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História Angels - Seulrene - 03:06 - Rômulo e Remo


Escrita por: KimLeah04

Notas do Autor


sugestão de música para a leitura: Toxic - 2WEI

Capítulo 72 - 03:06 - Rômulo e Remo


Aviso de gatilho: automutilação

[Domingo, 05 de março.]


Kang Seokjin encarou seu reflexo no espelho, os olhos arregalados.

Suava frio. Uma gota gelada acabava de se desprender de seu pescoço, o rastro úmido, beijado pela brisa fria que soprava através da brecha aberta na janela, causou um arrepio que abalou seus membros.

O quarto estava mergulhado em penumbra, à exceção dessa pequena luz negra sobre o espelho, que permitia que visse seu reflexo. Era quase sempre assim. Ele preferia. Eles preferiam. Aquele pouco de luz era suficiente para a maior parte de suas atividades.

Naquele momento, aquela pontinha de luminosidade era o que lhe garantia que seus olhos não estavam enganados. Havia marcas em seu peito. Duas, grandes, com formatos que não poderiam ser outros, senão os de um par de mãos humanas.

As mãos de sua irmã.

Trêmulos, os dedos de Jin fizeram seu caminho até a borda de uma delas. A pele queimada ardia, mesmo depois de tratada e resfriada, e emitiu um protesto doloroso e sensível diante de sua curiosidade, que o impedia de fazer o que qualquer outra pessoa naquela situação faria — manter as mãos longe.

Jin estava fascinado. Ele via isso, no espelho, nos espasmos irregulares que levaram seus lábios a se curvarem, e se curvarem mais um pouco, e se afastarem num sorriso.

— Isso é incrível... — ouviu, e só depois notou que era ele mesmo quem falava. Sondou as queimaduras, percorrendo as bordas chamuscadas, avançando para o centro, onde a camada mais fina da pele tinha formado bolhas, as restantes ainda um pouco avermelhadas. — Incrível... — repetiu.

A parte mais estranha, e mais maravilhosa, era que aquilo não era novidade. Ele sabia o que encontraria sob suas roupas, muito antes de abrir os olhos naquela manhã. Ele soube, no momento em que Seulgi o empurrou, que algo estava muito certo e muito errado.

Foi uma surpresa. Mesmo que, durante boa parte de sua vida, tivesse esperado e mesmo torcido para que algo semelhante acontecesse, foi uma surpresa. Jin não imaginaria, nem em uma centena de anos, as circunstâncias em que sua irmã finalmente se manifestaria como o que realmente era.

Ele não tinha sequer sonhado em ser o primeiro, na longa lista de pessoas que seriam atingidas pela tempestade que era Seulgi.

O choque o impediu de ir atrás dela. No momento em que suas palmas o empurraram, todo o ar foi expulso do corpo de Seokjin. A dor da queimadura veio um segundo depois, junto com o impacto de suas costas contra a parede. Teve apenas a impressão de ouvir o barulho, que agora sabia ter acordado o restante da casa. Trinta e oito segundos depois, quando Junsu desceu as escadas vestindo apenas um samba-canção ridículo e meias que não combinavam, brandindo um taco de beisebol e exigindo, aos berros, saber que diabos estava acontecendo, Jin ainda estava paralisado.

Felizmente, reagiu a tempo de evitar que a situação se tornasse pior. Inventou uma desculpa, alguma coisa que misturava verdade e suaves mentiras, com sua irmã mais nova maluca discutindo com ele e fugindo para os fundos da casa e ele desconhecendo a razão de sua explosão de raiva. Não se preocupou em gravar os detalhes da história. Seu "pai" não se importava o mínimo necessário para perguntar pela mesma coisa duas vezes.

Jin ficou em silêncio, enquanto Junsu resmungava suas obscenidades e ofensas costumeiras, tendo o cuidado de assentir de quando em quando, muito embora não estivesse ouvindo uma palavra sequer. Yangmi, que vinha logo atrás, aproximou-se da porta, os cabelos escuros cuidadosamente ajustados sob uma touca de dormir com babados de renda, um robe rosa-claro apertado com firmeza ao redor do corpo magro.

Jin meneou o queixo uma vez, um movimento muito sutil, que Junsu, imerso em seu discurso extravagante, certamente não notou. Mas sua mãe sim, e viu em seus olhos que tinha entendido tudo.

