Nascido em Kaer Morhen
Nascido sem amor
A música do Lobo Branco é fria como a neve
Não olhe para ele,
Para que não haja aço ou prata
Não encoste o peito contra ele
Ou os lábios para aliviar o rugido
Pois a música do Lobo Branco
Será sempre cantada sozinha
The Song of the White Wolf — The Witcher
➳
Hunedoara, Império Austro-Húngaro
11 de Fevereiro de 1819
Rhuan não sabia muito bem em onde prestar atenção primeiro, se no lobo enfurecido que estava montando ou se na horda de vampiros engolindo o líder dos Frankestein do outro lado da doca. Charles acabou deixando ele e Pandora a cargo do lobo, para impedir Lily de fazer alguma coisa idiota que ela provavelmente acabaria fazendo.
E Rhuan aceitou isso rapidamente como uma solução para aquele momento. Não podia e não ia se preocupar com Lily agora. Charles cuidaria disso. Ele tinha um lobo em sua frente para dominar. Pandora tinha enlaçado o pescoço da fera com o laço, mas isso não parecia ser o bastante para o acalmar. A fumaça preta saía lentamente da arma, e Rhuan se perguntou se o encanto estaria perdendo o efeito. Isso não seria nada bom. As proteções ainda estavam baixas. Talvez um deles devesse subir e cancelar a coisa toda antes da situação piorar e ser tarde demais.
Mas Rhuan mal teve tempo de pensar nisso antes do “tarde demais” acontecer. Ele ouviu um uivo forte e agudo e olhou preocupado para Pandora e o lobo abaixo de si, mas o som não saíra dele. Então ele olhou para o lado.
O monte de vampiros acumulado sobre Alban Frankestein se desfez, de repente, surgindo sob eles um enorme lobo cinzento coberto de sangue em algumas partes. Rhuan deixou o queixo cair. Tinha se esquecido. Alban tinha se transformado em lobo uma vez, poderia muito bem acontecer de novo. E, bem, ali estava. Aconteceu. O lobo era tão grande quanto o montado por Rhuan, e por um instante, o caçador sentiu um alívio enorme.
Alban estava vivo. Ele viu Lily relaxar sob o aperto firme de Charles, enquanto assistiam o lobo morder um vampiro atrás do outro e o atirar de volta para as chamas. O filho da mãe… Tinha conseguido assustar todo mundo. Isso lá era coisa de se fazer? Bom, tudo bem, para a esposa dele ter ficado tão surpresa, era provável que a intenção dele fosse mesmo se sacrificar debaixo de um monte de vampiros mas, o importante agora era Alban estar ali, em forma de lobo, nas docas.
O que significava que haviam dois lobos nas docas.
— Oh-oh…
Rhuan não teve tempo de reagir. Ele viu Alban atirar o último vampiro para a parede de fogo e se virar para o lobo. Pandora soltou o laço e saiu correndo na direção oposta, mas Rhuan não conseguiria saltar a tempo nem se quisesse. O Frankestein se atirou contra o lobo, e o impacto fez Rhuan sair voando do lobo do animal e aterrissar de costas nas águas rasas das docas.
O caçador estremeceu com o contato com a água gelada de inverno. Ele se levantou do riacho, tremendo de frio e se apoiando na madeira das docas para se colocar de pé. Trêmulo, ergueu os olhos para ver a luta tomando parte entre os lobos, e se sentiu mais desesperado ainda. Alban e o outro lobo voavam ao pescoço um do outro, se mordiam, se jogavam contra a parede… Era uma verdadeira luta selvagem, parecia com uma briga de lobos pelo título de alfa em uma matilha. Essas brigas não acabavam muito bem para o perdedor. Os latidos dos dois eram altos e estridentes, e a forma como eram repetidamente atirados contra as paredes das docas não estavam dando muita segurança no local.
Rhuan respirou fundo. Precisavam de uma estratégia, ou iam acabar mortos como dano colateral daquela briga. Tinham de trazer os dois de volta ao normal, e antes das proteções subirem novamente. Com as proteções ultra reforçadas que os Van Helsing usavam agora, não sabia o quão danoso seria para um monstro ficar ali dentro, e não queria descobrir agora.
— Ei! — Ele gritou, caminhando até os outros três, pingando água no chão e ainda tremendo um bom bocado. — Temos que acalmar eles!
— COMO? — Lily, agora completamente histérica e furiosa, estava muito vermelha e apertava a faca na mão com força o suficiente para estar com os nós dos dedos completamente brancos. — Só se dermos na cabeça dos dois para apagarem! Meu deus, como o Alban é um idiota, eu MATO ele quando voltar ao normal!
O Flores tentou não suspirar. Não entendia esse jeito dos Frankestein de ir do amor à frustração em segundos, e não era logo agora o momento de tentar entender.
