We can't look back for nothin' (Não podemos voltar atrás por nada)
Take what you need, say your goodbyes (Pegue o que você precisa, diga suas despedidas)
Beautiful Crime - Tamer
O desespero se apossou de Eiji no mesmo instante que seus olhos abriram e absorveram o tom mórbido das paredes brancas. Os olhos estreitos umedeceram no mesmo instante. As memórias dos anos vivendo apenas como uma ferramenta da colônia, que antes eram distantes, voltaram com força, obrigando-o a fechar os olhos e respirar devagar, para se recompor.
Contudo, a calma parecia distante naquele momento. As pernas trêmulas e a sensação dolorida na cabeça eram apenas alguns sinais de seu estresse.
A cama onde estava deitado era macia, mas pouquíssimo convidativa. Além disso, havia apenas uma mesa metálica no centro do pequeno aposento e duas cadeiras pregadas no chão em cada extremidade da mesa. Eiji gemeu, quase como se ainda sentisse os choques. Estava enjoado.
Porém, sabendo que precisava ser esperto para sobreviver, deixou os instintos continuarem absorvendo o cenário onde estava inserido.
Uma câmera minúscula estava posicionada discretamente no teto, observando seus passos. Ao lado da cama sem cobertor, apenas um duto de ventilação, devidamente parafusado. A porta que Eiji imediatamente constatou que era controlada por reconhecimento facial dificultava uma fuga.
— Droga...- Sussurrou.
Seus pensamentos foram até Tai’Ren. O que teriam feito com ele? E Aneya, tinha sobrevivido? Provavelmente, morreria sem saber.
A porta se abriu, imediatamente fazendo seu coração disparar. Um homem velho e alto, de jaleco e cara de poucos amigos se aproximou e se sentou em uma das cadeiras, encarando Eiji para que ele fizesse o mesmo.
— Número 211, eu confesso que estou muito surpreso de te ver finalmente.
Ser chamado pela sua identificação dentro da colônia lhe causou um arrepio desconfortável, mas ainda assim, Eiji caminhou até a cadeira e se sentou de frente para o homem estranho, que lhe encarava com uma estranha fascinação.
— E quem é você? – Perguntou, azedo.
— Me chamo Roger, sou um responsável pelo funcionamento da fração 2 da colônia.
— Fração 2?
Roger tirou os finos óculos redondos do rosto enrugado e começou a limpar as lentes no jaleco:
— Até pouco tempo atrás, a colônia era mantida toda em uma mesma base. Mas então sua bagunça nos obrigou a rever o protocolo. – Explicou ele, com um tom ligeiramente irônico.
— Foi uma honra. – Provocou Eiji, sem muito humor. Ele não precisava pensar muito pra saber o seu próprio destino. – E aí, vocês resolveram dividir a colônia em frações?
— Precisamente.
— ... Por que veio até aqui? Não é mais fácil só me mandar para o fuzilamento e liberar o quarto?
— Do que está falando, garoto? - O homem riu, colocando os óculos de volta no rosto. – Não vamos matar você.
A informação pegou Eiji de surpresa.
— O-o quê? – Balbuciou, confuso. – Por que me manteria vivo? Eu destruí a estufa, arrisquei a colônia inteira e vocês sabem que matei soldados nas últimas semanas.
— Tem razão. Você realmente não está muito de acordo com seu propósito. Mas, sabe quanto custa um novo membro para a colônia?
É claro, pensou Eiji. Dinheiro costumava ser a resposta para muitas perguntas e o motivo de muitas decisões, sejam boas ou ruins.
— Imagino que muito. – Respondeu.
