1. Spirit Fanfics >
  2. Vivimi senza paura >
  3. Capítulo I

História Vivimi senza paura - Capítulo I


Escrita por: tbrennan

Capítulo 1 - Capítulo I


A priori, depois do fim do assalto, cada um seguiria seu rumo, afinal, como as relações pessoais eram proibidas, não haveria motivos para encontros posteriores. Entretanto, o amor é um pássaro rebelde que ninguém pode prender. Apesar das dificuldades dolorosas, o assalto os uniu como uma família e isso não estava nos cálculos do professor. Estremece com o pensamento, antes do assalto estava convencido de que seu plano era perfeito, que nada, nem ninguém iria impedi-lo de chegar até as últimas consequências para oferecer aquele tributo ao seu pai. Agora, depois de tanto tempo, conseguia ver cada erro, seu, dos assaltantes, da polícia, dos reféns e de todo mundo com muita clareza. A maioria seria facilmente inevitável e evitaria muitos estragos. Se fosse o mesmo Sérgio anterior ao assalto, teria passado todo este tempo de foragido se remoendo por cada erro e fraqueza, mas era impossível, já que dividia a cama com a maior fissura que tivera no plano e não estava nem um pouco arrependido disto. 

Todas essas reviravoltas brincavam de ziguezague em sua mente porque há alguns minutos ele nem imaginaria que estaria ouvindo aquilo.

Ele e Raquel estavam terminando de fazer a sobremesa da noite: Turon. Um doce típico de Filipinas, basicamente fatias de banana e jaca enroladas em açúcar mascavo e embrulhadas em papel manteiga. Todos da casa amavam e a Raquel ficava roubando as fatias de banana, fazendo o namorado ter que cortar mais e passarem mais tempos juntos na cozinha nessa brincadeira de polícia e ladrão.

Algo que eles claramente já tinham prática, diga-se de passagem.

Talvez por serem procurados internacionalmente, não consumiam produtos digitais que possibilitariam o seu rastreio pela Europol e outros órgãos tão inofensivos quanto, mas o que realmente os motivavam a utilizar tudo analógico seria que brincar o dia inteiro na praia e ilhas ao redor era muito mais divertido que The Sims e ter Instagram – ao menos era a desculpa que Paula ouvia – e na realidade era mesmo.

Entretanto, professor era responsável pela segurança dos dalís e por todo o dinheiro que eles imprimiram, isso obviamente exige tecnologia de ponta, que não fosse detectada por órgãos federais, para entrar em contato com os transportadores – responsáveis pela segurança dos outros – e com as pessoas que mantinham suas identidades falsas passarem despercebidas pelos governos, assim como seus investimentos ao redor do mundo. Ele estava onipresente na vida de todos e sabia de todos os acontecimentos, mas não para que o transportador de Denver e Mônica entrasse em contato aleatoriamente enquanto Raquel lhe sujava o nariz com açúcar mascavo por ele estar segurando o cacho de banana lá no alto para que ela não alcançasse, mesmo que na ponta dos pés. Os dois não ficaram nervosos, anteontem mesmo o transportador de Helsinque tinha entrado em contato para poder utilizar dinheiro que não estava previsto para subornar um novo policial da cidade. Como Paula e Mariví já estavam na mesa, ansiosas pela janta e sobremesa, os dois se olharam e combinaram silenciosamente que ele ia verificar o que era enquanto ela terminava de servir as mulheres Murillo.

Foi diretamente ao escritório, onde havia um telefone velho o suficiente para que, somado à ajuda de alguns hackers, não fosse detectado.

Inicialmente, nem mesmo o transportador parecia entender a razão pela qual entrava em contato, mas basicamente Denver insistia que queria fazer um batizado simbólico para Cincinnati com a presença de todos.

