O lican avistou os seus iguais em volta da fogueira se alimentando na festa da lua aos risos. As bruxas dançavam próximo com roupas cerimoniais brancas e coroa de flores na cabeça. Se manteve um pouco afastado de tudo como se todos os acontecimentos da noite estivessem em segundo plano. A mente distante demais para focar em qualquer coisa próxima de si.
Sentada em uma cadeira de palha, Eomani observava o jovem herdeiro lican viajar em pensamentos. Estava desta mesma maneira dias antes de promover o ataque a um dos Vermillus e o coração inquieto do rapaz a velha bruxa conhecia bem.
Está planejando um novo ataque?
Ao escutar a voz da bruxa dentro da cabeça, Hoseok olhou para a direção dela no mesmo instante. Os lábios enrugados estavam fechados como ele já esperava, mas a voz dela permanecia dentro de sua mente lhe dizendo coisas. Poderia respondê-la da mesma maneira, sabia que ela era capaz de ouvir seus pensamentos mas preferiu sair de onde estava e se aproximar da mulher.
— Os Vermillus não responderam ao ataque.
Eomani confirmou de leve com a cabeça e permaneceu calada.
— Esse silêncio me preocupa. Em uma situação normal, alguns deles já estariam aqui fosse para nos atacar, fosse para conversar com meu pai sobre o acordo de paz.
A dança das bruxas era observada por ambos e ainda que não dessem a devida atenção aquilo, louvores a deusa se escutavam ao fundo como uma trilha lúgubre feita especialmente para uma conversa como aquela.
— Eu vejo todos dançando e se divertindo como se hipnotizados e tudo o que queria era um pouco disso, mas não consigo. — olhou para a bruxa. — Eu não quero as migalhas dos vampiros. Você me entende? — perguntava de forma retórica recebendo um sorriso da velha bruxa. — Não vou mentir, Eomani, eu esperava alguma reação. Qualquer que fosse.
— Você quer a guerra.
— Eu quero a paz. Mas se ela tiver que vir por meio da guerra eu não medirei esforços.
A velha bruxa suspirou olhando para o jovem alfa sedento por justiça. Em seus olhos, via a vontade de mudar a realidade de seu povo e isso de certo modo lhe trazia paz.
— Eu esperei tanto para pôr as mãos em um deles e quando tive a oportunidade a perdi. — passou a mão no rosto, respirando fundo. — Eu baixei a guarda e agora, essa mordida no meu pescoço… — pensou antes dizer. — Eu acho que ela tem me feito sentir coisas.
— Que tipo de coisas?
— Eu o sinto. — disse de pronto. — Eu sinto o Vermillus. Eu sinto… o vampiro como se estivesse dentro da minha cabeça.
— Está perdendo o controle, Hoseok.
— Eu sei. E é por isso que eu preciso encontrá-lo de novo, Eomani. Preciso terminar o que comecei e assim acabar de vez com essas sensações.
— Você terá a sua chance, meu filho. Mais cedo do que imagina. Tem a determinação de um legítimo filho da lua. No momento certo, encontrará a oportunidade que te colocará frente a frente com o jovem Ettore.
Hoseok se atentou as palavras da matriarca de seu povo e a maneira como ela falava era quase que profética. Percebeu os pelos no braço se arrepiarem e a marca dos dentes de Hyungwon no pescoço ardeu em sintonia.
— Apenas se lembre destas palavras que te falo agora. — dizia sem olhar para ele. — Bonis nocet, qui malis parcit. Sacrifica os bons…
— ...quem poupa os maus. — completou.
A costumeira frase da mais velha carregava um peso. Hoseok cresceu ouvindo ela repetir aquilo e nas muitas vezes que refletiu a respeito sabia que isso era quase que um gatilho para ele. Se lembrou de quando estava no campo vigiando Hyungwon, e antes de atacá-lo, recitou essa frase para si em pensamento.
— Eu jamais pouparia aqueles vermes, Eomani. Acho que já provei isso.
A velha bruxa olhou para o jovem lican por um longo tempo. Esticou a mão enrugada até o seu rosto e a maneira como ela o encarava era difícil de decifrar.
— Eu jamais duvidaria da sua capacidade de derrotar nossos inimigos, Hoseok. Seus objetivos estão bem definidos.