Estava acontecendo. Finalmente, estava acontecendo.

— Incrível...

O sussurro, dessa vez, não era seu. Jin não se preocupou em sentir qualquer incômodo. Tinha se acostumado mais rapidamente do que imaginara com aquela presença que apenas ele conseguia ver. Bem, até quarenta e oito horas antes.

Por isso, não estranhou quando as sombras no espelho dobraram de volume, se expandindo muito além do que seria natural. Crescendo, fluindo de alguma rachadura invisível entre esse mundo e o que havia abaixo dele. Entre o mortal e o impensável.

— Talvez — as sombras provocaram, curvando-se em sua direção — , no fim, você não seja uma perda de tempo.

— Eu te dei garantias, não? — Jin virou o pescoço, sentindo-se tocado pela escuridão. Dedos de névoa pairaram sobre as marcas em seu peito, os arrepios se intensificando. — Não finja estar surpreso, agora que tudo está se encaminhando.

Uma risada fraca se fez ouvir, salpicada de desdém.

As sombras recuaram, assumindo uma forma que aos poucos se diferenciou do restante do breu. Os olhos foram, como de costume, a primeira coisa que Jin avistou, quando o obsessor se postou à sua frente. Grandes, brilhantes como jóias, e feitos ainda mais violeta pela luz fantasmagórica sobre seu espelho.

A única parte que realmente lhe pertencia. Todo o resto era roubado, possuído sem autorização. Subvertido e profano. Exatamente como ele.

— Cuidado, feiticeiro. É cedo para você estar tão confiante.

Agora, foi Jin quem sorriu. Devagar, sabendo que tinha todo o tempo do mundo (e do submundo), devolveu os botões da camisa social aos seus lugares, um após o outro. Levaria apenas um sopro, um minuto de vontade e as palavras certas, para que as bolhas e a carne queimada desaparecessem, e os ferimentos se curassem. Mas ele as queria.

Queria a dor, e o incômodo do tecido roçando a pele destruída, e a energia que ainda fluía por cada milímetro onde ela o tinha machucado. Jin queria tudo aquilo, porque tinha esperado tempo demais.

— É cedo para você estar tão pessimista. Onde está a sua fé em mim? — Provocou, e as lâmpadas piscando repentinamente às suas costas foram apenas o indício menos sutil de que estava obtendo resultados.

Como toda criatura ambiciosa, o obsessor não era muito paciente. Seokjin teve que cultivar essa habilidade, e era grato por ela. Depois de tantos anos esperando, sentia uma satisfação sádica em ver o momento passar devagar. Enquanto atrasos ainda eram deleite, e não perdição.

As sombras se avantajaram, destacando-se de sua figura, conforme ele avançava. Mais homem e menos humano do que nunca, o obsessor ergueu uma mão de dedos pálidos e esqueléticos. As costas de uma palma cadavérica e os nós de dedos semi-enrijecidos pela Morte percorreram a pele da bochecha de Jin, conscientizando-o de seu próprio calor.

Ele era a própria pulsão da vida, com sangue quente correndo por suas veias, o coração batendo calmamente, a respiração morna. Tudo o que o obsessor adorava e desejava. Tudo que a criatura não tinha.

— Fé não é uma palavra recorrente no meu vocabulário. — Os dedos gelados se moveram, mansamente, por seu queixo. — Eu, sinceramente, prefiro trabalhar com coisas nas quais possa colocar as minhas mãos.

— Como almas? — Jin perguntou, sentindo o punho da criatura começar a se fechar em torno de seu pescoço, bloqueando parte de sua oferta de ar.

— Como corpos — murmurou. — E, se não me falha a memória, você me prometeu um.

Era muito fácil. Ou, Jin pensou, parecia.

Se as coisas fossem diferentes, se ele fosse uma pessoa diferente, poderia ter acabado ali. Um apertão bastaria. Um estalo, e estaria acabado. Imaginou a sensação, mas não chegou nem perto. Não tinha medo o suficiente sequer para criar a ilusão. Não tinha medo algum, na verdade.

O tempo do medo ficou para trás. Ficou, naquela primeira noite. Se esvaiu, junto com a novidade, cedendo espaço para um tipo mórbido de prazer que, não mentiria, era o seu favorito.

