Fogo e sombras
escrita por viamaral
Capítulos 1
Palavras 172
Atualizada
Idioma Português
Categorias Histórias Originais
Gêneros Fantasia
Hoje, pela primeira vez, vi um bruxo de perto. Ele estava diante de mim, tão próximo que pude sentir a tensão no ar. Seu corpo estava ferido, sangrando, com correntes pesadas presas aos pulsos.
Gritava de dor, sua voz ecoando como um lamento que parecia atravessar a alma de quem ouvia. Ao seu redor, alguns dominadores tentavam invadir sua mente, manipulando sua vontade com sua magia. Ele, no entanto, resistia com uma força quase desumana. Era como se preferisse destruir a si mesmo a se curvar diante deles. Seus olhos, vermelhos de esforço, começaram a sangrar, um testemunho sombrio de sua recusa em ceder.
A cena parecia congelada no tempo, uma batalha silenciosa e desesperada que ninguém ousava interromper. Não sabia se sentia medo, pena ou respeito. O que quer que ele fosse, um vilão ou uma vítima, estava claro que aquele bruxo tinha escolhido sofrer a se render.
Enquanto observava, senti meu coração acelerar, mas meus pés permaneciam presos ao chão. A atmosfera ao redor parecia carregada, quase sufocante, como se a magia que emanava dele estivesse influenciando o próprio ar. Os dominadores murmuravam palavras que eu não conseguia entender, mas o poder que elas carregavam era evidente. Pareciam determinados a quebrá-lo, a dobrar sua resistência, mas o bruxo, mesmo acorrentado e ferido, resistia com uma ferocidade que desafiava a lógica.
Seus gritos se transformaram em um rugido primal, algo que fez minha espinha gelar. O sangue que escorria de seus olhos deixava marcas profundas em sua pele pálida, criando um contraste perturbador com o brilho tênue que parecia emanar de seus ferimentos. Um dos dominadores deu um passo à frente, erguendo a mão em direção à testa do bruxo, mas foi repelido por uma explosão de energia negra que parecia surgir do nada. Mesmo naquelas condições, ele ainda tinha forças para lutar.
– Vocês nunca terão o que querem! – ele gritou, sua voz carregada de uma mistura de desespero e desafio.
Foi nesse momento que percebi: aquilo não era apenas uma tentativa de dominação. Eles estavam buscando algo dentro dele, algo tão perigoso que justificava toda aquela violência. O bruxo não era apenas um inimigo; ele era uma ameaça, ou talvez um guardião de segredos que não deveriam ser revelados.
O som de correntes sendo puxadas com força cortou o ar, e um dos dominadores, visivelmente irritado, ordenou que reforçassem o cerco. O bruxo parecia cada vez mais fraco, mas seus olhos – mesmo sangrando – ainda brilhavam com determinação. Por um instante, nossas olhares se cruzaram, e senti um calafrio atravessar meu corpo. Ele me viu. E naquele olhar havia algo que eu não consegui decifrar
Ao meu redor, a multidão parecia em êxtase. Risos, gritos e olhares cheios de prazer mórbido preenchiam o ar enquanto o bruxo, ensanguentado e acorrentado, agonizava. Parecia que o sofrimento dele era uma espécie de espetáculo, algo para ser aplaudido, como se a dor dele fosse uma forma de justiça ou entretenimento. Mas eu não conseguia ver dessa forma. Ele era jovem, talvez da minha idade. Havia algo de profundamente errado em tudo aquilo, algo que me causava náuseas.
Enquanto os outros aplaudiam, eu apenas sentia uma mistura de desconforto e revolta. Nunca consegui entender o fascínio de algumas pessoas em assistir ao sofrimento dos outros. Diziam que era porque esses bruxos mereciam, porque eram monstros que deviam pagar até o último suspiro. Mas, olhando para ele, machucado, com os olhos sangrando e os gritos ressoando na noite, não era isso que eu via. Ele parecia humano. Mais humano do que as pessoas ao meu redor.