— Sem dúvidas. — sussurrou com os olhos injetados. — Eu vim para este mundo com uma missão dada pela deusa. Eu vou estabelecer a era do povo da lua. Vou fazer os vampiros voltarem para as trevas de onde nunca deveriam ter saído e… — a voz embargou. — ...vou livrar a minha mãe das garras daquele infeliz.
Eomani afirmou com a cabeça. As mãos lentas e debilitadas seguravam uma bengala que também poderia ser um cetro. E embaixo de uma tenda improvisada ela ouviu o céu resmungar com um relâmpago.
— Isso não é bom. — disse para Hoseok a seu lado.
— É apenas chuva. — respondeu. — Não é? — perguntou inseguro.
A velha bruxa fechou os olhos em um suspiro. Hoseok observava aquele comportamento atípico e vez ou outra, olhava para a direção do pai e Naya que também percebiam a mudança repentina na matriarca do outro lado da fogueira.
Quando Eomani abriu os olhos, alguns raios cortaram o céu, uma ventania repentina surgiu apagando a fogueira assim como os ânimos das bruxas que dançavam contentes em volta dela.
— Kieran. — a bruxa disse. — Onde está Kieran?
Assim que terminou de dizer, uma movimentação na mata se fez notar. O grupo que estava próximo se divertindo até então, se virou para saber o que acontecia e foi quando de forma inesperada, Kieran, um jovem lican que não deveria ter mais que quinze anos, saiu dos arbustos com uma das mãos nas costelas. O rapaz deu três passos adiante e caiu revirando os olhos.
As bruxas que cantavam e dançavam gritaram assim que avistaram a cena. Kieran se tremia no chão, olhando para o céu estrelado com uma única lágrima lhe escorrendo pelo canto dos olhos. Daeliu correu para perto do jovem o segurando em seu colo consternado com a imagem. Além da ferida aberta na costela, o jovem tinha o rosto banhado em sangue e alguns buracos em outras partes do corpo. Era como se tivessem usado uma lança para feri-lo diversas vezes.
— Quem fez isso a você? — Daeliu perguntou desesperado.
O restante da matilha se reuniu em volta do alfa e de Kieran. O rapaz, por mais que abrisse a boca, dela nada saía senão alguns gemidos inteligíveis de alguém muito perto de receber o amargo beijo da morte.
— Responda, Kieran! — gritava como se esperando que aquilo fizesse com que o menino despertasse do transe.
— Fomos nós!
As atenções até então direcionadas ao alfa e o jovem lobo ferido foram parar no aglomerado de rostos desconhecidos, mas a julgar pela vestimenta desgastada e sem qualquer luxo, se tratava de humanos.
— Olho por olho e dente por dente, licantropo. Vocês matam as nossas crianças e nós matamos as suas.
Hoseok percebeu a raiva dominar seu inconsciente. As dores nos ossos e o calor que principiava significam apenas uma coisa: em poucos segundos, ele estaria totalmente transformado em um lobo cinzento de grande porte.
— Do que está falando, maldito? — Hoseok perguntou bufando.
— Existe um acordo de paz. Um acordo que segundo informações, não foi respeitado pelos licans.
O lobo engoliu seco e a respiração ficava mais lenta.
— Soubemos nas colônias que um dos licans juntamente com uma bruxa, atacou o quarto filho de Arando. Disseram também que os humanos estavam combinados com o povo da lua para executar esse ataque.
A primeira parte da história era conhecida por Hoseok e ele mesmo poderia confirmar, mas a segunda ele não fazia ideia de como poderia ter surgido. Franziu o cenho escutando a justificativa do ataque e tudo se tornava cada vez mais absurdo.
— Nós não mexemos com os Vermillus e eles não mexem com a gente. Se não tivessem atacado um dos Ettore e desfeito o acordo de paz, eles não teriam atacado a nossa colônia e matado todos aqueles inocentes.
Ouvir aquilo fez por um segundo, Hoseok perder a concentração da metamorfose que se iniciava. Isolado entre o seu povo por conta da possibilidade de revide dos Ettore, não soube das notícias fora de seu meio. Descobrir que uma das colônias dos humanos havia sido atacada pelos vampiros foi uma grande surpresa, mais ainda, tentar entender o porquê deles terem feito isso.