A expressão facial de Sérgio mudou de incrédulo para indiferente e depois a simpatizante da ideia. Após a perda de o único membro de sua família, ficou sozinho naquela ilha por um ano inteiro e aquelas interações, até as mais bobas, com os transportadores era o mais próximo que tinha de uma família. Com a chegada de Raquel, ele aprendera a amá-la um dia após o outro e tanto transbordava que aprendia a cultivar ainda mais o carinho que tinha pelos demais. Não conhecia Cinci, a última vez que vira Mônica e Denver, naquele barco, ela não estava nem com a barriga despontando. Ele também deveria ter mudado tanto... a paternidade muda qualquer um. Sorri ao se lembrar de Paula.

Fica perdido nesses pensamentos que nem percebe Raquel parada na soleira da porta há sei lá quanto tempo. 

– A janta vai esfriar – diz com a voz inexpressiva e sai.

Como que despertado de um transe, levanta-se rapidamente, seguindo o rastro delicioso do peixe assado que o faz retornar à cozinha. Para sua surpresa, a mesa está incompleta.

– Mamãe disse que ia te chamar para comer – disse Paula ao perceber a indagação no rosto de Sérgio. 

– Daqui a pouco ela aparece, a sinto um pouco tensa, mas deve ser coisa da minha cabeça – descontraidamente diz Mariví enquanto ajuda Paula a se servir. 

– Obrigado, Paula – sorri-lhe, sentia-se orgulhoso de sua relação com Paula, apesar de custoso, ele finalmente conquistara a sua confiança – aliás, fico muito contente de ver que passou a tarde toda brincando com as crianças de sua escola, sempre soube que você se enturmaria rápido. 

– Eles são legais e têm várias brincadeiras tão diferentes – abocanha um pedaço tão grande que suja a ponta do nariz, todos riem e Mariví limpa com o guardanapo. 

Depois Sérgio sorri para Mariví agradecendo com o olhar e ela lhe responde da mesma maneira. Enquanto enchia o prato, pensava no que sua sogra havia dito sobre ela estar tensa. Não havia notado nenhum comportamento raro em Raquel, começou a se questionar se não tinha deixado algo passar despercebido, afinal, ela era uma caixinha de surpresa. Sua reação no escritório, por exemplo, foi minimamente estranha. Queria desesperadamente ir a sua procura e questionar o que acontecia, mas estava aprendendo aos poucos que lhe dar espaço era importante e enquanto isso se esforçava para ler nas entrelinhas de seus gestos. Afinal, se ela quisesse que os dois estivessem conversando-discutindo naquele exato momento, com certeza o estariam fazendo.

Desde que Raquel veio depois de um ano, embora fosse claro que ambos se amavam e estavam dispostos a tudo, a vida não era tão simples. Querendo ou não, Paula sabia que seu pai era o Alberto e a sua inocência lhe fazia sentir carinho por ele, e embora à medida que crescesse, essa ternura diminuísse porque vasculhando sua memória, compreendia aos poucos o monstro que ele era, pedir a uma criança que passe a amar do dia para a noite um homem que vira casualmente há mais de um ano é impossível. Raquel tinha consciência de que ao decidir por essa vida, não existia caminho atrás. Mesmo se sua relação com Sérgio não desse certo, voltaria para a Espanha como uma criminosa e sabia que nem mais o vantajoso dos acordos iria trazer sua vida de volta. Precisava estar segura de sua decisão, e estava. Aquela era sua casa, mas queria que Paula também se sentisse deste modo, até porque a estava tornando cúmplice dessa vida foragida sem seu consentimento e queria que a filha fosse tão feliz quanto ela.

Era formada em psicologia e sabia que morar imediatamente com Sérgio seria uma transição inadequada para Paula, que precisava mudar, no seu próprio tempo, ritmo e modo, a referência de figura paterna. Ele, que prezava tanto quanto ela o bem-estar da menina, voluntariou-se em morar temporariamente mui próximo da casa que ela levaria a mãe e a filha, deste modo, poderia se tornar presente aos poucos. Dito e feito. Sérgio era o guia turístico que a levava para os lugares incríveis, que aparecia sempre com muitos brinquedos, que cozinhava pratos deliciosos, sabia vários jogos incríveis de tabuleiro, era o novo namorado da mamãe. Conforme o tempo passava, Sérgio ficava até mais tarde na casa das Murillo, até que um dia dormiu lá e a menina tratou com a maior naturalidade, esse episódio se repetiu até que já estivesse instalado definitivamente.  

