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História Walking Men - Wayfaring stranger


Escrita por: caulaty

Notas do Autor


Algo que eu esqueci de mencionar nas notas do capítulo anterior: as músicas utilizadas não necessariamente correspondem ao tempo real em que elas foram escritas. Algumas das músicas não existiam ainda no ano em que a história se passa, mas eu tomo a liberdade poética de usá-las. Espero que isso não seja um incômodo!

Cowboy man - Lyle Lovett
Wayfaring stranger - Johnny Cash (embora eu recomende a versão de The Broken Circle Breakdown para a leitura do capítulo)

Espero que gostem, boa leitura :)

Capítulo 2 - Wayfaring stranger


Não era que Kyle particularmente desgostasse de Nashville. Ou das pessoas que ali moravam. Ou da comida que eles preparavam. Ou da forma como se vestiam. Não era que ele tivesse algo contra o modo de viver daquele lugar, daquelas pessoas. Também não era que Kyle não gostasse da casa onde vivia agora.

Era uma bela casa, absolutamente nada de errado com ela, talvez com exceção do cheiro de mofo no sótão. Mas quanto tempo ele passaria no sótão, de qualquer forna? Era uma construção linda de tijolos azulados, quase cinzas, com muitas janelas brancas que garantiam uma iluminação ampla, cercada por árvores grandes e um quintal florido por azaleias brancas, arbustos sadios, um caminho de flores que levava até o fim da propriedade. E um terreno imenso onde seu pai reestruturava a sua fazenda. Por dentro, sua mãe fizera questão de decorar o lugar com o mesmo charme texano que havia na antiga casa, ainda que substituindo boa parte dos móveis por outros que considerasse mais “clássico” e menos “rústico”. Ela escolheu cortinas e estofados e almofadas com estampas em azul claro e bege, mantendo os abajures gigantescos da vovó espalhados por toda a sala, pendurou um lustre no teto e vasos de flores falsas. Em cima da lareira, um espelho antigo. Sheila mandou que colocassem papeis de parede em todos os quartos e encheu os cômodos de quadros, a ponto de ser difícil espalmar uma mão aberta na parede, tamanha era a quantidade de adornos.

Sheila Broflovski era o próprio estereótipo de mulher sulista gorda e barulhenta. Gerald Broflovski era um fazendeiro orgulhoso, dono de muitas terras, com um olho afiado para ganhar dinheiro e pagar pouco aos seus empregados. Kyle ainda tinha um irmão mais novo estudando em um internato na Suíça, de quem recebia cartas quase mensalmente. Seus pais haviam percebido desde muito cedo que Ike era intelectualmente extraordinário demais para continuar morando em uma fazenda, sem atingir todo o seu potencial na área das ciências biológicas, diferente do filho mais velho, perfeitamente medíocre. Apesar disso, Kyle estava feliz por ele. Desde criança, Ike estava sempre caçando sapos e folhas para entender do que eles eram feitos.

Enquanto isso, Kyle estudava bacharelado em História, com um interesse específico voltado para as artes. Ele não estava muito empolgado em continuar o curso na Universidade de Vanderbilt, que parecia ser o melhor que Nashville tinha a oferecer. Isto é, o melhor que o aceitaria. Mas Kyle não odiava a universidade. Não odiava as pessoas, não odiava a casa, não odiava Nashville.

Kyle odiava ter deixado Houston para trás. Odiava ter deixado para trás a universidade na qual já havia construído projetos e conquistado o respeito das pessoas certas, odiava ter deixado para trás os amigos, as pessoas que foram parte de quem ele havia se tornado enquanto jovem adulto, odiava ter deixado para trás o quarto de infância, pois crescera naquela casa, todas as suas lembranças de vida foram lá. Token prometera escrever, Gregory prometera escrever, visitar até, mas Kyle sabia como essas coisas funcionavam. Eles se esqueceriam dele eventualmente. E odiava, acima de tudo, a razão disso tudo. Seu pai podia negar o quanto quisesse, Kyle sabia muito bem que se mudar com seus pais não havia sido uma escolha. E ser do jeito que Kyle era também não parecia uma escolha, mas ele não podia evitar um pouco de autoflagelação emocional. Sentia que estava sendo castigado por não ter sido discreto o bastante.