— Seu lobinho estava se engraçando para uma das nossas meninas, foi fácil capturá-lo e fazê-lo pagar pelo estrago que causaram ao nosso povo, mas isso não é o suficiente. Vocês precisam sentir na pele o que é ter seu lar destruído e seus amigos mortos.
Hoseok olhou para trás na direção de Eomani e foi quando ele entendeu. Os vampiros eram mais espertos do que imaginava. A ausência de resposta não passava de uma astuta estratégia onde eles sabiamente colocavam os humanos contra os licans para que estes fizessem o trabalho por eles.
Lutar com os humanos faria com que todos os outros se voltassem contra o povo da lua e isso complicaria ainda mais os planos do jovem alfa quanto a supremacia lican, pois ele faria novos inimigos em um tempo onde tudo o que ele mais precisava era de aliados.
— Nós não temos medo de vocês licantropos. Não temos medo de vocês, bruxas. Estamos aqui para que paguem por tudo que nos causaram.
— Então, feriram o Kieran mesmo sabendo que quem destruiu a colônia foram os vampiros?
— Isso não teria acontecido se vocês não tivessem atacado o jovem Ettore.
— Será que não percebem? Não é a nós que devem atacar, e sim os Vermillus. — Daeliu questionava com Kieran respirando lento nos braços. — Não somos seus inimigos.
— Pois se tornaram no momento em que fomos envolvidos sem qualquer razão na briga de vocês com os vampiros. Se tornaram depois de vermos nossas casas e sonhos destruídos. Quem quer que tenha atacado o herdeiro Ettore precisa saber que em suas mãos corre sangue inocente. E estes sangues serão purificados e vingados agora, pelo fio das nossas espadas.
Hoseok suspirou fundo fechando os olhos. Não queria perder o controle. Afinal, aqueles não eram seus verdadeiros inimigos. Ficava claro que os humanos não passavam de bodes expiatórios para um plano muito maior. O lican soltou o ar sentindo os ossos doerem e o calor já conhecido. Observava em meio a tensão, o jovem Kieran expirar pela última vez até a alma lhe abandonar para sempre o corpo e quando ouviu o choro das bruxas e dos outros licans, foi como se um gatilho tivesse sido acionado. Dessa vez não perderia a concentração. Dessa vez não teria misericórdia de ninguém.
— Vocês têm apenas três opções. — Naya disse com autoridade. — Voltar por onde vieram, conversar como pessoas civilizadas ou se escolherem lutar… se preparem, pois faremos a vocês muito pior do que os Vermillus fizeram. A escolha é de vocês.
Apenas o estalar da madeira se ouviu por um tempo. Os humanos se entreolharam e enquanto o povo da lua os encarava, um dos que estavam no fundo, esticou o arco e a flecha que trazia e apontando para a frente disparou sem medo.
Hoseok seguiu o trajeto da flecha com o olhar como se a visse em uma velocidade mais lenta. O objeto cortou o ar, fazendo um assobio fino, passou por Daeliu, passou por ele e quando o jovem lobo se virou, percebeu com desespero o destino final da seta.
— Eomani! — gritou, correndo em direção a ela.
A velha bruxa não teve qualquer chance de reação. A flecha lhe transpassou o peito com velocidade e violência. Caiu primeiro sobre seus calcanhares para em seguida o corpo todo ir ao chão.
Quando viram a matriarca desmaiada, uma gritaria generalizada tomou conta do lugar. Os licans, indignados e raivosos com a ousadia humana se transformaram quase que em sincronia e atacaram o grupo de invasores.
Hoseok que finalmente chegava próximo da velha bruxa, chorava e se lamentava tentando conter o sangue que se esvaia do peito de Eomani.
— Mani, por favor! Olha pra mim! — gritava segurando no rosto dela.
A velha respirava com dificuldade fazendo movimentos lentos.
— Malditos, malditos. — repetia para si, vendo o estado daquela que era a mãe de todos.
— Hoseok! Leve Eomani daqui. Rápido! Deixe que nós daremos conta de vingar a morte de Kieran e o ataque a ela. — Naya dizia para ele.