Com a Mariví, a aceitação foi mais fácil, justamente pelo Alzheimer. Em contrapartida, essa enfermidade fez com que Sérgio e Raquel passassem longas madrugadas acordados buscando os médicos mais competentes para tratá-la, além de uma ajudante que a acompanhasse sempre.

Com essa listinha mental, Sérgio procurava algo que justificasse aquela observação da sogra. Sabia que estavam muito longe de ter um relacionamento normal. Afinal, era o primeiro dele após quarenta anos e o primeiro dela depois de um relacionamento abusivo. Não tinha como ser perfeito. Sobretudo depois de um ano separados porque ele estava foragido de um assalto que por acaso prejudicou a carreira dela, já que ele a enganou sucessivas vezes até ser descoberto. Eram muitos medos, incertezas, inseguranças e anseios de ambas as partes que não raramente colidiam, fazendo-os sentir que dançavam em compassos diferentes, mas se estavam certos de algo é que se pertenciam, de corpo e de alma, de modo que nenhum dos dois sequer cogitavam a possibilidade de não passarem o restante de suas vidas juntos. Estremeceu novamente, seu namoro (que nunca nem houve um pedido oficial) quando não parecia eterno, parecia estar por um fio e essa instabilidade o deixava paralisado de medo. Sim, Raquel estava no mínimo tensa, voltou pela milésima vez ao evento do escritório. Bastou pensar em sua namorada, que ela chegou na cozinha, dizendo apressadamente:

 – Estou sem fome, boa noite, bons sonhos – beija sua mãe e filha na altura da cabeça.

Saiu tão rápido que ele nem pode protestar e lembrá-la que sequer tinham terminado de fazer a sobremesa. Soube que seus pensamentos estavam corretos e que precisariam conversar, mas antes finalizou os turons, guardou certa quantidade para Raquel na geladeira e comeu o restante com as duas. Ao terminarem, os dois deram o beijo de boa noite na Paula e cada um foi para seu quarto. Ou melhor, elas foram. Sérgio estava indo para a guerra.

Entrou no quarto, Raquel estava deitada e nem se moveu ao escutá-lo chegar. Para ter certeza de que lhe daria o máximo de tempo, aproveitou-se do calor que fazia e foi direto ao banheiro, tomar um banho gelado. Ao regressar, percebeu que ela continua na mesma posição e acordada, não coloca nenhuma camiseta, apenas veste uma calça branca de pijama que ela comprou de presente há algumas semanas e entra na cama, de modo que a abraça por trás. O fez para demonstrar que não estava na defensiva, que gostaria de conversar, esperando que ela fosse permanecer indiferente ou desvencilhar-se, mas para sua surpresa, Raquel aninhou-se ainda mais. Ele começou a acariciar cada mexa de seu cabelo carinhosamente e o teria feito a noite inteira até que ela quebrou o silêncio:

– Aconteceu algum problema com Denver, Gaztambide...ou com a criança?

Então era realmente sobre aquilo.

Ele não queria mentir, mas tampouco apresentar a ideia daquele modo. Ela com certeza acharia uma loucura, ele já achava.

– De grave...não, mas por quê? Algo te incomoda?

Ela bufou e desmanchou a posição em que estavam, mais bruscamente do que gostaria, para poder encará-lo. Abriu a boca automaticamente, mas as palavras não saíram, como se o cérebro ao analisar a fisionomia do namorado, procurasse repensar o modo em que ia falar. Ela sabia que ele estava tentando, mas a verdade é que ela também estava frustrada.

– Eu sabia que nada disso seria fácil...Salva, Sérgio, Professor… fomos por partes, não foi? – Ele acompanha o mais mínimo gesto para demonstrar que estava se esforçando para entendê-la, balançando a cabeça afirmativamente – e até agora meio que deixamos o professor trancado no guarda-roupa, focando em deixar o Salva no passado e realmente saber quem você é, o Sérgio….mas às vezes o professor toma conta de você e é tão automático que você nem mesmo percebe e eu...eu não quero ter mais surpresas, sabe? Todo dia eu olho para o guarda-roupa e me pergunto quando o professor se cansará de ficar lá trancado e vai sair por completo e eu quero ter certeza de que não terei surpresas desagradáveis….quero saber exatamente com o que estou lidando porquê…é uma parte de você e eu preciso te conhecer...é isto.

