O frio e o silêncio se fizeram um e apenas o som dos seus batimentos cardíacos ressoavam pelo corredor escuro e pequeno em frente ao elevador privado do apartamento. Com Lilian esperando do lado de fora. Era como se seu cérebro lutasse para mandar as sinapses corretas até seus lábios, mas ela nada conseguisse falar. Como uma paralisia. Engraçado seria se Lena não reagisse dessa forma, principalmente depois do seus último encontro com sua mãe, ou qualquer coisa que aquela mulher fosse e significasse para ela. Sendo sincera, nem a morena sabia o que pensar, do que chamá-la. Quando pequena, se martirizava o tempo inteiro por ter deixado a palavra mãe sair tão precocemente, tão fácil, sem nem esperar o corpo frio da mulher que lhe deu a vida apodrecer em alguma cova.
Se punia constantemente por não ter sentido um pingo de dor ao pronunciá-la, por não ter chorado, por não ter gritado para tê-la de volta. Era sua mãe, a mulher que jurou amá-la por toda a eternidade, que lhe dizia palavras carinhosas antes de dormir e que sempre a considerou boa o suficiente. Bom, pelo menos era o que Lena acreditava, afinal não se lembrava de nada. Nem ao menos do rosto dela, do cheiro, da maciez dos seus cabelos e da mornidão dos seus lábios em suas bochechas frias. Ela lutou, muito. Lutou para manter, de certa forma, aquela mulher viva dentro do seu coração. Mas tinha apenas quatro anos, era uma criança perdida e assustada, e quando menos imaginou já estava morando com outra família, com uma mulher fria e calculista que lhe ensinaria tudo sobre o mundo, sobre o quão cruel as pessoas podem ser.
Quando menos pode evitar, havia chamado Lilian de mãe. E aquela palavra nunca pareceu tão sem sabor quanto a primeira vez que falou em voz alta para ela.
— Não precisa ficar com essa cara — finalmente falou e viu a filha apertar a pequena no colo — e não vim para causar algum mal. Vim apenas para te ver e conhecer a minha neta.
— Não pode chamá-la dessa forma — balbuciou ainda com os lábios trêmulos — e não pode me culpar por ter medo.
— Eu sei e, por isso, eu peço desculpa — era mentira, Lena disse a si mesma mentalmente. Tinha que ser mentira. Preferia que fosse mentira.
Porém seu coração estava longe de enfrentar mais uma luta emocional.
— Posso entrar, ou não sou bem vinda? — sorriu calma.
— Kara pode chegar a qualquer momento — sentiu as palavras escaparem dos lábios antes mesmo de raciocinar.
— Não precisa chamar sua namorada, Lena. Como eu disse, eu vim em paz e estou sozinha — apontou para o corredor escuro e sorriu novamente.
— Ela não é minha namorada — ouvi-se pronunciar a verdade cedo demais. Bufou internamente, não acreditando no que sua vida havia se tornado e deu espaço para que Lilian entrasse.
Ambas caminharam até a sala e a Luthor confortavelmente sentou-se no sofá, observando o apartamento bagunçado, com roupas e fraldas espalhados em alguns cantos, com livros e pertences que claramente não eram da filha. Kara Danvers, pensou consigo. Então a loira kryptoniana estava morando ali, não era tão difícil de perceber. Os detalhes denunciavam a verdade, como, por exemplo, as revistas da CatCo, o notebook sobre a mesa da sala, as camisas dobradas sobre uma cadeira e o cheiro de perfume adocicado que grudou em cada parede. Era como se ela estivesse ali agora, como uma presença fantasmagórica. Suspirou descontente e tentou não julgar a falta de organização que existia no apartamento. Havia ensinado a filha sobre ordem, porém não era para isso que estava ali.
Afastou uma toalha de cima da almofada e colocou a mamadeira suja sobre a mesa de centro, voltando a encarar a morena.
— Aceita algo para beber? Água, vinho ou…
— Estou bem, pode-se se sentar um pouco? — ofereceu o seu lado. Lena respirou fundo e Lizzie começou a resmungar. Estava com fome de novo e provavelmente precisando trocar a fralda.
— Pode ser rápida no que quer? — pediu quase em desespero. Olhava de segundo em segundo para a sacada, esperando a Supergirl aparecer — Lizzie está cansada, com fome e eu também estou. Certamente que não esperava por visita, então só seja breve e acabe com isso.
— Você realmente gosta desse papel, não gosta? — retirou um embrulho de dentro da bolsa e seus olhos azuis brilharam — ser mãe combina com você, Lena.
— O que é isto? — arqueou a sobrancelha.
— Um presente, é isso que avós fazem certo? — baseado no que Elisa fazia, sim. No entanto, comparando Lilian com a senhora Danvers, Lena tinha certeza que ela estava longe de ser uma avó tão boa — pode alimentá-la se quiser, eu mesma já fiz isso, não tem que se sentir envergonhada — comentou, ouvindo a pequena chorar um pouco mais alto.
Lena respirou fundo mais uma vez e desabotoou a camisa e o sutiã, deixando o seio livre para a filha se alimentar. Pegou o presente das mãos de sua mãe e o abriu, encontrando um vestido vermelho aparentemente caro, o tecido parecia veludo e um babado de renda estava por debaixo, a fazendo lembrar de suas próprias roupas quando criança. Imaginou quando Lizzie poderia usá-lo e de como a cor favorecia seus olhos tão azuis quanto o da outra mãe. Suspirou. Talvez Lilian realmente estivesse ali para conhecer a neta, talvez aquilo pudesse funcionar. Talvez a paz finalmente pudesse ser estabelecida e sua filha estaria fora de perigo.
— Gostou? — perguntou relutante.
— É lindo, realmente muito bonito — foi sincera e o deixou de lado, ajeitando Lizzie sobre o colo. Lilian encarou o bebê pela primeira vez e a CEO observou curiosa aquela interação. A forma como os olhos de sua mãe escaneavam o pequeno corpo de sua filha a deixava apreensiva, um pouco assustada, mas talvez fosse por nunca tê-la visto daquela maneira. Tão entregue e tão… admirada.
Não sabia bem a palavra.
— Ela se parece com você — suas palavras doces a assustaram — têm seus lábios e ela faz o mesmo barulho que você fazia para comer, como se estivesse cantarolando enquanto mastiga.
— Me lembro bem de como odiava quando eu o fazia e me mandava comer no quarto — respondeu com remorso, mesmo não querendo.
— Você fazia barulho demais — ambas se encararam e a morena sabia que havia algo mais nisso.
— Devia ser difícil, afinal isso apenas deixava mais claro o fato de eu estar ali e você não queria aceitar, não era? — não foi bem uma pergunta e sim um fato. Ouvir a pequena cantar enquanto comia, rir, conversar sobre xadrez com Lex e tantas outras coisas, fazia Lilian perceber o quanto a garota se encaixava bem demais no meio da sua família, sendo que Lena não fazia parte dela.
Era como aceitar o erro, sem nem ao menos tentar apagá-lo.
— Me disse que Kara não é sua namorada, achei que estivessem juntas — mudou rapidamente o tópico, Lena sequer ficou surpresa. Lilian nunca baixava a guarda — parece que a verdade realmente destrói, não é mesmo? — e aquela era a mãe que conhecia.
— Você soube da verdade esse tempo todo — passou carinhosamente os dedos sobre o cabelo negro da filha — podia ter me contado, podia ter acabado com isso há tempos atrás.
— Certamente que sim, mas você não acreditaria e não teria o mesmo efeito — comentou vitoriosa — e pela expressão de dor no seu rosto creio que não tem sido nada fácil de lidar.
— Qualquer um pode ver isso, mãe — novamente a tal palavra pulou para fora — para que veio realmente? Porque está aqui? É para dizer o quão feliz está agora que o nome da sua família não será relacionado a um Super? — acusou — pois saiba que Lizzie é…
— Metade alien? — a interrompeu — sim, eu sei. Nosso último encontro deixou bem claro isso. No entanto, felizmente ou não, não vim aqui para ficar contra você e sim do seu lado — seu tom de voz suavizou e, cautelosamente, Lilian se moveu sobre o sofá e se aproximou da outra, tirando os fios de cabelo que caíam e os colocando atrás da orelha — eu vim para te ajudar.
— Me ajudar? — franziu o cenho e o súbito toque dos dedos frios em sua bochecha fizeram seu coração acelerar. Era diferente de tudo o que havia recebido da mulher que supostamente deveria ter a tratado como filha e seus pensamentos estavam confusos — me ajudar como?