Não havia um mísero dia em que Jin não pensasse sobre o que havia feito. Estava ali, no fundo de sua mente, sendo constantemente sussurrado pela vozinha de sua consciência. Você quebrou uma regra, e vai pagar o preço.

— Você o terá. — Jin agarrou o pulso gelado, afastando-o de sua pele. Em outros tempos, ele teria torcido o nariz para o mero pensamento de encostar em um cadáver, mas essa era apenas mais uma linha que tinha ultrapassado, na última semana. — No tempo certo — acrescentou, com aquele tom seu que indicava que a discussão estava encerrada.

Deu um passo para o lado, contornando a figura sombria no centro de seu quarto. Não foi apenas Jin quem se moveu: o restante do quarto o acompanhou, à sua maneira. Em todo lugar à sua volta, as linhas nas paredes e nos móveis dançaram, refestelando-se na atmosfera de tensão e perigo que tomava conta do recinto. Recordava-se de cada uma delas, e conhecia cada desenho, porque cada milímetro coberto pelas sombras era coberto, também, por uma parte sua.

Não foi de imediato que Jin percebeu para quê estava sendo criado. De fato, até o nascimento de Seulgi, ele mal tinha pensado que a forma com que seus pais se comportavam perante ele poderia ser outra coisa, além de normal. Ele não tinha para onde olhar, em busca de referências.

Do pouco que lembrava de sua infância, antes de ser o irmão mais velho de alguém, uma quantidade ínfima de rostos diferentes dos de seus progenitores se apresentava diante deles. Por aqueles anos, o sobrado tinha se tornado o universo particular de sua mãe. Junsu, naquele momento, ainda estava longe de se arruinar como viria a fazer, em jogos e bebida.

Jin era o primeiro filho. O herdeiro natural que todo homem da estirpe do marido de sua mãe desejava. A promessa de domingos de futebol e muitas conversas de teor pornográfico em um futuro próximo; de brincadeiras violentas e xingamentos sussurrados aos oito; de pizza sendo servida como jantar, e a continuidade do sobrenome Park em uma nova geração, dali a uns vinte, trinta anos.

Em algum lugar dentro de si, Jin pensava que poderia ter seguido os planos do pai. Se Junsu fosse seu pai. E se Yangmi não estivesse plenamente consciente das razões pelas quais Jin tinha sido concebido, em primeiro lugar.

Ainda assim, boa parte dessas coisas veio a acontecer, desdobrando-se paralelamente a uma outra parte do futuro que sua mãe conhecia de cor e salteado.

Seulgi ainda era um bebêzinho com cara de joelho, quando Jin arrancou seu primeiro dente. Ela tinha dois meses, quando ele arrumou sua primeira briga. Aos quatro, Jin começou a notar que as coisas estavam diferentes.

Sua mãe deixou de trabalhar. Yangmi tinha ficado um tempo em casa, logo após dar à luz, mas retornara para seu posto como assistente administrativa de uma empresa emergente tão logo a licença venceu. Jin, então com sete anos, assumiu parcialmente a tarefa de cuidar da caçula dos Kang, nos dois quartos de hora que levava para a babá contratada chegar, e ele ser posto no carro que o levaria para a escola. Era uma rotina da qual não tinha nada do que reclamar.

Até que, um dia, sua mãe chegou em casa mais cedo: roupas amassadas, coque praticamente desfeito, olhos desvairados e a cópia de uma carta de pedido de demissão. Foi a primeira vez que Jin viu seus pais discutirem.

Claro, eles brigavam antes. Era impossível que não, quando ambos não poderiam ser mais diferentes do que água e óleo. Mas eles sempre tinham tido o cuidado de não gritarem um com o outro na sua frente. Naquele dia, nenhum deles se lembrou de mandar as crianças para cima, antes de começarem a berrar.

Quando percebeu que não conseguiria fazê-los parar, Jin se voltou para Seulgi, sentada de um jeito meio torto sobre uma toalha que ele mesmo tinha estendido sobre o piso da sala. Aos tropeços, e repetindo "porque sim" e "porque não" para cada pergunta apressada que ela fazia, conseguiu convencê-la a subir as escadas e enfiar-se em sua cama. Jin ficou ali, pernas balançando para fora da cadeira de balanço, as costas para a porta fechada, os ouvidos aos poucos se cansando da discussão no andar de baixo. Em algum momento que escapou ao seu registro, Seulgi dormiu e ele também.