– Mas Raquel, não há segredos – gagueja – você sabe de tudo, eu te contei tudo.

– Eu não estou falando sobre ter acesso às contas bancárias, saber teus documentos falsos…. é mais do que isso. Você trata o professor como se ele fosse outro homem, o homem dos negócios, o homem que fica horas na escrivaninha pensando em como movimentar tanto dinheiro no banco sem levantar suspeitas – Raquel falava as palavras pausadamente, xingando-se mentalmente por não conseguir expor seus sentimentos de maneira clara e objetivo, mas já tinha começado e precisava ir até o final – eu sei que esse tal professor anda pela nossa casa, quando estou dormindo ou depois que brigamos, e eu sei que você, Sérgio, faz de tudo para que eu não esbarre com ele, mas eu quero conversar diretamente com essa pessoa. Sem esse filtro de cautela e prudência que você cria entre nós dois. Ele é uma parte de você, você não pode me negar isso.

Marquina fica em silêncio por alguns segundos, como que absorvendo cada palavra dita, até que muito cuidadosamente, começa a falar:

– Ele é uma forma que eu sempre tive de lidar com tudo – esfrega as mãos uma na outra, tentando dissipar tanto nervosismo – eu apenas não preciso dele para lidar com você – e cora.

Ele estava com a cabeça baixa e engolindo o seco. A cena fez o coração da Raquel se expandir. Se ela não sabia como falar, ele muito menos. Soltou um sorriso que poderia sozinho iluminar aquele quarto inteiro e se deitou de lado, virada para ele e deu um tapinha de leve no travesseiro do namorado mostrando que era para ele fazer o mesmo. Sérgio relaxou os ombros e soltou o ar que nem percebia estar segurando. Deitou-se também virado para ela. Com os rostos a pouco centímetros, ela tomou a palavra:

– É Martin o nome daquele teu amigo e do Andrés que te deu esse apelido de professor? Sim? Ah ok. Lembra quando você começou a me contar sobre teu passado, as histórias que tinha com esses dois e eu demorei meses para perceber que a maioria envolvia assaltos? – Sérgio riu alto – é disto que estou falando. Eu sei que no momento você está a todo custo tentando me enfiar nessa bolha de pura magia por estarmos aqui, na praia, com minha mãe e minha filha, longe de tudo e todos, mas toda bolha estoura, Sérgio e provavelmente quem a furará será o professor.

Ele que esteve a todo momento a encarando, volta seu olhar para o teto, tentando organizar seus pensamentos.

Não esperava por aquilo.

– Raquel...entendi. Mas não é que eu esteja ocultando, apenas não há contexto, sabe? Meu contato com as pessoas do meu passado é praticamente nulo e aqui, com vocês que são minha realidade, eu sou apenas....eu.

– Você não fala com ninguém de antes? Lembro de mais duas pessoas que você já mencionou.... acho que estavam no casamento do Andrés.

– Não, a última vez que falei foi pela morte de Berlim. Só mantenho contato com os membros do grupo – voltou a encará-la como se já estivesse com saudades de seu rosto.

– Ainda que eu já saiba de muita coisa, sinto que você evita mencionar as cidades.

(“As cidades” era uma forma que o casal encontrou de falar sobre os assaltantes na frente de Mariví e Paula sem levantar suspeitas e que acabou por se naturalizar entre os dois.)

– Você já teve que me aceitar, não queria forçá-la com mais seis pessoas – essas palavras saíram tão automaticamente que ele nem teve tempo de engoli-las de volta.

Os dois tentavam se equilibrar sob a linha tênue entre “Não se muda o passado e Raquel decidiu por aceitá-lo quando decidiu ficar com ele” e “Basicamente todos os problemas atuais são consequências dos diversos erros do Sérgio e a culpa é dele”.   