— É um investimento de milhões para cada criança nascida na colônia. – Disse Roger, deixando os olhos correrem pelas roupas sujas e largas do menino. Acabou torcendo o nariz. – Vocês não são filhos aleatórios de humanos que vivem aqui ou que cederam material genético. Cada indivíduo – e isso inclui você – teve suas características e feições pensadas com antecedência. Montamos um plano complexo de formação de sociedades controladas para a colonização. Cada criança é uma peça única, com uma função e propósito já pré-definido antes de nascer. Até mesmo os anos iniciais de vida de vocês foram planejados para que desenvolvessem as habilidades que precisávamos para cada um. Não é à toa que está vivo até agora, mesmo sem a proteção da base. Você foi treinado pra sobreviver em Pandora, garoto. Sua função na colônia é ter todas as estratégias de defesa pra garantir a sobrevivência de vocês. Esse período foi um ótimo teste. É por isso que não faz sentido só matar você. Seria dinheiro perdido.
Eiji ergueu o braço sem a mão.
— É, deu pra ver que eu fui muito bem no teste. – Comentou, irônico.
— Pandora deixa cicatrizes, 211. Mas não se preocupe, já solicitei a construção de uma prótese. Modéstia parte, meu projeto ficou muito bom, vai gostar.
Todo aquele papo em tom amigável estava incomodando Eiji profundamente. Não precisava ser muito inteligente para perceber que aquilo era como uma cortina prestes a ser aberta para o verdadeiro espetáculo. Então, ele resolveu acabar com aquilo:
— Eu não me importo com o dinheiro que investiram em mim. Não vou fazer parte disso mais. A minha mãe me mostrou a verdade sobre Pandora e eu...
— É claro que já estava previsto um protocolo de preparação para te reinserir na colônia. – Interrompeu Roger, sem muita paciência.
— O quê? Que protocolo?
— Vamos resetar suas memórias. Assim você pode recomeçar e ser um membro menos...turbulento.
A informação por um instante fez Eiji hesitar.
— V-vocês...- Sua voz soou baixa pelo assombro. – Não podem fazer isso.
— É o mais seguro a se fazer pra evitar novos...acidentes. Mas é claro que antes vamos coletar todas as informações que você conseguiu. Sabemos que estava em contato com na’vis não nativos desta região e isso me soou bem peculiar. Mas não precisa dizer nada por agora, vamos ter as informações no procedimento. Agora, eu tenho que ir.
— Vocês não podem fazer isso! – Grunhiu o menino, furioso.
Porém, nada daquilo fez o homem mudar sua postura e Roger apenas saiu do quarto, sem olhar para trás.
— Merda...- Eiji sussurrou para si mesmo.
A única certeza que tinha era a de que precisava fugir o mais rápido possível. Mas não poderia fazer isso sem saber o que tinha acontecido com Tai’Ren.
Estava com todas as desvantagens possíveis.
Com a mente fritando de possibilidades nada produtivas para escapar, o menino se deitou outra vez, fitando o teto metálico.
Se ao menos tivesse uma bomba...
Pensou em seus amigos da colônia, que estavam fadados a uma vida de guerra e mentiras, acreditando piamente que eram mais dignos de Pandora do que os próprios na’vis e se entristeceu com a possibilidade da verdade morrer com ele.
Sem aguentar mais o brilho gélido do metal do teto, Eiji fechou os olhos estreitos e se escolheu na cama, em posição fetal. Contudo, quando colocou a mão dentro do bolso largo da calça, seus olhos abriram outra vez.
Ainda havia uma possibilidade.
****
O caos havia tomado boa parte da vila Tawkami e os que não estavam agitados pelo pânico seguiam encolhidos e chorosos, rezando para que Eywa não os abandonasse naquele momento.
Kaya se sentia perdida. Cercada de na’vis desesperados e sem esperança, ela não sabia o que fazer. Chegar com Aneya quase morto em seus braços despertou em cada integrante daquela vila um temor que jamais haviam sentido antes, principalmente, depois de escutarem quem tinha sido o responsável pelos ferimentos de ambos.
Uma mãe Tawkami abraçava sua bebê chorando copiosamente enquanto proferia rezas desesperadas:
— Por favor Grande Mãe, poupe minha menina. Por favor, por favor...