Ela não se lembrava desse dia. Jin tinha certeza de que não. Então, ela não tinha como saber que foi ali, entre o primeiro e o último degrau da escada, que suas vidas saíram de seu controle.

✵✵✵

Os anos que vieram foram uma sucessão de erros, brigas e silêncios dolorosos que não valiam a pena ser revisitados, na singela opinião de Jin.

Dia após dia, a rachadura no casamento de seus pais cresceu, alimentada pela controvérsia da demissão repentina de Yangmi que, nas palavras de Junsu, os arrastaria para a mais absoluta ruína. Ela não podia ser tão burra a ponto de abandonar um emprego como aquele, um salário como aquele, quando tinham duas bocas constantemente famintas para alimentar.

Jin compreendia, em parte, o marido da mãe. Ele não podia imaginar que as razões dela iam bem além de um simples capricho, ou um desvario momentâneo. Na verdade, Yangmi, já por aqueles dias, percebia que algo em sua família fugia ao padrão. E ela era inteligente a ponto de deduzir que, se uma cadeia de eventos de mais de três mil anos era quebrada, algo estava muito errado.

Bastava olhar para a tapeçaria.

Desde que era um garotinho, Jin se sentia atraído pela peça. E não era sem motivo. Uma das primeiras coisas que sua mãe tinha ensinado, quando ele nem imaginava quem era, dizia respeito às propriedades daquele patrimônio de sua família.

— Ela está conosco desde o princípio. — Se lembrava de ouvi-la dizer.

Era mais um dia da sua nova vida, com Yangmi estando presente do amanhecer ao anoitecer dentro daquelas paredes. A primeira pessoa que ele via, ao acordar, e a última de quem se despedia, antes de dormir.

Ainda recordava o brilho no rosto dela, o carinho e a admiração em seus olhos, enquanto corria a mão pelo desenho da árvore. Subindo pelos galhos, desenhando sobre cada folha, até atingir o grande Sol no topo.

— Desde que a primeira de nós veio ao mundo. Há muito, muito tempo atrás...

— A vovó tinha a minha idade quando isso aconteceu, mãe? — Jin se lembrava de perguntar. Sentado aos pés dela, joelhos junto ao peito, o pescoço esticado para olhar para cima. Yangmi riu de sua inocência. A avó era a pessoa mais velha que o menino conhecia, então era natural que a pensasse como parte dessa história.

— Não, meu amor. — Ela balançou a cabeça. — Nem sua avó, nem a avó dela, nem a avó da avó dela... Nenhuma delas existia, ainda.

— Então, quem fez a tapeçaria, mãe?

Nesse momento, Yangmi desviou o olhar para o salgueiro, novamente. Os dedos dela caíram, descendo pela tapeçaria, pelos galhos e pelas folhas, rumo às partes mais escuras do desenho. Onde a lã e a linha tinham se desgastado, pela ação do tempo e das traças. Onde a luz do Sol não podia tocar.

Ali, Jin sabia, um nome estava escrito entre as raízes desbotadas. Medéia.

✵✵✵

Houve um suave som metálico, quando Jin girou a chave na fechadura. Ele a retirou, passando o cordão em que a mantinha pelo pescoço, escondendo a peça dentro da blusa. O pingente peculiar pesou, a menos de um centímetro de onde as queimaduras começavam. O veludo em suas mãos estava morno, suave ao toque como a parte interna do pulso.

Tinha aprendido sua lição. Nunca mais sairia de seu quarto, sem antes garantir que estava devidamente trancado. O mesmo não poderia ser dito de sua irmã.

Seulgi realmente deve pensar que não tem nada para esconder, pensou, enquanto contava os passos que o levariam até a outra porta, naquele mesmo corredor. Um, dois, três... sete, no total. Isso porque não estava com a menor pressa.

A casa estava vazia. Miraculosa, e abençoadamente vazia. Com Seulgi tendo sido a última a sair, rumo ao seu entediante meio período de domingo, e seus pais e Mina se aborrecendo na fila de algum supermercado, Jin tinha a casa só para ele, por algumas horas. Era todo o tempo de que precisava.