– Justamente por isso! Não há por que não me familiarizar com esses poucos momentos que você tem contato com eles já que provavelmente nunca nem irei vê-los.

Coração acelerou.

Merda!

– Não é impossível – exclamou esquivo.

– Eu sei, mas se tudo der certo, isso nunca acontecerá... ao menos que haja outro assalto – brincou.

– Bom...não sei – arrumou os óculos que não precisavam ser arrumados –, digo, não o assalto, não haverá outro – gaguejou –, mas existe um leque enorme com outras possibilidades.

– Tipo o quê? – Aumentou levemente seu tom. – Há algo que eu não saiba, Sérgio?

– Sim! Quero dizer, sim, mas eu não estava escondendo nada. Meu Deus, que merda ter que contar logo depois dessa conversa sobre eu te incluir mais nas coisas, Raquel... cariño, não fique assim – suplicou com a voz frouxa ao vê-la levantar da cama. – Foi na ligação de hoje, não te contei por falta de oportunidade... Denver quer fazer algo para o filho e queria que eu fosse, não entendi muito bem o que é...., mas ele insiste, Raquel.   

– Sérgio!? Há quanto tempo estou aqui pensando em uma forma de ser incluída no outro lado da tua vida e quando menciono você simplesmente me diz que quer reencontrá-los? 

– Pode parecer absurdo, mas não é impossível e você sabe disso! 

– A Paula nem pode entrar no Google para fazer as tarefas da escola como qualquer outra criança sem sabermos que há sei lá quantos hackers camuflando todos nossos rastros e você acha que devemos arriscar nossa segurança de forma tão desnecessária?

– Para mim não é desnecessário! – Também elevou o tom e no mesmo instante se arrependeu. – Não é, Raquel.

Ela começou a andar pelo cômodo tentando colocar os pensamentos no lugar. Nunquinha que se imaginou se reencontrando por livre e espontânea vontade as pessoas que ela estava literalmente tentando prender no passado. Por outro lado, foi escolha dela buscar saber nos mínimos detalhes o que acontecia na vida do professor, por isso, respirando fundo, voltou-se para a cama e sentou-se ao lado dele.

– Não estou te acusando de irresponsável, muito que pelo contrário, apenas me surpreende por que...porque para mim você os havia deixado para trás, que nem eu fiz com as pessoas do meu passado....não estou te acusando, apenas estou surpresa de perceber que estive errada esse tempo todo.   

– Acredito que sejam situações diferentes. Por mais que tenham seus problemas, quem você deixou em Madri tem a quem recorrer. Angel tem seus amigos, tua irmã tem todo o restante da família, até mesmo a Alicia tem o marido – engoliu o seco, pela fisionomia de Raquel era melhor parar aí com os exemplos – enfim, já os meus não. Eles não podem nem pedir açúcar emprestado para os vizinhos com medo de serem reconhecidos. Antes mesmo do assalto acontecer eu já imaginava meios de escondê-los e apesar de milionários, se tentassem caminhar com as próprias pernas não daria uma semana para que até mesmo um cúmplice os denunciaria para a polícia a troco de mais dinheiro. Me comprometi a protegê-los e isso exige que eu me mantenha mais próximo na medida do possível.

Ficaram em silêncio por alguns segundos. Raquel tentava recolher todas as pontas soltas para compreendê-las, até que disse certeiramente: 

– Você se culpa pela morte de Moscou, não é?  

Sérgio embranqueceu na hora, fazendo-a se arrepender imediatamente de suas palavras. Frequentemente ele acordava no meio da noite com pesadelos terríveis, a maioria envolvendo o irmão, mas o pai de Denver também era recorrente nesses momentos de pânico e total caos.

Ela havia tocado bem na ferida.

Ele apenas abaixou a cabeça e disse baixinho:

– O pai conhecer o neto que é impossível, Raquel, eu não posso usar essa mesma palavra para justificar qualquer negativa e se existe essa possibilidade, eu tenho que ir.

Ela apenas estalou a língua e abaixou a cabeça. Nem sabia o que responder.

