3:33 am.
O silêncio no dormitório era predominante a essa hora da noite. Todos já estavam seguros em suas camas, confortáveis e sonhando com um mundo de fantasia. Ela também já deveria estar na cama, mas havia acabado de chegar do trabalho. Pois é, trabalho. Normalmente o trabalho para alguém de 16 anos deveria ser algo básico e sem estresse, um estágio, apenas para ganhar experiência. Mas não era tão simples para futuros heróis, e especialmente não para alguém do calibre dela.
Amy quase nunca reclamava da própria peculiaridade, pelo contrário, ela até chegava a se gabar só para irritar um loiro explosivo em particular. Mas agora ela desejava ter tido menos sorte com isso, talvez assim fosse poupada da visão grotesca que teve hoje. Ela nunca quis se tornar a heroína profissional mais jovem da história, mas quando a CSPH (Comissão de Segurança Pública Heróica) lhe descobriu, insistiu que começasse o treinamento já e em troca lhe seria oferecido todo o suporte financeiro. A jovem, que morava apenas com o avô doente e o irmão caçula, aceitou. Apesar de ter apenas 10 anos na época, ela já sabia que precisava cuidar deles de alguma forma, mesmo que fosse só uma criança também.
Caminhando a passos lentos para a sala, a menina se apoiou no sofá ao enfim soltar o ar trêmulo preso em sua garganta. Ela ainda sentia os efeitos da adrenalina que essa noite lhe proporcionou. Com a mão direita sob o coração acelerado, tentando acalmar a respiração pesada, Amy quis desviar sua mente dos ocorridos, queria evitar as náuseas que isso lhe trazia. A dor de cabeça pelo excesso do uso de sua peculiaridade já era o suficientemente ruim.
Ela o tempo todo se sentia entalada, puxando ar e exalando uma respiração trêmula, assim como suas mãos e praticamente todo seu corpo em frangalhos, cansado de tantos combates. Mas não importa quanto ar ela puxasse, o peso em seu peito não sumia. Ela sentia como se ainda estivesse lá fora enfrentando o ar gélido da noite, mas estava dentro de casa, suando frio de ansiedade pelo o que fez e viu.
Quando lhe chamaram ela jamais pensou… Céus, ela nem queria lembrar. Não suportava a imagem de tantos corpos, tantos rostos, dos velhos aos mais novos. Era horrível, lhe causava ânsia.
° ° °
Alguns dias atrás minha agência tinha entrado numa união para derrubar uma organização criminosa que estava causando uma enorme dor de cabeça para a comissão. Hoje eles descobriram sua localização e me enviaram para lidar com eles numa emboscada, junto de outros heróis mais velhos, obviamente. Tínhamos acabado de chegar no local, era bem escondido, admito; distante da cidade e encoberto pelas espessas árvores.
Acredito que fosse uma fazenda, mas não aparentava gerar muitas coisas. Mesmo os poucos animais que tinham ali estavam magros demais para prover. Eles não cuidavam dos bichos, isso por si só era motivo para irem presos. Fiz uma anotação mental para providenciar o resgate desses animais.
— Disseram que é uma organização bem antiga até. Parece que odeiam pessoas mutantes. Eles têm uma ideologia bastante parecida com os nazistas, de décadas atrás… – meu colega de agência informou, sua preocupação ao ler essa nota foi perceptível.
Quando chegamos na casa grande, nosso chefe, Best Jeanist, ordenou que nos dividíssemos: metade ia para investigar a casa e metade o resto do terreno. Eu fui na metade que iria investigar o resto do terreno junto com ele e mais quatro ajudantes.
Sendo de noite, o clima estava especialmente sinistro e só tendia a piorar pelo visto. Ao longe avistamos uma grande árvore atrás da casa, de tronco enorme e galhos maiores ainda, sua aparência a distância era assustadora, mas à medida que a gente se aproximava percebemos que não eram galhos.
Meu corpo parou de andar imediatamente, meus olhos se arregalaram de horror com a visão à minha frente.
— Meu deus, não! – uma ajudante ao meu lado gritou em pânico, escondendo o rosto atrás das mãos.