Um arrepio percorreu minha espinha. Foi nesse momento que senti. Uma presença atrás de mim. Não era só instinto; era certeza.
— Você não devia estar aqui.
A voz firme e grave cortou o ar como uma lâmina. Me virei devagar, meu coração acelerado, e lá estava ele. Sempre ele. Alto, com a postura de quem parecia carregar um peso maior do que deveria, os olhos me encarando com uma intensidade difícil de suportar.
— Meu guarda pessoal não devia estar aqui.
Ele cruzou os braços, o rosto inexpressivo como sempre, mas havia algo em sua postura que denunciava a irritação.
— Foram seus pais que me colocaram nessa tarefa.
Minha mandíbula travou.
— Claro. Torturar uma pessoa. Que ideia brilhante.
Ele não piscou, não desviou o olhar.
— Ele não é uma pessoa como nós.
O peso dessas palavras pairou no ar, sufocante. Por um momento, pensei em questioná-lo, mas o modo como ele me encarava... havia algo mais ali. O silêncio se estendeu entre nós, quebrado apenas pelo som distante da multidão.
— Ele é o quê, então? Uma criatura abominável que cospe fogo, igual às lendas? Bla, bla, bla. — Revirei os olhos, cruzando os braços. — Para mim, ele parece bem humano.
Alaric permaneceu imóvel, seu olhar afiado cravado em mim.
— Não importa o que parece pra você. Vá para o seu quarto. Agora. — Sua voz era firme, autoritária, como se não aceitasse discussão.
Minha mandíbula apertou. Por dentro, senti a raiva borbulhar, mas engoli as palavras que queria gritar para ele antes que pudesse dizer qualquer coisa, um grito cortou o ar.
Foi alto, visceral, como se o som carregasse toda a dor do mundo. Por um instante, minhas pernas travaram, e a sala pareceu tremer.
Eu sabia de onde vinha. O garoto.
Olhei para ele, preso e vulnerável, enquanto as lâminas desciam contra sua pele. Eles estavam cortando-o, com precisão cruel, como se procurassem algo mais profundo do que carne.
— Vocês não podem fazer isso! — gritei, minha voz saindo mais alta do que eu imaginava.
Os gritos dele ecoavam, cada vez mais intensos, reverberando pelo ambiente.
— Eles não podem fazer isso com ele! — exclamei, virando-me para Alaric, tentando buscar algum senso de humanidade nele. — Estamos em público, e estão cortando a pele dele como se não fosse nada!
Mas Alaric não se moveu. Ele continuava parado, frio, como se aquilo não fosse nada além de um protocolo. Sua expressão não demonstrava emoção, nem preocupação. Apenas... vazio.
Minha respiração estava acelerada, meu peito apertado. Eu queria gritar mais, fazer alguma coisa, mas parecia que minha voz não era suficiente para quebrar o gelo que envolvia Alaric. Ele simplesmente ficou ali, como uma estátua, enquanto os gritos do garoto preenchiam o ambiente, cada vez mais angustiantes.
— Já chega.— A voz de Alaric cortou o ar, firme e autoritária, como uma lâmina. Ele se dirigiu aos homens com as lâminas nas mãos, sua ordem tão impositiva que os fez imediatamente parar. Mesmo com a interrupção, ele parecia não se importar nem um pouco com a dor do garoto, que ainda gemia, agora em silêncio. A indiferença dele era tão evidente que a sala inteira parecia envolta por um gelo invisível.
A multidão, que antes estava em frenesi, agora ficou em silêncio absoluto, como se a tensão tivesse amordaçado todos os sons ao redor. Apenas os suspiros pesados e os ecos das últimas palavras de Alaric preenchiam o ambiente.
— O show acabou. Leve o prisioneiro para a cela dele.— As palavras dele saíram sem emoção, como uma ordem que ele já havia dado muitas vezes antes. A frieza em sua voz era assustadora, como se ele não enxergasse o prisioneiro diante de nós como algo além de uma peça descartável. O silêncio na sala era profundo, pesado. Ninguém ousou fazer um som sequer. O momento havia se tornado um espectro, sem vida, sem calor.