De qualquer forma, ele já estava se acostumando com a rotina daquele lugar. Os galos cantavam pontualmente 5h30 da manhã todos os dias, ele rolava na cama até as 6h, levantava-se para tomar banho e gastar pelo menos 20 minutos tentando domar o cabelo, uma das características principais que ele não gostaria de ter herdado de sua mão, junto com mais um bocado de coisas. Estavam morando lá há dois meses quando Kyle começou a gostar de verdade do ar fresco de Nashville. Ele tinha tempo o bastante para se dedicar às atividades da mente. Estudava o dia inteiro, pegava todas as atividades extraclasse possíveis, gostava dos professores, não gostava particularmente dos alunos. As pessoas naquele lugar eram extremamente bondosas, um pouco demais para o seu gosto. À noite, praticava o piano e o violino em frente à janela do seu quarto, com uma vista tão bonita para as plantações. Havia um cartão postal de Gregory sobre sua escrivaninha, virado para baixo há mais de uma semana, que Kyle ainda não havia respondido.

“Gostaria de te ver”, era o que estava escrito em uma caligrafia impecável.

Fazia tempo que ele não cantava. Desde a mudança, o mais próximo que fazia era murmurar palavras ao tocar o piano, mas assim que sua mãe dizia que ele tinha uma linda voz, Kyle perdia a vontade. Talvez, ele realmente precisasse de uma quebra de rotina.

Foi assim que Kyle foi parar naquele bar novamente. Da primeira vez que esteve ali, não chegou a entrar. Seus pais quiseram sair para ver as festividades do quatro de julho, mas Kyle acabou se separando deles para caminhar pela cidade porque tivera uma briga violenta com sua mãe aquela manhã. Na noite em que retornou ao bar vagabundo, dessa vez decidido a entrar, as ruas já não estavam tão cheias e era muito menos claustrofóbico existir. Ele podia ouvir o som de música ao vivo antes de colocar os pés na varanda do estabelecimento, mas de fora, não parecia tão lotado também.

Ao empurrar a porta, a melodia se tornava muito mais alta, junto aos sons de vidro batendo, copos brindando e pessoas andando de um lado para o outro, dançando ou sentadas, conversando ou assistindo aos músicos com aquele balanço sutil de ombros das pessoas que não sabem dançar. Kyle franziu a testa, olhando em volta. Era um lugar apertado, as mesas vazias tinham manchas úmidas de copos e guardanapos amassados, como se alguém tivesse acabado de se levantar dali. Não era exatamente bem cuidado. Dentro, fazia um calor muito diferente da brisa fresca que soprava do lado de fora. Mas era um tipo bom de calor, do tipo que fazia falta a ele.

 

She wore glass slippers
She held her head up high
She had that sparkle at her feet
And that twinkle in her eye

 

A atenção de Kyle finalmente se voltou para o pequeno palco. Havia algumas cabeças cobrindo sua visão, visto que era um palco muito baixo, poucos centímetros acima do chão. A acústica não era boa, mas havia algo de tão contagiante acontecendo que ele caminhou entre as pessoas sem perceber, desinteressado em se sentar. Ele queria um copo gelado de cerveja, qualquer outra coisa que inebriasse um pouco os sentidos para que fosse para casa dormir o sono dos justos, ainda que fossem só nove da noite.

Kyle parou de andar, franzindo a testa para a imagem dos dois rapazes jovens no palco. Estavam sentados em banquetas muito vagabundas, uma estrutura precária e improvisada de última hora, mas os sorrisos em seus rostos eram tão largos. Kyle pensou, por um instante, que o rosto do rapaz que cantava era familiar. Era algo naquele sorriso meio vagabundo, um dente faltando no fundo da boca, uma aparência tão despreocupada, Kyle sabia que o conhecia de algum lugar. Era um garoto loiro e bastante alto, os braços fortes de trabalhar debaixo do sol escaldante, por mais magro que ele fosse. Tinha olhos azuis reluzindo contra a iluminação precária sobre o palco – aquilo nem deveria ser chamado de palco -, e foi ali que Kyle reconheceu o rosto. Ele tinha o nariz um pouco torto, como se tivesse sido quebrado um dia e nunca se curado propriamente. Segurava uma gaita com as duas mãos e batia o pé no chão no mesmo ritmo com que o outro rapaz tocava o violão. Aquele… Aquele rosto também não parecia estranho. O garoto loiro não era particularmente bonito, mas radiava uma energia tão forte que era difícil tirar os olhos dele. O outro tinha aquele tipo de rosto esculpido por anjos.