— Lena, olhe para tudo o que aconteceu com você desde que essa mulher entrou na sua vida — falou cuidadosamente, escolhendo bem as palavras — Kara a revirou de cabeça para baixo, escondeu de você a verdade e mesmo sabendo que estava gerando uma filha dela, preferiu mentir — Lilian segurou seu rosto e o seu olhar intenso criou um tipo novo de medo em seu coração. Parecia que finalmente alguém a entendia, como se lesse seus pensamentos — não acho justo mantê-la aqui dentro, convivendo com a sua filha. Lizzie é sua, Lena, apenas sua. Se Kara realmente a quisesse, teria tido uma atitude mais madura e veja só o que aconteceu. Você está em cacos, quebrada e ainda tem que ser forte por alguém tão frágil — ela fechou os olhos e mesmo lutando contra as lágrimas, elas escorreram quentes e ácidas — você merece muito mais, Lizzie também. Nenhuma de vocês tem que permanecer envolvida num mundo que não nos pertence, um onde aliens e humanos coexistem, é loucura.
— Lizzie faz parte deles — afirmou, mas Lilian apenas sorriu.
— Ela não precisa saber e vai ser mais seguro se não souber — aquele fato a pegou de surpresa. Seu coração entrou numa luta interna com a sua alma. Como poderia afastar a filha da sua própria realidade.
Mas ao mesmo tempo, como a manteria segura se alguém soubesse que uma criança seria tão poderosa quanto a Supergirl?
Um kryptoniana imune a kryptonita.
— Não posso fazer isso — quis ser mais firme, porém sua voz falhou miseravelmente — não tem como ela não saber, vai ficar claro quando tiver poderes.
— Ela pode nunca os ter, não temos como saber — e, de novo, Lilian tinha razão. Alex ainda estava estudando o sangue da sobrinha, tentando saber até onde o DNA alienígena dela se entrelaçava com o humano. Realmente, Lizzie poderia nunca ter poderes, poderia ser uma criança normal, todavia ela já tinha uma super audição. Era um tiro no escuro, um beco sem saída — até lá você pode a manter segura, fazer o que você pensa ser certo e não o que Kara pensa que você deve fazer. Não é justo ela ter tudo o que quer enquanto seu coração permanece quebrado. Não tem um pouco de orgulho?
— Eu tenho, mas… — não tinha desculpa. Lilian havia conseguido levantar um ponto cruel e justo.
— Faça pela sua filha, não vai ser legal quando as pessoas souberem que ela é parte alienígena e você quer mesmo ela mentindo? — e aquele fato cutucou a ferida viva do seu coração.
A mentira.
— Já vai ser uma mentira se eu a esconder — retrucou e Lilian novamente sorriu, pois sabia o quão teimosa e inteligente sua menina era.
Ela novamente desceu o olhar para sua filha e todo seu ser pareceu ficar cheio de uma esperança e paz imensurável. Lizzie carregava dois mundos em seu sangue, no entanto era totalmente cruel colocar o fardo deles em cima de alguém tão jovem. Não merecia deixar que ela crescesse num ambiente hostil, perigoso e que as pessoas se aproveitasse dos seus poderes, caso tivesse, apenas para conseguir o que queriam. Lilian tinha razão, caso a criasse no meio de tantas diferenças, jamais poderia saber quem era amigo e quem não era. Mas e Kara? O que ela pensaria disso? E mais, deveria ela se preocupar com o que a amiga sentia?
Aliás, eram ainda amigas a esse ponto?
Sua cabeça latejou e, antes que pudesse responder qualquer coisa e fazer Lilian ir embora, a porta do apartamento bateu e a figura estática de uma loira apareceu no seu campo de visão.
Kara.
— O que ela está fazendo aqui? — cuspiu as palavras e encarou a morena com sua filha no colo.
Lilian se levantou, sem pressa, e sorriu para a CEO.
— Pense no que eu te falei — beijou seus cabelos — passar bem, Lena.
A pequena Danvers observou a mais velha sair, sem desviar o olhar e então a porta novamente bateu. A tensão pairou no ar, quase palpável. Ambas sabiam o que viria a seguir.
— O que ela estava fazendo aqui? — perguntou perplexa e com raiva.
— Caso não saiba, Lilian é minha mãe — respondeu na defensiva, colocando Lizzie de volta no bebê conforto, adormecida — veio apenas visitar.
— Visitar? — arregalou os olhos — realmente acredita que ela veio apenas visitar? Depois de tudo o que fez?
— Eu não quero discutir isso agora, Kara — bufou, passando nervosamente as mãos nos cabelos.
— Então quando? Porque sinceramente eu estou cansada de esperar o seu tempo! — aumentou o tom de voz sem querer e as palavras erradas escaparam.
— Bom, me desculpe se eu fui sincera o tempo inteiro e se aceitei a visita da minha mãe — o tom de sarcasmo se fez presente — e me desculpe se tenho que obedecer o seu tempo, ao invés de tentar lidar com toda essa bagunça que é ser mãe e ter alguém que mentiu para mim dentro da minha casa! — pontuou dolorosamente, vendo os olhos azuis tão ternos lacrimejarem.
— E-eu… desculpe, não foi o que eu quis dizer — suspirou nervosa. Seu coração afundou no peito.
— Pois você deixou bem claro o que quis dizer — retrucou.
— Me desculpe, okay? — sua voz fraquejou — me desculpe por ficar com medo de alguém que podia ter matado a mulher que eu amo e a minha filha no mesmo dia! — suas lágrimas escorreram — por Rao, Lena! Ela podia… — soluçou — ela usou kryptonita! Lizzie podia ter morrido, você podia… me desculpe, mas não pode me culpar por ficar assim, eu já perdi demais, Lena, muito mais do que pode imaginar e não posso… não vou aceitar que tirem tudo de mim mais uma vez! — suas mãos tremiam e ela sentiu os olhos queimarem.
Rapidamente a CEO viu o que aconteceria. Kara fechou os olhos e eles brilharam como sempre faziam. No entanto, a loira estava longe de conseguir qualquer controle, muito longe, e o primeiro instinto seria fugir. E Lena odiava quando ela fugia, pois tinha medo do que poderia acontecer caso ninguém estivesse perto para ajudar.
— Merda! — resmungou baixo e correu para segurar as mãos da outra — Kara, respire fundo, por favor! — ela não escutava.
Seus soluços se tornaram maiores, seu choro mais alto e seu cabelo grudava nas lágrimas. O tom fluorescente tomava conta de toda órbita de seus olhos, ardendo, queimando e tirando todo e qualquer controle que a pequena Danvers aprendeu a ter quando criança. Era desesperador. Ela se ajoelhou, fraca e cansada, deixando toda a dor tomar conta da sua alma fatigada. Não aguentava mais. Lena seguiu seus movimentos, sem nunca soltar suas mãos e não sabia o que dizer, como ajudar ou acalmar a outra para que pudessem conversar. Pensou em chamar a Alex, porém isso apenas chamaria mais a atenção dos outros.
Teria que resolver sozinha.
— Kara, me escute — pediu novamente — Kara, preciso que respire fundo e me diga como ajudar.
— Precisa sair daqui! — quase gritou e isso acordou a pequena, a assustando e a fazendo chorar — ela está com medo de mim… — murmurou angustiada.
— Isso é mentira, Kara — afirmou firmemente, movendo as mãos até o rosto da loira — precisa respirar fundo e se acalmar, não posso te ajudar assim.
— Eu posso te machucar…
— Você não vai! — dessa vez seu tom de voz aumentou — você não vai porque isso não é você! O seu medo não te define e eu preciso, por tudo que é mais sagrado, que acredite em mim! — sem pensar duas vezes, ela puxou a outra para seus braços, a envolvendo forte e protetoramente.
Kara rapidamente abraçou seu pescoço, escondeu o rosto em seu ombro e chorou alto. Ambas quebradas e cansadas demais para lutarem uma contra a outra. A Luthor passou os dedos pelo couro cabeludo da outra, afagando seus fios loiros e sentindo o próprio rosto ficar úmido com as suas lágrimas. Lizzie ainda gritava ao fundo, também exausta do dia que tiveram, precisando de um banho e de algumas horas de sono. Aquela era a sua família, pensou consigo, uma família destruída pelo medo, pelo desespero em ser suficiente uma para a outra, mas sem nunca ser suficiente para si mesma.