Então, Alaric virou-se para mim, seus olhos fixos nos meus de forma intensa, mas sem qualquer traço de empatia ou compreensão. Ele me observava como se eu fosse uma simples interrupção.
— E você...— Ele pausou por um instante, sua voz ainda mais fria, como se ele calculasse cada palavra. — Quarto, agora. Se seus pais souberem que viu tal coisa, será eu quem será torturado no lugar daquele bicho.
Essas palavras ressoaram dentro de mim, uma ameaça clara e direta, mas também uma terrível verdade sobre o papel que ele assumia em minha vida. Ele estava me dizendo que, se eu não obedecesse, a tortura não seria para mim, mas para ele, o homem imperturbável. Algo em mim gelou. Eu sabia que ele não estava brincando.
Eu sabia que não deveria fazer perguntas sobre bruxos, muito menos mencionar algo relacionado a eles. Era proibido. Falar sobre isso era crime, e todos temiam as consequências. Mas, naquele momento, minha curiosidade superou o medo, e eu simplesmente não me importei.
— Eu nunca tinha visto um bruxo na minha vida. E agora tem um aqui, no estabelecimento. Por acaso vocês escondem mais bruxos em celas para tortura depois? — minha voz saiu afiada, carregada de ironia.
Ele estreitou os olhos, e uma sombra de irritação passou por seu rosto antes que ele recuperasse sua máscara fria. — Você nunca tinha visto e não deveria ter visto.
— Todo mundo está vendo. Vocês estavam torturando ele em público. — rebati, dando um passo à frente
. — Você devia estar no seu quarto, em uma ala bem distante desta, Victhorya — ele disse, a voz grave, como se fosse uma ordem.
— Vim te procurar. Estava preocupada — menti, minha voz carregada de sarcasmo, um desafio evidente no tom.
Ele inclinou a cabeça levemente, estudando-me com um olhar que parecia atravessar minha alma. — Mentirosa. Agora volte para o seu quarto... para a sua casa, Victhorya. — O tom severo e baixo quase soou como uma ameaça
Minha garganta secou. Eu sabia que Eu deveria recuar. Ir embora e esquecer o que havia visto. Mas como esquecer algo assim?
— E se eu não for? — desafiei, cruzando os braços.
Ele arqueou uma sobrancelha, como se não acreditasse no que acabara de ouvir. Seus olhos, até então impassíveis, brilharam com algo que parecia um misto de irritação e curiosidade.
— Você acha que entende o que viu, mas não entende nada, Victhorya.
— Então me explique! — Minha voz saiu mais alta do que eu pretendia. Senti o calor no rosto . O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo som abafado de vozes distantes e passos no corredor. Ele fechou os olhos por um instante, como se reunisse paciência, mas quando os abriu novamente, havia algo diferente ali. Um cansaço que eu não esperava.
— Você acha que o bruxo que viu é uma vítima? — Ele soltou uma risada seca, mas não havia humor nela. — Ele matou três pessoas antes de ser capturado. E sabe o que é pior? Se fosse solto, mataria mais. Eles não são como nós. Eles não respeitam as leis que nos mantêm em equilíbrio.
Eu quis responder,
mas ele continuou, não me dando chance:
— Há coisas que você ainda não entende, Victhorya. E, sinceramente, espero que nunca precise entender. Porque, quando chegar esse dia, será tarde demais para voltar atrás.
A intensidade de suas palavras me fez hesitar. Pela primeira vez, senti que havia algo mais sombrio por trás de suas ações. Algo que não era tão simples quanto eu imaginava.
Ele deu um último passo em minha direção, ficando tão perto que quase podia sentir o calor de sua respiração.
— Volte para o seu quarto. Não me obrigue a levá-la à força.
Minha garganta secou. Discutir mais com ele não me levaria a lugar algum, e eu sabia disso. Alaric não era o tipo de pessoa que cederia diante de palavras ou argumentos. Ele era exatamente o que o estabelecimento valorizava: submisso às regras, fiel ao sistema, alguém que jamais questionava as leis dos dominadores. Para ele, obedecer não era uma escolha, era um dever inabalável.
