1. Spirit Fanfics >
  2. Além dos Espinhos >
  3. Capítulo Único

História Além dos Espinhos - Capítulo Único


Escrita por: DearHarryst

Notas do Autor


Essa fic foi feita especialmente para o 2º Desafio de Fanfics lançado pelo Spirit! A ideia já tinha me ocorrido antes, então apenas tentei compactá-la em 2000 palavras kkkk
A história se passa no século passado, então é possível encontrar alguns discursos patriarcais durante a leitura. Eles não refletem de modo algum meu pensamento acerca dos gêneros.
A capa é meramente ilustrativa, servindo apenas de inspiração para a formação da imagem dos personagens.
Espero de coração que gostem!

Capítulo 1 - Capítulo Único


A primeira coisa que vejo quando levanto pela manhã, numa terça qualquer, é o balançar preguiçoso dos cabelos dourados de Jessica enquanto ela rega suas madressilvas como quem amamenta um filho.

Observo-a através da sacada do primeiro andar, ciente de que ela não pode me ver. Isso me dá a coragem necessária para me perder num canto tão pouco explorado de mim mesmo, um lugar que eu nem sequer conhecia antes de Jessica perpetrar por todas as minhas ásperas camadas e transpassar todos os meus espinhos com a maestria de um Mozart.

Nesses momentos de silêncio respeitoso, meus pensamentos viajam por continentes, e não importam quantas manhãs eu acorde ao lado dela, nem quantos dias pacatos nós passamos juntos... Sempre me surpreendo com a forma como me apaixonei por ela.

 

O inverno tinha acabado de despontar e eu estava num bar elitizado de Londres. Meados do século XX, quando me embebedar em bares era sempre uma boa ideia. Mas só mesmo um Wright para farrear com classe, era o que todos diziam.

Vinte e um anos, a melhor idade. Velho o bastante para me entregar a todas as orgias da capital, mas jovem o suficiente para me safar de qualquer encrenca mais grave. Apesar de todas as regalias que a maioria dos jovens estúpidos costumava ter, eu sempre fui um cara equilibrado.

Bebia de vez em quando, dormia com as meretrizes de plantão (e até com algumas miladys mais assanhadas), apreciava um cigarro eventualmente, mas nunca me entreguei aos vícios. O motivo era simples: meu pai, o Wright mais respeitado de toda a velha Londres, me educou à sua imagem e semelhança. Não foi difícil para ele, já que nunca tive uma mãe para me influenciar com sua doçura e espiritualidade. Sempre fomos apenas eu e ele. Sem irmãos, sem madrasta, sem tios chatos e sem avós mandões.

Não desmereço o trabalho dele na arte de me criar desde o falecimento de minha mãe. Ele exerceu bem o seu papel para um homem que não quis se casar de novo. Sempre muito sensato, sério e determinado. Nunca esmorecia. Nunca dava o braço a torcer. E foi assim que fundou a mais bem sucedida empresa de uísques e derivados. E foi assim que alcançou a graça de centenas de londrinos de meia-idade adúlteros, gordos e ricos.

Eu, Christopher Wright, seu jovem e único herdeiro, precisava manter a cabeça no lugar para merecer o trabalho de anos dele. E, ao contrário dos clichês de filhos de empresários, nunca fui contra essa ideia. Nunca quis "seguir o meu próprio caminho, renegando a bagagem familiar". Nunca fui esse cara aventureiro que acredita no amor e no destino.

Nos meus anos de ouro, naquele bar, eu não acreditava em amor ou destino ou qualquer outra merda que Shakespeare tentava fazer mocinhas engolirem. Eu seria o homem equilibrado que precisava ser. Eu seria o magnata dos uísques que meu pai ainda não conseguira ser.

E foi ali, tomando doses de gim, acompanhado de alguns colegas estúpidos (todos eram estúpidos para mim, incapazes de administrar mais do que o próprio umbigo) que meu velho pai, vestindo seu terno cinza habitual, soprando a fumaça fedida de seu charuto, me informou, como quem pede para saber as horas, que eu iria me casar.

Na hora não acreditei. Encarei o velho, que tinha chegado há apenas alguns minutos para socializar com seus colegas de trabalho (ou seriam abutres?). Esperei que ele dissesse "estou só brincando, sua criança boba!", mas ele foi resoluto. Nem sequer se explicou. Pensei "o velho endoidou de vez". E em seguida constatei "se ele ficou louco, a empresa será minha antes do que imaginei" — e essa constatação me deixou aliviado.

