor! 

Por um momento, achei que o velho estava morrendo depois de se engasgar com um pedaço de almôndega. A Sra. Klek se espantou com o marido, mas o homem não tardou em estender sua mão em minha direção com uma grande risada. Apertei-a. 

- Oh, meu garoto! Isto é uma maravilha! 

Todos estavam felizes e surpresos, até mesmo a pequena Maia. O resto do almoço correu de uma forma animada; a Sra. Klek falou sobre como a filha mais nova aprendera novas palavras na última semana, Victoria contou-nos sobre as notas altas e o Sr. Klek animou-se com a nova clínica da cidade. 

As duas e treze, despedi-me de todos e tive a companhia do Sr. Klek até a porta. Antes de descer os degraus de pedra, ele tocou meu ombro. 

- Sabe, garoto... Ficarei contente em te ensinar como as coisas realmente funcionam aqui. 

Sorri. 

 

A tarde rapidamente se foi, revelando um lindo pôr-do-sol entre as colinas do oeste. A praia era iluminada por um céu laranja e roxo, deleitando os turistas da temporada. Era o meu horário favorito para se caminhar à beira-mar. 

Estava deitado em minha cama, apenas escutando os pássaros se retirarem para descansar entre os galhos. Levantei animado ao olhar pela janela, hora de caminhar. 

Vesti minha jaqueta de couro, peguei minha lanterna de bolso e amarrei os tênis. As ruas concentravam bastante pessoas agora, todas indo em direção a praça pública. A festa iria começar. 

Afundei meus tênis na areia úmida e comecei minha caminhada. O mar era lindo nestas horas, até tive a sorte de ver uma dupla de golfinhos ao longe. Os caranguejos corriam entre as pedrinhas e as gaivotas se recolhiam para dormir. 

Divaguei por meus pensamentos por mais ou menos uma hora, até que a praia se tornou um deserto escuro. Era possível escutar as melodias vindas da praça, onde todos se divertiam. Pensei em voltar, mas algo chamou minha atenção.  

Era uma enorme sombra negra, do tamanho de uma casa, que se destacava na escuridão. 

Acendi a lanterna. Era o velho galpão. 

Nunca havia prestado atenção naquela construção, apesar de que tenha ido àquele lugar inúmeras vezes com Victoria. Desta vez era diferente. Era como se aquilo estivesse me chamando. Senti minhas pernas se moverem. 

Agora me encontrava em frente àquela estrutura negra e esquelética, suas paredes de madeira descascando como pele queimada. Um calafrio percorreu minha espinha. Mexi no cadeado. A porta estava trancada. 

Andei em volta do galpão e acabei encontrando uma pequena janelinha à três palmos acima de minha cabeça. Tentei agarrar sua borda, mas meus dedos se chocaram com vidro tão fortemente que caí no chão. Olhei para os lados, tentando achar algum meio de escalar aquela parede cheia de felpas e pregos salientes. 

No meio de um matinho, atrás do galpão, uma caixa de madeira se escondia. Posicionei-a em frente à janela e escalei a parede cheia de felpas. Atravessei metade de meu corpo pela janela e olhei o interior do lugar. Encontrei apenas a escuridão. 

Tentei pegar a lanterna em meu bolso, mas acabei me desequilibrando. Quase caí. Olhei para baixo, não enxergava nada. Passei as pernas para dentro e tentei encostá-las no chão. Agora o fundo parecia próximo. Estiquei um pouco mais. Estava quase alcançando, quando uma pontada de dor me atingiu rapidamente e percebi que havia caído. Estranhei. Algo macio amortecera minha queda. Peguei a lanterna do meu bolso e acendi. 

A minha frente, uma pilha de roupas e caixas se iluminou. O ar ali dentro era pesado e úmido. Me encolhi dentro da jaqueta. 

Levantei e caminhei entre aquela bagunça. Havia mais roupas atrás das caixas. Olhei ao meu redor, procurando o significado de tudo aquilo. Entre os montes de roupa suja, algo chamou minha atenção. Era algo branco, se destacando na luz. 

Me aproximei, e então eu vi. Era muito maior que um pequeno objeto perdido.  

Era um corpo. 

Minhas veias gelaram, um calafrio pareceu congelar todos os meus nervos, deixando-me paralisado. Meu rosto se contraiu em uma careta horrível. Aquilo era uma pessoa. Uma pessoa. Minha mente pareceu acordar e dei um passo para trás, mas meus olhos não desgrudavam daquela figura. 