Observei seu rosto por alguns segundos, tentando encontrar alguma fissura em sua fachada, algo que indicasse dúvida ou humanidade. Mas não havia nada ali. Apenas aquela expressão dura, calculista, feita para intimidar.
Eu odiava isso nele. Odiava como ele simplesmente aceitava tudo o que os superiores ordenavam, como se as leis fossem verdades absolutas. Para Alaric, não importava se as ordens eram cruéis ou injustas. Ele cumpria sem hesitar, sem nunca olhar para os lados ou se perguntar se havia outro caminho.
Suspirei, tentando conter minha frustração, e dei um passo para trás.
— Tudo bem, eu vou. — Minha voz saiu baixa, quase um sussurro, mas carregada de sarcasmo o suficiente para ele perceber que minha "obediência" era apenas momentânea.
Ele me observou por um instante, como se tentasse decidir se confiava na minha saída pacífica, antes de dar um leve aceno de cabeça.
— Ótimo. Que isso não se repita.
Virei-me e comecei a caminhar em direção ao meu quarto. A visão do bruxo sendo torturado continuava nítida na minha mente. Suas expressões de dor, os gritos abafados, as correntes que o prendiam... tudo parecia gravado, como uma cicatriz invisível.
Para mim, ele parecia tão humano quanto eu. Mas não foi isso que me ensinaram.
Desde pequena, os bruxos sempre foram descritos como monstros, criaturas desumanas que não sentiam remorso, nem dor, nem culpa. Eles eram a ameaça, o desequilíbrio, o inimigo que precisava ser combatido. Cresci ouvindo essas histórias, aprendendo a temê-los e a desprezá-los.
Mas o que vi hoje... aquilo não era um monstro. Era um homem. Um ser humano, como eu. E, por mais que eu tentasse, não conseguia associar aquela imagem de sofrimento à ideia de algo puramente maligno.
Se ele realmente era tão perigoso, por que estava acorrentado, indefeso, sendo torturado? Se ele fosse a ameaça que diziam, não deveria parecer tão frágil, tão... humano?
Gritava de dor, sua voz ecoando como um lamento que parecia atravessar a alma de quem ouvia. Ao seu redor, alguns dominadores tentavam invadir sua mente, manipulando sua vontade com sua magia. Ele, no entanto, resistia com uma força quase desumana. Era como se preferisse destruir a si mesmo a se curvar diante deles. Seus olhos, vermelhos de esforço, começaram a sangrar, um testemunho sombrio de sua recusa em ceder.
A cena parecia congelada no tempo, uma batalha silenciosa e desesperada que ninguém ousava interromper. Não sabia se sentia medo, pena ou respeito. O que quer que ele fosse, um vilão ou uma vítima, estava claro que aquele bruxo tinha escolhido sofrer a se render.
Enquanto observava, senti meu coração acelerar, mas meus pés permaneciam presos ao chão. A atmosfera ao redor parecia carregada, quase sufocante, como se a magia que emanava dele estivesse influenciando o próprio ar. Os dominadores murmuravam palavras que eu não conseguia entender, mas o poder que elas carregavam era evidente. Pareciam determinados a quebrá-lo, a dobrar sua resistência, mas o bruxo, mesmo acorrentado e ferido, resistia com uma ferocidade que desafiava a lógica.
Seus gritos se transformaram em um rugido primal, algo que fez minha espinha gelar. O sangue que escorria de seus olhos deixava marcas profundas em sua pele pálida, criando um contraste perturbador com o brilho tênue que parecia emanar de seus ferimentos. Um dos dominadores deu um passo à frente, erguendo a mão em direção à testa do bruxo, mas foi repelido por uma explosão de energia negra que parecia surgir do nada. Mesmo naquelas condições, ele ainda tinha forças para lutar.
– Vocês nunca terão o que querem! – ele gritou, sua voz carregada de uma mistura de desespero e desafio.
