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História ÂNGELA: Virgem - Antropocentrista


Escrita por: JakobFKings

Capítulo 9 - Antropocentrista


Ângela e Matias retornaram para a sede. Ela se esforçou para colocar seu melhor sorriso no rosto, a fim de esconder a decepção e a vergonha que passara. Não era fácil. Em seu estômago havia um peso. Enquanto caminhava ela havia pensado que essa habilidade de colocar uma máscara de felicidade e satisfação seria cada vez mais necessária em sua vida. Era algo que, infelizmente, ela precisava aprender a fazer. Só que isso leva tempo e prática.

Durante o almoço os quatro conversaram sobre trivialidades. Até que Gui perguntou:

_ E vocês já pensam quando vão casar?

Ângela tinha a impressão de que, com eles, esse assunto de casamento estava sempre aparecendo. Parece que não havia outro tema. Que os outros não viam nada no horizonte dela e de Matias que não fosse casamento e filhos.

_ Ano que vem, provavelmente - respondeu Matias.

_ Ou depois, não está decidido ainda - tentou corrigir Ângela.

Embora falassem sobre casamento o tempo todo, ainda não haviam decidido uma data. Sequer estavam formalmente noivos, embora se tratassem como tal.

_ Estou louco pra ter filhos! Não quero que demore! - Matias falou empolgado.

_ Quantos filhos vocês pensam em ter?

_ Ah, uma casa cheia, não é meu amor? Sei lá, pelo menos uns três ou quatro, mas quantos Deus nos mandar.

_ Quatro não é muito, amor? - replicou Ângela.

_ Não! Lá em casa somos oito e é ótimo. Imagina. Com sorte, a gente se casa em janeiro do ano que vem e no Natal já teríamos o nosso primeiro! Ângela é ótima com crianças! Nasceu para ser mãe!

Ângela não respondeu, apenas sorriu com o canto da boca.

Mais tarde, Nat convidou Ângela para irem tirar as fotos e coletar sementes e folhas para o trabalho. Trocaram de roupa e pegaram a trilha para os Três Cedros.

Elas juntaram o que acharam necessário, depois se sentaram na pedra entre as frondosas e antigas árvores. Ângela juntou coragem e falou de uma vez.

_ Mais cedo eu tentei ter uma intimidade com Matias. Ele me rejeitou.

A frase deixou um gosto amargo em sua boca. 

Ela continuou:

_ Eu não queria perder a virgindade, sabe? Eu valorizo muito ela. Eu sei que é coisa fora de moda, mas eu quero que a minha primeira vez seja especial mesmo. Mas não quero ter um namoro infantil, ignorar que eu sinto desejo. Já sou uma mulher adulta.

Nat não sabia bem o que dizer. Era uma situação nova para ela. Ela nunca fora rejeitada daquela forma.

Ângela seguiu em seu desabafo:

_ Sabe, eu entendo a crença dele, mas será que é tão terrível assim dar um pouco de prazer para quem a gente ama? Será que é um pecado tão grave? Será que tocar numa mulher antes do casamento é tão ruim assim? E será que eu sou tão ruim assim a ponto de precisar disso? De querer isso?

_ Olha, Gê. Eu não posso te falar da religião. Eu acredito em Deus, mas não da mesma forma que vocês. Eu acredito mais numa entidade superior que criou o mundo. Mais numa Mãe Natureza, numa Gaia, do que em um Deus que tem uma tábua de pecados e penas. Mas, fora isso, eu sei e você sabe, porque acredita em ciência, que nós mulheres sentimos desejo. É normal. É normal querer ter prazer, prazer sexual, não é?! Esquece a religião. Pensa na sua anatomia, na sua fisiologia.

_ É. Mas o que nos diferencia dos animais é justamente a possibilidade de resistir a esses desejos, não é?