— Me… d-desculpe, Lena… — um sussurro leve ecoou — eu estou com medo…
— Eu também — confessou — eu também estou, Kara — suspirou e então desceu a mão para as costas da outra, a acariciando devagar — me desculpe por causar isso… Lilian… ela me deixa confusa, mas se prefere que a Lizzie fique longe dela, e-eu… — as palavras de sua mãe voltaram em sua mente, a alertando sobre o quanto ela desistia de si para proteger alguém que mentia. Alguém que escondeu a verdade.
— Não… — finalmente, a kryptoniana se afastou e pode abrir os olhos. A luz havia ido embora — não é… assim que deve ser… — murmurou chateada — não posso te afastar da sua família, por mais… que eu queira, mas que-quero… quero estar aqui quando acontecer, porque se eu não… chegar a tempo e…
— Não vai acontecer nada…
— Você não tem certeza — retrucou rapidamente e Lena assentiu, pois ela tinha razão. Lilian era uma incógnita.
— Prometo que não vou mais estar com ela e com a Lizzie sem você, okay? — a loira concordou com a cabeça — nós duas estamos cansadas, precisando dormir e Lizzie também — ambas se levantaram e a morena deixou que a outra pegasse a filha no colo.
Observou-a beijar o rosto da menina com tanta adoração e cuidado que soube que jamais poderia tirar um mundo inteiro de sua filha sendo que agora ela também fazia parte dos dois. Era uma luta sem vitória entre sua vontade de fazer o certo e a vontade de proteger o seu mundo. De proteger Lizzie.
— Lena… — a chamou antes de vê-la partir para o banheiro — sobre o que eu disse… eu não… — suspirou — eu não quis dizer aquilo, eu só fiquei com medo de que tudo acontecesse de novo — a morena sorriu fraco, sem entender ao certo o que aquele “tudo” significava.
— Eu sei e você vai ter sua chance de se explicar, só peço um pouco mais de tempo — Kara sorriu fraco também.
— Todo o tempo que precisar.
***
— Você está pronta? — Sam olhou para Ruby e ela assentiu sorridente. Ambas suspiraram juntas e adentraram o quarto escuro. Era domingo e claro que a ruiva ainda estaria dormindo às oito e meia da manhã.
Como sempre, suas pernas estavam entrelaçadas com o lençol e suas mãos posicionadas embaixo do travesseiro. Depois de alguns meses juntas, a CFO tinha decorado quase todas as manias da namorada, achando-as engraçadas e muito fofas. Era incrível poder tê-la ao seu lado, superando cada obstáculo, aprendendo a conversar, a se entender e a se amar de uma nova forma todos os dias. Claro, tinha vezes que era complicado, elas brigavam discutiam e tentavam não envolver Ruby no meio, pois seria totalmente imaturo da parte delas. A menina em nada tinha a ver, porém sempre percebia quando suas duas pessoas favoritas no mundo não estavam bem.
E outra, ela sabia que algo diferente estava acontecendo. Sua mãe ficava ausente às vezes, sumia por horas e algumas vezes, já de madrugada, Ruby escutava a janela se abrir e passo sendo dados pela casa. Sam não era mais a mesma, Alex também tinha plena consciência disso, mas evitava falar sobre o assunto ao lado da menina. Tanto ela quanto a namorada decidiram que seria melhor fazer alguns exames e levá-la até a DEO para ter mais segurança. Sam odiava com todas as forças quando acordava num lugar totalmente inóspito, estranho e não se lembrava de nada, absolutamente nada. Haviam várias ligações perdidas, mensagens não respondidas e ela sequer sabia o que tinha acontecido e como foi parar ali.
Foi assim, então, que a agente sugeriu o departamento e prometeu guardar segredo.
Mas naquela manhã o assunto era outro, completamente diferente. Ruby planejou tudo com cuidado e antecedência, pedindo a ajuda da mãe para as parte mais difíceis e separando tudo o que precisava. Por conta da ansiedade, ela acabou acordando bem mais cedo do que o combinado e arrastou Sam para fora da cama. Agora, com ambas ainda de pijama, elas entraram vagarosamente no cômodo, com a mais velha deixando a bandeja na ponta da cama e entreabrindo a cortina apenas o mínimo para enxergar. A mais nova sorriu empolgada e encarou a mãe, pedindo permissão para acordar a outra.
Sam sorriu e viu a filha pular no colchão, deitar ao lado da ruiva e beijar a ponta do seu nariz.
— Tia Alex, ei! — murmurou e cutucou suas bochechas — vamos acordar!
— Hum? — ela resmungou, mas não abriu os olhos — só mais cinco minutinhos…
— Não! — falou manhosa — está na hora de acordar…
Alex retirou o travesseiro e o jogou sobre o rosto da menina, a fazendo gritar e rir.
— Ei! Assim não vale! — riu ao sentir os dedos frios da ruiva em sua barriga, fazendo cosquinha e subindo pela cintura — mãe! Me ajuda!
Sam subiu na cama e apertou exatamente onde a namorada sentia mais cócegas, obviamente que a agente pulou na mesma hora, gritando e rindo.
— Okay! Já acordei! — resmungou e tentou recuperar o fôlego — duas contra uma é injusto.
— Vou repetir isso quando você se juntar a Ruby para conseguir pizza no jantar — a morena provocou e viu as outras duas se entreolharem culpadas — não adianta fazer essa cara.
— Você me ama desse jeito, é problema seu — Alex retrucou teimosa — não tenho nada a ver com isso.
— Ah não? — arqueou a sobrancelha e só naquele olhar a ruiva sabia bem onde seria punida. E claro que não iria reclamar. Jamais.
— Ew, parem com isso — Ruby bufou — podemos ir para a parte da surpresa?
— Que surpresa? Aliás, porque me acordaram tão cedo num domingo? — perguntou curiosa e então viu a namorada puxar a bandeja com o café da manhã, um bem exagerado.
— Ruby queria preparar uma surpresa, sabe que dia é hoje? — Sam perguntou e encarou a filha, a encorajando a falar. A menina corou num rosa bebê e respirou fundo. Levantou-se um pouco para pegar uma caixa retangular média de papel, colorida a mão e enfeitada com uma fita dourada.
— É o meu aniversário? — ela tinha certeza que não era. Era?
— Abra — Sam continuou e Alex obedeceu.
Rapidamente a fita se desfez e o conteúdo foi revelado. Eram três quadros: um contendo um desenho de uma árvore genealógica, outro continha três pares de mãos num papel e o outro tinha uma foto que as três tiraram num dia no parque. A ruiva se deixou levar pelo momento, se lembrando bem de quando ajudou Ruby a colorir a enorme árvore, explicando que não tinha problema em não ter uma família grande, pois os amigos também faziam parte dela e o importante mesmo era o carinho e o amor nutrido por cada um. Lembrava-se também de quando a menina pediu para que pintasse a palma da mão para colocar num papel, ouvindo-a dizer que era para um trabalho importante e que não tinha tempo para explicar. Obviamente que ela não recusou.
Mas o problema não era recebê-los e sim analisar cada detalhe. E foi exatamente isso que fez seus olhos marejarem e suas mãos tremerem.
— Essa é a árvore que você me ajudou a fazer e eu percebi que ela estava errada — Ruby explicou, sentando ao lado da ruiva e apontando para o trabalho — aqui tem a minha avó, a tia Lena, a tia Kara, Lizzie e bom… eu só adicionei elas todas porque você entra bem aqui do lado da minha mãe — Alex viu sua caricatura ao lado de uma Sam sorridente feita de lápis de cor e elas estavam interligadas por uma linha. Essa linha ia até a última participante da árvore: Ruby — nesse trabalho das mãos a professora pediu para que a gente trouxesse algo que representasse a sua família de uma forma artística e bom… eu não podia te deixar de fora — suspirou cada vez mais nervosa, pois Alex estava chorando e não conseguia falar nada — e… hoje, bom… er, é o segundo domingo de Maio… — tossiu e encarou a mãe, recebendo um sorriso positivo — Feliz dia das mães, tia Alex, porque eu… eu te amo, como se fosse uma mãe — falou sincera e esperou por alguma reação, qualquer coisa.
No entanto, Alex sequer sabia como se sentia. Durante anos de sua vida, ela imaginou como seria ser amada daquela forma, incondicionalmente. Era um desejo intenso do seu coração, mais forte do que ela e nunca conseguia explicar o porquê dele existir. Simplesmente existia. Olhou para a namorada, que a encarava de forma tão compreensiva e amorosa, que fez seus olhos se enxerem mais ainda de água. Sam entrelaçou suas mãos, lhe dando a coragem que precisava para respirar fundo e responder alguma coisa. Observou os desenhos de novo, coloridos e vivos, fazendo jus a como sua rotina era agora. Quando terminou seu noivado no ano passado, pensou que nunca encontraria alguém que fizesse tudo valer a pena.