Mas, ainda assim, não pude conceber aquela ideia de casamento. Para que diabos me serviria uma mulher se os negócios eram minha única aspiração? Sexo eu tinha com desconhecidas, as quais custavam bem menos que uma esposa. Quando expliquei isso ao meu desmiolado pai, ele retrucou "É por causa daquela Franklin? Diabos, Chris!".

Hilly. Hilly Franklin. A única mulher que quase me fez acreditar no amor. Quase. Foi com ela que aprendi que um homem precisa ser esperto se não quiser ser enfeitiçado por uma Afrodite dos infernos. Hilly tinha seus encantos, e não fui o único miserável que se arrastou por ela. Londres inteira morreria por aquela mulher. Mas eu tinha aprendido minha lição. Hilly foi a primeira e a última. Nunca mais, nem se minha vida dependesse disso, eu me deixaria enfeitiçar por nenhuma outra serpente do Éden.

"Não tem nada a ver com ela, pai. Só acho uma estupidez essa coisa de matrimônio. Atrapalharia minha carreira. O senhor não quer isso, estou certo?". Ele fez um gesto de desdém com a mão. "Bobagem. Case-se com essa garota e sua carreira vai deslanchar. O pai da felizarda é um fornecedor importante. Quando a empresa for sua, estará ainda maior do que agora.".

Disso eu não tinha dúvidas, mas jamais recorreria a um casamento para tanto. Eu não precisava de um fornecedor importante comprado a preço de casório. Não precisava dessa garota para conseguir o que eu queria. Mas não tive chances contra meu pai. Afinal de contas, a empresa ainda pertencia a ele. Se eu quisesse comandá-la algum dia, precisava fazer o que o patrão queria.

Bem, não me importei realmente. Quando a empresa fosse minha, eu poderia alegar que a garota era louca e pedir a carta de divórcio. Até lá, eu poderia usufruir da única coisa interessante nessa idiotice de casamento: o prazer carnal que a esposa tem dever de oferecer.

Não fiquei ansioso por conhecê-la. Passaram-se duas semanas até que eu fui apresentado a tal garota, num jantar tedioso na residência do pai dela. Imaginei que ela fosse dessas ladys convencionais, todas com seus vestidos exagerados delineando o corpo, numa tentativa estranha de parecerem comportadas e desejáveis ao mesmo tempo.

Imaginei que ela fosse cheia de não-me-toques, uma filhinha de papai educada para agarrar o melhor marido possível, aquele mais rentável para os seus vários luxos. Cheguei a pensar que, se minha vida estava fadada ao casamento, por que não Hilly? Ao menos ela era uma mulher de verdade. Sem regras de etiqueta e chapéus extravagantes. Uma típica meretriz por quem adolescentes se apaixonam.

Mas me obriguei a abortar a ideia. Hilly era mais problema do que solução. Ela mesma costumava dizer que não era mulher de um único homem. Assim, de volta às minhas expectativas, talvez a única coisa que eu tenha imaginado corretamente a respeito de Jessica Price seria a sua beleza. Meu pai não me faria casar com alguém que não fosse, no mínimo, agradável aos olhos.

E, de fato, Jessica Price era bonita. Não simplesmente bonita, não simplesmente agradável aos olhos. Ela era a própria beleza, a própria perdição. Os cabelos claros adornavam a face delicada como uma coroa de louros, e os olhos cor de hortelã pareciam brilhar ainda mais a cada piscada. E, para minha surpresa, ela não usava chapéu.

Todo esse espetáculo de aparências poderia facilmente ter feito qualquer outro cara voltar atrás em suas convicções rasas. Poderia facilmente tê-los feito abraçar a ideia do casamento e agradecer aos céus por tamanha benção. Jessica Price valia o esforço, eles pensariam.  Mas, sendo eu o homem equilibrado que era, o qual visava ao sucesso e à riqueza mais do que qualquer outra coisa, não poderia me deixar enfeitiçar pela moça dos olhos de hortelã tão rapidamente.

Tentei me convencer, lembro-me bem, de que por trás da carapaça de anjo havia uma mulher manipuladora e egoísta. “Quando ela abrir a boca, todo o encanto vai se perder.”. Era sempre assim com as mais bonitas, eu bem sabia. E seria bom se fosse assim também com Jessica. Eu precisava desesperadamente de um motivo para desdenhar da noiva que me fora arranjada.