Corpos. Por toda parte, de todos os tamanhos, pendurados pelo pescoço com correntes de bronze, enfeitando aquela árvore como uma analogia grotesca do natal. Todos possuíam aparência mutante, e por isso foram assassinados. Me custava acreditar nisso.
A frase pintada no tronco chamou atenção: “aqui estão os pecadores, viva o novo mundo”.
A cada corpo sem vida era outro soluço que ameaçava escapar de mim. O de uma pobre senhora meio corça, um homem cujos chifres foram brutalmente arrancados, um garotinho meio tubarão…
Deus, o fôlego fugiu de mim. Senti meus olhos começarem a arder e precisei tampar minha boca com as mãos trêmulas, chocada demais para fazer outra coisa a não ser abafar meu próprio choro. Eu não conseguia tirar os olhos deles, cada rosto sendo gravado a ferro em minha mente, cada expressão de dor antes de sua morte injusta.
— Psyone, por favor, feche os olhos!
Best Jeanist precisou me virar para o outro lado, como sua ajudante mais nova ele sentiu o dever de me poupar daquilo, mas já era tarde demais. Eu jamais iria me esquecer do rosto daquele garotinho, ele parecia ter a mesma idade do meu irmão.
° ° °
Como foram capazes de tanta crueldade? Como tiveram coragem de fazer aquela atrocidade com gente inocente?
Ela, mesmo agora, era incapaz de se conformar.
A garota desmoronou até o chão, segurando o rosto com tanta que chegava a doer, tudo para tentar conter seu choro e pânico. Tudo para conter o grito que ameaçava rasgar sua garganta. O que deveria fazer agora, depois daquilo? Ela olhou ao redor em busca de orientação, em vão, pois nada ali poderia lhe ajudar, não havia nada onde se apoiar. No entanto, algo chamou sua atenção: seu uniforme. Manchado demais, era evidência demais.
— Não, não, não… – ela só conseguiu chorar mais, sabendo que seria incapaz de tirar as manchas espalhadas pela roupa.
— Amy? – uma voz cautelosa chamou.
A garota virou o rosto na direção da voz, espantada. Izuku Midoriya. Quando ela o reconheceu, não conseguiu sequer manter a postura determinada que sempre mostrava para seus colegas, aquela que fazia parte de sua dinâmica. Ele geralmente a elogiava por sua individualidade e ela se exibia copiosamente, tudo em nome de perturbar Katsuki Bakugo – seu amigo improvável, sua paixão secreta e rival nas horas vagas. Esse companheirismo fez Amy considerar Midoriya seu melhor amigo, o mais confidente. Só que agora, depois do que fez, ela não tinha culhões para lhe encarar. Nem tinha o mental para isso agora.
Ela escondeu o rosto nas mãos, não suportaria encarar ninguém agora, não assim.
— Meu deus – Midoriya se aproximou com assombro e preocupação estampado em sua face, ajoelhando-se ao lado da amiga em desespero.
Por alguns segundos Midoriya havia se esquecido de como acalmar alguém, seu curto estágio com Gran Torino não foi focado no suporte emocional dos outros, mas ele não recuou. Izuku estava em estado de choque com a aparência desastrosa que a suposta melhor aluna da 1A se encontrava. Logo ela, que desde que chegou se mostrava superior em tudo, um prodígio no mundo dos heróis.
— Respira fundo – com cuidado afastou os cabelos rosa do rosto molhado da menina – Me conta o que aconteceu – ele pediu, ela negou entre soluços.
Mas ele insistiu. O que quer que tenha feito ela desmoronar daquele jeito precisava ser combatido, ele seria seu escudo se fosse preciso.
— Ames... – ele chamou de novo, pousando uma mão quente em suas costas.
Quando ela conseguiu reunir forças o suficiente para olhar para ele, Midoriya pôde ver que ela não tinha começado a chorar agora. Seu rosto já estava manchado por lágrimas de horas atrás, tanto os olhos quanto seu nariz estavam avermelhados, e seu soluço parecia incontrolável ainda. Ele puxou a garota para um abraço forte, lembrando que isso confortava as pessoas na maioria das vezes, e ele queria confortá-la mais do que tudo agora.
Em seus braços ela desatou a chorar, não se conteve mais, não se importou que fossem lhe ouvir, apenas segurou forte nas roupas do rapaz, como se isso fosse lhe tirar do abismo em que caiu.