Mas havia se enganado.
— Ruby, eu… — bufou — droga, eu nem sei o que dizer! — as três riram — você é muito especial e eu tenho muito orgulho da menina que está se tornando, principalmente de quando você bate em garotos idiotas, continue assim — piscou divertida e Sam lhe deu uma cotovelada — me dê um abraço, pequena encrenqueira — a puxou para seus braços e Ruby rapidamente a apertou firme, ouvindo-a sussurrar um eu te amo quase silencioso. Era o que ela precisava para saber que tinha feito o certo.
Sam, por mais que todos a dissessem que teria ciúmes quando encontrasse alguém que ocupasse um lugar no coração da filha, se sentia bem diferente disso. Por anos teve que lidar com a situação de mãe solteira e, sendo sincera, era complicado, porém jamais trocaria os momentos que teve por qualquer coisa no mundo. Mas não iria negar, ter alguém que amasse Ruby o tanto que ela amava e que a filha pudesse considerar como uma outra melhor amiga, era muito mais do que pediu. De repente, Alex a puxou para o abraço e elas ficaram algum tempinho ali, aproveitando a proximidade e deixando a ruiva se acostumar com a ideia de ter o primeiro dia das mães surpresa.
— E tem mais — Sam sorriu divertida e cutucou a filha.
— Céus, eu vou morrer em pleno domingo com vocês duas — bufou nervosa, sem saber se aguentaria mais daquilo.
— Amanhã tem uma apresentação especial do dia das mães na escola e eu quero que você vá! — Ruby quase gritou e pulou de joelhos na cama — você vai, não vai?
— Não perderia por nada nesse mundo — afirmou.
— Agora que já terminamos a parte da surpresa, pode comer — avisou.
— Finalmente! — dramatizou — onde estão Agnes e os filhotes?
— No quintal, já passeamos com eles e demos comida. Krypto comeu um sapato seu de novo — avisou e Alex rolou os olhos, cobraria da Lena depois, claro — Como acha que a Lena vai ficar no primeiro dia das mães? — Sam questionou, se lembrando que era a primeira comemoração da amiga — acha que elas vão se lembrar?
— Kara tem esquecido até o óculos, não posso dizer que sei — comentou de boca cheia e dividiu o pedaço de bolo com a Ruby — não é para comer tudo!
— Eu não como tudo — Ruby se defendeu e enfiou o pedaço todo de bolo na boca.
— Ruby! — Sam gargalhou e rolou os olhos ao ver a filha correr para o corredor enquanto Alex a perseguia.
Crianças.
***
Fazia pouco tempo que o sol tinha nascido e Kara já estava de pé. Ela foi até o banheiro do quarto, lavou o rosto, escovou os dentes e verificou as horas novamentes. Ia dar tempo, tinha que dar tempo. Caminhou de pijama pelo corredor do apartamento gigante onde morava agora e deslizou sobre as meias, cantarolando uma música do NSYNC mentalmente. Adentrou vagarosamente no quarto da Luthor, pisando na ponta dos pés e a encontrou adormecida no meio de vários travesseiros e lençóis. Sorriu apaixonada e puxou uma das cobertas até o ombro da mulher que jurou proteger para sempre. Nunca deixaria de amá-la, essa era a verdade. Olhou para o pequeno berço acoplado na lateral da cama e viu a filha com os olhos azuis abertos e atentos, levantando as mãozinhas e brincando com os dedos.
— Bom dia para você, sementinha — sussurrou, sabendo bem que a menina escutava — nós temos trabalho hoje.
A pegou no colo e deixou o cômodo, sem fazer qualquer barulho.
Rumou até o quarto da filha, a colocando sobre o trocador e fazendo sua higiene matinal. Lizzie resmungou algumas vezes, porém se comportou bem, não fazendo alarde demais, pois isso certamente acordaria sua outra mãe. Kara, claro, colocou sua roupa favorita na filha, tentando não rir do quão linda e engraçada ela ficava. Beijou suas bochechas rosadas e ambas foram para a cozinha, onde ela esquentou uma das mamadeiras e alimentou-a, enquanto conferia seus planos anotados no bloco de notas do celular. Nunca foi boa na cozinha, ou em qualquer coisa que envolvia comida. Bom, pelo menos era boa em comer. Bufou perdida algumas vezes, queimou alguns neurônios pensando e replanejando certas decisões, mas no fim se decidiu.
Deixou a pequena no bebê conforto em cima da ilha da cozinha e a deixou acompanhar seus movimentos. Estava ficando cada vez mais frequente Lizzie ficar acordada e prestar atenção ao seu redor.
— Filha, se alguma coisa acontecer, a culpa foi sua, okay? — apontou a colher para ela e recebeu um olhar confuso — a gente só não pode quebrar nada, mas acidentes acontecem.
Lizzie continuou sem entender e então voltou a brincar com os dedos as mãos.
— Você por acaso sabe fazer panquecas? Hum, eu acredito que não — continuou a conversar — euzinha aqui sei e posso te afirmar que são as melhores do mundo — riu de si mesma — só não conta para sua tia Alex, ela é meio invejosa…
Seu monólogo continuou, até que enfim terminou toda sua lista de afazeres. Organizou cada coisa numa enorme bandeja, adicionou as flores que tinha comprado, assim como o cartão e equilibrou Lizzie e a comida em cada braço, agradecendo a Rao por Lena ainda estar dormindo, caso contrário teria recebido um sermão e um puxão de orelha. Abriu a porta do quarto com o ombro, tentando não tropeçar em nada no caminho e então colocou o bebê conforto sobre o colchão e a bandeja no criado mudo. Afastou minimamente as cortinas, pegou Lizzie no colo e foi até o banheiro para respirar fundo. Não sabia se estava passando de algum limite, muito menos se a morena iria gostar da sua intromissão em seu quarto. Há tempos elas sequer se abraçavam, ou se encaravam por tempo demais. Sentia falta dela, muita. Não iria negar.
Mas aquela situação era diferente, envolvia bem mais do que apenas o relacionamento quebrado que tinham. Por isso, respirou mais uma vez, se encarou no espelho e ajeitou a roupa da filha, sorrindo mais uma vez ao ver que conseguia cuidar dela por alguns minutos sozinha. Checou o celular. Estava na hora.
— Lena — sussurrou, puxando seus cabelos de cima do rosto e logo ouviu o despertador tocar baixinho — Lena…
— Hum? Kara? — rapidamente se sentou, tentando entender o que estava acontecendo. Reparou que o quarto estava iluminado por uma pequena fresta na cortina, havia uma bandeja com café da manhã a sua frente e Kara estava lhe sorrindo, iluminando bem mais que a luz do sol do lado de fora. Seu primeiro instinto foi olhar para o bercinho — aconteceu alguma coisa? — suspirou ao encontrar Lizzie nos braços da outra — bom dia, filha — murmurou sorridente — Kara?
— Uh… e-eu… — tossiu nervosa — bom… — apontou para tudo. Para as panquecas, para as flores e para o cartão — feliz dia das mães…
Foi então que Lena parou para pensar que domingo era aquele. Segundo domingo de Maio, dia das mães. Porque não se lembrou? Bufou. Claro, seria totalmente irônico esperar que ela se lembrasse, justo ela. Com certeza, caso estivesse com a mãe biológica, teria comemorado essa data todo ano, com apresentações na escola e desenhos feito com lápis de cores. Todavia, com Lilian não foi assim e nem combinava com o seu estilo. Nos institutos onde estudou, eles sequer tinham tempo para alimentar comemorações sem sentido, achando uma total perda de tempo e focando apenas nas contribuições que o ensino podia garantir. Lex também parecia não se importar, afinal não conheceu outra mãe além da que já tinha.
Por isso, a CEO afundou as costas no travesseiro e deixou aquela sensação afundar no peito. Era seu primeiro dia das mães e sequer sabia como reagir. Talvez ainda fosse muito cedo para lidar com tal informação, porém a quem ela queria enganar? Não era um sentimento ruim, era apenas confuso, porque não sabia como educaria a própria filha a respeito de uma comemoração que ela mesma não entendia. Olhou para Kara e encontrou a certeza que precisa. Os azuis tão parecidos com os de Lizzie, o sorriso que ainda era o seu favorito e os fios loiros bagunçados que a deixava com um ar mais angelical do que era possível. Eliza com certeza tinha feito um papel maravilhoso nessa parte e ela desejou poder ligar para ela, perguntar como era ter a certeza de que não estava estragando tudo. Que valia a pena ter aquele dia para comemorar o seu papel no mundo.
