Londres, Inglaterra.
Não via a hora de retornar para Wonderland.
Aqui, neste mundo, eu não sou ninguém.
- Não passo de mais um homem comum, como todos os outros. – Murmurei enquanto ajeitava o nó da minha gravata.
Em Wonderland, ao menos, eu tinha uma história.
De um simples soldado do Rei, me transformei no comandante do seu exército e alguns anos depois...
Me tornei o próprio Rei.
Eu tinha tudo...
Tinha absolutamente tudo para triunfar.
Se não fosse aquele maldito costureiro e seu tolo amor pelas Rainhas...
Mirana e Alice.
Ele arruinou tudo o que construí.
Observei o pêndulo do relógio cuco, ele me avisava que era quase sete da noite. O espetáculo de ópera começaria às oito em ponto. – Acho que já estou pronto. – Concluí ao ajeitar o meu terno.
O pano de linho, cor de champanhe, estava jogado sobre a mesa perto da garrafa quase vazia de conhaque.
Eu o abri, sabendo o que havia embrulhado ali.
Um punhal.
Não um simples punhal mas um objeto que me trazia lembranças do passado.
Me sentei ao pegá-lo.
O tempo voltava nessas horas...
O brilho impecável ainda me fascinava.
Ele foi todo forjado a mão.
A lâmina cumprida, de ponta fina e o cabo de madeira, com aço revestido em forma de cruz.
Eu o olhava com fascínio. – Era o preferido de Gilbert. – O ergui. – Sim... Foi este punhal que ele usou para matar.
~*~
Dezembro, 1856
Ergui meu rosto para observar melhor as trepadeiras que se firmavam no muro de tijolos bem construídos da mansão de Thomas Fitz. Arfei cansado por imaginar que deveria escalar a planta até a janela do cômodo, alguns metros acima.
Bom, eu deveria, não deveria?
Gilbert pediu que eu o ajudasse na sua missão em fazer com que o abusador de sua amada e desconhecida irmã pagasse pelo o que fez.
Comecei a escalar, sabendo que o garoto havia invadido o quarto alguns instantes atrás. – Arg. – Os malditos tijolos daquela parte do muro ruíam em desgaste, parte do pó caiu em meu rosto. – Não tenho mais idade para isso. – Reclamei, me esforçando para subir.
Parei no meio do caminho quando ouvi um grito alto e agonizante. Confesso que me assustei, fiquei parado por alguns segundos.
E se Gilbert se feriu?
Sua força física nem mesmo se comparava com a de Thomas, um homem grande, alto e pesado.
De certo Enid não me perdoaria se algo ocorresse com seu filho falso.
Por mais que eu odiasse admitir, precisava prezar por sua vida.
Escalei o muro com mais rapidez até chegar a janela, onde passei minhas pernas pelo batente.
Observei a cena que ocorria bem diante de meu olho.
E ainda assim, era difícil de acreditar: Como um garoto de quinze anos conseguiu (sozinho) derrubar um homem adulto, com aquela altura e peso sem sofrer um único arranhão se quer?
Gilbert o apunhalava sem hesitar.
Quando me aproximei, já tinha plena certeza que não havia nenhum resquício de vida em Thomas.
Ainda assim...
O garoto cravava o punhal e puxava de volta, sem se importar.
O sangue respingava por todo o ambiente, sujando até a mim. Gilbert enfiava o punhal pelo peito, rosto, pescoço e barriga de seu novo inimigo.
Eu não sabia o que dizer.
Jamais imaginei que aquele garoto, que sempre negou que assassinaria alguém, agora cometia aquele ato que lhe trazia tanta repulsa com tamanho a naturalidade.
E determinação, muita determinação.
Ele fatiava o rosto de Thomas, como...
Um animal.
Aquilo estava fora de controle.
Era de tamanho a violência, até mesmo para mim.
- Ele pagou pelo o que fez. – Decidi dizer.
Mas minha voz e minhas palavras seguiam ignoradas por ele.
