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História A prisão de Cronos - Capítulo Um


Escrita por: DyingPumpkin

Notas do Autor


Ainda acho que vou reescrever tudo, mas por que não partilhar um pouco da história?

Capítulo 1 - Capítulo Um


O cheiro do mofo faz o homem a minha frente espirrar, ele pigarreia incomodado enquanto leva a mão à garganta, talvez o nariz entupido esteja consumindo sua paciência, lembro-me de quando cheguei aqui. Puxo alguns fios castanhos enquanto o estômago revira às lembranças, toco a pele gelada do pescoço, onde havia ido o calor corporal que eu tinha?

Escondido nos ossos, talvez consumido pelas paredes úmidas, sugado pela circulação de ar precária, não quero um espelho mesmo que minha vida dependesse disso. Imagino quão fundas estejam minhas olheiras ou quão marcada esteja minha clavícula. Ao menos meu cabelo cresceu, deixando as pontas castanhas cada vez mais baixas, cada vez mais desbotadas, loiras mesmo que isso não combine comigo.

Faz um certo tempo desde que usei minha voz. Sinto isso em minha garganta, como uma constante asfixia, tenho medo do quão empoeirada esteja, se ainda estiver aqui, se ainda houver o que dizer.

A última vez foi dolorosa. Gritei a plenos pulmões, as mãos largas pressionando a carne, quase queimando minha pele. Aquelas mãos me arrastaram para esta cela apertada, logo após minha fuga tão precária, logo após aquela vitória surgir diante dos meus olhos, levando-me a derrota.

Fui arrastada pelo carcereiro, suas mãos estavam em meus pulsos como algemas de carne, fortes o bastante para evitar que eu me soltasse. Minha pele estava ferida, o aperto das algemas das quais havia sido libertas era uma memória vívida. Não lembro o caminho até meu cárcere, a coronhada do tenente ainda dói na nuca se eu pensar demais nela, e naquele dia, talvez noite, doía ao ponto de anestesiar todos o meus sentidos.

A respiração era lenta mesmo que ofegante, descompassada como o canto de um pássaro na ninhada errada, o mofo entrava queimando a pele e minha garganta no ato, tentei cobrir o nariz com a blusa, porém a podridão aos poucos desfazia o tecido.

Meus olhos demoraram a acostumarem-se a falta de iluminação e eu não sabia se era dia ou noite, ainda sim os riscos nas paredes multiplicavam-se, tomavam as paredes ao meu redor e temo precisar do teto. Conto dois anos desde que cheguei, se meu próprio senso não tiver sido roubado junto com minha capa.

Escuto um rangido e me reclino na grade de ferro, um carcereiro e um guarda estão com um prisioneiro quatro celas a minha esquerda, outros começaram a gritar e o borburinho estendeu-se pelos corredores, ao passo que esquecer se torna impossível.

Porém gosto de contradizer o que é impossível.

Hoje não é o dia do Porto, mas é inevitável lembrar de como tudo isso começou, de cada grito, cada lágrima. Lembro-me de quando pisei meus pés naquela cidade, meu pai levava a carroça, eu ia ao seu lado, meus olhos encararam e viram tudo o que havia nas ruas, espreitei pelas vielas e por cada rosto, soube de imediato que não seria benquista.

Meu pai parou em frente ao farol, pensei se era possível morar nele, porém logo vi a casa onde passaria o resto da minha infância, um velho casebre, por dentro ainda mais velho, havia barras de ferro levemente enferrujadas nas janelas, duvidei que seriam úteis de alguma forma, o quintal era pequeno tal como o esforço para subir no telhado das casas vizinhas.

Pus minhas coisas no meu quarto, menor que o meu verdadeiro quarto, com menos flores e ar. Havia uma cama, sentei-me, não quebrou. Havia também uma janela, grande em comparação às outras, porém alta demais para que eu pudesse observar a duvidosa paisagem.

Não havia muito o que fazer, iríamos ver meu tio somente a noite, meu pai estava ocupado demais em ver como estavam as coisas no farol, sequer prestou atenção em mim, ainda sim avisei que sairia e saí. Andei pela mesma rua, haviam navios atracados no cais, alguns descarregavam, outros colocavam a carga e preparavam-se para partir.

Continuei em meus passos trôpegos, tropeçando por causa da maresia ardente em minhas narinas, respirar o ar de Dandalion era como inalar beladona. Enquanto meus olhos corriam os mastros e velas, meus ouvidos estavam ocupados demais com o barulho das gaivotas, colidi com alguém.

—É bom olhar por onde anda, sabia?