Apenas depois de alguns minutos Amy enfim parou de soluçar e começou a controlar sua respiração, tirando suas luvas manchadas para poder enxugar o rosto molhado. Só então que foi se afastando dos braços do esverdeado, recompondo-se aos poucos.
— Eu fui numa missão hoje – começou – Era uma organização… – respirou fundo – monstruosa. Seu objetivo era eliminar os seres humanos com aparência mutante e só deixar os “normais” – ela precisou de uma pausa para continuar, o rosto contorcendo com a lembrança – Deku, eles pegaram até crianças. Crianças. Deus, que tipo de gente faz isso?
Midoriya não respondeu, não precisou, era óbvio que quem era capaz de tamanha crueldade sequer poderia ser considerado humano. Ela prosseguiu:
— Jeanist me disse para voltar para casa imediatamente, que não era pra eu ver aquilo. Mas eu não consegui.
Só então o esverdeado deu atenção para as manchas em seu uniforme. Ele já havia notado isso antes, é claro, mas achou mais importante saber como ela estava antes de qualquer coisa. Com os olhos, ele observou que Amelia que não tinha nenhum machucado e mesmo assim estava coberta. Izuku começou a temer o que isso poderia significar.
— Amelia, o que você fez?
— Encontraram os responsáveis no fundo da casa. Criminosos, políticos, gente da alto sociedade, todos em reunião… era todos da mesma laia, todos foram responsáveis. – a garota começou a falar com desprezo no rosto – A satisfação no rosto daqueles homens me deu nojo. Eles sabiam que no fim seriam soltos, impunes. Sua mensagem já estava dada… então eu decidi responder.
— Amelia – ele chamou, como um aviso, mas o estrago já havia sido feito.
Primeiro veio o silêncio, um pequeno momento de contemplação do que suas próximas palavras poderiam significar para eles, e depois…
— Eu matei eles – confessa – Eu matei todos eles. Estão mortos – ela o encarou, vis a vis – Não sobrou ninguém vivo.
Criminosos, políticos, gente rica… Tudo o que havia de pior na sociedade. Eles estavam por toda parte em Amy]: em suas botas, uniforme, luvas, rosto... Tudo respingado pela vingança. No fundo a menina se consolava com o fato de ter destruído aquela organização até o âmago. E no fundo de seu ser, na parte mais humana que um humano poderia ser, Midoriya só encontrou pena por sua amiga e pelas pessoas mutantes que se foram. Ah… pobre Amy, estava inconsolável pelas vítimas daquela organização, inconsolável pelo papel de ceifadora que precisou exercer. Ele não a culpou pelo sentimento de retaliação que se apossou dela. No fundo ele sentiu a mesma raiva quando ouviu seu relato.
Pela primeira vez sua boca tagarela se calou na presença de Amy, Midoriya ainda a encarava com pena e temor nos olhos, mas agora seu temor era pelo o que deveria fazer. Seu aperto nos braços da garota começava a aumentar enquanto pensava no que teria que fazer a seguir. Ele sabia o que seu dever exigia, mas isso não o impedia de tremer, e não impedia seu coração de acelerar em conflito com sua razão.
— Como? – ele perguntou, se referindo aos seus companheiros.
— Telessequestro – respondeu prontamente, penitência em sua voz.
Era uma técnica de sua peculiaridade, perigosa e invasiva. Praticamente roubo. Nenhum de seus colegas perguntou como ela desenvolveu essa técnica. Ela basicamente arrancou essa memória do pessoal de sua agência.
— Nenhum dos heróis se lembra que aqueles homens estavam vivos. Para todos, exceto a mim, já foram encontrados mortos. Estão procurando o responsável agora.
E o responsável estava bem na frente dele. Era a pessoa quem ele deveria entregar, era a pessoa que havia se transformado em sua melhor amiga. Sua colega mais querida.
— Entendo.
Era agora. Ele tinha uma confissão e sabia que ela estava exausta e dolorida demais para lutar. Midoriya tinha que fazer algo, precisava. Olhou no fundo dos olhos azuis de Amy, segurando firmemente seus braços, pronto para imobilizá-la, e então…
— E-Eu… Não consigo – desistiu.