_ Eu vejo esse argumento antropocêntrico de superioridade humana sobre os animais e fico em dúvida se é tão válido assim. É meio até religioso, como se fossemos uma espécie especial, criada “à imagem e semelhança de Deus”, em patamar acima das demais. Eu tenho uma visão mais biocêntrica. Sem hierarquia entre o ser humano e os demais seres vivos. Veja a natureza sem o ser humano. Bela, exuberante, harmoniosa. Perfeita. Mas o homem vai e se alça como um deus, que pode usar tudo a seu favor. Aí temos guerra, forme, tortura, humiliação, preconceito… e até mudanças climáticas, crises ambientais... Somos tão melhores assim que os animais? Eu vou além, somos tão melhores assim que as árvores? Olha a harmonia, a paz, na qual elas vivem, exercendo suas potencialidades ao máximo, competindo e cooperando num fantástico caos harmônico.

Ângela não se aguentou e riu.

_  Você está filosófica! “Caos harmônico” eu nem sei se faz sentido.

_ É. Tudo parece um caos. São animais caçando uns aos outros, plantas lutando por espaço e recursos, um rio furando a rocha, bactérias devorando os mortos. Mas todo esse caos forma um conjunto que é, no final, harmônico. O predator se aproveita da presa, mas depois morre e retorna ao ciclo da vida, virando, sei lá, comida de bactéria ou adubo para as árvores. A chuva cai somente para se juntar ao rio, chegar ao mar, para depois evaporar novamente para o céu. Exceto, na minha opinião, pelo ser humano. É ele quem cria a desarmonia. Somos nós a peça que não se encaixa que trava o funcionamento dessa máquina. Não somos superiores de jeito nenhum.

_ Te entendo, mas isso não muda minha situação.

_ Muda. Se aceite. Aceite seu lado animal. Aceita que esse lado talvez não seja o lado ruim. Que pode ser um lado bom. Que é o lado que te deixa em harmonia com a natureza. Claro, você não vai sair por aí fazendo tudo que quer, mas tem que ouvir o seu corpo, seu instinto, não é?

_ Não sei.

_ Tem uma coisa que eu fiquei pensando e quero que você pense também. Você me disse que a igreja foi quem te acolheu quando você precisava. Que estava sozinha e não tinha mais ninguém. Acho que você se sente em dívida com a igreja. E isso não é bom. A igreja te ofereceu uma oportunidade de se juntar a ela e você se juntou. E foi e, talvez ainda seja, bom. Mas não é um contrato eterno que você assinou. Como qualquer relacionamento, precisa ser revisto de tempos em tempos. A igreja foi boa para você e você retribuiu sendo boa para ela. Estão quites. Não tem mais dívida. E mais: agora você tem amigos. Tem a mim, tem a Carol, tem a Pat. E tem o Gui, que gosta muito de você. E tem o Ricardo, que também gosta muito de você. Talvez até demais.

Elas riram.

_ Entendi.

Os olhos de Ângela estavam marejados novamente. Nat a abraçou.

_ Então pensa no que te faz bem, amiga. E tira o que te faz mal. Você é linda e merece ser muito feliz. Se ouça. Ouça sua cabeça, seu coração e seu corpo. Sei que vai encontrar seu jeito.

Ângela ficou algum tempo ali. Admirando as frondosas árvores que a cercavam, ouvindo o cantar dos pássaros, reparando nas flores de diversas cores que a rodeavam. Depois sentiu o vento fresco e o sol morno incidindo ao mesmo tempo em sua pele. Apreciou todo aquele contato próximo, quase íntimo, com a natureza.

Ela percebeu que ser parte daquela natureza, se reconhecer como um animal no imenso ecossistema da Terra, não era algo necessariamente negativo. Afinal, ela era, de fato, um animal. Homo sapiens, uma espécie da ordem dos primatas, da classe dos mamíferos, pertencente ao reino animal. E, naquele cenário bucólico, no meio daquela mata exuberante, isso parecia mais motivo de orgulho, que de vergonha.

 

 



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