Olhei para cima, lá estava ele, meu algoz na maioria dos dias. Hesitei antes de segurar a mão estendida para mim, ele sempre foi mais alto que eu, estranhamente branco para uma cidade tão ensolarada.

—Dari.

—Ária. — Ele estendeu sua mão e eu a apertei.

—Até outra hora, Ária.

Dari correu, uma das poucas vezes que seu sorriso não era fingido, ele acenou para mim antes de bater a carteira de homem que passava, rápido, porém não esperto. O homem correu atrás dele, xingando furioso.

—Ele parece idiota demais, Ária. Nem perca seu tempo.

Revirei os olhos, contive algumas risadas antes de correr atrás do homem. Entramos em vielas, becos e passamos por entre as bancas da feira, Dari roubou algumas maçãs e sorriu para mim, tentei igualar-me a ele, era como correr com cervos em um bosque, a única diferença era os obstáculos, no bosque eram raízes ou troncos tombados, ali eram pessoas, cachorros e bancas.

Ainda assim estive no encalço de Dari, o seguindo em cada curva, observando cada furto. Houve um momento onde corremos em círculos até que o homem nos perdesse de vista. Escorei-me em um muro de um beco estreito, batalhei com meus pulmões pelo direito de respirar, Dari encostou-se na parede de frente para mim, meus pulmões aproveitaram o ar por breves instantes, Dari começou a rir e não pude me conter.

—Isso foi divertido.

—Tem coisas ainda mais legais na cidade.

—São todas assim?

—Algumas.

—Acho que vou gostar dessa cidade.

Dari me deu uma maçã, vermelha como suas bochechas depois da perseguição. Minha culpa sempre esteve em não dar importância aos furtos recorrentes ou as bochechas vermelhas, mas me importar demais com aqueles olhos azuis e o sorriso ladino.

Dari acompanhou-me até em casa, lembro-me bem das sobrancelhas arqueadas do meu pai e da típica expressão de questionamento, expressão essa que respondi com um sorriso. Encarei-me no espelho, arrumei-me para outro compromisso, não que jantar na casa de meu tio fosse a mim como uma festa, era um ato simplório para mostrar-se afeto e preocupação.

Ainda que, como o sorriso ostentado em meu rosto, essa máscara sumisse de súbito. Nunca fui dada a demoradas horas para ajeitar o cabelo, mesmo que longo, decerto minhas primas passariam horas para algo simples como um jantar, os sorrisos cínicos e um ar de superiodade sem nexo. Minha tia trajaria um vestido simples, talvez florido, além da aliança, talvez sequer usaria jóias, não por ter algum senso de simplicidade.

Meu tio usaria qualquer roupa que encontrasse, não era especialista em transparecer elegância, não havia de fato elegância alguma a transparecer. Era verdadeiramente parecido com meu pai, por mais que mais claro e com menos rugas, mais baixo e mais calvo, diferentes na postura, ainda assim parecidos.

Limpei os pés no capacho, o sapato descascava junto ao solado, desgastado pelo tempo. Enfiei minha mão no bolso do meu pai e enrolei a corrente do relógio em meu dedo. Senti os calos de sua mão tentando desvencilhar-me de meu amuleto, porém fui mais rápida, ele me ignorou, penso que contra sua própria vontade, quando minhas primas chegaram.

As gêmeas usavam vestidos idênticos, exceto pelas cores, a mais velha, por nome de Bree, usava um azul forte e escuro, a outra, Leila, usava um vestido vermelho como uma rosa. As duas estavam cravejadas de enfeites, brincos, pulseiras, tiaras e colares, quase como se fossem a um baile da corte, coisa que nunca fariam em suas vidas. Lembro-me dos olhares lançados ao meu vestido, verde, velho, vazio de enfeites e babados.

Gostaria de não ater-me ao complexo de superiodade que elas mesmas tinham, penso ser algo desconexo de quem sou, porém o contraste com a vida de burguesas em ascensão que tinham e vida que hoje levam me a rir. O sonho de frequentarem uma corte e bailes nobres desfez-se como a neve no começo da primavera.

Sentei-me no meio das gêmeas, as criadas serviram a comida, o cheiro de mar embriagou-me e meu estômago embrulhou-se como papel, não dei importância para o nome do prato, naquela noite descobri a aversão extrema por qualquer animal que saísse da água salgada, até mesmo peixe. Olhei de canto para o meu pai, comendo aquela coisa que parecia-se mais com veneno, entendi seu olhar rápido, olhei também para minha tia sorrindo. Engoli seco e pus a primeira colher daquela coisa na boca.