— A humanidade é mesmo fascinante. — O obsessor debochou, sobre seu ombro. Estava novamente em sua forma de sombra, acompanhando a de Jin a cada metro. Qualquer um que olhasse, não perceberia a diferença, mas para o feiticeiro ela era visível como areia em água: ali estava, a silhueta dez centímetros mais alta do que ele, deslizando pela parede coberta por retratos no mesmo ritmo de suas passadas.

O obsessor se tornara uma parte sua, por meio do pacto que selaram. Esse era um lembrete, para Jin nunca se esquecer disso.

— Não é contraditório? — prosseguiu a criatura. Jin tocou a maçaneta, e ela girou com suavidade. Alcançou o interruptor, e a luminosidade repentina irritou seus olhos, além de fazer a sombra um pouco menos densa. — Querer proteger a pessoa que você tanto despreza?

Jin fechou a porta, tendo o cuidado de dar uma volta com a chave. Não poderia se arriscar a ser encontrado ali, caso algum dos moradores voltasse mais cedo.

— Não quero — respondeu. — Preciso. Não é como se existisse outra opção.

O obsessor emitiu um grunhido de desprezo, ou talvez fosse de provocação. Pensou que não fazia diferença.

Sua segunda sombra se moveu, deslizando até o que ele sabia ser o canto mais escuro do quarto: atrás do guarda-roupa. Não era um espaço muito grande, sendo o móvel afastado da parede apenas para facilitar a limpeza. Mas, para a criatura, aqueles trinta centímetros de penumbra eram suficientes, e ela se acomodou ali. Um olho violeta acompanhou Seokjin, observando enquanto ele desembrulhava o pacote que trazia em mãos.

Desfez as amarras com paciência, afastando as extremidades do tecido como se fossem páginas de um documento milenar. O cálice, agora delicadamente equilibrado entre seus dedos, era um pouco mais importante do que isso. Mesmo com a fina película entre o metal e sua pele, Jin conseguia sentir a temperatura.

Quente. Quente como o Inferno que estava prestes a libertar.

Devagar, ele se ajoelhou, pousando cuidadosamente sua preciosa carga sobre o chão. Com a mão livre, vasculhou o bolso, puxando de seu interior um isqueiro e um toco de vela, pouco maior do que seu indicador. Serviria.

Levantando-se, seus olhos percorreram o quarto com atenção, pela primeira vez.

Era estranho pensar que, em um determinado momento de suas vidas, Seokjin e Seulgi mal sabiam distinguir qual quarto pertencia a quem. Viviam transitando de um cômodo para o outro, espalhando almofadas pelo chão e usando apoios de cadeiras e cabeceiras para montar barracas com lençóis. Geralmente, só se lembravam da divisão quando a mãe (era sempre Yangmi) vinha bradar para que fossem para suas respectivas camas.

Jin correu os olhos pela cama de casal, a cômoda de madeira antiga e pesada, a penteadeira transformada em escrivaninha. O guarda-roupa, e o olho arroxeado que o encarava dali. Fixou-se num espaço vazio, ao lado deste último. Suas sobrancelhas se franziram.

Será que... Jin estendeu a mão para a parede, correndo as pontas dos dedos pelo papel de parede, com suas flores desbotadas. Sim, ele suspirou, quando o botão de rosa sob seu indicador afundou e a moldura de uma porta oculta saltou para a frente. Ainda está aqui.

Foi preciso um pouco mais de tempo, para vencer a resistência das dobradiças. A porta, era visível, não tinha sido utilizada, mais ou menos... na última uma década e meia. Ela não se lembra, concluiu. Do que mais Seulgi não se lembrava? Que outras coisas ela tinha esquecido?

Que outras coisas Jin e sua mãe tinham apagado da memória dela?

— Deve ser por isso que existem feitiços proibidos — disse. Se para si mesmo, como reflexão, ou para o demônio que o assistia era uma outra discussão. — Não dá pra saber até onde os efeitos vão, até muito depois de você ter feito...