O seu papel de mãe.
A pequena Danvers deitou a filha sobre o colchão, apoiando sua cabeça sobre um travesseiro baixo e alcançou um pequeno cupcake no canto da bandeja. Fincou uma vela no meio e a acendeu com o isqueiro.
— O que estamos comemorando? — franziu o cenho.
— Hoje Lizzie faz um mês — comentou sorridente e ambas encararam o bebê — achei que merecia um bolo e uma vela.
— Claro que achou — pegou a menina no colo, rindo ao perceber o macacão amarelo e tentando não chorar pois agora ele servia. Lizzie tinha crescido e estava completando o primeiro mês de vida.
— Olhem para mim! — pediu divertida, tirando o celular do bolso da calça — digam xis!
— Espera! — tampou o rosto com a mão — porque está tirando uma foto minha?
— Er… porque é dia das mães? — respondeu confusa — e porque… eu queria que ela tivesse memórias… sabe?
— Eu entendi, mas porque você não está na foto? — aquilo a pegou de surpresa — você também é a mãe dela — pontuou o óbvio — vem para cá.
Ainda um pouco sem jeito e sem saber até onde podia ir, ou o quanto podia se aproximar, a loira ficou ao lado da Luthor, a abraçando por trás e vendo-a colocar Lizzie no meio. Selecionou o modo automático da câmera e a apoiou na xícara. Os flashes bateram rápidos e elas trocaram de pose algumas vezes. No início ainda havia certa timidez, mas a filha merecia que elas se esforçassem, pois num futuro ela olharia para cada retrato daquele e saberia que suas mães, apesar de tudo o que passaram, fizeram tudo pelo seu bem estar, pela sua felicidade. A última foto foi a preferida das duas. Lizzie estava no meio, Lena a segurava por debaixo do braço e ria de algo que Kara havia comentando, enquanto a loira beijava as bochechas da pequena.
— Pronta? — Kara perguntou — não se esqueça de fazer um pedido.
Contaram até três e sopraram juntas a velinha do primeiro mêsversário da pequena Lizzie Luthor Danvers.
— Bom, espero que as panquecas não tenham ficado com gosto de queimado, mas não que eu tenha queimado, ou bagunçado a cozinha, ou… er, estragado alguma coisa, não precisa sair daqui por uma meia hora porque talvez a cozinha esteja interditada e eu…
— Está divagando, de novo — Lena pontuou e se serviu de um pouco de café — não tem que ir, esse dia é tão seu quanto meu e eu… preciso ser sincera com você, sobre algo que está esperando — comentou e a loira sentiu o coração latejar.
Havia se passado dias desde a visita de Lilian, mais de uma semana. Elas não falaram sobre o ocorrido depois disso, sequer tocaram no assunto. Kara entendeu que Lena precisava de mais tempo, de mais espaço e a respeitou, como sempre fazia. As duas continuaram a viver um dia de cada vez, superando os obstáculos da melhor forma que podiam e tentando não piorar mais as coisas. Já estava doendo o suficiente. Acontece que, por mais que acreditasse na Luthor, algo dentro de si estava desistindo aos poucos, pois não tinha nada em que se segurar. Lizzie era realmente o único ela entre elas e a única coisa capaz de mantê-las numa relação um pouco desconfortável, mas ainda sim viva.
Estava cansada de esperar, mas não podia apressar nada.
— Tem… tem certeza? — sua voz fraquejou. Sua ansiedade começava a escalar sua garganta, pronta para sair.
— Ramona me convidou para visitar Julie antes do almoço, afinal ainda não conheço a pequena Grace — explicou — se quiser ir, tudo bem, mas quando voltarmos quero poder ouvir o seu lado da história. Quero saber o motivo dos seus olhos queimarem toda vez que está com medo — finalmente, os verdes encontraram o azul. E nunca houve uma conexão tão forte como aquela — vai querer ir comigo?
Algumas sirenes ressoaram e as duas kryptonianas olharam para a sacada. Kara suspirou e voltou a encarar a CEO.
— Eu entendo — Lena simplesmente murmurou — vou estar te esperando.
— Diga a Julie e a Ramona que eu mandei abraços — sorriu fraco — e Lena… — bufou nervosa, segurando as lágrimas de alívio — obrigada.
Beijou os cabelos da filha e sorriu mais uma vez para a mulher que amava. Como num vulto, a Supergirl saiu e deixou para trás todo seu mundo, na esperança de que o reconquistaria assim que retornasse daquela missão.
***
A campainha tocou alta e a Luthor pode escutar alguém gritar empolgado e um cachorro latir. Parecia que tudo do lado de dentro estava muito animado. Esperou pacientemente do lado de fora, se olhando rapidamente no vidro da janela, desamassando a saia e verificando se realmente estava bem apresentada. Esse era o segundo passeio da Lizzie, porém a DEO não podia ser bem considerada uma diversão, principalmente se for pensar no que aconteceu. Encarou a filha no carrinho, incrivelmente acordada naquele horário e sorriu ao ver que ela tentava brincar com o cordão da chupeta preso em seu macacão azul. Um dos preferidos da pequena Danvers.
— Lena! — Julie a cumprimentou saudosa e a puxou para dentro, ajudando com as sacolas e o carrinho — Céus, essa mulher pode ter quantos filhos quiser e vai continuar parecendo que acabou de sair de um ensaio fotográfico — elogiou, fazendo a outra enrubescer.
— Não seja exagerada, Julie — tentou mudar de assunto.
— Certeza que a próxima capa da Forbes vai ter a CEO que consegue ser mãe e gerir uma empresa bilionária ao mesmo tempo enquanto eu nem consigo lavar a louça e impedir o Ezra de comer a pasta de dente — Julie dramatizou e Ramona gargalhou da cozinha, vindo então até a Luthor para abraçá-la.
— Trouxe isso para vocês — estendeu as várias sacolas, cada uma com um dono. Não sabia bem o que escolheria para suas amigas, porém acabou sendo mais fácil do que escolher o presente para cada criança ali. Sem contar que acabou comprando uma leva nova de roupas para Lizzie sem nem precisar — e acredito que a Forbes esteja mais interessada nas últimas atualizações milionárias de algum cara sem graça do que na CEO que tirou licença maternidade — pontuou, mas suas amigas ignoraram. Eram fãs demais do seu trabalho para se importar — onde está o Ezra?
— Aqui! — o menino correu e agarrou as pernas da Luthor, sorrindo — Lee!
— É, ele aprendeu a dizer o seu nome — Ramona comentou — mas o meu que é bom, nada — fingiu chateação.
— Ei, meu homenzinho — ela se agachou e beijou suas bochechas, o pegando no colo e o deixando deitar no ombro — também senti sua falta e trouxe um presente!
— Eba! — bateu palmas e escorregou por suas pernas. Julie entregou a caixa embrulhada e o deixou rasgar o papel todinho.
— Falando em presentes, Ezra faz dois anos em dois meses e a tia favorita dele tem que estar presente — apontou para a CEO e Ramona arqueou a sobrancelha para o “tia favorita” — não me olhe com essa cara de que vai financiar a vida acadêmica dele como presente de aniversário, Lena — todas gargalharam.
Ramona e Julie aproveitaram o momento para se sentar na sala e abrir as outras caixas. Lizzie continuou no carrinho, assim como Theo e Thomas estavam no carrinho duplo e Grace dormindo em seu quarto.
— Droga, Lena isso deve ter custado uma fortuna — Ramona bufou ao ver a bolsa que ganhou —, mas eu não ligo, você é bilionária para isso mesmo
— A melhor e mais recompensadora amizade que eu fiz nada vida — Ramona fez uma careta se sentindo ofendida — o que foi? É verdade, você só me dá livro de auto ajuda
— Você quem pediu! Só porque vem a foto daquele escritor bonito na capa — Julie corou.
— Não adianta me expor, okay? — brincou, fazendo todas rirem — obrigada, Lena. Onde está sua esposa?
E lá estava a mentira que rodeava toda aquela situação há meses. Não podia enfrentar aquilo sem desmoronar e não seria justo continuar vivendo algo que estava muito longe de acontecer.
— Kara teve um contratempo no trabalho — bufou consigo mesma. Era essa a sensação então que Alex tinha quando mentia para proteger a identidade da irmã — porém mandou abraço para todas.
— Oh não — Ramona encarou a amiga e Julie fez o mesmo, ambas parando para se encarar — ela está passando pela fase, Julie.