Kaya fechou os olhos, dolorida não apenas fisicamente, mas espiritualmente. Pensou em Eiji. Tão minúsculo e sendo furiosamente açoitado por aqueles que deveriam ser seus protetores. Uma fúria contida se apossou de seus dedos, que se contraíram, formando um punho tão rígido que chegava a doer o nó dos dedos.
Pensou em seu filho morto pelos mesmos demônios que amedrontavam agora seus novos irmãos na’vi. Aquilo tinha que parar. Mas como se erguer e lutar quando estava cercada de irmãos frágeis e que estavam longe de serem guerreiros? Parecia apenas suicídio.
Foi arrancada de seu estado dormente quando uma mão pousou em seu ombro. Um homem na’vi bem mais velho, de seu clã, lhe encarou preocupado:
— Por favor, Kaya. Não deixe eles matarem meu neto também. Você pode trazê-lo de volta?
A voz parecia um pouco mais lenta do que o normal e automaticamente a guerreira associou ao tiro que tinha tomado na cabeça. Mesmo que o corte não tenha sido tão profundo, o tranco tinha sido pesado o suficiente para mantê-la desorientada.
Com o pouco de discernimento que ainda tinha, assentiu lentamente em resposta.
Sabia que não importava o quão desolador pudesse ser o cenário. Aquela era a única chance de seu povo ainda existir, de seus amigos sobreviverem...
Então precisava lutar.
— Não se preocupe, vamos conseguir. – Respondeu, finalmente.
Mesmo que as palavras tenham sido poucas, parecia ser exatamente o que o homem precisava ouvir, pois seus olhos brilharam com lágrimas emocionadas enquanto ele agradecia.
Se levantou cambaleante. Tinha recusado o cuidado da tsahik para que todos os esforços fossem depositados em Aneya e, conforme se aproximava da cabana cheirosa de flores, percebia o quanto tudo continuava caótico. Provavelmente, porque não estavam fazendo muitos avanços.
Ele vai sobreviver? Era o que queria ter perguntado para um dos vários na’vis que entravam e saíam do local, mas achou melhor não atrapalhar o fluxo.
Em silêncio, se esgueirou para dentro da cabana, encolhendo-se para não esbarrar em ninguém. Foi inevitável seus olhos não correrem para o centro da tenda da tsahik.
Aneya jazia deitado, adormecido e estranhamente pálido. Seu busto estava debaixo de uma grossa camada de raízes cintilantes e flores coloridas que emanavam um cheiro muito característico que Kaya nunca tinha sentido antes. Era agradável e úmido como estar respirando o ar da beira de um rio.
Ao redor do rapaz, três mulheres na’vis colocavam as flores sobre seu corpo, em um padrão ordenado pela tsahik, que quando não estavam delegando tarefas, proferia poderosas preces a Eywa. Às vezes, sua conexão era tão intensa que a órbita de seus olhos revirava, evidenciando o quão longe da realidade estava.
Kaya assistiu tudo com muita apreensão. O ritual pareceu durar horas e, nos momentos mais intensos, a luz das raízes se tornava forte e emanava para as centenas de flores.
Quando finalmente tudo se acalmou e as mulheres Tawkami deixaram de colocar as flores sobre o Metkayina, a tsahik caiu no chão, sem forças.
Arregalando os olhos, Kaya correu para acudi-la junto com as outras mulheres.
— Ele está passando pelos olhos de Eywa. – Sussurrou a líder espiritual. – Se conseguir, vai viver. Mas agora, tudo depende dele e da Grande Mãe.
As mulheres tentaram afastar Kaya para que elas levassem a tsahik para descansar, mas antes de ir, a mulher olhou em seus olhos:
— Você precisa nos guiar nessa escuridão. – Havia um tom desesperado em seus sussurros e a guerreira Anurai não precisava pensar muito para compreender que ela também estava com medo. – Nós não somos guerreiros como você, Kaya. Mas precisamos lutar pelo nosso lar.