O menino arfou em cansaço, no entanto, seus braços erguiam e cravavam o punhal, como em um movimento automático.
- Já chega, Gilbert! – Eu o puxei de cima do homem gordo e falecido.
O desarmando no mesmo instante em que o olhei, assustado.
Sim, assustado.
Seus olhos transbordavam ódio. Ele mordia os dentes, ofegando com força. Retirei um pano do meu bolso para embrulhar o punhal sujo de sangue.
Eu simplesmente não sabia o que dizer.
Acho que... O subestimei em toda a sua vida.
A verdade é que tudo o que eu crio é perfeito.
E Gilbert era a prova viva disso.
Um perfeito assassino. – Você é um assassino. – Toquei o seu ombro. – Assim como o seu pai.
Ele controlou sua respiração, matutando o que acabara de ouvir.
Estava prestes a retrucar quando sua atenção foi detida por um grande quadro pendurado na parede, acima da lareira ainda acessa. – Então era isso. – Sussurrou, somente para si. – Era este quadro que Valentina se referia.
- Vamos. – Espreitei da janela. – Uma tempestade vem vindo.
Ele se mantinha intrigado diante da obra de arte. – Venha! – Pressionei seu ombro e o empurrei para perto da janela, onde quase caiu. – Desça logo, eu vigio para que ninguém o veja.
O garoto se sentou no batente, mas olhou para o quarto antes de ir. – Acho que não há ninguém aqui, meu pai.
- Vá! – O enxotei.
E ele desceu.
[...]
Faltavam poucos minutos para o amanhecer quando por fim, retornei ao meu quarto em Salazem Grum. Já havia trocado a minha roupa e me livrado de todo aquele sangue.
Enid despertava as cinco da manhã. E naquele dia não seria diferente. Ela estava diante do espelho, procurando quais de seus brincos de bronze usaria.
Mas me observou sentar com exaustão na beira da cama e largar o punhal, agora limpo, sobre o colchão. – Algum problema?
Neguei em silêncio.
Isso jamais seria o suficiente para aquela bruxa. – Sinto um grande peso em sua áurea.
A olhei com irritação. – Pare de me analisar e prepare o desjejum! – Me levantei. – Só estou um pouco cansado.
- Atordoado, eu diria. – A mulher cruzou seus braços. – Perdido, muito pensativo.
Apoiei minhas mãos sobre a penteadeira. – Tudo bem. – Ergui o rosto, observando meu reflexo, visivelmente cansado. – Você está certa. – Passei a mão no rosto com pesar, e um suspiro angustiando saiu de meus lábios. – Acho que foi um erro.
A bruxa não captava o significado daquela frase. – O que foi um erro? – Descruzou os braços, um tanto preocupada.
- Tudo. – Balancei meus ombros. - T-tudo, Enid... Eu não deveria ter concordado com a sua ideia de ter roubado o filho de Alice.
- Meu filho! – Prontamente corrigiu.
- De Alice! – Aumentei minha voz. – Me pergunto o que ele pode fazer comigo quando descobrir toda a verdade.
Enid quase riu após alguns segundos de puro silêncio. – O teme?
Eu a olhei, melhorando minha postura. – Claro que não!
- Ele não fará nada. – Se aproximou. – Por que ele jamais descobrirá a verdade, se depender de nós.
Me afastei. – Bom, e se ele souber um dia? – Questionei, reflexivo. O melhor líder do exército da rainha deveria pensar em todas as possibilidades, certamente.
E era o que eu fazia.
E a fiz pensar também. – Acha que ele pode querer matá-lo, Stayne?
- Me recuso a morrer nas mãos de um Hightopp, prefiro ser guilhotinado a ter minha vida ceifada por um deles. – Rapidamente me opus. – Mas... Eu não posso negar que o garoto tem um grande potencial. – A cena dele matando facilmente um homem que pesava mais de cem quilos não saia de minha cabeça.