– E eu gostaria que você fosse comigo, Raquel.

Ela levantou a cabeça tão rápido que ele se assustou, justificando logo em seguida:

– Eu jamais te colocaria em risco. Já mencionei isso com você há um tempo... sobre eu ter criado várias formas de me encontrar com Andrés depois do assalto já que ele claramente não ficaria confinado em nenhum esconderijo que eu estabelecesse e não é impossível não sermos encontrados caso sejamos discretos. – Quanto mais ela prendia a respiração ao encará-lo, mais ele ficava nervoso e prosseguia se justificando: – E nem seria na Europa, cariño, mas sim na América justamente por ser mais fácil. Escolhi o Canadá, por eles estarem trocando de residência na Tailândia. Seria apenas um local de transição. O local fica em um dos locais menos povoados do país, além de ser no extremo oeste, ou seja, ainda mais próximo do leste asiático...chegamos lá em um pulo, Raquel. 

Murillo simplesmente não conseguia acreditar. Era como se desde que ele tivesse pedido para que ela fosse com ele, o tempo estivesse em câmera lenta. Por alguns segundos sequer conseguia escutar tudo o que ele falava de tanto que um frio em sua barriga a fazia levitar de.... felicidade?

– Devido a sua dupla colonização, o país é mal estruturado e há anos que já venho montando uma rede de identidades falsas que periodicamente estão sendo atualizadas e –

– Sérgio?! – Ele parou imediatamente de falar – Estoy contigo!

Ele ficou uns instantes em silêncio a encarando. Buscando compreender o que aquilo significava, até que soltou uma risada frouxa no ar.

– Você está tentando me enganar com uma das tuas brincadeiras?

Ela fingiu uma expressão de indignada que não durou muito em seu rosto pois logo estava sorrindo de fechar os olhos.

– Não! Estou falando sério! Não parece tão absurdo e se você me convencer do teu plano, professor, quem sabe eu concorde.

Os olhos de Sérgio brilhavam tanto que poderiam iluminar toda a casa e não demorou para que um sorriso fosse desenhado em seu rosto enquanto ia em direção de Raquel, encaixando suas mãos na curvatura de seu pescoço, a trazendo para perto e a enchendo de beijinhos que transbordavam alegria. Ela se perguntava onde estava a Raquel tensa que vagou por aquele quarto o dia inteiro pois neste momento ela estava tão alegre que nem conseguia recusar aquela boca que cobria a sua. Se beijavam desengonçado, com sorrisos e risadas entrecortadas, com ele querendo beijá-la em todos lugares ao mesmo tempo, suas mãos cheias de anéis passeando pelas suas costas desnudas enquanto respiravam no mesmo ritmo. Tombaram na cama sem querer e ele roçava sua barba em seu pescoço provocando cócegas e arrepios. Estavam felizes porque se amavam. Porque o corpo quente e queimado pelo sol de Raquel naquele quarto inflamava ao sentir o corpo gelado dele cobrindo o seu. Porque ele havia apenas deixado para ela a sua localização. Não apenas no mapa, como também de seu coração. Quando abria os olhos enxergava a luz do luar iluminando aquela constelação que era o corpo de Sérgio e com as unhas ia registrando suas andanças entre aqueles planetas e satélites enquanto ele a fazia enxergar estrelas.

Quando não estava por um fio, parecia eterno.

– Paula e Mariví ficam em Mindanao – ela decreta.

– É o mais sensato – responde enquanto tira uns fios do cabelo dela que estavam esparramados em seu resto.

– Não que eu desconfie que elas não estarão seguras, mas sinto que não está na hora de – o acompanhou se aproximando até deixar um beijo demorado no canto de sua bochecha, próximo ao ouvido, murmurando um "está tudo bem, eu entendo" ao se afastar, interrompendo sua frase no meio. Aliviada.

A realidade era que tudo que conversaram deu asas a diversos pensamentos esquecidos que voavam em sua mente.

– Acho que você estava certo quando disse que não tenho motivos para pensar em quem deixei em Madri, mas não sei... às vezes sinto que não está terminando.