Ela foi afastada antes que pudesse escutar a resposta da Anurai, mas Kaya absorveu aquelas palavras com muito cuidado. Por um instante, concluiu que aquilo era uma loucura tremenda. Sabia muito bem o que significava ficar e enfrentar o Povo do Céu. Essa determinação para proteger o lar só trouxe morte para seu clã.
Mas talvez, não tivesse como fugir disso. Morrer para proteger seu lar era digno afinal. No final das contas, não importava para onde fugissem, não seria o suficiente. Os humanos estavam em todos os cantos de Pandora.
Quando tomaram as planícies e conseguiu ver alguns Anurai fugirem, imaginou que eles tivessem conseguido sair da guerra. Porém, lá estavam eles, cercados outra vez. Obrigados a encarar o horror dos monstros que vieram destruir o mundo deles.
Não tem mesmo como fugir, concluiu.
A única forma disso acabar seria indo de encontro ao destino deles. Por isso, Kaya inspirou e expirou profundamente algumas vezes antes de seguir para o centro da vila. Ignorou o sangue em seus ombros e costas e ergueu os braços para atrair atenção de seus irmãos.
Se tinha que guiá-los para a guerra, então os preparativos precisavam começar o quanto antes.
****
Quando Tai’Ren despertou, estava preso a uma maca, de pé e profundamente dolorido. Ele gemeu, aturdido pela posição desconfortável. Uma cinta grossa de couro prendia suas pernas a maca gelada e, como se fosse uma sádica provocação, estava fincada exatamente na altura de seus joelhos, o que lhe causava uma dor absurda.
Um grunhido choroso escapou de seus lábios conforme os olhos se adaptavam com a consciência recém adquirida.
— Ele está acordando. – A voz de uma mulher soou fria. Tai’Ren se encolheu ao identificar a língua do Povo do Céu. – Administro de novo o sedativo?
— Não. – Uma segunda presença, fora do campo de vista do rapaz se revelou. A voz masculina era pesada e seu tom forte parecia difícil de retrucar. – Podem continuar.
— Quem...- O Sully tentou se manifestar, mas parecia que nada além de gemidos doloridos poderiam escapar de sua garganta naquele momento.
— Liam. – A voz masculina soou outra vez.
— Sim, senhor.
— Conseguiu os resultados do DNA dele?
— Estamos quase lá, senhor. Sabemos que não é um nativo endêmico dessas regiões.
— Mas isso já era óbvio! – Se enfureceu o homem. – Me traz as informações que eu pedi agora.
Sem pestanejar, a voz mais jovem sussurrou apenas uma concordância antes de se afastar.
Os olhos de Tai’Ren ainda eram constantemente surrados pela quantidade de luzes brancas que pareciam todas voltadas para ele. Tentou soltar seus braços, mas cada movimento sobrecarregava ainda mais o joelho comprometido.
Percebendo sua movimentação para escapar, os humanos que trabalhavam colhendo mais amostras de sangue de seus braços e pescoço se entreolharam antes de um deles caminhar para detrás da maca e apertar com mais firmeza todas as cintas de couro.
O na’vi gritou quando a sobrecarga em seu joelho ficou intensa demais. As lágrimas irromperam de seu rosto e escorreram pelas bochechas. A dor intensa nublava seus sentidos e turvavam os raios brancos de luz que chegavam a suas retinas.
Pensou em sua família. Neteyam e Ao’nung, que lhe esperavam em Awa’atlu, junto com seus irmãos mais novos. As lágrimas que brotavam em seu rosto de repente não eram apenas de dor, mas de saudade e de despedida. Não sabia o que o Povo do Céu faria consigo, mas a grande quantidade de conversas e ordens proferidas em um vocabulário técnico demais para que entendesse, lhe soou desanimador.
Pensou também em Aneya. Desde os tempos em que eram crianças minúsculas roubando utensílios de casa para brincar com Onali na praia, até o dia em que partiram juntos para explorar um mundo desconhecido e tomado por um inimigo poderoso.
Inimigo esse que agora o tinha nas mãos.
