História Amor de uma figura tosca (quando tudo em mim pega fogo) - Três acordes em violoncelo

trens não se reconsideram em seus cenários, mas ainda assim nós os montamos, com as bochechas inchadas de tanto dormir, os olhos inchados de tanto piscar. na fração de segundo que separa nossos lábios separados de nossos lábios juntos, algo de gal se agarra em mim. se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem sim.

quando os três acordes em violoncelo se emudessem e se espalha o perfume de querosene pela ferrovia e todos descemos assustados, sua mão agarra a minha sem pudor, com a obscenidade dos gestos íntimos que não são digeridos por quem os vê de fora, mas são sentidos no ventre por quem os vê com os sentidos. na chuva, enquanto o grande e encardido vagão de trem pega fogo, algo em sua expressão me come com os dentes, abraçando minha barriga como se espirrasse fagulhas na minha pele. 

no fim do dia, eu te abocanho como um gato com olhos gigantes e dentes tortos que, de uma forma ou de outra, sorri. sua perna esquerda se retorce na cama larga e estreita do casebre em que nos entochamos, com os pés entupidos de calos, e seu nariz me respira como se quisesse me alojar não dentro do peito, mas do pulmão. meus dedos escrevem uma carta em suas costas, com uma caligrafia que não costumo usar para escrever matérias no jornal, com um contorno que apenas a letra de um amante possui, desleixada em meio à umidade do quarto, mas redonda e voluptuosa como em cartas oficiais da coroa.

faz-se noite, ou tu fabrica ela dentro de mim; não na penumbra, mas na madrugada fechada e sem estrelas, com cinzas jogadas por entre os trilhos, com toques raivosos e faíscas elétricas em máquinas complacentes. tremo embaixo da tua, porque amanhã o detetive baterá a porta, levando-nos sob custódia, a dois mil quilômetros de casa, sob a acusação de incêndio crimimoso.