Era aparentemente um jovem, a pele pálida como um fantasma. Usava apenas uma camisola suja e velha, escondendo seus membros extremamente magros e fracos. Seu rosto  era ossudo e os cabelos brancos como a própria pele. Engoli em seco, o peito do garoto quase não se mexia. 

Aproximei meus dedos de seu nariz, esperando senti-lo inspirar e expirar. Nada. Meu coração disparou, estava morto. O pânico invadiu meus pensamentos e senti-me tonto, não sabia o que fazer. Pensei em Victoria. O que ela faria? Provavelmente diria ao seu pai. Mas eu não tinha pai. 

Um barulho vindo do lado de fora fez meus sentidos dispararem com o medo. Havia alguém ali. Minha respiração se tornara pesada e descontrolada, assim como os tremores em meus braços e mãos. Barulhos de chave, o cadeado havia sido destrancado. 

Corri em direção a janela e me meti no meio de todas aquelas roupas sujas. Um homem havia entrado no local. Vestia roupas completamente pretas e andava na direção do garoto esquelético. O homem murmurou algo e chutou as pernas do menino, mas ele não respondia. 

Escalei silenciosamente a parede, tentando sair o mais depressa possível. Minha lanterna caiu no meio das caixas. Escapei por pouco. Meu coração batia tão fortemente que chegava a doer. Aquela imagem não saia da minha cabeça.  

Corri desesperadamente pela praia até chegar em casa. Meu corpo doía e minha visão estava escurecida. 

A última coisa que me lembro antes da escuridão tomar minha mente foi de atirar-me na cama e chorar aterrorizado. Aquilo só podia ser um pesadelo. 

 

A manhã de domingo chegou silenciosa novamente. Nada de movimento, nada de barulho. Tudo estava como sempre na velha cidade de Chellbeur. Acordei as nove e trinta e três, um cansaço indescritível tomava conta dos meus braços e pernas. 

O pesadelo invadiu minha mente. O corpo, o homem de preto, o velho galpão, aquele cheiro pútrido. Desviei esses pensamentos e vesti minha jaqueta. Victoria me esperava na praça. 

Quando cheguei lá, rastejando de sono, a loira saltitou em minha direção. Colocou uma das mãos em meu ombro. 

- O que houve? Parece cansado, Aidan. – ela olhou profundamente para mim. 

- Está tudo bem. – sorri. – Só não dormi muito bem. 

- Oh... Teve algum pesadelo?  

Um calafrio percorreu a minha nuca. Contei-a sobre o estranho pesadelo, e como aquela horripilante sensação de realidade me perturbava. Ela pensou. 

- Não acha que, se fosse verdade, você saberia?  

- Ainda é estranho, Victoria. Eu acho que estou com medo. 

- É claro que está! Qualquer um ficaria se sonhasse com isso. – ela tocou minha mão. – Sabe, por que não provamos que foi apenas um sonho? Talvez se sinta melhor. Vamos até o galpão e verá. 

Assenti. Victoria sempre sabia o que fazer. 

Chegamos no velho galpão em uma hora. Senti os músculos do meu ombro ficarem rijos de tensão. A loira caminhou até a porta do galpão. Fechei os olhos. Estaria trancada... 

As correntes fizeram um enorme barulho, mas logo cederam ao chão. Meu coração voltou a bater normalmente. Me aproximei, o interior do galpão se iluminou com a claridade.  

Levei as mãos ao peito, enquanto Victoria permaneceu estática. As roupas não estavam mais lá, apenas várias caixas espalhadas. Mas nada disso me impressionava, nada. Era outra coisa. 

O corpo morto, aquele que havia passado em meus pensamentos a noite e a manhã inteira, não estava ali. Nenhum sinal dele. Por que agora, ele voltara a vida. O menino fantasma estava no meio do lugar, de pé, vestindo as mesmas roupas.  

Eu o encarava assustado, mas ele nem percebia minha presença. Seus olhos estavam grudados na loira paralisada. O garoto abriu a boca. 

- Victoria? 

Meu coração pareceu parar por um segundo. Enfiei a mão no bolso, procurando a lanterna. Estava vazio. 

E aquilo não era um pesadelo. 



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