Ela foi perfeitamente educada. Seus olhos se arregalaram ligeiramente quando me viu, e não deixei de notar como o sorriso dela se ampliou ao constatar que eu, afinal de contas, não era nenhum ogro.

O jantar correu como qualquer outro: longo e insuportavelmente chato. O Sr. Price não parava um instante sequer de me interrogar sobre os meus planos para a empresa quando ela estivesse sob a minha tutela. Respondi com educação, internamente ansioso para ir embora daquela casa de uma vez.

Mas, antes que meu desejo interior pudesse ser atendido, eu teria de enfrentar o duro momento mais esperado da noite: aquele em que eu — supostamente — deveria cortejar a sós a dama que eu faria minha. Jessica me guiou para o jardim lateral da residência, onde um canteiro de flores reluzia à luz opaca dos postes. Ela parecia se sentir muito à vontade ali. “Sou apaixonada por flores. Cuido do jardim aqui de casa sozinha... É uma terapia.”. Ela me lançou um sorriso acanhado.

A forma tão imensamente doce e o jeito tão lisonjeiro e contido de Jessica eram ao mesmo tempo fascinantes e irritantes. Ela não podia ser perfeita, não podia ser boazinha, não podia ser amável... Ela tinha que ser exatamente como todas as outras, doce por fora e amarga por dentro. Ela tinha que detestar a ideia de um casamento arranjado. “Você quer se casar comigo, Jessica?”, a pergunta saiu sem que eu me desse conta. Se ela dissesse “não”, eu teria ao menos uma razão para não ir com a cara dela. Mas, como eu já devia esperar, não foi o que ela disse.

“Não me agrada a ideia de um casamento arranjado, mas entendo que há interesses maiores por trás dessa decisão. Nunca tive a oportunidade de amar ninguém, e não vejo como isso possa acontecer em curto prazo, então casar por amor não está no topo da minha lista de desejos. Mas tenho esperanças...”, ela deixou a voz morrer por um instante, depois continuou: “Tenho esperanças de que eu encontre o amor com você. Prometo respeitar você, e espero que você possa prometer o mesmo. Acho que pode haver felicidade nisso... Se estivermos dispostos a tentar.”.

As palavras dela eram tão polidas e delicadas que me deixaram sem reação por um momento. Cheguei a pensar que ela estava certa, que era tudo uma questão de estar disposto a tentar, que o amor surgiria pouco a pouco e seríamos felizes para sempre.

Mas o homem que eu era não acreditava nesse ideal dos contos de fada. Então uma versão soberba de mim respondeu à jovem com uma educação ríspida: “Isso é ilusão. Se eu fosse você, guardaria toda essa ternura e esperança para seus matos...”, indiquei com o queixo o canteiro de flores. “Acho que planta não decepciona. Casamentos sim.”.

Ela me encarou com ressentimento, mas não me detive: “Mas não se preocupe, vamos nos casar, e você pode passar o resto da sua vida tentando encontrar amor nisso. Se encontrar, eu dou a você trezentos metros quadrados de terra para plantar quantas ervas-daninhas você quiser.”.

 

Anos se passaram desde que proferi aquelas palavras duras. Jessica poderia ter desistido de mim naquele mesmo instante, poderia ter implorado para o pai que a poupasse desse trágico casamento, poderia ter alegado que eu era um homem frio e sórdido, completamente avesso a qualquer afeto, e então eu estaria finalmente livre da obrigação de me casar.

Mas a determinação e resiliência dela (alguns chamariam de loucura) nos conduziram até o altar e — dia após dia, semana após semana, mês após mês — até algo muito, muito, muito próximo de amor... E ela não fez muito para conseguir essa proeza. Ela apenas me amou quando eu não estava disposto a amá-la. E hoje sei que sempre a amarei, mesmo quando ela não estiver disposta a me amar.

Sem “quase”. Talvez Shakespeare tivesse alguma razão.

Jessica olha para trás e me flagra observando-a da sacada. Ela abre um sorriso iluminado, me sopra um beijo e volta a cuidar de suas “ervas-daninhas” tão queridas... Numa área de trezentos metros quadrados, o maior jardim de toda a vizinhança, sem dúvida. 


Notas Finais


O que me dizem?


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...