Se levantou com rapidez, pegando a matriarca no colo. Se virou dando uma última olhada para adiante e a situação em sua vila era desesperadora. Haviam lobos machucados, outros mortos, humanos feridos implorando por misericórdia e outros despedaçados pela força da mordida dos caninos. A vila cheirava a morte e o sangue. A cena impressionava Hoseok que estático com Eomani no colo, não podia deixar se sentir um pouco de culpa por tudo o que aconteceu.
— Hoseok! Vai! — Naya gritou uma vez mais antes de voltar para o local onde a batalha ocorria.
Voltando a si, o lican correu para dentro da floresta com Eomani nos braços e Jinah o seguiu. Faziam o caminho pela floresta rumando para perto do rio e enquanto andavam ouviam os gritos vindos da vila.
Chegaram nas margens do rio e Hoseok se ajoelhou na grama pronto para deitar o corpo debilitado da bruxa nela.
— Talvez seja melhor a deitar embaixo da árvore. Logo a lua deve aparecer acima de nós.
— Jinah, isso são apenas lendas. Eomani não é uma deusa amaldiçoada e ela não vai morrer se olhar para a lua. — repreendeu limpando as lágrimas. — Eomani, eu preciso que seja forte. Vou retirar a flecha de uma única vez. Aguente firme.
Pegando pela haste, Hoseok contou mentalmente até três e puxou a flecha. Um filete de sangue salpicou o rosto dele e sem dar muita atenção aquilo, tapou o buraco da ferida com uma parte do tecido de sua blusa.
— Jinah… — disse, fazendo um sinal com a cabeça.
— Certo. — a bruxa sussurrou com a voz embargada.
Estava nervosa. Isso era visível. Tentar curar a mãe de todas as bruxas seria a tarefa mais ousada que tinha feito até ali. Com o espírito inquieto que tinha, era comum se meter em apuros junto a Hoseok, mas aquela situação que vivia agora, certamente era a mais tensa de todas.
Colocando as mãos sobre o local da ferida. Jinah fechava os olhos lentamente. A lágrima represada despencou no instante em que os olhos se fecharam e então ela começou a dizer:
— Sanae. Sanae…
Sentia poder saindo dela. O corpo esquentava começando pelos pés e aquela energia branda circulava por todo o tronco, fazendo um trajeto que terminava nas mãos.
— Sana… — tentou dizer, mas sentiu uma mão lhe tocar o braço. — Eomani?
A velha bruxa balançou a cabeça devagar.
— É vão. — disse com dificuldade. — Essa ferida não é para cura.
— Por favor, nos deixe te ajudar. — Hoseok disse quase que em uma súplica.
— Eu não vou morrer pelas mãos dos homens, meus filhos. — disse e sorriu.
Os dentes estavam vermelhos de sangue e a imagem da grande mãe das bruxas naquele estado, deixava o lobo e a bruxa ainda mais tristes.
— A deusa há de ter piedade de sua filha. — tossiu, cuspindo o sangue que tinha boca. — Ela há de perdoar a mais rebelde de suas divindades. A única que ousou largar o paraíso para viver entre vocês.
— Então, era verdade? — Hoseok perguntou com a voz entrecortada. — Você é realmente uma deusa rebelada?
Eomani sorriu fraco e levou uma das mãos até o rosto do lican.
— Que o seu destino se cumpra. — com os dedos ensanguentados, desenhou a meia lua no centro da testa de Hoseok.
— Mani… não nos deixe. — disse chorando.
— Bonis nocet, qui malis parcit.
— Por favor… não nos deixe.
— Não esqueça dessas palavras e um dia… — suspirou forte. — ...será você o senhor de Akai.
— Eomani, não! — Jinah se ajoelhou ao lado dela. — Se é uma deusa, nos prove agora! Cure a si mesma. Se levante desse chão e prove o seu poder. — pedia em um atropelo de palavras.
— Você quer que eu te prove que sou a deusa rebelada das lendas? — ela dizia com um sorriso e a voz arrastada. — Quer saber se eu sou a deusa amaldiçoada e proibida de ver a lua?
Eomani virou o rosto lentamente para o alto. Com a cabeça apoiada no colo de Hoseok, encarou os céus, algo que não fazia há muitos anos.
— Observe.