A imagem de Aneya desacordado, com as costas perfuradas pelas armas mortais, tirou sua vontade de lutar e de se libertar das amarras que o tornavam cativo. Pediu perdão silenciosamente a sua família por ter desistido assim. Mas não poderia voltar para a casa sem seu melhor amigo e primeiro amor.
Curiosamente, a viagem que tanto se preparou para conseguir respostas sobre seus pais biológicos terminara com o filho compartilhando do mesmo destino deles.
Em seus devaneios longínquos causados pela dor nauseante do joelho ou das infinitas agulhas e instrumentos que lhe cortavam, ouviu a canção de seu pai, que Eywa lhe presenteara na primeira comunhão. As notas melodiosas acompanhavam a visão que teve no topo do penhasco, do homem e da mulher que lhe deram a vida, tranquilos assistindo ao pôr do sol. Talvez se juntasse a eles na morte e voltaria para a ilha onde tinha nascido. Ou não. Havia também a possibilidade de Eywa o mandar de volta aos recifes, como uma forma de concluir a viagem tão sonhada. Assim quem sabe, pudesse se reencontrar com Aneya e nadar com seus ilu’s eternamente.
Quando seu coração estava repleto de uma paz absoluta e entregue a vontade de Eywa, uma voz humana o tirou da conexão:
— Senhor.
— O quê?
— Temos os resultados da análise do DNA. Aparentemente, nós já documentamos um nativo com estas características.
Suas orelhas tremularam, atentas ao diálogo, já que os olhos pareciam incapazes de acompanharem a imagem dos humanos que o rodeavam.
O rapaz da voz de pouca autoridade continuou:
— Faz quase duas décadas do registro. Na verdade, sabemos que o indivíduo faz parte do clã que ocupava as terras dos vulcões, onde não fizemos o reconhecimento. Não são terras muito produtivas pra nós...
— Vai direto ao ponto.
— Certo. Como não tivemos contato com estes na’vis hostis dos vulcões, só conseguimos capturar um deles. Bem ao sul, perto do litoral. Uma fêmea que estava grávida. Ela ficou na base das ilhas gêmeas. Não sobre o controle da RDA, mas dos grupos clandestinos que enviavam dados pra nós. – O humano hesitou por um momento, mas Tai’Ren estava com a cabeça pendida no peito, quase desacordado outra vez. – Parece uma loucura, mas checamos isso várias vezes...e bom, o DNA do dois são compatíveis.
— Não me importa quem ele é ou não. Façam os testes que precisam e cataloguem o necessário. Se livrem dele depois. E reportem pra central que conseguimos um nativo do norte. Se ele sobreviver, tentem vasculhar suas memórias, podem ter informações valiosas.
— C-certo, senhor.
Mesmo com a fraqueza que tinha tomado seu corpo ferido, Tai’Ren enrugou as feições em uma expressão furiosa. Ele conseguia sentir o rastro das lágrimas que tinham secado em suas bochechas.
Estava ali a peça que faltava. A verdade sobre sua mãe, quem ela era. O capítulo final da vida de seus pais. E mesmo assim, os detalhes sequer eram dignos de nota para a espécie que lhe prendia ali. Não importava quem eles eram afinal. A identidade de um na'vi era a informação mais pífia possível.
Tai’Ren chorou outra vez. Em um silêncio mortal. Estava tão perto.
Imaginou o que sua mãe teria passado, cativa e grávida. Ver aquele que amava morrer e deixar o filho sozinho para matar todos aqueles que pudessem representar algum risco ao seu legado. Lutar até a morte por uma liberdade que não poderia apreciar.
Então, ele garantiu que não se entregaria. Precisava suportar até encontrar um jeito de se libertar. Era o mínimo que poderia dedicar ao sacrifício de todos aqueles que o amavam. Sua mãe, seu pai, Aneya...
Precisava resistir. As últimas respostas que procurava estavam ali, nas luminosas telas alimentadas pelos inimigos. Catalogadas como uma vírgula qualquer. Um nativo em meio aos milhares que já haviam passado pelo mesmo.