- Não entendo o por quê está pensando nisso. – Concluiu a meretriz, um tanto confusa. – Acho um absurdo.
Ela não sabia que seu filho havia acabado de assassinar alguém.
- Eu só... Parei para refletir. – Balancei a cabeça. – Se um dia ele descobrir tudo, terá tanta raiva de mim que é capaz de tentar me matar. E ele... Ele pode conseguir, Enid. Sejamos realistas.
- Ele abomina este tipo de coisa, assim como... A genitora dele. Eu conheço o meu menino, ele jamais faria isso. Jamais mataria alguém.
- Eu não sei... Eu o ensinei... – Balbuciei. – O ensinei por anos, se pararmos para pensar ele tem o mesmo treinamento que eu.
- E ele só aceitou ser treinado para passar mais tempo com você. – Enid concluiu com tranquilidade. – Ele não o mataria.
Lhe dei as costas enquanto a ouvia dizer.
“Ele é seu filho, e ele te ama. “ – De todas as suas estúpidas frases, esta era a mais estúpidas de todas.
~*~
[...]
Já havia descido da carruagem fazia uns vinte minutos.
Estava parado na calçada no inicio daquela noite, vendo os casais entrando para o espetáculo de ópera que estava prestes a começar.
Eu não tirava o relógio de bolso das mãos, verificando os ponteiros com ansiedade.
Às vezes, algumas carruagens paravam na calçada. Eu tinha a tola impressão de que, da cabine, sairia a mulher que tenho esperado durante esses angustiantes vinte minutos.
- Oh sim. – Ergui o meu queixo.
Não existia dúvidas.
Uma carruagem vermelha não era vista com frequência.
Aguardei com inquietude na calçada.
O cocheiro deixou seu lugar aos cavalos para abrir a porta da cabine.
Era ela. – Com licença. – Empurrei o cocheiro discretamente e estendi minha mão.
Ela aceitou, tocando minha palma com a ponta de seus dedos. Ela levantou o vestido, só o suficiente para por seus pés, muito bem calçados por botas vermelhas na calçada ladrilhada.
Por um instante, apenas por um breve instante, tive a impressão que ela era tão bonita quanto suas irmãs.
Os cabelos ruivos com cachos fechados, a pele aveludada, parecendo macia e principalmente... Sua cabeça.
Agora proporcional, como antes.
Ela me olhou com certo desdenho. – Eu vou perdoá-la por seu atraso. – Sorri.
- Hum! – Respondeu em desprezo.
- É melhor entrarmos. – A guiava quando peguei o seu braço, o deixando repousado sobre o meu. – Por sorte reservei dois assentos nos melhores lugares.
O corredor do teatro já não estava mais tão cheio como antes.
Entreguei o bilhete para o funcionário e ele liberou nossa entrada. – É por aqui. – Eu a tratava cordialmente.
Mas Iracebeth não me dirigia a palavra. – Me diga que ainda se lembra de tudo. – Pedi. – Lembra-se que... Eu a joguei no espelho ao invés de matá-la quando voltamos no tempo, até lhe dei uma das poções de Enid para a sua... – A olhei bem, vendo que havia funcionado. - Cabeça.
Ela seguiu em frente. Obviamente nossos lugares eram os únicos dois assentos não ocupados no alto da ópera. – E você acha que me fez um favor? – Quebrou seu silêncio, enquanto cruzava os braços.
Me espremi entre as demais pessoas, talvez eu devesse ter reservado quatro assentos para que tivéssemos mais espaço e privacidade. – Respondendo a sua pergunta, eu acho que sim, você está muito melhor com a sua cabeça proporcional.
- Não me refiro a minha cabeça! – Gritou, atraindo olhares negativos.
- Se quer saber, eu aprendi a lição. – Sussurrei. – Aprendi que somos melhores juntos do que separados, minha Irace.
- Eu também aprendi a lição. A lição de não confiar em você. – Rosnou, recolhendo a mão que peguei.