Foi nesse momento que percebi: aquilo não era apenas uma tentativa de dominação. Eles estavam buscando algo dentro dele, algo tão perigoso que justificava toda aquela violência. O bruxo não era apenas um inimigo; ele era uma ameaça, ou talvez um guardião de segredos que não deveriam ser revelados.
O som de correntes sendo puxadas com força cortou o ar, e um dos dominadores, visivelmente irritado, ordenou que reforçassem o cerco. O bruxo parecia cada vez mais fraco, mas seus olhos – mesmo sangrando – ainda brilhavam com determinação. Por um instante, nossas olhares se cruzaram, e senti um calafrio atravessar meu corpo. Ele me viu. E naquele olhar havia algo que eu não consegui decifrar
Ao meu redor, a multidão parecia em êxtase. Risos, gritos e olhares cheios de prazer mórbido preenchiam o ar enquanto o bruxo, ensanguentado e acorrentado, agonizava. Parecia que o sofrimento dele era uma espécie de espetáculo, algo para ser aplaudido, como se a dor dele fosse uma forma de justiça ou entretenimento. Mas eu não conseguia ver dessa forma. Ele era jovem, talvez da minha idade. Havia algo de profundamente errado em tudo aquilo, algo que me causava náuseas.
Enquanto os outros aplaudiam, eu apenas sentia uma mistura de desconforto e revolta. Nunca consegui entender o fascínio de algumas pessoas em assistir ao sofrimento dos outros. Diziam que era porque esses bruxos mereciam, porque eram monstros que deviam pagar até o último suspiro. Mas, olhando para ele, machucado, com os olhos sangrando e os gritos ressoando na noite, não era isso que eu via. Ele parecia humano. Mais humano do que as pessoas ao meu redor.
Um arrepio percorreu minha espinha. Foi nesse momento que senti. Uma presença atrás de mim. Não era só instinto; era certeza.
— Você não devia estar aqui.
A voz firme e grave cortou o ar como uma lâmina. Me virei devagar, meu coração acelerado, e lá estava ele. Sempre ele. Alto, com a postura de quem parecia carregar um peso maior do que deveria, os olhos me encarando com uma intensidade difícil de suportar.
— Meu guarda pessoal não devia estar aqui.
Ele cruzou os braços, o rosto inexpressivo como sempre, mas havia algo em sua postura que denunciava a irritação.
— Foram seus pais que me colocaram nessa tarefa.
Minha mandíbula travou.
— Claro. Torturar uma pessoa. Que ideia brilhante.
Ele não piscou, não desviou o olhar.
— Ele não é uma pessoa como nós.
O peso dessas palavras pairou no ar, sufocante. Por um momento, pensei em questioná-lo, mas o modo como ele me encarava... havia algo mais ali. O silêncio se estendeu entre nós, quebrado apenas pelo som distante da multidão.
— Ele é o quê, então? Uma criatura abominável que cospe fogo, igual às lendas? Bla, bla, bla. — Revirei os olhos, cruzando os braços. — Para mim, ele parece bem humano.
Alaric permaneceu imóvel, seu olhar afiado cravado em mim.
— Não importa o que parece pra você. Vá para o seu quarto. Agora. — Sua voz era firme, autoritária, como se não aceitasse discussão.
Minha mandíbula apertou. Por dentro, senti a raiva borbulhar, mas engoli as palavras que queria gritar para ele antes que pudesse dizer qualquer coisa, um grito cortou o ar.
Foi alto, visceral, como se o som carregasse toda a dor do mundo. Por um instante, minhas pernas travaram, e a sala pareceu tremer.
Eu sabia de onde vinha. O garoto.
Olhei para ele, preso e vulnerável, enquanto as lâminas desciam contra sua pele. Eles estavam cortando-o, com precisão cruel, como se procurassem algo mais profundo do que carne.
— Vocês não podem fazer isso! — gritei, minha voz saindo mais alta do que eu imaginava.
Os gritos dele ecoavam, cada vez mais intensos, reverberando pelo ambiente.