Tai’Ren estava verdadeiramente furioso.
****
Eiji já tinha um plano para sair de sua cela.
Mas só poderia colocá-lo em prática quando a porta metálica se abrisse na visita de alguém. Isso não era muito vantajoso. Depois de Roger, ninguém mais abrira a porta. Talvez fosse mantido em isolamento total até a hora do procedimento que acabaria com suas memórias.
Caso realmente fosse assim, só teria uma única chance para escapar.
Com um suspiro longo, o garoto permaneceu deitado no colchão fino. Há quanto tempo não tinha um quarto e uma cama para descansar? E por que agora tudo parecia tão ruim? Até a rede improvisada por YiJin nos limites da vila Tawkami parecia mais acolhedora.
Seus pensamentos retornaram ao plano ousado. No início, a maior dificuldade que imaginou encontrar fosse justamente sair da cela. Contudo, o que faria depois disso é que era o verdadeiro mistério. Não conhecia aquela base. Não tinha acesso a planta do local e nem um contato de confiança. Não tinha armas e ferramentas.
Precisava saber pra onde ir.
Desligar as câmeras. Sim, pensou. Essa seria a prioridade número 1.
Não sabia onde era a sala de comando e nem se chegaria lá vivo levando em consideração que estava dentro de uma base possivelmente repleta de soldados, mas não tinha muitas alternativas.
E ainda tinha o misterioso paradeiro de Tai’Ren. Outro motivo para chegar à sala de comando, afinal, só assim conseguiria encontra-lo. Seu coração apertou, mas ele rezou para que não fosse sinal de que algo ruim havia acontecido.
Pensou em Kaya e sentiu saudades, mesmo que a guerreira lhe repreendesse a todo momento. Sentia raiva na maioria das vezes, pois brevemente, a cada puxão de orelha, tinha um vislumbre de sua falecida mãe. E doía. Essa dor lhe fazia crispar os lábios em uma expressão raivosa e mimada.
Não queria que aquele fosse o fim, mas o cenário era uma completa desvantagem.
Talvez a vila Tawkami já tivesse sido invadida. E caso contrário, não tardaria para isso acontecer. Como poderia ajudar? Mesmo se unindo aos Anurai, os na’vis jamais teriam chance contra uma base grande e bem estabelecida.
E seus pequenos amigos humanos? Eles estavam ali? O que aconteceria caso fossem atacados? Morreriam por uma guerra que sequer conseguiam enxergar sem a venda que tornavam seus olhos enviesados. Entregariam o sangue por objetivos que foram inseridos em suas mentes muito antes de aprenderem a andar ou a falar.
Era injusto. Cruel com ambos os lados.
Por isso, Eiji sabia que não poderia hesitar. Mesmo que tivesse que correr em meio aos soldados armados, aquela era a única chance que tinha de salvar Tai’Ren e talvez ajudar seus amigos.
Os pensamentos aflitos deixaram seu corpo inerte, e por um longo tempo, Eiji permaneceu deitado, encolhido, até que aos poucos foi se entregando a inconsciência.
—...iji?
O corpo se remexeu na cama, convencido de que a voz pertencia a um sonho distante.
— Eiji!
Seus olhos abriram-se devagar, sonolentos. Olhou ao redor. Nada. Voltou a deitar a cabeça e fechar os olhos. Há tempo não tinha sonhos assim, tão intensos.
— Eiji! Acorda!
Os olhos abriram rápido dessa vez. Definitivamente aquilo não era um sonho. Ele reconhecia aquela voz, mas já não a escutava a tempos. Se apoiou nos cotovelos e varreu o quarto com os olhos, mas não havia ninguém.
— Eu tô no duto de ventilação! Seja discreto!
Disfarçadamente, Eiji se deitou se costas para a câmera que o vigiava, encarando a parede. Logo abaixo, fora de sua vista, estava a grade parafusada do duto de ventilação, onde um garoto de sua idade jazia encolhido.