A lâmpada não acendeu, quando ele buscou pelo interruptor. Jin não esperava que o contrário acontecesse, e, de toda maneira, não era um espaço muito amplo. Quando perguntou à mãe, ainda menino, ela disse que era um armário de vassouras. Então, Yangmi deve ter percebido que não fazia sentido guardar vassouras em um quarto de dormir, porque voltou atrás e disse que era apenas um armário.

Demorou apenas dois dias para que o filho descobrisse a verdade.

Apesar de ter se passado mais de dez anos, as prateleiras diminutas continuavam intactas. Seu conteúdo, também. E foi com grande alegria, e uma pontinha de nostalgia, que Jin localizou a adaga de que precisava. No fim, era uma grande dádiva dos deuses que sua irmã não se lembrasse daquele ponto escondido, dentro de seu pequeno mundinho. A lâmina continuava tão limpa e energizada quanto na última vez em que Jin a tinha visto, na noite em que o feitiço de memória foi performado.

Ele a segurou, com firmeza, enquanto lacrava novamente a porta do armário. O botão de rosa que era a chave e a maçaneta, em simultâneo, girou uma vez sobre um eixo dourado e voltou para o seu lugar. Como se nunca o tivesse deixado.

Jin podia sentir o apelo da adaga. Anos sem ser tocado, e muito menos usado, produzia efeitos diversos sobre objetos mágicos. Grimórios, rancorosos como eram, se tornavam armadilhas de feitiços. Varinhas se partiam e entortavam, apenas para desfrutar o desespero de seus portadores, antes de se reestabelecerem ao normal. E as adagas viravam agiotas.

No curto espaço até a escrivaninha de sua irmã, ela desvelou todas as vontades de Seokjin, afundando-se até sua alma meio corrompida, e começou a fazer propostas. Algumas eram tentadoras. Outras, tolices. A adaga... o athame... estava faminto, desesperado embora não quisesse demonstrar. Não importava. Não faria um acordo com ele, de qualquer forma.

Tinha vendido bastante de si mesmo, naquela última semana, para se arriscar em outro negócio com o Submundo.

— Seja boazinha, e colabore. — Jin sussurrou, enquanto revirava a única gaveta. — Canetas, compasso... — murmurava, conforme retirava os itens e os organizava em uma pilha. Precisava se certificar de colocar cada um deles na mesma posição, quando acabasse. — Porra, irmãzinha... onde estão as suas jóias?

Como se fosse invocada pelo seu resmungo, uma caixa surgiu sob seus dedos. Jin sentiu a textura familiar da superfície, idêntica ao volume que acabara de desembrulhar,, e não pensou duas vezes antes de puxar o objeto. Um pequeno e solitário diamante reluziu, quando ele separou as metades do invólucro.

Não era a pedra mais valiosa do continente, em termos financeiros. Quatro, quem sabe cinco dígitos, e só. Um memorial aos dias felizes do casamento de seus pais, repousando no meio do lixo. Se Jin não soubesse exatamente o que Seulgi pensava sobre sua família, teria entendido ali.

Mas, para o que ele tinha em mente, não poderia ser mais perfeito. Amor, ódio, tristeza e decepção aos montes ganhavam forma física naquela pequena pedrinha. Todas as expectativas e as ambições da última geração de sua família estavam em suas mãos. E, melhor de tudo, os vestígios do poder de sua irmã, nos últimos dias antes de ela ser selada.

O que tinha mudado? Como? Eram algumas das perguntas que fazia a si mesmo. O fato de Seulgi ter ficado furiosa o bastante para atacá-lo, e marcar sua pele daquela forma, era apenas um sintoma de algo maior. A raiva sempre tinha sido um gatilho poderoso, sabia, mas não podia aceitar que fosse apenas isso.

Jin tinha feito de tudo para despertar os poderes Seulgi, nos últimos anos. Provocou, perseguiu, irritou-a até o limite do que uma pessoa seria capaz de aguentar, e depois mais um pouco. Ele se divertiu, não era dissimulado a ponto de não reconhecer. Mas também ficou apreensivo, quando cada tentativa resultava em uma frustrante crise de choro, ou uma inofensiva explosão de xingamentos.

Ele queria mais, muito mais do que aquelas reações humanas banais. Queria arrancar, nem que fosse a força, o lacre que separava sua irmã de suas piores partes. Porque os anos tinham passado, e mostrado que a decisão de deixá-la viver como uma garota normal fora estúpida.