— Eles não podem fazer isso com ele! — exclamei, virando-me para Alaric, tentando buscar algum senso de humanidade nele. — Estamos em público, e estão cortando a pele dele como se não fosse nada!
Mas Alaric não se moveu. Ele continuava parado, frio, como se aquilo não fosse nada além de um protocolo. Sua expressão não demonstrava emoção, nem preocupação. Apenas... vazio.
Minha respiração estava acelerada, meu peito apertado. Eu queria gritar mais, fazer alguma coisa, mas parecia que minha voz não era suficiente para quebrar o gelo que envolvia Alaric. Ele simplesmente ficou ali, como uma estátua, enquanto os gritos do garoto preenchiam o ambiente, cada vez mais angustiantes.
— Já chega.— A voz de Alaric cortou o ar, firme e autoritária, como uma lâmina. Ele se dirigiu aos homens com as lâminas nas mãos, sua ordem tão impositiva que os fez imediatamente parar. Mesmo com a interrupção, ele parecia não se importar nem um pouco com a dor do garoto, que ainda gemia, agora em silêncio. A indiferença dele era tão evidente que a sala inteira parecia envolta por um gelo invisível.
A multidão, que antes estava em frenesi, agora ficou em silêncio absoluto, como se a tensão tivesse amordaçado todos os sons ao redor. Apenas os suspiros pesados e os ecos das últimas palavras de Alaric preenchiam o ambiente.
— O show acabou. Leve o prisioneiro para a cela dele.— As palavras dele saíram sem emoção, como uma ordem que ele já havia dado muitas vezes antes. A frieza em sua voz era assustadora, como se ele não enxergasse o prisioneiro diante de nós como algo além de uma peça descartável. O silêncio na sala era profundo, pesado. Ninguém ousou fazer um som sequer. O momento havia se tornado um espectro, sem vida, sem calor.
Então, Alaric virou-se para mim, seus olhos fixos nos meus de forma intensa, mas sem qualquer traço de empatia ou compreensão. Ele me observava como se eu fosse uma simples interrupção.
— E você...— Ele pausou por um instante, sua voz ainda mais fria, como se ele calculasse cada palavra. — Quarto, agora. Se seus pais souberem que viu tal coisa, será eu quem será torturado no lugar daquele bicho.
Essas palavras ressoaram dentro de mim, uma ameaça clara e direta, mas também uma terrível verdade sobre o papel que ele assumia em minha vida. Ele estava me dizendo que, se eu não obedecesse, a tortura não seria para mim, mas para ele, o homem imperturbável. Algo em mim gelou. Eu sabia que ele não estava brincando.
Eu sabia que não deveria fazer perguntas sobre bruxos, muito menos mencionar algo relacionado a eles. Era proibido. Falar sobre isso era crime, e todos temiam as consequências. Mas, naquele momento, minha curiosidade superou o medo, e eu simplesmente não me importei.
— Eu nunca tinha visto um bruxo na minha vida. E agora tem um aqui, no estabelecimento. Por acaso vocês escondem mais bruxos em celas para tortura depois? — minha voz saiu afiada, carregada de ironia.
Ele estreitou os olhos, e uma sombra de irritação passou por seu rosto antes que ele recuperasse sua máscara fria. — Você nunca tinha visto e não deveria ter visto.
— Todo mundo está vendo. Vocês estavam torturando ele em público. — rebati, dando um passo à frente
. — Você devia estar no seu quarto, em uma ala bem distante desta, Victhorya — ele disse, a voz grave, como se fosse uma ordem.
— Vim te procurar. Estava preocupada — menti, minha voz carregada de sarcasmo, um desafio evidente no tom.
Ele inclinou a cabeça levemente, estudando-me com um olhar que parecia atravessar minha alma. — Mentirosa. Agora volte para o seu quarto... para a sua casa, Victhorya. — O tom severo e baixo quase soou como uma ameaça
Minha garganta secou. Eu sabia que Eu deveria recuar. Ir embora e esquecer o que havia visto. Mas como esquecer algo assim?