Seus braços caíram para os lados, abaixando a cabeça atormentada. Midoriya é um herói, e procurava ser o melhor herói do mundo, não deveria ser compreensível com as motivações dela para um massacre, mas ele também era humano, ele também se revoltava com a injustiça. E ele jamais conseguiria se perdoar se enviasse Amy para prisão.
— Eu sei – ela não precisou ler sua mente para saber que ele não lhe entregaria – eu sei.
Ela então o abraçou novamente, agradecida, aliviada por saber que poderia confiar nele.
— Me perdoa.
Em um ato ligeiro, Amelia encarou os olhos verdes de Midoriya, sendo seus olhos azuis brilhantes a última coisa que ele viu em meio a escuridão antes de cair em um sono profundo, onde jamais lembraria daquela noite. Foi um furto, como uma brisa soprando aquele momento para o limbo do esquecimento de seu ser. Lhe doía arrancar tal memória do amigo, tanto emocional quanto literalmente – as enxaquecas que estava adquirindo à medida que continuava a usar sua peculiaridade excessivamente estava piorando –, mas isso foi algo necessário.
Por mais que Amy confiasse em Midoriya, ela jamais se perdoaria sabendo que descarregou um problema tão grande nos ombros dele. Dava para ver como isso já o torturava. Se antes tivesse sido apenas um simples erro… mas o fato é que não foi, não era algo que podia ser conversado e explicado pra polícia. Foi literalmente um crime, foi uma carnificina. Era um segredo que ela levaria pro túmulo. Se dependesse dela, nenhum de seus colegas saberia de seus atos como vigilante, pelo menos não até o dia em que fosse pega e exposta pela própria comissão. Até lá, ela viveria reprimindo aquelas dolorosas memórias, mesmo que isso lhe consumisse por dentro.
Se pelo menos ela estivesse em boa forma, teria detectado que havia um terceiro par de ouvidos naquela conversa.
° ° °
Depois de levitar Midoriya até o quarto dele finalmente entrei para o meu, me trancando no banheiro por algum tempo só com uma caixinha de remédios no colo e uma barra de sabão na mão.
E não, eu não estava pensando em me matar.
Primeiro tomei um remédio para dor de cabeça, bebendo dois copos de água do tanto que eu estava com sede. Em seguida tirei meu uniforme. Eu devia enviar para lavanderia, lá eles lavam isso melhor do que eu, mas eu não poderia arriscar um interrogatório sobre aquele sangue sendo que eu nem estava machucada. O jeito era eu mesma tirar a mancha.
Nas poucas conversas que tive com meu pai, uma das coisas curiosas que ele me ensinou foi como tirar manchas de sangue da roupa. Você só precisava de uma barra de sabão neutro e água. Primeiro molhava a peça e o sabão, depois esfregava nas áreas afetadas, então era só deixar de molho. Dependendo se estava fresco ou seco, o tempo aumentava. No meu caso, vou precisar deixar a roupa de molho por três horas enquanto tomo banho e tento dormir, certamente até lá já vai estar bom para lavar corretamente.
° ° °
No café da manhã do dia seguinte observei Deku quando entrou na sala, checando seu comportamento. Ele estava completamente normal, sendo gentil e buscando por um duelo de treinamento. Soltei um suspiro de alívio. Que bom. Apenas Bakugo estava diferente, nem sequer me xingou quando dei bom dia. Não me preocupei com isso, pois até que era comum da parte dele ter esses momentos de birra comigo, geralmente depois que o derrotava em combate.
Desviei minha atenção para o noticiário da manhã que passava na TV da sala. Isso nunca ficava fácil. Eu confiava plenamente em minhas habilidades, mas o medo me perseguia. Assim como a ansiedade, a raiva, o estresse e as dores de cabeça. Na última vez que estive com a Recovery Girl ela disse que suspeitava que eu tivesse TEPT. Sequer discuti com ela, pois suspeitava disso também. Precisei de todo meu autocontrole para não reagir ao apresentador falando do caso da organização odiosa que foi massacrada noite passada.
Uma verdadeira chacina, eles disseram. Suspeitavam que havia sido algum vigilante vingativo, já que os corpos foram todos marcados com V.
V de vingança.
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