Suprimi a vontade de cuspir no prato e também o vômito, preparei-me para o mal-estar que teria, ele aguardaria-me como um leopardo na espreita da grama alta, preparando-se para saltar em cima de sua presa. Eu mesma.

A sobremesa foi muito mais agradável que qualquer conversa à mesa, não havia constrangimento algum em comer aquele bolo coberto de chocolate e frutas, exceto pelo sorriso de minha tia, gabando-se de sua receita. Os negócios iam bem e levaram a muito proveitosa oportunidade como faroleiro para meu pai, já que viver como animais no interior era algo indecente para uma jovem como eu, crescida sem uma devida educação de etiqueta ou educação formal. Um nó formava-se em minha garganta a cada palavra.

—Não acha, querida?

Minha tia olhava no fundo dos meus olhos, sorrindo. Decidi que precisava esbanjar o mesmo sorriso, porém não havia graça alguma no lugar. Lembrei-me subitamente de Dari, suas bochechas vermelhas e de falta de ar, busquei a lembrança do sorriso ladino e quis voltar para a feira.

—É realmente bom poder ir para a escola.

Passamos mais algum tempo ali, indo e vindo em assuntos desnecessários, ou simplesmente pessoais demais. Soltei o ar quando finalmente chegamos na sala, abraços sem importância e íamos embora, enfiei o relógio no bolso do meu pai, não podia dar-me ao luxo de perder a única coisa de real valor que tínhamos, ouro, cravejado de pequenas pedras brilhantes, presente em duas infâncias, o único elo físico de nossa família, o único que não era escondido debaixo de lembranças emaranhadas.

Em nosso caminho, passamos por uma taverna, com música de bardos, gritos e risadas, espiei para dentro em um impulso e peguei-me sorrindo. Dari estava sentado no balcão do lado de um homem, pensei ser o seu pai. Quis entrar, quase puxei meu pai para dentro, porém contive-me, escutei passos rápidos e virei-me.

Dari e o homem juntaram-se a nós, permaneceram calados até que meu pai os olhou.

—É perigoso andar de noite sem conhecer a cidade.

Segundos passaram-se e Dari caminhou de pressa para perto de mim, sorri para ele, ele se esforçava para acompanhar as passadas do meu pai, ligeiras e focadas em chegar, pude ver, sob a luz de um poste, seu rosto ficar vermelho e a respiração torna-se ofegante.

Não entendi porque estavam conosco, não de imediato, ignorei a estranha preocupação dos dois e foquei em meu caminho, porém sempre fui sensível demais a olhares, os sentia mesmo que de longe. Alguns homens em uma esquina, os sorrisos desfizeram-se quando o suposto pai de Dari tomou a frente, porém os olhos ainda estavam fincados em meu pai, desviavam-se de forma incômoda para mim.

Eles estavam duas esquinas antes do farol, percebi que estavam armados. Um volume formava-se debaixo das camisas. Senti meu coração como o de um rato diante de uma cobra, apertei a mão de Dari, talvez com mais força do que devesse, ele não pareceu se importar ainda tivesse me prendido ao seu braço.

Anos antes, escondida na copa de uma árvore, pude observar de perto a aflição do rato, pequeno e indefeso diante de sua própria morte, correu, porém o bote lhe veio. Naquele momento, senti-me como aquele rato, diante da morte certa, observei por tempo demais as armas por baixo do tecido, apavorada demais para pensar.

Meu pai abriu a porta, encarei o vão entreaberto, para mim. Toquei meu pescoço e senti os dedos gelados, andei de um canto a outro do meu quarto, meu pai passou alguns minutos conversando com Dari e o seu suposto pai, talvez sobre os homens, talvez sobre a cidade em si. Não foi naquela noite que eu vi uma arma de fogo pela primeira vez, por mais que eu tenha passado a noite imaginando uma.

Não consegui dormir até que o sol estivesse prestes a nascer, ainda torpe, mesmo que não ao ponto de adormecer, apenas de encarar o céu pela janela. Estava frio, ainda que de dia fosse quente, enrolei-me dos pés a cabeça, inspirei o perfume das flores impregnado no tecido, como moscas presas à teia de uma aranha, eram lembranças presas no lençol grosso.

Logo me vi no quarto cheio de flores e mapas, as botas cheias de terra, por vezes lama, ao lado da cama. Vi o garoto loiro e sorridente sentado na ponta da cama enquanto meus pés estavam em seu colo, o garoto não permanecia calado por muito tempo, o lençol também estava marcado por sua multidão de palavras.

Naquela manhã eu sonhei com armas, com o assombro do garoto loiro ao ouvir os tiros. Quis pensar, quando acordei ao meio-dia, que aquele pesadelo estava enterrado.



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