Sem acreditar que aquilo fosse real, Eiji soou incerto:
— Jean? – Um sussurro saiu de seus lábios.
— Faz tempo que desde que alguém me chamou assim.
— C-como...me encontrou?
— Você não é o único que tem truques na colônia.
Definitivamente não era mesmo. Jean era o único amigo que tinha de sua idade. Conviviam juntos na colônia possivelmente desde o momento em que nasceram. Ao contrário de Eiji, Jean não tinha tido um adulto que houvesse se afeiçoado o suficiente por ele para considerar um filho, por isso, o próprio Eiji havia dado um nome ao amigo.
Eiji queria espiar pela fresta entre a cama e a parede para fitar as grades do duto, mas sabia que a atitude poderia parecer suspeita para quem estivesse de olho nas câmeras e não poderia correr esse risco.
Seu momento de silêncio deixou Jean afobado, e rapidamente o menino decidiu colocar em jogo o motivo de sua visita:
— Por que você nos traiu?
— O quê?
— Por que fugiu da colônia? Você explodiu a estufa, deixou a gente sem comida... eu me separei da 102, do 58... eram meus amigos e agora nem sei em que fração estão.
O tom magoado do menino fez Eiji abaixar os olhos.
— A RDA matou minha mãe.
— ...Eu sinto muito. Soube que ela foi julgada e condenada por traição. Ela se voltou contra nós na batalha das planícies.
— Nós? – Eiji retrucou. – Não fale como se fosse um soldado! Minha mãe foi abandonada pra morrer lá e só voltou pra mim porque os na’vis a salvaram.
— O quê? – Jean estava verdadeiramente perdido. – Os nativos são nossos inimigos!
— Eles nos odeiam, é verdade. Mas porque viemos tomar o lar deles. Escuta, Jean. Você é meu amigo desde sempre. Me conhece. Sabe que eu nunca faria mal a você e aos nossos amigos assim. A verdade é que...
A voz de Eiji perdeu um pouco as forças.
— Quando visitei minha mãe pela última vez, ela disse que Pandora era muito mais do que aprendemos na sala branca. Os na’vis não são selvagens. Eles têm motivos pra lutar contra nós. Muitos. Sinceramente, nós que não deveríamos estar aqui.
— Por que eu deveria acreditar em você?
— Porque se vir comigo, eu posso te mostrar que estou certo. Se sairmos dessa guerra, temos uma chance de viver em paz com nossos amigos.
— Nós não vamos durar um dia sozinhos na selva!
— E como você explica eu estar vivo até agora? – Retorquiu, ansioso. – Eu fiz amigos, Jean. Amigos na’vis! Eles me salvaram e me protegeram até agora. Eu nunca acreditei muito nas palavras da minha mãe até ver tudo isso com os meus próprios olhos. Se você visse, também acreditaria.
— Mas...- Jean de repente pareceu hesitante. – Por que abrir mão da vida aqui, em segurança, pra se arriscar lá fora?
— Porque eu sei que merecemos mais do que isso. Se você não se incomoda com a vida aqui, por que sai do seu quarto e entra nos dutos? Por que veio até aqui atrás de mim? Qual é, Jean. Eu... juro que não queria abandonar vocês. Só não tinha forças pra invadir esse lugar sozinho e levar vocês comigo. Mas se nos ajudarmos, podemos ter a liberdade pra fazer o que quiser. Sem essas regras idiotas da colônia.
O menino ficou um tempo em silêncio, pensativo.
— É impossível escapar daqui. – Concluiu, finalmente. – As crianças da fração 2 são muito pequenas. Eu sou o mais velho. Vai ser um desastre. Não temos armas.
— Escuta. Você pode me dar a vantagem que estava faltando.
— Do que está falando? – Perguntou Jean.
— Sabe onde fica a sala de comando?
— Sim, eu sei. Mas ela é bem vigiada. Impossível entrar lá.
— Com certeza tem algum momento em que ela fica vazia. Você lembra quando a gente desconfigurava as câmeras da antiga colônia? Sempre aproveitávamos o momento de trocas de turno.