— Você e Dora cuidam do Alban. Você o conhece, deve ter mais sucesso com isso. Charles me ajuda com o outro. Vai dar tudo certo, mantenham o foco. Dora e Charles imobilizam, Lily e eu fazemos a parte de acalmar. E vamos manter os dois longe um do outro. Entendido?
Os três concordaram, e Rhuan viu um sorriso de canto se pronunciar no rosto de Charles. E mais essa agora?
— O que foi, Charles?
— Você. Liderando. Leti tinha razão, você leva jeito pra isso.
Rhuan abriu a boca, mas não respondeu nada, pois nesse instante o lobo-Alban mordeu as costas do lobo desconhecido e parecia prestes a jogá-lo na parede. Alban era um bocado maior, sendo o outro lobo bem magro e franzino. Se conseguissem resolver com o lobo primeiro, talvez pudessem ajudar as garotas.
— Vamos, agora!
Rhuan viu Pandora puxar o laço de volta mas não ficou dando atenção aos detalhes da estratégia dela com Lily, tendo seu próprio lobo para cuidar. Charles correu, saltando e dando uma chave de pescoço no lobo, insistindo em puxá-lo para baixo. Então Rhuan se aproximou do animal.
Usualmente, tentaria conversar com ele. Dizer que estava tudo bem, que ia tudo ficar bem em breve, que ele só precisava se acalmar. Não tinham esse tempo agora. Engolindo em seco, Rhuan tirou um rosário do bolso, o mesmo usado em Menorca para atacar os fantasmas. Não sabia se funcionaria ali, mas imaginava ser uma ideia melhor.
Ele espalmou a cruz na mão, aproximando do pescoço do lobo e pousando a mão ali.
O animal se contorceu. Névoa começou a escapar do local na mesma frequência que as armas soltavam antes, quando a magia ainda estava nova nelas. O lobo uivava e se mexia de um lado a outro, Charles tentava plantar os pés no chão para manter o animal mais ou menos imóvel e Rhuan continuava sua luta, com a mão firme ali, vendo a névoa escapar e escapar para o ar.
— Está tudo bem… — ele murmurou, também se esforçando para manter o contato firme ao animal. — Fique calmo, está tudo bem, vai passar, por favor…
A névoa continuava voando para o ar, intensa e firme, e o lobo não parava de se contorcer. Mantê-lo no lugar era como tentar montar um touro em uma tourada espanhola.
— Calma cachorrinho, calma… — Charles comentava, tendo os pés tirados do chão por vezes pelas investidas loucas do animal.
Rhuan começou a recear que sua estratégia de usar a cruz fosse se provar ainda mais infrutífera que os métodos tradicionais. Ele arriscou um olhar para trás, e viu Pandora segurando Alban pelo pescoço com o laço, enquanto Lily tinha aproximado o rosto do lobo e murmurava, olhando em seus olhos. O lobo estava com as patas traseiras jogadas sobre o chão de um jeito estranho, como se não tivesse forças para ficar de pé. De uma forma ou de outra, o importante era que aquilo daria certo para os dois, certamente. Já tinham conexão emocional. O seu caso era outro.
O Flores se manteve firme, e Charles também. Firme com a cruz contra o pescoço dele, firme torcendo por dentro para aquilo funcionar… E eventualmente, os movimentos do lobo começaram a perder a energia. Ele passou a uivar mais baixo em vez de latir, a se mover com menos intensidade. Devagar, Charles conseguiu puxar o lobo para baixo, e o animal foi aos poucos se deitando no chão.
Ele arriscou mais um olhar para Lily, Pandora e Alban. O lobo se sentara como um cachorro e estava com a pata colocada contra a barriga de Lily, grunhindo bem baixinho e abaixando a cabeça. Tudo bem. Elas iam conseguir. E ele também.
Devagar, o lobo acabou deitando de vez a cabeça no chão. Rhuan manteve o rosário sobre o pescoço dele, esperando, até finalmente o lobo começar a encolher de tamanho.
Rhuan se afastou. Os pêlos do lobo foram sumindo, devagar, e a transformação começara a retrair seu curso. O marinheiro tirou o casaco de frio que vestia, o jogando sobre o corpo do lobo bem a tempo do restante das formas ferais desaparecerem e, enfim, haver apenas um homem deitado ali, gemendo de dor e imediatamente se agarrando ao casaco sobre o corpo. Ele murmurava uma coisa atrás da outra e rapidamente Rhuan percebeu ser em português.
— É de Portugal? — Questionou.
Não tinha o melhor domínio da língua, mas as similaridades com o espanhol e a enorme quantidade de viagens feitas para o país tanto antes quanto depois de se juntar aos Flores o tinha ajudado a entender muita coisa. O homem no chão apenas assentiu, mas não respondeu nada inteligível. Começou a tremer de frio, e Rhuan receou que fosse apagar a qualquer instante.