— Sei como é, já estive nesse problema — bufou, no entanto Lena não entendia do que elas falavam.
— Que fase? — arqueou a sobrancelha.
— A que todos os casais passam após o nascimento do primeiro filho — Ramona explicou — o cansaço, o choro do bebê, as fraldas e a falta de sexo…
Oh céus!
— Acredite, todo mundo passa por isso e não dura para sempre — Julie pontuou, afagando os ombros da amiga — principalmente a parte do sexo, eu até engravidei de novo.
— Céus… e-eu… não, nós não… — respirou fundo. Kara era a pessoa quem gaguejava e não ela — Kara e eu não estamos passando por nada… disso, na verdade, bom… é complicado — sentiu o nervosismo subir pela garganta. Odiava mentiras, então porque continuaria a alimentar aquela situação? — eu e ela nunca fomos casadas — cuspiu a verdade.
Ramona e Julie arregalaram os olhos e se viraram para encarar a morena. Não era algo que elas esperavam, principalmente agora.
— Como assim? — Julie perguntou com cuidado, sabendo bem que talvez estivesse entrando num assunto delicado demais — sabe que pode nos contar qualquer coisa, certo?
— Só não solte uma bomba assim sem avisar antes — Ramona bufou e Lena sorriu tristemente.
O silêncio se fez presente por alguns segundos, tempo suficiente para que ela afundasse toda a dor e angústia de reviver o último mês, e conseguisse falar algo coerente. Claro, ela e Kara estavam lidando com maturidade em relação a filha, todavia sua amizade e relacionamento eram quase inexistentes, sequer conseguiam ter uma conversa que não fosse relacionada a rotina da Lizzie, compras semanais de fraldas e revezamento da mamadeira a noite. Era como se nunca tivessem sido melhores amigas num passado nem tão distante.
— Nós éramos... somos... — bufou. A palavra melhor amiga não era usada há tanto tempo — enfim, na época éramos apenas amigas e tudo acabou sendo um mal entendido, porém sempre houve um sentimento mútuo e...
— Essa palavra é praticamente um eufemismo para o que você está dizendo. Dificilmente duas pessoas se amam ao ponto de parecerem casadas, como vocês — Ramona comentou e Julie concordou.
— Eu sei... eu a amo muito, ela foi a primeira e única a acredita em mim, a me ver como Lena e não como uma Luthor — suspirou. Não podia chorar — bom, agora tem vocês, claro. Mas só havia ela, apenas a Kara. Foi impossível não me apaixonar...
— Então vocês namoraram — Julie falou.
— Sim, aquele beijo na loja da Zara foi nosso primeiro beijo — confessou envergonhada, mas sorrindo da lembrança — depois disso foi natural, foi como....
— Se sempre tivesse sido assim — Lena assentiu ainda sentindo o peso daquela verdade — mas Lizzie tem o sobrenome dela?
— Essa é... uma história muito complicada...
— Então a Kara, que não era sua esposa, mas foi sua namorada e agora não é nada tem uma irmã que é uma das suas melhores amigas e agora é madrinha da sua filha, que por sinal tem o sobrenome das duas — Ramona quase se perdeu em sua própria linha de raciocínio
— É...
— Que merda ein, Lena — bufou.
— Ramona!
— E fica pior — pontuou — minha melhor amiga de anos, que também é minha CFO, é namorada da Alex — ambas se encararam e voltaram a encarar a Luthor.
Ezra estava entretido com Lizzie no carrinho, ficando na pontinha dos pés e mostrando o presente novo que havia ganhado. Lena observou os dois por alguns minutos, sentindo o coração ancorar na ideia de que sua filha, mesmo tão pequena, era amada e já cultivava amizades por mais que não entendesse ainda o que acontecia. Suspirou apaixonada e tentou não pensar no quanto Kara adoraria ver o pequeno olhar com tanto carinho para o seu bebê.
— Isso só fica mais triste a cada palavra que você fala — Julie comentou e se levantou para pegar Grace, que começou a chorar — quer beber alguma coisa e assistir Desperate Housewives? — as três riram e a televisão foi ligada num canal aleatório, que coincidentemente era o noticiário ao vivo.
O rapaz bem arrumado, que fazia o papel de âncora do canal, avisava sobre algumas notícias da bolsa de valores, quando de repente passou a mostrar o centro de National City, onde uma luta intensa acontecia. E, obviamente, que a Supergirl estava envolvida. Seus olhos rapidamente pousaram sobre a figura loira de capa vermelha, sentindo o peito ser comprimido ao vislumbrar a briga. Kara parecia outra pessoa, uma que era, ao mesmo tempo, tão distante e tão parte dela. Não era a sua repórter doce, tímida e que sempre divagava e gaguejava em alguns assuntos. Era diferente, mas um diferente interessante. Olhar a heroína lutar e saber de sua identidade lhe trouxe sentimentos confusos.
Estava com medo. Medo porque agora era a sua Kara ali, a que enfrentava vilões, se jogava na frente de enormes pedaços de concretos e se sacrificava para salvar os outros. Como supostamente deveria ficar calma? E se ela nunca voltasse para casa? O que diria para Lizzie? Como contaria a verdade?
Foi então que viu a figura de capa preta, imponente, séria e tão intensa quanto a da pequena Danvers. Lena sabia que a tal Reign era o mistério que rondava a DEO durante aqueles meses, pois ninguém conseguia persuadir a mulher a falar qualquer coisa. Ela simplesmente aparecia, fazia o seu papel do dia e fugia, como se não devesse explicações. Por diversas vezes a Supergirl tentou persegui-la, rastreá-la, porém a constatação era óbvia: Reign não era só mais forte que a garota de aço, mas também mais rápida. E era isso que dificultava o trabalho do departamento secreto que tratava de presenças alienígenas na Terra.
O aperto no seu coração ia apenas aumentando conforme assistia a loira apanhar e revidar furiosamente.
Seu celular tocou. Era Alex.
— E-eu preciso ir embora — levantou-se depressa e começou a recolher suas coisas. Ramona e Julie estranharam a pressa — me desculpe, eu prometo voltar depois, porém recebi uma ligação urgente e… — seu celular continuava a vibrar em suas mãos e ela olhou culpada para as amigas.
No entanto, elas sorriram compreensivas. Não perceberam o real porquê do nervosismo da Luthor, pensaram que era por conta do assunto em si e não porque ela viu a mãe da sua filha arriscar a vida bem a sua frente.
— Fica tranquila, Lena — Julie assegurou — estaremos aqui quando quiser voltar.
***
— Supergirl! — Alex gritou novamente e indicou o caminho para os outros agentes — não!
— Ela não vai escapar dessa vez! — Supergirl gritou de volta, colocando toda sua atenção na mulher da capa preta.
Alçou vôo rapidamente e tentou alcançá-la, mas, como sempre, ela era mais ligeira e escapava com maestria. A bagunça estava feita e, caso Reign não tivesse aparecido, muitos civis poderiam ter morrido. O problema não era ela ajudar e sim seus métodos um tanto quanto arcaicos e brutos de se lidar com os bandidos. Até mesmo com os que eram aliens. Dois estavam mortos, quase sendo esmagados pelo punho firme da tal heroína secreta, enquanto os outros três foram levados pela polícia local para a delegacia. A loira a perseguiu dentre os enormes edifícios, desviando de tudo em seu caminho e tentando chegar pelo lado contrário, porém todo seu esforço era em vão quando se tratava da outra kryptoniana.
Supergirl, é melhor você conseguir algo que a faça diminuir a velocidade.
— Como o que? — respondeu ao Winn na escuta. Continuou a voar, chegando muito perto de quebrar a barreira do som mais uma vez.
— Você vai acabar quebrando a cidade inteira! — Alex gritou ao vê-la passar ao seu lado — leve-a para a costa e saia do meio dos civis!
— Certo! — gritou de volta.
Aquele pedaço de concreto! Winn avisou novamente.
Era um cálculo simples, totalmente básico. Alguma coisa tinha que criar um impacto suficiente para fazer a Reign parar por alguns segundos. E seria naqueles míseros segundos que Kara teria que agir.
Arrancou o pedaço de concreto no chão e mirou no vulto negro que dava a volta para fugir pelo lado leste da cidade. Tudo era uma questão de força e velocidade angular. Respirou fundo, abafando os sons ao seu redor e levantou o peso em seus braços, sentindo todos seus músculos retesarem embaixo de sua pele. Semicerrou os olhos e contou mentalmente até três. Física pura, pensou consigo. Massa e aceleração angular. Bufou e logo a sombra do concreto correu pelo solo, atingindo seu alvo em cheio e quase a fazendo cair pelo desequilíbrio. Era agora.