 

She smiled at me
And I wondered why
She said I'm looking for a cowboy
To take me for a ride

 

Kenny pareceu fazer contato visual com ele por um segundo. E, se Kyle não estivesse alucinando, ele alargou o sorriso. Kyle olhou em volta, uma ruga se formando novamente entre as sobrancelhas, como se ele não tivesse certeza de que aquele homem estava sorrindo para ele. Ele era esquisito demais, disso Kyle tinha certeza, mas a sua presença no palco era cativante demais para que Kyle pudesse desviar os olhos. Talvez fosse o efeito daquela música, especificamente, tão nostálgica aos seus ouvidos texanos. Kyle se aproximou mais do palco, rindo sem se dar conta, porque o homem loiro cantava dançando com os ombros e os pés, mesmo que estivesse sentado.

 

And he can rope me on the prarie
And he can ride me on the plain
And I will be his Cinderalla
If he'll be my cowboy man

 

No refrão, o outro rapaz que tocava o violão também cantou com ele, um sorriso bastante tímido em seus lábios, as órbitas dos olhos azuis tentando fugir das pessoas que assistiam. Kyle olhou em volta por um instante, percebendo uma moça mais jovem muito próxima do palco, extremamente empolgada. A música tinha um efeito em cada pessoa daquele bar, do tipo que dificulta muito manter os pés parados, e não era incomum encontrar aquele brilho quase lascivo nas garotas do bar, especialmente pelo frescor e os hormônios da adolescência, mas havia algo diferente a respeito daquela moça. Ela tinha cabelos loiros e cacheados curtos o bastante para expôr sua nuca, perfeitamente bem cuidados. Usava um vestido branco com finas listras pretas, horizontais na saia rodada e verticais na parte de cima. A gola cobria parte do seu pescoço, todos os pequenos botões fechados até em cima. A empolgação dela era diferente, mais íntima. O rapaz do violão sorria muito para ela, de uma maneira que quase fez Kyle sorrir também.

 

She said I've got a 40-gallon stetson hat
With a 38-foot brim
We could dance around the outside baby
'Til we both fall in

And you can rope me on the prarie
And you can ride me on the plain
And I will be your Cinderalla
If you'll be my cowboy man
 

Kyle observou apenas o pé do loiro com a gaita, como ele batia o pé esquerdo na madeira escura do pequeno palco no ritmo constante da batida da música. Ele usava sapatos em um tom azul claro, a sola descolando, extremamente sujos. Havia buracos para os cadarços, mas nenhum cadarço. Ele não usava meias. Kyle também ouvia palmas, que confirmou ao subir o olhar pelas pernas magras do homem. Ele usava uma jaqueta jeans muito clara, as mangas dobradas até o cotovelo, uma camisa branca estampada por baixo. Havia furos na roupa dele, a calça tinha marcas como se ele tivesse caído e ralado os joelhos, ou tentando escalar um muro enquanto a vestia. Uma coisa Kyle precisava admitir: aquele homem era um intérprete. As expressões em seu rosto sempre variavam com aquilo que ele dizia. Em algumas passagens da letra, ele até arriscava um sotaque texano extremamente falso que teria ofendido Kyle em outras circunstâncias, se não o fizesse rir. Mas fez. E Kenny viu que fez.

No momento do solo do violão – Kyle preferiria que fosse um banjo – o loiro abaixou a cabeça, os cabelos sujos cobrindo seu rosto, as mãos jamais parando com as palmas. Ele suava.