O mundo estava mil vezes pior agora, do que estaria se tivessem permitido que Seulgi o incendiasse.

Mas era tarde para lamentar seus equívocos do passado. Ainda estavam a tempo de impedir o pior, felizmente. Jin ainda podia cumprir sua missão, e então tudo estaria acabado. E, quando acontecesse, teria valido à pena. Cada segundo, cada ano de sua vida desperdiçado. O sangue e a carne, a alma e a dor. Sua recompensa estaria além da compreensão mortal.

O obsessor teria seu corpo. Seokjin teria os poderes que nenhum outro feiticeiro ousou desejar.

A lâmina prateada reluziu, sob a luz da vela recém acesa. O diamante capturou a luz, dividindo-a em um arco-íris que se projetou sobre sua pele. Carne foi cortada, e a pedra, antes translúcida, se tornou um rubi sangrento em sua palma.

Tsc! — Jin estalou a língua contra o céu da boca, quando uma gota rebelde seguiu o caminho errado, caindo no piso de madeira. Por sorte, foi sobre uma das ranhuras. O piso bebeu de sua oferta, e não ficou nenhum vestígio visível de sua passagem.

As próximas foram mais cooperativas. Uma após a outra, escorreram em direção ao cálice, descendo em uma bela e ao mesmo tempo repugnante cascata. Jin fechou o punho, ignorando a pressão que suas unhas e o anel fizeram sobre o corte, intensificando o sangramento. Os chiados que cada gota, imediatamente ao entrar em contato com o recipiente, emitia ao evaporar, eram música aos seus ouvidos. O cheiro acre, metal e poder envelhecidos, inundou seu olfato.

Embalado pelo som de sua vida escoando, literalmente, entre seus dedos, ele começou a cantarolar:

Marusia viburna, morena, colhia no jardim: uma, duas, três bagas*...

Interrompeu a canção, quando sua contagem mental ultrapassou a casa dos cinquenta. Cinquenta dias de vida, em troca do que estava pedindo. Iria valer a pena, repetiu. Ele cobriu a boca do cálice com uma ponta do veludo azul.

Afastou a mão, buscando nos bolsos um pedaço de gaze para envolver o ferimento. Rasgando um pedaço, embrulhou o anel ensanguentado. Precisaria dele, mais tarde. Conhecia sua irmã o suficiente para saber que ela não sentiria falta da jóia tão cedo.

Usou os dentes para puxar o nó, e, quando acabou, uma mancha considerável já tinha se formado na superfície do curativo improvisado. Não poder curar aquilo enquanto não terminasse era a exigência mais estúpida de todo o processo.

— E agora? — O obsessor perguntou, ainda escondido. Jin girou o pescoço, o suficiente para encará-lo por um curto par de segundos. Tinha quase se esquecido de sua presença.

Ele logo se virou para o sacrifício, novamente. Afastou o tecido. O líquido viscoso e arroxeado que encontrou informava que sua proposta fora aceita.

— Observe...

Não pensou duas vezes, antes de levar o cálice aos lábios. Seu conteúdo era amargo e rançoso, como uma mistura de ervas esquecida para apodrecer, e desceu por sua garganta como lava, queimando tudo em sua passagem. Porque, em partes, era mesmo fogo líquido. Acompanhado do sabor inconfundível da água do poço da danação eterna.

Obrigou-se a permanecer firme, a respiração presa, vertendo até a última gota. Quando, por fim, o beijo metálico foi rompido, ele se sentiu consumido de dentro para fora. Respirou, aproveitando o ar puro como se fosse uma novidade: doce, quase enjoativo. O oxigênio agiu como combustível, e ele seguiu queimando

— Cara... isso foi nojento.

Jin se virou. O demônio tinha deixado seu esconderijo, provavelmente movido pela curiosidade. Encontrou-o tão à vontade sobre a cama de sua irmã, que era como se ele já estivesse estado ali. Considerando o tempo que tinha agido como sua segunda sombra, era bem provável que tal presunção fosse verdade. O pensamento não lhe trouxe sensações mais agradáveis que o líquido em seu estômago.