Reign, assim que sentiu a poeira e os pequenos pedaços do concreto que se quebrou sobre seu corpo, tentou recuperar o domínio, mas, ao abrir os olhos, viu apenas um vulto vindo em sua direção. O impacto foi suficiente para jogar as duas kryptonianas para o lado oposto, alcançando uma velocidade surpreendente e as jogando forte sobre a areia da praia. Os poucos banhistas que haviam no derredor saíram correndo ao observar as duas lutarem no chão, ainda procurando pela vitória uma em cima da outra. Kara não deixaria que ela fugisse sem responder suas perguntas, sem dizer qual era o seu objetivo ali já que não queria matar ninguém.
— Saia de cima de mim! — Reign gritou e acertou um soco no nariz da outra, o fazendo sangrar.
— Não! — a segurou pelo pescoço, sentindo a outra chutar seu quadril e tentar inverter a posição. Estava doendo muito e ela sabia que ficaria marcado em sua pele.
De repente, a morena conseguiu rasgar uma parte do traje azul, abrindo um corte imenso no antebraço dela com sua visão de laser. Kara gritou de dor e perdeu o fôlego, assim como a dominância.
— Me deixe em paz! — avisou novamente.
— Porque não responde as minhas perguntas? — falou ressentida — eu também sou kryptoniana!
— E quer montar um clubinho? — falou irônica — eu trabalho sozinha!
— Aqui ninguém trabalha sozinho — pontuou, voltando a revidar e acertando o cotovelo na costela da outra — eu só preciso de respostas! — acertou seu nariz e então seu peito, a jogando para longe na areia e voltando a ficar por cima do seu corpo — me responda!
— Não! — gritou e agarrou a heroína pela base da capa. Foi uma questão de milésimos de segundos e Kara viu o sorriso divertido no rosto da mulher misteriosa.
Quando menos esperou, Reign girou o corpo e ela foi jogada dentro do mar, com a água salgada a ensopando rapidamente e sua capa sendo puxada pela onda.
— Mas que… isso não vale! — levantou-se aos tropeços e chacoalhou as mãos, sentindo o cheiro de peixe impregnar nos seus cabelos — eu tenho que voltar para casa limpa! — resmungou, ouvindo a mulher rir.
— Eu trabalho sozinha — avançou novamente sobre o corpo da Supergirl e a segurou pelo pescoço, apertando firme os dedos em sua garganta e a vendo respirar com dificuldade. Kara viu os olhos intensos dela migrarem de um vermelho sangue para um castanho límpido. Como se houvesse uma luta interna entre duas almas no mesmo corpo — Reign… e-eu… — não conseguia falar e puxar o ar ao mesmo tempo — n-não precisa…
Foi então que a kryptoniana voltou para si e afrouxou rapidamente as mãos. A loira caiu novamente sobre a areia, a água cobrindo suas pernas e suas mãos foram até seu pescoço dolorido.
— Fique longe do meu caminho, Supergirl! — Reign falou ríspida — não estou aqui para atrapalhar seu trabalho, então não atrapalhe o meu!
Ao voltar a olhar para cima, viu apenas o vulto da capa preta sumir no céu. Mais uma vez fugindo sem dar alguma resposta.
***
Lena chegou ao apartamento bem a tempo de encontrar a imagem de uma loira molhada, suja de areia e sangrando em sua sacada. Alex a avisou no caminho que a irmã estava indo para casa, ao invés de ir para a DEO, onde certamente ficaria sob a supervisão da mais velha, enquanto tomava banho de sol. Claramente que Reign podia machucar a outra, elas eram pertencentes ao mesmo planeta e isso significava muito mais do que a situação em si demonstrava. A morena tentou esconder o pânico que escalava suas entranhas, deixou Lizzie no bebê conforto sobre o sofá e correu para segurar a heroína que estava preste a cair no chão. O peso do seu corpo machucado foi quase capaz de fazê-la cair, porém conseguiu manejar o equilíbrio antes que suas pernas fraquejassem.
O cheiro forte de peixe e água salgada logo invadiram suas narinas e o enjoo foi inevitável.
— Céus, Kara, o que aconteceu? — a loira nada respondeu, apenas suspirou cansada e engoliu o nó que surgiu na garganta.
Sentir dor era algo incomum e, mesmo já tendo experienciado algo do tipo, ali era diferente. Era uma dor muito real e palpável. Ela foi levada até o banheiro, onde Lena a sentou sobre a beira da banheira e ligou o chuveiro na água morna. Mal conseguia levantar os braços, ou erguer a cabeça. Tudo latejava, ardia e o sangue quente escorria no seu antebraço esquerdo, a fazendo fechar os olhos e segurar as lágrimas que queriam descer. Não queria chorar, não era mais criança, mas também não sabia lidar com aquele tipo de coisa. Observou a morena andar de um lado para outro, sair e entrar do banheiro. De repente, sentiu as mãos frias segurarem seu rosto com um cuidado quase angelical, a forçando a olhar para cima e encontrar os olhos verdes claros da outra.
— Acha que consegue ficar em pé sozinha? — apenas negou em silêncio — okay, preciso que se apoie em mim.
Ambas se movimentaram devagar, Kara apoiou os braços em seu ombro e Lena segurou sua cintura. A proximidade era algo novo, pois há tempo não conseguiam segurar uma na outra sem desabar. Naquela posição, ela conseguia ver os tons de azul que se misturavam ao verde, a base dos cílios que era loira, a cicatriz embaixo da sobrancelha e pode sentir também a fragrância única do perfume que ela tinha. E aquilo foi capaz de fazê-la chorar, pois a saudade doía bem mais do que qualquer hematoma e corte que seu corpo possuía. Ela soluçou baixo e procurou não fazer alarde do que sentia.
— Apenas respire fundo — pediu preocupada — posso? — indicou o zíper do traje. Vê-la nua, depois de tanto tempo, seria realmente capaz de acender uma chama antiga dentro do seu próprio corpo, pois sim, Kara era muito atraente aos seus olhos. No entanto, seu medo era de não conseguisse lidar com a visão dela ferida. Ali ela não sentiria mais do que uma enorme angústia e dor.
— S-sim — sussurrou.
Com cuidado e singeleza, seu traje foi retirado e jogado no canto do banheiro. Pode sentir o vento frio bater em sua pele quente, a fazendo arrepiar e suas pernas trepidarem. A CEO continuou com os braços firmes ao redor da sua cintura, sem nunca a soltar ou apertar forte demais. Caminharam até o chuveiro, com Kara ficando aos poucos embaixo da água morna e os dedos da Luthor passearem vagarosamente por seus cabelos, os jogando para trás e ajudando o líquido a escorrer sobre o sangue seco grudado no seu rosto. Cada movimento fazia seus músculos reclamarem e seu nariz dava algumas fisgadas quando o franzia.
— Levante a cabeça devagar… isso — continuou a falar em tom baixo — se doer demais, me avise. Vou precisar lavar você com o sabonete, então vai arder, okay?
— Okay — assentiu, gemendo ao sentir o braço arder com o contato.
— Alex avisou que você viria e está vindo para cá com as lâmpadas amarelas — pontuou — deveria ter ido para a DEO, precisa descansar e esperar as feridas…
— Eu queria vir para casa — a interrompeu — queria ver vocês…
Lena sentiu o coração afundar no peito ao ouvir o tom de voz triste da outra. Quebrado.
— Porque ela simplesmente não pode conversar comigo? — voltou a falar, soluçando mais uma vez — ela é… eu só queria… queria entender…
Ficaram em silêncio, pois Kara precisava daquele momento para desabar e a Luthor entendia bem. Continuou a lavar seu corpo, tomando um cuidado extra com o braço e retirando o rastro de areia do seu pescoço. Sua saia estava quase ensopada, sua camisa transparente, mas Lena sequer se importava. Agradeceu mentalmente por Lizzie estar dormindo.
— Sempre achei que eu e Clark fossemos os últimos, mas então ela aparece e sequer… sequer procura alguém e… — bufou e gemeu com o sabão encostando no arranhão das duas costas.
— Reign é kryptoniana — a loira assentiu — o que é aquele simbolo?
— Em Krypton havia mais de uma casa e cada uma tem o seu brasão — explicou num murmúrio — não cheguei a conhecer as outras, porém minha tia Astra falava sobre elas, como meu pai fazia para negociar e gerenciar todas as coisas — a súbita lembrança fez suas lágrimas voltarem a cair.