 

Now I ain't never been no cowboy
But heaven knows I try
'Cause I'll be riding tall in my saddle
With that Cinderalla by my side

And I can rope her on the prarie
And I can ride her on the plain
And she will be me my Cinderalla
If I'll be her cowboy man

 

Ao levantar a cabeça para cantar os dois últimos versos, Kenny estendia o dedo indicador para o teto como se dissesse algo importantíssimo, os lábios se aproximando de forma macia do microfone, seus olhos azuis reluzindo antes de se fecharem, porque ele estava em um pequeno transe. Kyle conhecia muito bem aquela sensação, a sensação do ápice de uma música, a aproximação do final, a energia que tomava conta de cada célula. Ele não havia se dado conta do quanto sentia falta disso até então. Toda a necessidade que antes havia de colocar álcool em seu sistema parecia ter desaparecido. Ele se percebia cantando junto, isso parecia suficiente.

As últimas palavras exigiam um sustento vocal que Kyle não pensou que aquele homem tivesse, mas estava enganado. Não havia técnica, ele respirava nos momentos errados, mas nada disso era mais perceptível do que a força daquela voz preenchendo o ambiente. Ele era bom, bom de verdade, bom o suficiente para contagiar a maior parte daquelas pessoas bêbadas que aplaudiam e assobiavam quando a música cessou. Kyle passou alguns segundos observando os dois rapazes se levantarem dos bancos; o de cabelos negros apoiou o violão contra a parede, segurando o banquinho com as duas mãos para tirá-lo do palco, mas não sem antes sorrir para o público e inclinar um pouco a cabeça em agradecimento. O outro… Como ele se chamava? Ele chegou a dizer o nome no encontro breve que tiveram? Kyle tinha a ligeira impressão de que sim. De qualquer forma, ele sorriu para as pessoas que já começavam a desviar a atenção para conversas paralelas e disse, ao microfone:

-Muito obrigado.

Só então, Kyle começou a aplaudir também. Enquanto Stan começava a recolher os outros instrumentos, Kenny secava o suor da testa com as costas da mão e descia do palco, olhando na direção do ruivo, fazendo um pequeno aceno com a mão. Kyle ainda não tinha certeza de que aquilo era direcionado a ele até que o loiro começou a se aproximar, usando um sorriso largo que mostrava quase todos os seus dentes.

-E aí? - Ele disse ao chegar perto o bastante, cumprimentando Kyle com um tapa amigável no ombro. - Se não é o menino de Houston. Você veio só pra assistir a gente?

-Você não me disse que cantava.

-Você não perguntou. - Kenny respondeu, a qualidade do sorriso mudando um pouco de gentil a provocador, ao mesmo tempo em que ele coçava atrás da orelha. - O que achou?

-Vocês são muito bons. - Kyle disse, e Kenny sempre se lembraria daquelas palavras como a primeira coisa gentil que Kyle lhe disse na vida, por mais que tenha soado como uma opinião honesta e não uma intenção de elogio.

Durante alguns segundos, Kenny não respondeu. Colocou as duas mãos nos bolsos da parte de trás da calça e assentiu com a cabeça algumas vezes, um sorriso um pouco constrangido nos lábios, como se ele não tivesse certeza do que dizer em seguida. Kyle não se afetou pelo silêncio.

-Ei, se você quiser esperar um pouco, a gente só vai levar as coisas pro carro. Depois disso, você pode tomar com a gente aquela cerveja que você ficou me devendo.

“Eu não fiquei te devendo merda nenhuma”, foi a primeira coisa que passou pela cabeça de Kyle, mas esse pensamento não chegaria a se transformar em palavras. Talvez fosse por esse tipo de coisa que ele tinha tanta dificuldade em fazer amizades naquele lugar. Em vez disso, Kyle forçou um sorriso e afirmou com a cabeça.

-Claro. - Kyle disse, e assistiu enquanto Kenny se virava para ajudar Stan com os instrumentos, tirando a jaqueta para deixá-la sobre uma das cadeiras vazias, os músculos das costas largas se movimentando por baixo do tecido fino daquela camisa. Por um momento, os lábios de Kyle se partiram, as palavras saindo sem que ele pensasse sobre. - Você quer ajuda?

Kenny virou para enxergá-lo por cima do ombro, parecendo um pouco surpreso. Mas uma expressão satisfeita se esboçava em seu rosto enquanto ele balançava a cabeça.

-Se você não se importar.