Sérgio que estava apoiado em seu braço para poder enxergá-la de cima enquanto ela estava deitada, sentiu um calafrio de medo percorrer cada átomo de seu corpo e sentou-se, gesto imitado por elas, e os dois ficaram de frente um ao outro.   

– Digo, não que eu queira retornar à Espanha, mas, Sérgio, olhe ao seu redor, é como se estivéssemos no paraíso, praticamente sem nenhum problema e eu não acho que deva ser tão fácil romper com uma vida que eu tive durante 40 anos, entende? Não quero parecer sombria, mas você realmente acha que a vida que estamos tendo será eterna? Que nunca jamais nada acontecerá que de algum modo teremos que encarar todos que deixamos para trás?

Ele arrumou desesperadamente os óculos e passou as mãos pelos cabelos. A perspectiva de que ela poderia voltar para Madri, reencontrar-se com Angel, Alberto, com Alicia... era insuportável. Toda a solidão durante aquele um ano veio com tanta intensidade que ele se perguntava como respirava normalmente há alguns segundos.

Raquel percebeu e foi em sua direção, segurando seu rosto com as duas mãos e indagando preocupada:      

– Sérgio? Está bem? Você está pálido!

Depois de a Raquel ter dito literalmente que deveriam-dialogar-mais-e-serem-mais-abertos-um-com-o-outro, na primeira conversa sobre o passado dela, ele já ficava desse jeito sendo que dali algumas semanas estariam reencontrando seus antigos amigos? Ele era um egoísta por acaso?

– Sim, a probabilidade não descarta a possibilidade de voltarmos a ver quaisquer um deles – começou a responder fingindo normalidade – e isto aqui não é uma prisão, Raquel, caso você sinta que precisa ir à Europa, daremos um jeito de irmos – concluiu aquela linha de raciocínio como se fosse a tarefa mais difícil do mundo.

Se ele não tivesse fechado os olhos logo em seguido a teria visto sorrindo grande. Como ele estava se esforçando para incluir um no plano do outro tal como um casal era a maior prova de que a conversa que tiveram não foi em vão e por mais que sua cabeça estivesse borbulhando com outros pensamentos, a única coisa que lhe importava era Sérgio quietinho como um cachorro assustado, sentindo sua namorada fazendo carinho em seu rosto.

Em momentos simples como esse que ela percebia como seria impossível se arrepender de ter ficado.  

– Sou tão feliz aqui com você – ela murmurou baixinho contra seus lábios –, você não faz nem ideia.

Ele sorriu acanhado, agradecendo silenciosamente pela confidência que fazia seu coração voltar para o ritmo normal.

“Eu também....” Foi tudo que ele conseguiu falar.

Embora todo aquele assunto complicado fosse importante, ela não pôde evitar dizer:

– Estou morta de fome, Sérgio.

Ele riu.

Era tão ela quebrar o ambiente pesado daquele jeito.

Abriu os olhos e respondeu zombando:

– Talvez tenha sobrado algo para você.

– Ahh é? Acho bom pois tenho a impressão de que até ouvi minha barriga roncar – inventou – você ouviu?

– A pergunta é quem não ouviu – os dois riram alto.

Em poucos instantes já andavam em direção da cozinha. A noite estava linda e uma brisa gostosa entrava pelas janelas, fazendo o corpo da Raquel arrepiar, pisando apressadamente com os pés descalços até se acostumar com aquela temperatura. Enquanto ele foi direto ao fogão requentar algo para ela comer, Murillo buscou na adega seu vinho favorito e voltou equilibrando a garrafa com as taças na mão.

Como ele ainda não havia terminado. Decidiu que seria um ótimo momento para escutarem alguma música. Foi em direção à vitrola porque era óbvio que Sérgio Marquina tinha uma em sua casa e começou a passar apressadamente o olhar pelos discos. Os primeiros eram Ave Maria de Schubert e a Nona Sinfonia de Beethoven – Logo em seguida encontrava-se toda a discografia de Van Morrison e por mais que o amasse de paixão, queria algo clássico, mas nem tanto, uma verdadeira mistura Marquina-Murillo. Sabia o que procurava! Já estava na vitrola e apenas deu play: Laura Pausini. A esperou começar a cantar para saber se estava em espanhol ou italiano e quando ouviu o non ho bisogno più di niente adesso che fechou os olhos ao lembrar do Sérgio cantando Bella Ciao baixinho em seus ouvidos enquanto lavava o cabelo da inspetora no banho.