A lua aos poucos se revelava por detrás das folhas das árvores. O céu emitia sons ruidosos intercalando entre relâmpagos e trovoadas. O vento balançava as árvores para toda e qualquer direção. A fúria dos céus era sentida por eles, Jinah teve seus cabelos jogados para frente do rosto violentamente enquanto Hoseok protegia os olhos da poeira que a ventania trazia.
Olharam os dois para a velha bruxa deitada ao chão e ela permanecia encarando os céus imóvel, apesar da tempestade que parecia se anunciar. A lua enfim apareceu em sua totalidade. Era possível ver nos olhos de Eomani o reflexo daquele globo iluminando nos céus.
— Ela… ela está olhando para a lua. — Jinah gritou.
Hoseok viu a íris de Eomani perder aos poucos a cor vívida de sempre. Todo o olho estava em um tom de branco como se virado dentro das próprias órbitas, mas na verdade, bastava analisar com mais atenção para ver que na verdade, a lua estava dentro de seus olhos e neles não havia cor, não havia brilho, não havia vida.
A floresta silenciou em respeito. O céu que antes reclamava agora parecia solene assim como o vento. Após alguns segundo de silêncio, com uma única lágrima lhe escorrendo pelo rosto e abraçado ao corpo inerte da velha bruxa, Hoseok gritou o nome da deusa a plenos pulmões. Jinah se aproximou abraçando os dois e juntos choravam a perda da mãe das bruxas.
O dia amanheceu. A jovem bruxa e o lican voltaram pelo caminho de antes rumo a vila do povo da lua. Chegaram mais rápido do que imaginavam, visto que estavam em uma espécie de transe, ainda absorvendo a perda daquela noite. Triste foi constatar que ela não seria a única, pois quando os dois chegaram a vila, tudo o que encontraram foi morte e destruição.
Dentro do peito de Hoseok, o coração batia acelerado. Caminhou por entre os corpos e lá havia humanos e licans misturados um sobre os corpos dos outros. Jinah se desesperou e soltou um grito agoniado ao ver seus pais e seu irmão mais novo mortos perto da fogueira. Hoseok correu em seu auxílio e abraçado a ela, viu Naya, com seu rosto ferido, roupas rasgadas mas ainda assim, com o semblante impassível de sempre.
Aos poucos, foi andando até ela e quando desceu perto do corpo, começou a chorar. Ainda era como uma rainha mesmo que naquelas condições. Os dedos tocaram lhe o rosto e por um breve momento, teve lembranças tristes e felizes com a bruxa.
— Mãe… — sussurrou com a voz sofrida.
Esticou a mão até o pescoço dela e retirou o colar de meia lua que ela tanto amava, beijou o pingente com carinho e pôs no pescoço. Se levantou devagar limpando as lágrimas e olhava para todo o espaço a fim de encontrar o pai. Tinha poucas esperanças que ele estivesse vivo agora que via o massacre de perto. Na verdade, não entendia o porquê dos licans terem sido derrotados contra humanos tão simplórios. Talvez algo tivesse acontecido durante a sua ausência, mas ele não tinha como saber e por mais que procurasse por seu pai ou o corpo dele, era perceptível que não se encontrava mais ali.
A movimentação repentina nos arbustos fez com que os dois amigos deixassem seu luto por alguns instantes para se prepararem para o pior. Se os humanos estivessem de volta, vencê-los seria impossível, mas Hoseok não se renderia sem lutar. Parecia pronto para iniciar a transformação assim que o primeiro homem aparecesse no meio do mato, mas ao invés disso, apenas o trotar lento do cavalo roubado de Hyungwon se ouviu. Hoseok respirou aliviado. Ao menos o animal ainda restava, pois a vila do povo da lua agora nem longe lembrava a bela e festiva vila de momentos atrás.
— O que vamos fazer agora, Hoseok? — Jinah perguntou ainda chorando. — Para onde nós vamos?
Hoseok se aproximou do cavalo e lhe acariciou a crina de leve. Após respirar fundo, montou nele. Jinah ouviu os passos do animal se aproximando e quando olhou para cima, viu Hoseok imponente nele, lhe esticando a mão gentilmente.
— Vem. Não há mais nada para nós aqui.