— E se eu não for? — desafiei, cruzando os braços.
Ele arqueou uma sobrancelha, como se não acreditasse no que acabara de ouvir. Seus olhos, até então impassíveis, brilharam com algo que parecia um misto de irritação e curiosidade.
— Você acha que entende o que viu, mas não entende nada, Victhorya.
— Então me explique! — Minha voz saiu mais alta do que eu pretendia. Senti o calor no rosto . O silêncio que se seguiu foi quebrado apenas pelo som abafado de vozes distantes e passos no corredor. Ele fechou os olhos por um instante, como se reunisse paciência, mas quando os abriu novamente, havia algo diferente ali. Um cansaço que eu não esperava.
— Você acha que o bruxo que viu é uma vítima? — Ele soltou uma risada seca, mas não havia humor nela. — Ele matou três pessoas antes de ser capturado. E sabe o que é pior? Se fosse solto, mataria mais. Eles não são como nós. Eles não respeitam as leis que nos mantêm em equilíbrio.
Eu quis responder,
mas ele continuou, não me dando chance:
— Há coisas que você ainda não entende, Victhorya. E, sinceramente, espero que nunca precise entender. Porque, quando chegar esse dia, será tarde demais para voltar atrás.
A intensidade de suas palavras me fez hesitar. Pela primeira vez, senti que havia algo mais sombrio por trás de suas ações. Algo que não era tão simples quanto eu imaginava.
Ele deu um último passo em minha direção, ficando tão perto que quase podia sentir o calor de sua respiração.
— Volte para o seu quarto. Não me obrigue a levá-la à força.
Minha garganta secou. Discutir mais com ele não me levaria a lugar algum, e eu sabia disso. Alaric não era o tipo de pessoa que cederia diante de palavras ou argumentos. Ele era exatamente o que o estabelecimento valorizava: submisso às regras, fiel ao sistema, alguém que jamais questionava as leis dos dominadores. Para ele, obedecer não era uma escolha, era um dever inabalável.
Observei seu rosto por alguns segundos, tentando encontrar alguma fissura em sua fachada, algo que indicasse dúvida ou humanidade. Mas não havia nada ali. Apenas aquela expressão dura, calculista, feita para intimidar.
Eu odiava isso nele. Odiava como ele simplesmente aceitava tudo o que os superiores ordenavam, como se as leis fossem verdades absolutas. Para Alaric, não importava se as ordens eram cruéis ou injustas. Ele cumpria sem hesitar, sem nunca olhar para os lados ou se perguntar se havia outro caminho.
Suspirei, tentando conter minha frustração, e dei um passo para trás.
— Tudo bem, eu vou. — Minha voz saiu baixa, quase um sussurro, mas carregada de sarcasmo o suficiente para ele perceber que minha "obediência" era apenas momentânea.
Ele me observou por um instante, como se tentasse decidir se confiava na minha saída pacífica, antes de dar um leve aceno de cabeça.
— Ótimo. Que isso não se repita.
Virei-me e comecei a caminhar em direção ao meu quarto. A visão do bruxo sendo torturado continuava nítida na minha mente. Suas expressões de dor, os gritos abafados, as correntes que o prendiam... tudo parecia gravado, como uma cicatriz invisível.
Para mim, ele parecia tão humano quanto eu. Mas não foi isso que me ensinaram.
Desde pequena, os bruxos sempre foram descritos como monstros, criaturas desumanas que não sentiam remorso, nem dor, nem culpa. Eles eram a ameaça, o desequilíbrio, o inimigo que precisava ser combatido. Cresci ouvindo essas histórias, aprendendo a temê-los e a desprezá-los.
Mas o que vi hoje... aquilo não era um monstro. Era um homem. Um ser humano, como eu. E, por mais que eu tentasse, não conseguia associar aquela imagem de sofrimento à ideia de algo puramente maligno.
Se ele realmente era tão perigoso, por que estava acorrentado, indefeso, sendo torturado? Se ele fosse a ameaça que diziam, não deveria parecer tão frágil, tão... humano?
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