— Talvez eu consiga descobrir qual é... Precisa que eu desligue as câmeras?
— Sim... – Uma ideia lhe ocorreu naquele instante. – Mas não por agora. Tive uma ideia melhor.
— Do que está falando?
— Você disse que é impossível escaparmos daqui sozinhos.
— E é mesmo. – Concordou Jean, esperando o fio de explicação.
Eiji sentia as engrenagens de sua mente trabalharem a milhão, revirando memórias de tempos atrás.
— Então pra gente ter uma chance, preciso que faça exatamente o que eu vou pedir pra você. E isso precisa ser feito hoje.
****
— E Jean. – Eiji chamou depois de uma longa explicação. – Me desculpe. Por tudo. Eu senti saudades de vocês, todos os dias.
No mesmo instante, Jean sentiu aquela rachadura na amizade deles começar um processo de cicatrização, deixando seu coração mais ameno.
— Tudo bem. – Jean disse, por fim. – Sinto muito pela sua mãe, Eiji. Sinto falta dela também.
O outro não respondeu e Jean não esperou mais nem um segundo. Se esgueirou pelos dutos apertados, rastejando com uma precisão desenvolvida por anos de escapatórias. Mas, antes de se afastar completamente, voltou a falar:
— Ele está aqui, Eiji. Seu avatar. Na verdade, todos os avatares da colônia estão aqui, na fração 2.
Não esperou um retorno do amigo, voltou-se pelo caminho. Dotado de sentidos cuidadosamente treinados, o menino era ágil e muito esperto, assim como todas as crianças da colônia.
Por já ser um pouco mais velho, estava cada mais perto de ser considerado um cidadão apto para iniciar os planos descritos para si e realizar a primeira conexão com seu avatar. Seu papel não poderia ser mais simples: Jean seria o responsável pelas funções de coleta e preparação dos alimentos para a nova sociedade do qual faria parte.
Para desempenhar seu papel, tinha aulas constantes sobre a fauna e flora de Pandora, aprendendo sobre suas texturas, cheiros e como se formavam os alimentos, além das substâncias que os compunham. Apesar disso, nunca pôde de fato tocar nas frutas e plantas nativas do planeta, apenas nas comidas humanas, cultivadas em estufas especiais, como a que Eiji havia destruído. O período de fome que haviam passado depois da fuga de seu amigo o fez remoer um rancor intenso.
Mas também o invejava. Tantos anos na sala branca, absorvendo informações como uma esponja lhe despertaram uma vontade enorme de pisar sobre o solo que conhecia de cor a composição. Queria conhecer a floresta, tocar nas inúmeras frutas que tinha descrito e catalogado com muita precisão. Ver os animais tão exóticos em seus habitats naturais.
Queria simplesmente conhecer o mundo onde nasceu. E Eiji teve essa oportunidade.
Mesmo que estivesse magoado, queria acreditar nele. Por isso, sem medo, Jean traçou um caminho que já conhecia muito bem. Para muitos, o sistema de ventilação era um verdadeiro labirinto claustrofóbico. Mas não para ele.
Quando alcançou a sala repleta de computadores com variadas funções, desde monitorar as câmeras até a comunicação com a principal base da RDA, ele esperou pacientemente os breves minutos em que a sala ficaria vazia. Tinha mentido para Eiji. Já sabia exatamente o momento em que poderia entrar, mas temia que estivesse apenas sendo usado para mais uma fuga.
Bom, a questão é que não tinha mais nada a perder agora, por isso, faria exatamente o que haviam combinado, sabendo que aquilo causaria um enorme caos na base.
No momento em que finalmente, os últimos cientistas saíram, Jean empurrou as grandes do duto, que tinha tirado os pregos semanas antes.
Adentrou a sala e correu para o computador mais potente. Digitou as coordenadas exatas passadas pelo amigo e olhou para a câmera que ligou, recitando com precisão a mensagem que deveria enviar.
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