Jinah prosseguiu com seu choro sentido e segurando na mão de Hoseok, montou no cavalo, abraçando o lican pela cintura e deitando a cabeça em suas costas.
— O que faremos… com os corpos?
O cavalo caminhava devagarinho para fora da vila.
— Eles são seres da floresta, assim como nós. Nossos corpos pertencem a essa terra. Que seus corpos voltem para ela. — respondeu tentando conter a própria emoção. — Vamos embora daqui de uma vez. Eu preciso saber o que aconteceu com meu pai.
— Onde acha que podemos procurar por ele?
— Se ele não está aqui morto pelas lanças dos humanos, só existem dois lugares onde ele pode estar agora.
— No Domum?
— Ou em Servan.
— Servan? O mercado de escravos? Nós… vamos para lá? Hoseok... talvez isso não seja uma boa ideia.
O lican não respondeu. Puxou os arreios na boca do cavalo um pouco mais forte e o animal entendeu o sinal. A bruxa apertou o corpo de Hoseok ainda mais forte e como se deixando tudo para trás, a dupla de amigos seguiu para o meio da floresta. Sendo aqueles dois os únicos sobreviventes do que um dia foi o místico povo da lua.
*
— Juno?
Quando finalmente despertou, Jooheon chamou a menina quase que por instinto.
— Estou aqui. — disse surgindo por trás da carroça. — Onde estamos?
O híbrido olhou em volta e havia uma movimentação persistente. O lugar era como um imenso mercado onde se vendia de tudo o que poderiam imaginar. O aspecto sujo da cidade e seus frequentadores, acionaram em Jooheon a desconfiança de que talvez o melhor a se fazer fosse sair dali.
— Não faço ideia de como viemos parar aqui, mas talvez seja bom irmos embora.
— Eu tenho fome.
— Podemos comer na próxima cidade.
— Não sabemos onde estamos e se a próxima cidade estiver longe? — esticou para Jooheon as moedas que a mãe conseguiu vendendo o corpo. — Compre algo para nós, por favor.
Olhando em direção às mãos de Juno, Jooheon não teve como recusar o pedido. Tomou as moedas nas mãos e falou para que ela esperasse próximo da carroça. Seguiu para uma barraca com frutas e escolhia algumas para a pequena quando sentiu alguém se aproximar.
— Aquela jovenzinha é sua? — um homem perguntou.
Jooheon olhou para a direção da carroça e em seguida encarou o homem que trazia no rosto um semblante mal intencionado.
— Ela não é a sua filha. É jovem demais para isso. — prosseguiu o homem estranho. — Eu arriscaria dizer que é sua irmã mas se ela fosse, você jamais traria ela para um lugar como esse. — colocou a mão no ombro do híbrido. — Sabe, meninas como aquela rendem um bom dinheiro. Eu tenho uma casa aqui perto onde garotinhas lindas e inocentes assim servem a homens como nós e…
O homem sequer concluiu a frase. A mesma boca que falava todas aquelas coisas era a que agora recebia um soco certeiro de Jooheon.
— Nunca mais olhe para crianças dessa forma, seu porco nojento. — o híbrido gritou chamando a atenção.
Atordoado, o homem foi ao chão sentindo o gosto metálico do próprio sangue na boca.
A agressão foi testemunhada por diversas pessoas que ali estavam, incluindo os guardas vampiros que tomavam conta do comércio local. Ao perceber a movimentação deles em sua direção, Jooheon pegou algumas frutas, correu para onde Juno estava e juntos, os dois fugiram dali sem qualquer ideia para onde estavam indo.
Se esconderam em uma casa abandonada. Agachados embaixo da janela, viam a movimentação dos guardas atrás deles. Precisaram manter silêncio, certos de que quando a poeira abaixasse, poderiam sair dali para procurar a saída da estranha cidade.
— Aquele homem em quem você bateu…
— Não vamos falar sobre isso.
— Ele queria que me vendesse pra ele, não era?
Jooheon não respondeu.
— Tome isto. — ele entregou algumas frutas nas mãos da menina. — E pegue o seu dinheiro de volta. Eu roubei essa comida.
A menina conseguiu dar um pequeno sorriso com as palavras de Jooheon.