 

Kyle Broflovski conheceu Stan Marsh oficialmente próximo à caminhonete azul de Randy, pai de Stan, que emprestava ao filho quando a necessidade se apresentava. Stan cuidava melhor daquela caminhonete do que o próprio pai. Ele a herdaria no verão de 1960, mas ainda não sabia disso. Olhando para Stan, a primeira impressão de Kyle foi a de que ele era um típico rapaz de interior, um trabalhador esforçado que pouco reclamava, que pouco falava de forma geral, mas que tinha um aperto de mão tão gentil, apesar das mãos calejadas. Era um pouco tímido, mas bonito demais para o próprio bem, ainda que não soubesse disso. Não sabia se vestir, tinha a postura ruim, um corpo grande e forte que não combinava com a doçura de seus olhos. Ele colocava um banjo na carreta da caminhonete com todo cuidado do mundo enquanto Kenny e Kyle carregavam uma caixa de som, cada um segurando de um lado.

-Muito prazer. - Stan disse, apertando a mão de Kyle quando ele já não segurava mais a caixa de som. Kyle sorriu para ele.

-Igualmente.

-Você é amigo do Kenny?

-Mais ou menos isso. - Kenny respondeu, fechando a carreta com força. - Eu preciso muito de uma cerveja, cara.

Lá dentro, eles se sentaram em uma área com um sofá baixo de madeira, estofado de couro de vaca. Havia também duas pequenas poltronas e uma mesa baixa, que mais se parecia com uma mesa de café, onde Kenny apoiou os dois pés e gemeu aliviado. Já havia uma garrafa de cerveja bem ao lado do seu pé direito, aberta. Stan se sentou ao lado dele, descansando a própria long neck na coxa. E, junto com Stan, a moça de cabelos loiros e vestido listrado que Kyle reconheceu de antes. Ela havia sido apresentada como Annie Knitts, uma menina de recém feitos dezoito anos, com dentes pequenos e tortos, olhos grandes de boneca, uma delicadeza em tudo que falava e dizia. Tinha braços muito finos, uma beleza particular que não era muito atraente para Kyle. Mas ela era gentil, tinha uma voz rouca e bonita, gostava de fazer piadas. Pelo que Kyle havia entendido, eles namoravam há três anos, estavam noivos há um e pretendiam se casar em setembro do ano seguinte, mais ou menos quando ficaria pronta a casa que Stan estava construído junto com seu pai.

Os dois faziam um casal interessante. Ela falava demais, ele de menos. Ela ria alto, ele tinha um sorriso tímido. Mas não pareciam tão diferentes assim, os dois tinham a mesma bondade nos olhos e pareciam querer exatamente as mesmas coisas da vida, nada grandioso, nada ambicioso, tudo muito ao alcance das mãos. Kyle gostaria de saber como era se sentir dessa forma.

-De onde você é mesmo? - Annie perguntou, esticando a mão para tocar o joelho de Kyle, que estava sentado na poltrona. - O seu sotaque é diferente.

-Texas. - Kyle respondeu, podendo ouvir em sua voz que já estava ficando embriagado. Não sabia que horas eram, e não se importava, particularmente. - Houston.

--Ah! Olha só, eu tenho família lá. Os meus primos em segundo grau todos moram em Houston.

Kyle não sabia se considerava seus primos em primeiro grau como “família”, quem dirá em segundo. Ele bebeu mais um gole da cerveja, erguendo as sobrancelhas para demonstrar interesse.

-E o que te fez se mudar pra cá? - Stan perguntou, descansando o braço em volta dos ombros de Annie.

-Os negócios do meu pai. - Kyle mentiu sem hesitação, encolhendo os ombros. Seus olhos vagaram pelo chão por um instante, os dedos apertando em torno da garrafa de vidro.

-Kyle não gosta de Nashville. - Kenny disse com um sorriso malicioso, provavelmente porque sentiu no ar que uma brincadeira se fazia necessária.

-Não é que eu não goste daqui, eu só gosto mais de Houston.

-Deve ter sido difícil se mudar, deixar todo mundo que você conhecia pra trás. - Annie comentou com empatia na voz. - Você tinha uma namorada lá?

Kyle negou com a cabeça, umedecendo os lábios, sem olhar para ela. Agora, ele também tinha os dois pés apoiados na beirada da mesinha, a garrafa de cerveja descansando sobre sua barriga.