Sentindo uma saudade absurda dele, foi a cozinha e quando o viu diante do fogão, fez um beicinho e o abraçou por trás.

– E a sobremesa?

– Acabaram – ele fingiu uma voz brava.

– Hmmm, na geladeira?

Ele soltou uma risada rouca.

– Nem jantou e já está pensando nos turons.

– É que você está demorando demais – protesta com a voz manhosa.

– Porque é preciso ter paciência, Raquel. Fogo baixo e mexendo lentamente.

– Eu faço bem mais rápido que isso – provocou.

– Por isso que os fundos das panelas estão todos queimados.

Ela abafou a risada na curvatura das costas dele.

– Sei que você nunca percebeu, mas eu comprei um micro-ondas para a gente.

– Mas Raquel, as micro-ondas alteram o – 

– O alinhamento das fibras – ela completou arrancando uma risada dele. Ficou na ponta dos pés e depositou um beijo em sua nuca – eu sei, professor.

Foi em direção à mesa, já preenchendo as taças com o líquido tinto enquanto ele a acompanhava já servindo os dois.

Por mais que já tivesse jantado, Sérgio colocou uma pequena quantidade em seu prato apenas para poder acompanhá-la já que estava tão faminta que em apenas alguns instantes já haviam terminado. Ele buscou os turons na geladeira, que estavam já cortados do modo que a Raquel gostava e enquanto saboreavam, ela começou a falar:

– Cariño, preciso que você me conte mais sobre eles. 

– Ahhh – começou a procurar informações que ela ainda não soubesse – ... todos estão na América, Rio e Tóquio –

– Não esse tipo de coisa, mas sabe, os detalhes sórdidos.

– Detalhes... sórdidos?

Raquel começou a rir tanto da confusão em que ele se encontrava que quase se engasgou com a sobremesa. Quando o ar voltou para seus pulmões, conseguiu dizer:

– Sérgio, nunca ouviu aquele ditado: casal que fofoca junto, permanece junto?

– Ahhh – quando ele entendeu o que ela queria dizer, começou a passar a língua pelos lábios enquanto suas bochechas coravam.

– Digo.... eles ainda devem me ver como inspetora, sabe? – Fingiu apresentar argumentos – eu preciso conhecê-los bem para tentar contornar a situação.

Ele revirou os olhos fingindo acreditar na explicação e os dois riram.

Não era a primeira vez que fofocavam. Obviamente.

– Rio quebrou um dente e precisou fazer restauração e o dentista descobriu que era um dente de leite!

– Mentira! Na idade dele? – Raquel comia o doce enquanto comentava incrédula.

– Sim, claramente é um caso super raro de acontecer.... Eles já têm uma certa diferença de idade, imagine se a Tóquio descobre que ele ainda tem dente de leite – tentou reprimir o riso.

– Já ia devolver para a creche – arrancando a risada dele.

– E o transportador da Estocolmo falou que ela ia chamar a criança de Ricardo caso nascesse do sexo masculino em homenagem ao nome do Denver....

– Mas ele não se chama Daniel?

– Aí que está! Ele mentiu durante o assalto e ela só descobriu depois de semanas. Ficou tão brava que combinaram que eles só escolheriam um nome de cidade.

E passaram horas assim. Com ele explicando todos seus achismos, ela compartilhando o que se lembrava deles durante o assalto e desse modo criavam em suas mentes diversos cenários de como seria aquele reencontro. Aquele friozinho bobo na barriga de apresentar a primeira namorada aos pais que ele nunca teve a oportunidade de experimentar, veio com tanta força que às vezes ele segurava na mão de Raquel apenas para confirmar que ela era real, que a vida que levavam juntos era real, que aquela viagem era real.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...