— Obrigada por me proteger. — ela disse depois de morder a maçã. — Minha mãe me dizia que a vida das mulheres era difícil e injusta. Por isso, eu deveria ser duas vezes mais forte do que um menino da minha idade.
Então aquilo explicava a maturidade precoce de Juno.
— Eu sinto muito por isso. — Jooheon disse baixo.
E aquela foi a última coisa dita entre eles até Jooheon pegar mais uma vez no sono horas depois. Acordou no susto, com raiva de si mesmo. Não entendia porque sentia tanto sono ultimamente. Olhou para os lados sem achar Juno outra vez e a ideia de que alguém pudesse tê-la sequestrado enquanto ele dormia lhe causava arrepios.
— Oi.
Uma voz infantil, lenta e doce surgiu de um dos cômodos da casa velha.
— Juno? — Jooheon perguntou surpreso com o que via. — O que fez com o seu cabelo?
As longas madeixas negras que a menina possuía não passavam agora de um bolo de fios presos as mãos dela. No topo de sua cabeça, o cabelinho curto e cortado de forma amadora, davam a ela uma aparência de menino e um pouco acanhada, Juno passava as mãos pelo que restou de seus fios.
— Eu… eu cortei. Talvez seja mais fácil sobreviver nesse mundo se as outras pessoas pensarem que eu sou um menino.
Jooheon ensaiou algumas palavras mas não conseguia concluir seus pensamentos.
— Agora podemos sair dessa cidade sem medo. Estão procurando um homem e uma menina, não um homem e um menino.
Concordando, o híbrido balançou a cabeça ainda sem saber o que dizer. Saíram da casa abandonada vigiando as ruas em volta e então seguiram a procura da saída da cidade. Caminharam por alguns longos minutos até verem o portal de ferro retorcido.
A cidade parecia mais movimentada a noite então talvez fosse fácil se infiltrar entre os que por ali transitavam e sair da cidade sem serem percebidos. Essa era a ideia que Jooheon tinha e ela seria bem sucedida, não fosse por Juno que seguindo o híbrido logo atrás, viu algo que lhe chamou a atenção.
Uma carroça gradeada trazia dentro dela um grupo de pessoas tristes e sujas. Entre elas, uma criança de talvez oito anos com um olhar assustado, a encarava de forma insistente.
— O que é aquilo? — Juno perguntou apontando.
— Não pode ser… — Jooheon disse olhando para onde ela apontava. — Isso aqui é…
Antes de concluir seu raciocínio. Olhou para o portal de longe e percebeu finalmente onde estava.
— Venha, Juno. Precisamos sair daqui o quanto antes. Estamos em um mercado de escravos. Se aqueles guardas nós encontrarem, seremos vendidos como essas pessoas.
— Não! — Juno disse travando o corpo. — Não podemos ir sem ajudar aquela criança.
— Podemos sim, na verdade, devemos. Venha.
— Por favor, Jooheon. Olhe para ela. Está desesperada.
— Eu sei que é injusto, mas não podemos fazer nada por ela. Juno, venha de uma vez.
— Seu covarde! — ela gritou se soltando das mãos do híbrido.
Juno correu para a direção da carroça e Jooheon foi atrás para impedir que algo pior acontecesse. Chegando perto da imensa jaula onde o grupo de futuros escravos se encontrava, Juno tentou em vão abrir as amarras que encerravam as pessoas ali dentro.
— Juno, venha de uma vez. Não seja tão irracional. — Jooheon chamava a atenção.
— Ei! O que estão fazendo?! — o comerciante que vendia os escravos surgiu agarrando Juno e tirando a menina de perto deles.
— Não toque nele! — o híbrido gritou se lembrando que agora Juno era um menino.
Agarrando o homem pelos ombros o jogou contra uma barraca e mais uma vez o híbrido que odiava chamar a atenção se tornava o grande foco da cidade. Pegou Juno pelo braço e se preparava para correr em direção a saída mas dessa vez, um grupo de guardas vampiros o cercou.
Acuado tendo Juno abraçada a ele com um olhar assustado, Jooheon encarou os guardas ciente de que aquele era o fim da linha. O destino que se desenhava para os dois não era nada menos do que eles já esperavam como excluídos da sociedade, mas ainda assim, foi bom para ele pensar por um tempo que tudo poderia ter sido diferente.
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