-Não, sem namorada.

Durante alguns segundos, o assunto pareceu morrer. Kenny tirou os pés da mesinha de repente, firmando-os no chão, as pernas bem separadas. Inclinou o tronco para frente, a língua passando sobre o lábio superior rachado, apontando a garrafa na direção de Kyle ao perguntar:

-E você toca?

-Ah. Sim, eu toco piano e violino.

As sobrancelhas loiras de Kenny se ergueram. Ele e Stan trocaram um olhar breve, os dois rindo baixo.

-Violino, é mesmo?

-Kenny sempre diz que falta um violino em tudo que a gente toca. - Stan disse.

-É? - Kyle perguntou, sorrindo sem saber ao certo porquê. - Eu tenho praticado bastante, mas sempre sozinho. - Ele fez uma pausa para beber. - Eu gosto mais de cantar, na verdade. - Seus olhos verdes se voltaram a Stan. - Você não canta?

Stan encolheu um pouco o nariz enquanto balançava a cabeça negativamente, mas Annie se agarrou ao braço dele para intervir.

-É claro que canta! Ele só não gosta muito de público, mas a voz dele é linda.

-É, eu ouvi só nos refrões. - Kyle disse. - Mas você canta muito bem.

-Ei, por que você não canta pra gente? - Kenny perguntou ao ruivo, deixando a garrafa de cerveja sobre a mesa para esticar o braço e alcançar o violão encostado na lateral do sofá, o único instrumento que não levaram para o carro, justamente porque sempre tinham vontade de tocar quando ficavam bêbados.

-Sim, sim! - Annie disse com um sorriso largo, unindo as mãos. - Eu adoraria ouvir.

Kyle fez uma cara de reprovação imediata, mas acompanhada de um riso baixo enquanto Kenny ajeitava o violão no colo de forma bastante insistente. A risada ganhou espaço pela maneira com que o loiro levantou a cabeça e o encarou com um sorriso de expectativa, como se perguntasse: “e aí, o que eu vou tocar?”, mas sem dizer nada.

-Agora? – Kyle perguntou.

-E tem hora melhor do que agora?

Ele ainda resistiu com o olhar durante sólidos trinta segundos antes de respirar fundo, ajeitando a postura, sentando-se na beirada da poltrona, separando um pouco mais os pés. Limpou a garganta, sentindo-se bêbado demais para fazer isso, e especialmente desconfortável por fazê-lo na frente de estranhos, embora não houvesse julgamento nos olhos daquelas três pessoas.

-O que você quer que eu cante?

-O que você quer cantar?

“Eu não quero cantar”, foi a resposta que Kyle segurou dessa vez, pressionando a língua por dentro da bochecha para pensar em alguma música cuja letra ele se lembraria por completo. Enquanto ele pensava, Kenny passava as pontas dos dedos pelo violão delicadamente como se precisasse ganhar familiaridade, brincando com alguma melodia, mordendo o lábio inferior de tão concentrado.

-Você gosta do Cash? - Kenny perguntou, as órbitas dos olhos azuis rolando pela cavidade como se ele buscasse algo na memória, os lábios murmurando alguma coisa.

-É claro que eu gosto do Cash. - Kyle respondeu, soando quase ofendido.

-Você consegue cantar essa? - Kenny perguntou quando encontrou o movimento certo dos dedos pelas cordas, e Kyle passou alguns segundos com as sobrancelhas franzidas antes de reconhecer a música, assentindo com a cabeça.

-Claro.

Kenny fechou os olhos durante alguns segundos. As vozes do bar pareciam distantes, já estava ficando tarde e muitos dos bêbados já tinham ido embora. Kenny parecia entrar em algum tipo de transe, tocando em uma versão mais lenta do que a original. Kyle precisou abrir os ouvidos durante algum tempo, sentindo a melodia nas pontas dos dedos.

-Eu amo essa música. - Annie sussurrou no ouvido de Stan, mas ele estava distraído demais para ouvir, observando o momento de conexão que se instalava à sua frente.

 

I'm just a poor wayfarin' stranger,
While travelin' through this world below.
Yet there's no sickness, no toil, nor danger,
In that bright land to which I go.
I'm goin' there to see my Father.
And all my loved ones who've gone on.
I'm only goin' over Jordan.
I'm only goin' over home.