— Quer que te diga o que eu acho nojento? — perguntou, num fio de voz. A ironia ainda estava presente, contudo. Olhos violeta se estreitaram em sua direção, seus lábios se crispando em puro desgosto. Jin estendeu a mão esquerda retalhada para apanhar a adaga. Limpou o fio da lâmina em sua coxa, não se importando com o rastro vermelho que ficou em suas roupas. Colocaria tudo para lavar, em breve.

Uma onda de náusea interrompeu-o quando tentava se levantar. Parou o movimento na metade, olhos fechados, apoiando-se sobre os joelhos. Mordeu as costas da mão boa, respirando fundo enquanto todos os seus órgãos internos dançavam.

— É ruim, não é? — O obsessor suspirou, deleitado. — Tenho que reconhecer a sua coragem. Não é todo dia que um humano bebe do cálice da Morte e sobrevive.

— Não sou humano — respondeu, quando teve certeza de que não iria vomitar, bem ali. — E Thanatos não pode matar, apesar do que dizem. Ainda não é a minha hora. Ele desconfiaria, se um de seus Lordes aparecesse com uma alma não encomendada.

— O velho Luci... sempre tão organizado. — O demônio riu, balançando os pés na ponta da cama, braços cruzados sob a nuca. Jin parou em sua frente, analisando-o de uma forma que nunca tinha feito, até aquele momento. — O que foi?

— Você poderia ser bonito, se não estivesse morto.

O obsessor abriu um sorriso, surpreendentemente vívido para um rosto que deveria estar flexível como mármore.

— Meu Lorde costuma dizer que uma pessoa nunca será tão bonita quanto no dia de sua morte.

— Posso ser muitas coisas, mas não sou necrófilo.

— Não... Mas você gosta de invocar os mortos. E os não-mortos, também. Certo, feiticeiro?

— E você gosta de me chamar assim, embora eu tenha te dito meu nome.

— É porque você é único. O primeiro feiticeiro na linhagem de Medéia... e o último, me arrisco a dizer. Tudo depende de quão rápido o seu plano vai falhar...

— Isso não vai acontecer, obsessor.

O demônio fez uma careta, ou Jin achou que sim. Ele não sabia muita coisa sobre conservação de cadáveres possuídos por entidades, mas sua intuição dizia que, em algum momento, os derradeiros vestígios de vida seriam drenados daquele corpo, e a figura à sua frente desmoronaria em uma pilha de matéria orgânica decomposta. Jin apenas esperava que a criatura não estivesse sobre a sua cama, quando esse momento chegasse.

— Sei o seu nome. Acho justo que saiba o meu. É ridículo, aliás, quando você diz "obsessor".

— Muito bem... — Jin cruzou os braços sob o peito, entediado e um tanto agitado. Queria sair dali logo. Já podia sentir o feitiço repelindo-o, e nem tinha terminado. — Como eu te chamo, então?

Os olhos dele perderam-se no ar, cheios de memórias. Teria testemunhado a quem pedisse que seu rosto se iluminou em vida — no pálido reflexo do que receberia quando a parte de Seokjin fosse paga. O que, ambos esperavam, não demoraria muito para acontecer.

— Um dia, eles me chamaram de Namjoon...

~~~🖤~~~



Notas Finais


Heye💜tudo bem com vcs? eu espero que sim...

quarta, que virou quinta, que virou sexta e... ah,  hoje é sábado? pois é. foi mal😅😁(rindo, mas não me orgulho nem um pouco. continuando...) espero que tenham passado bem do último capítulo. e que tenham ouvido meus avisos de que os tempos de paz tinham ido pelos ares🙃

disse que teríamos notícias da Seulgi... mas não falei como, e aqui estamos. alguém aí já tinha feito a conexão?🤔 outro dia, a Irene falou alguma coisa sobre um grimório...🤨se não, não se preocupem. nem eu sabia bem aonde isso ia nos levar, lá no começo.

falando em começos: quem diria, hein, Namjooon? de barman nada suspeito a 😈obsessor😈. vou deixar vcs pensarem em que momento isso aconteceu /boa sorte/ e seguir falando que ainda tem mais por vir. o horizonte fica logo ali, e a linha que divide esses três mundos, também. nos lemos numa próxima *e dessa vez eu vou tentar ser pontual. mas não prometo nada*🤧💜cuidem-se.

Magá~


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