Ele olhou para trás, vendo Alban deitado no chão ainda em forma de lobo, com Lily acariciando sua cabeça.
— Temos que terminar isso logo — Rhuan comentou. — Veja se ele precisa de cuidados médicos, eu vou levar o terço até elas.
Charles concordou, pegando a bolsinha em sua cintura e se abaixando ao lado do português. Rhuan os olhou uma última vez quase receando o homem se transformar em lobo novamente, mas não podia dar tanta atenção a isso agora. Faltava Alban.
Rhuan foi até as duas e se abaixou ao lado de Alban, colocando o rosário no pescoço dele. O lobo uivou alto, se contorceu, mas não tentou se levantar. Lily manteve o carinho na cabeça dele, olhando para Rhuan com um olhar inquisitório.
— Eu fiz isso para destruir fantasmas uma vez. Aparentemente objetos religiosos afastam a névoa. Deu certo com o português ali atrás.
Lily franziu a testa.
— Português? Ele está bem longe de casa… Há quanto tempo será que se transformou?
Rhuan não sabia dizer. Eventualmente, Alban começou a reverter o processo de transformação também, e ele buscou o casaco de Charles para cobrir o homem.
Crise advertida. Isto é, se mais monstros não atravessassem a parede de fogo.
Nesse momento, Rhuan pensou, deveria mesmo haver algum Deus lá fora, pois poucos minutos depois uma onda de calor passou pelas docas, de dentro do castelo para fora. As criaturas apilhadas atrás da parede de fogo grasnaram e começaram a fugir para longe e, como logo ficou claro, a proteção estava mais uma vez erguida.
— Será que eles conseguiram? — Pandora perguntou, enrolando o laço devagar.
— Não sei — Rhuan respondeu. — Mas espero que sim. Por hora, talvez seja melhor sairmos logo daqui e levarmos os dois lá pra cima. Eles precisam vestir algo quente.
Nesse momento, Alban choramingou, agarrando o casaco de Charles.
— Eu… Eu não posso…
E mais essa agora… Tinha acontecido alguma outra coisa?
— O que foi, querido? — Lily questionou, fazendo um carinho nos cabelos loiros dele e olhando preocupada para os dois Flores à sua frente.
Charles parecia ter enfim se virado com o português, pois o jogara confortavelmente sobre os ombros e estava caminhando até os demais.
— D-Dói… E eu não sinto nada mais… Não sinto as pernas…
Rhuan prendeu a respiração. Ele trocou um breve olhar com Lily, e a mulher não precisou dizer nada. Teriam de analisar isso no andar de cima. Ele e o português obviamente estavam muito feridos e precisavam de cuidados. Não tinha motivo para se desesperarem ali.
— Tudo bem — Rhuan respondeu, se aproximando para jogar Alban sobre as costas como Charles fizera com o português. — Vamos te levar para cima e Aaron vai olhar isso para você, ok?
Alban não respondeu. Ele tinha desmaiado.
Lily agora estava completamente lívida.
— Bom — Pandora comentou, de repente. — Nenhum de nós morreu, nenhum monstro invadiu o castelo pelo nosso lado e, gosto de pensar, o feitiço acabou porque conseguiram encontrar a fantasma. É uma vitória, certo?
— Não até sabermos o que aconteceu lá em cima — Charles respondeu, ficando um pouco verde. — Alguém pode ter morrido.
— Apolo é esperto. Ele vai ficar bem — Rhuan comentou, começando a caminhar ao lado de Charles, os dois tomando o rumo para dentro do castelo. — E o da Vinci também. Imagino que isso também tenha passado pela sua cabeça.
Charles abaixou o rosto. Rhuan, que esperava uma risada ou sorrisinho como resposta para aquela provocação, ficou genuinamente surpreso com a reação do homem. Ele parecia mesmo preocupado e pensativo.
— Você deve me achar um idiota — Charles murmurou, começando a seguir as escadas com Rhuan em seu encalço.
Não. Rhuan conhecia os caminhos pérfidos do amor. Era uma locura só, e quase nunca chegava perto de fazer algum sentido real. Era só traição e facada, uma atrás da outra. Se amor fosse justo, estariam os dois juntos agora.
— Esqueça o que eu disse antes. Se você gosta dele, não custa tentar. Poderíamos ter morrido hoje, Charles.
— Mas…
— Não tem “mas”. Tudo bem, ele pode te achar estranho, talvez até nojento e te mandar embora. Mas não é melhor tentar e ter certeza em vez de passar a vida pensando no que poderia ser? Charles… Se eu tiver a sorte de me apaixonar, não vou esperar nem um segundo sequer. Nem meio instante. Nada. Não sabemos como o amanhã vai ser.
E era sério sobre isso. Por enquanto seu coração era livre. Mas se fosse tomado, Rhuan queria viver todos os segundos disso. Com quem fosse. Como fosse. E imediatamente.
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