E foi então que Lena entendeu. Esse era o motivo para Kara querer voltar para casa. Ela queria contar sua história, queria aproveitar a chance que havia dado naquela manhã.
— Pode… pode me falar sobre Krypton? — pediu receosa, sem nem saber se aguentaria aquela verdade — se sentir à vontade.
— O sol era de um vermelho tão intenso, como se estivessemos num por do sol a manhã toda — Kara fechou os olhos e voltou para mais de vinte anos no passado — a arquitetura era baseada nas formas geométricas, a organização de Argo City era incomparável a qualquer uma aqui da Terra e a tecnologia fazia coisas impressionantes — sorriu fraco, as palavras escapavam sem nem ter controle sobre elas — meu pai adoraria te conhecer, você certamente que seria apresentada a todos os laboratórios, ficaria deslumbrada com os avanços do nosso planeta e dificilmente eu conseguiria te tirar de lá — Lena sorriu sem nem perceber — sempre fui educada pelos melhores tutores para fazer parte do campo científico, porém eu amava o campo das artes, da língua e das expressões corporais — confessou apaixonada — minha tia Astra fazia questão de me levar com ela para o laboratório, onde me colocava no colo e explicava cada experimento que estava realizando. Minha mãe achava um absurdo, pois ela fazia parte da área militar e devia focar no seu trabalho.
— Certamente que Astra fazia os dois com muita dedicação — adicionou, fazendo Kara sorrir.
— Você tem toda a razão — concordou e suspirou, ficando de costas para a outra lavar seus cabelos — do meu quarto eu podia ver as estrelas que ficavam distantes, não é como o céu daqui, era mais claro, mais intenso e colorido. Minha mãe costumava a dizer que eu tinha um olhar bom para encarar o universo, sempre conseguindo enxergar o que ninguém conseguia — novamente, seus olhos marejaram — às vezes, quando olho para o céu a noite, posso quase enxergar a estrela que restou de Krypton, mesmo sabendo que ela vai demorar anos luz para brilhar aqui na Terra — soluçou, perdendo o equilíbrio e usando a parede para se apoiar.
Lena segurou novamente em sua cintura e pensou ser um pouco demais fazê-la falar. Perder sua mãe da forma brusca e trágica que perdeu sempre a assombrou durante seus sonhos, no entanto, não era capaz de entender, ou compreender, a imensidão da dor que se escondia no peito da outra. Perder um planeta inteiro, uma família inteira, amigos. Era fora de qualquer entendimento humano, ninguém seria capaz de de amenizar os danos que aquela perda causou no coração da pequena Danvers.
Quando tentou falar para ela parar, outro soluço ecoou pelo banheiro.
— Meus pais me deram tanto e eu fui amada, muito mais do que posso dizer — virou-se para encarar a CEO, despida de corpo e alma, sangrando também pelos olhos e pelas palavras — quando meus pais me colocaram naquela cápsula em Krypton, eu não… não percebi o que realmente estava acontecendo ... E-eu não sabia que eu estava me despedindo deles para sempre — soluçou e Lena também começou a chorar, mesmo que se reprimisse para não o fazer — E-eu vi... Krypton explodir atrás de mim, jogando nos meus ombros uma realidade que eu nem entendia… e depois fiquei presa, flutuando no espaço por tanto tempo sabendo que eu nunca poderia ter minha vida de volta … — a água pingava de seus cabelos, o roxo ao redor do seu nariz ia desaparecendo gradualmente, ficando amarelado e ela tentava não se mexer para não fazer seu corpo doer mais — Estava tudo tão quieto... — sussurrou — o silêncio era a pior parte ... Eu me senti completamente isolada de tudo e de todos que eu conheci. Eu me lembro de estar sozinha naquela cápsula, sem saber se eu ia ver alguém novamente. E então eu caí aqui, Clark era o Superman e não precisava mim, ele sequer perguntou o que tinha acontecido, sequer perguntou se eu estava bem, se precisava de alguma coisa dele! — falou com amargura e rancor no tom de voz — e ninguém me perguntou se eu queria esses poderes. Os Danvers me mandavam esconder, me pediam para ser mais humana, quando tudo que eu queria fazer era ajudar as pessoas com o que me foi dado e ninguém me deixava fazer nada!
Lena a segurou mais firme e deixou que ela mostrasse cada ferida aberta em seu coração. Cada cicatriz. Cada pedaço corroído de sua alma.
— Quando eu vi a Alex perto de morrer naquele avião, eu não… e-eu não podia… — soluçou — eu não podia simplesmente deixá-la morrer sabendo que eu devia ter feito alguma coisa, mas assim que eu voltei para o meu apartamento eu senti como se finalmente tivesse achado o meu lugar no mundo. Era… era tão certo, tão incrível e eu queria gritar o mais alto que eu podia, porque finalmente, Lena, eu estava me sentindo bem. Eu tentei ser Kara Danvers por 15 anos, mas eu não deveria ser ela, eu não deveria ser humana. Eu não sou humana — a verdade veio novamente, mas dessa vez não doeu. Dessa vez a Luthor não sentiu a fisgada no peito como antes, pois agora entendia o sentido de todo aquele segredo — quando meus pais me colocaram naquele pod eu senti tanta raiva, raiva porque ninguém me explicou o que realmente estava acontecendo e eu fui abandonada, duas vezes. Pela minha própria família — se referiu aos pais e a Kal-El — a Supergirl é forte, destemida e eu posso ser ela quando ser a Kara Danvers, a repórter, está totalmente quebrada. Não menti para você por não confiar na nossa amizade, por não acreditar nas suas palavras ou porque eu não queria assumir o compromisso com a nossa filha, acontece que ser heroína e se apaixonar são coisas difíceis de lidar — encarou pela primeira a mulher a sua frente, envergonhada ainda de suas atitudes passadas e tentando demonstrar exatamente o medo que sentiu — eu escolhi a Supergirl ao invés de ter um relacionamento e porque sei que não posso ter tudo. Pensei que poderia ter Mon-El, porque tudo que eu queria era ter o parceiro perfeito em uma noite de jogos ... mas então eu percebi que tinha você. Eu não podia te perder, Lena — suas mãos se levantaram devagar e seguraram o rosto da CEO dentro delas. Como quem segura o mundo, como quem tenta desesperadamente colocar a alma para fora — quando você começou a acreditar em mim como humana, tudo parecia incrível e correto. Eu não queria perder minha parte humana porque era a parte que tinha você, que poderia ser fraca e vulnerável. Durante a minha vida toda eu tentei ser humana e só você foi capaz de trazer um sentido, um significado e um motivo para eu continuar tentando. Eu só queria ainda ter você comigo, sem precisar ser a heroína que todos esperam que eu seja… — terminou sussurrando — que vergonha para mim ter um coração tão humano…
E, sobre suas últimas palavras, Lena não soube o que dizer. Quando pediu pela verdade, quando decidiu que daria a chance a ela para se explicar, jamais imaginou que teria que lidar com aquilo. Com aquele fardo. Cada revelação foi sendo escrita em sua própria alma, se tornando parte si, se transformando em sua própria dor. Kara deixou o seu rosto livre, as lágrimas ainda escorriam em seu rosto e ela nunca pareceu tão humana quanto agora. Independente se era ou não a garota de aço, se as pessoas esperavam que ela diariamente se arriscasse nas ruas da cidade, ali ela era apenas a mulher que perdeu a família, que acordou sozinha por vinte e quatro anos no escuro. Aquela era a Kara Zor-El e não a Supergirl, ou até mesmo a Kara Danvers.
Aquela era a sua verdadeira face. E Lena nunca se sentiu tão pequena, tão impotente.
O silêncio vagou pelo cômodo, a loira era capaz de escutar o coração da CEO bater acelerado, assim como podia ouvir a respiração calma de sua filha no quarto. Não esperava uma resposta, sendo sincera, era nem sabia o que esperar. Aquela era a sua única chance de poder ser honesta com tudo o que tinha.
Lena deu um passo para frente e envolveu seu corpo num abraço quente e doloroso. Kara desmoronou sobre eles.
— Quem você é como Supergirl e como Kara Danvers, isso é o que define você — sussurrou, lutando contra a tremedeira em seus lábios — porém a Supergirl é o que você pode fazer e a Kara é quem você realmente é por dentro. Você é a melhor irmã da Alex, a melhor amiga do Winn, é a mãe da Lizzie — ela se afastou minimamente e segurou o rosto da loira em suas mãos, finalmente deixando as lágrimas escorrerem — e você ainda é a minha pessoa favorita.
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