A ópera começou assim que as cortinas de camurça foram abertas.
Uma mulher cantarolava com força.
Havia uma fumaça estranha saindo do chão. – Isso faz parte do espetáculo? – Me inclinei para perguntar, no ouvido da cabeçuda.
- Calado! – Ralhou, sussurrando com força.
O zumbido da voz da cantora me agoniava. – Até quando isso vai durar?
A ruiva me olhou atravessado. – Começou agora.
- Percebo que foi uma péssima ideia. – Reclamei. – Que tal sairmos para jantarmos?
Iracebeth arfou. – É mesmo tão desprazeroso estar aqui comigo?
Ajeitei minha postura, precisava dela. – É claro que não. Só não gosto muito de toda essa... Gritaria. – Apertei minha testa. – Tudo bem, eu espero. Faço o que for preciso para que você volte comigo para Wonderland. – Alisei o seu rosto.
A Rainha Vermelha se esquivou.
Mas sorriu. – Que coincidência. – Dizia, enquanto ajustava o lornhons, uma espécie de monóculos com uma haste para segurar.
O que quer que tinha a me dizer, não era de relevância. No entanto, eu precisava demonstrar o mínimo de interesse. – O quê?
Ela ainda sorria mais, abaixando o monóculos. – Você tem filhos?
Me ajeitei na poltrona. – Isso é um absurdo. Se eu tivesse filho seria com uma rainha, com certeza. Não com uma... – Fiz nojo. – Mulher qualquer.
- Então é muita coincidência. – Concluiu. – Aquele rapaz, lá do outro lado. – Comentou. – Usa um tapa olho como o seu.
- O que? O-onde?! Cadê ele?! – Olhei ao redor.
- Acalme-se. – Mandou, estranhando.
- Dê-me isso! – Arranquei o monóculos de ouro bruscamente de sua mão.
O teatro em que se executava a ópera tinha o triplo do tamanho do jardim de Marmoreal. E a capacidade para mais de quinhentas pessoas. Estávamos no alto, em uma parte mais reservada. – Não o encontro! – Sussurrei, quase jogando o monóculos com ódio no chão. – Onde ele está?! – Iracebeth estava pronta para apontar seu dedo na direção quando a detive. – Não faça isso, sua cabeçuda!
Ela me olhou ofendida. – Vejo que você não mudou.
Seu sentimentalismo não importava agora. Respirei fundo, tentando manter minha calma. – Você acha que ele nos viu?
Ela cerrou seus olhos. – Talvez não. Eu não sei.
- Se você o viu daqui, ele pode nos ver de lá! – Concluí.
A música do espetáculo se tornou apenas um detalhe banal para a irmã mais velha de Mirana e eu. – Escute, por que você está tão nervoso?!
“Algum problema, senhor?” – Questionou um garçom ao chegar por trás de mim.
Me ajeitei na poltrona. – Não. – Afrouxei minha gravata borboleta. – Eu quero... Que me sirva um copo de conhaque.
O garçom concordou em retirada.
Apalpei meus bolsos. Como fui estúpido em pensar que não precisaria levar um punhal a um evento público. – Quero que me conte o que está acontecendo, ou então eu vou embora. – Avisou Iracebeth. – E o que quer que você esteja planejando com a minha ajuda, você não terá.
O monóculos não tinha bem um grau que servisse para a minha visão. Mas eu o usava, mesmo assim. – Como ele é?
Iracebeth pegou o óculos de mim. Acompanhei a sua visão, sem sucesso. Havia tantas cabeças em volta... Homens e mulheres.
De todos os tipos.
- Bom, ele é... – Sussurrava. – Branco dos cabelos loiros, meio liso e meio cacheado... Está com um semblante sério, e está olhando discretamente para todos ao redor. Como se estivesse... Procurando algu— Ela abaixou o lornhons. – Ele nos viu.
- Que ótimo. – Arfei.
- Você o conhece. – Deduziu.
-Sim, e ele está tentando me matar.
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