 

Tudo pareceu ficar tão devagar de repente. Stan mal percebeu quando inclinou a cabeça para o lado levemente, os olhos pesando, mas não querendo fechá-los para que a imagem daquele garoto não desaparecesse. Stan enxergava o perfil dele, aqueles cabelos ridiculamente vermelhos e armados, as linhas duras de seu rosto, a dor em seus olhos quando ele cantava. Stan jamais se esqueceria da primeira vez que ouviu Kyle Broflovski cantar. Alguma coisa nele se transformava; como se, o tempo todo que interagira com aquele rapaz antes disso, Kyle estivesse usando uma armadura ou máscara de alguma natureza, mas agora, ele estava exposto. Era difícil respirar ao vê-lo daquela maneira. Talvez Stan apenas estivesse bêbado demais, mas quando lançou um olhar breve a Annie, que havia tomado apenas uma garrafinha de coca-cola, ela tinha os olhos marejados. Stan franziu a testa, mas um sorriso sutil queria aparecer em seus lábios.

Era uma voz doce, e ao mesmo tempo, não era. Havia passagens tão delicadas, tão finas que quase acariciavam o rosto de quem escutava, mas também havia momentos em que a expressão de Kyle se tornava tão pesada quanto a própria voz. Stan percebeu que ele passava os dedos finos pelo tecido da calça bege que usava, e os dedos faziam um movimento sobre o tecido grosso, querendo apertá-lo, mas não chegaram a isso.

Kenny fez um movimento com a cabeça para tirar os fios de cabelo que caíam diante dos olhos, o que expôs bem a silhueta do pescoço, o gogó e os músculos que encontravam as clavículas, tombando a cabeça para trás por um segundo. Quando voltou a encarar Kyle, seus lábios se moviam, sussurrando a letra da música, mas sem som. Essas palavras só ganharam tonalidade nos próximos versos, momento em que a voz grosseira de Kenny se uniu a ele em um tom muito mais baixo, pedindo permissão para entrar.

 

I know dark clouds will gather 'round me,
I know my way is hard and steep.
But beauteous fields arise before me,
Where God's redeemed, their vigils keep.

 

Kenny começou a sorrir. Seus olhos azuis não paravam de se mover, ainda que os movimentos fossem curtos, perambulando por diferentes espaços da imagem de Kyle sentado naquela poltrona, encarando a mesinha, sem olhar para ninguém. Stan sabia que Kenny estava enxergando a mesma coisa que ele, talvez um pouco mais além. Porque Kyle tinha aquela figura tão composta, tão arrogante, mas era tão fácil se esquecer disso enquanto ele estava cantando. Ele parecia frágil. Tinha uma técnica vocal impressionante, era perceptível também que ele não havia cantado apenas por diversão como os outros dois fizeram desde moleques, alguém o havia ensinado como fazer isso. A voz de Kenny sempre vacilava nos versos finais daquela música, ele simplesmente não sabia como sustentá-la, mas Kyle o fazia com uma facilidade inacreditável.

 

I'm goin' there to see my Mother.
She said she'd meet me when I come.
So, I'm just goin' over Jordan.
I'm just goin' over home.

I'm just goin' over Jordan.
I'm just goin' over home.

 

Era uma voz poderosa, que preenchia cada espaço vazio daquele lugar. Desde aquele primeiro momento, Kenny entendeu que Kyle nunca cantava de brincadeira. Talvez ele nunca fizesse nada de brincadeira. Quando os dedos de Kenny produziram os últimos acordes, ele abriu um sorriso e observou o outro. Kyle manteve a cabeça baixa durante alguns instantes, enchendo os pulmões de ar e liberando logo em seguida, o peito subindo e descendo. Ao erguer a cabeça, Kyle encontrou a profundidade daqueles olhos azuis que o encaravam com algo que Kyle não era capaz de reconhecer. Era admiração. Ninguém disse nada durante um bom tempo, enquanto Annie aplaudia empolgadamente. Isso fez Kyle rir, um riso tímido e verdadeiro que estaria sempre marcado na memoria de Kenny McCormick.



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