"Qui suscipe mortem potius accipiuntur ut sodales. Calido amplexus moriuntur morte remittam.”
A voz do anjo foi alta o suficiente para chamar a atenção do deus. Sabia que ele ainda estava vivo, mas era somente uma questão de tempo. A luz que podia iluminar o anjo acendeu-se, e era possível o ver tentando movimentar o braço, numa tentativa de alcançar o corpo do humano, que repousava ao seu lado. Antes mesmo de conseguir tocá-lo, o corpo sem vida foi chutado para longe, deixando um rastro de sangue pelo caminho. O braço do anjo foi de encontro ao chão, emitindo um som baixinho. Ele chorava baixinho, quase sem forças.
-Chega a ser triste ver uma criatura como você chorando por causa de um humano. – A presença do deus ao seu lado fez com que virasse. Kai estava sentado ao seu lado, fitando-o – Ele morreria cedo ou tarde...
-E ainda assim... Está chorando... – O anjo falou, sua voz tão fraca e baixinha que parecia um sussurro. – Por quê?
-Nem eu mesmo sei... – Deu de ombros. – Ele nem cativante era. Eu não me importo, na verdade.
-Deve estar... Feliz... – A mão do anjo, repousada perto de seu peito aberto, fez o deus se arrepiar.
-Estou. – Sorriu de canto. – Isso não dói?
-Se importa...? – O anjo falou, colocando os dedos em volta de seu próprio coração.
-Não, mas estou curioso... – Percebeu o anjo olhando para o corpo do humano, e então apertar o órgão que mal batia. – Não entendo porque se importa com o ser que te deixou desse jeito.
-Você não entenderia... – A voz do anjo, ainda baixa, tomou um tom frio. – Você é frio... Calculista... Afinal... Você é a morte.
-E você é um anjo caído. Quem será que é pior? – Kouyou o olhou de lado, seus dedos, antes envolvidos no próprio coração, alcançaram o rosto do deus, lhe dando um tapa audível. – Você não consegue aceitar não é? – Ambos se encaravam agora. O anjo tinha ódio no olhar, que se misturava a uma tristeza tão grande que poderia afogar a qualquer um. O deus mantinha o olhar frio, sem sentimentos. – Você é um inútil, Kouyou. Aceite isso. – O anjo suspirou, batendo com a mão no chão ao seu lado.
-Deite-se. – As palavras saíram tão rápidas dos lábios em formato de coração que o deus quase não o entendeu, mas logo o fez, deitando e olhando para o teto, junto ao anjo. – Sei que eu estou errado. – Disse lentamente, ainda naquele mesmo tom. – Mas por isso que estou aceitando meu final tão bem... – Seu rosto se deformou, dando lugar ao choro. – Mas não entendo o porquê do final dele. O que ele fez de errado? Por que ele? Eu o amo... Ele era inocente, um idiota, mas inocente. Ele ainda tinha muito pra viver. Ele ainda tinha tantas coisas, sabe? E era por isso que eu vivia. Para ver cada coisa que ele faria. Para ver cada sorriso dele. Cada lagrima. E aqui estou eu, prestes a morrer e ainda assim vi o final dele... Takanori era...– A esse ponto o choro do anjo era alto, desesperado. Triste. Melancólico. – Eu nunca desejaria isso pra ninguém, muito menos pra ele. Eu...
-Você era apaixonado por ele desde o começo... – O deus falou, interrompendo o anjo e recebendo um olhar assustado do mesmo.
-O que?
-Não se faça se burro, ou sonso... Muito menos de lento. – Ele disse, cruzando os braços. – Sabia que antes de sermos deuses da morte, somos anjos? – Ele olhou para Kouyou, que continuava a chorar. – Eu sei como funciona. O primeiro humano de todos os anjos morre cedo, para aprenderem a não amá-los incondicionalmente. Vocês têm mais coisas a se preocupar do que amar o seu humano. No dia que ele viveu e você continuou com seu primeiro humano, você se sentenciou.
-Quer dizer que... – Os olhos marejados olharam o deus, que retribuiu o olhar. A dor com o frio, se misturando.
-Eu sabia que ia se apaixonar por ele. É sempre assim... Eles vivem, nós os amamos, nós nos apaixonamos e então morremos. – Os soluços voltaram a sair da boca do outro, e o deus somente pôde olhar para cima novamente. – E no dia do acidente de trem eu tive certeza... Você está apodrecendo faz tempo Kouyou, mas só percebeu quando as coisas tomaram uma escala nova.
-O que quer dizer? – Ele disse, entre lágrimas e soluços.
-Que podemos nos apaixonar, mas não tocá-los. – O deus não desviava o olhar do teto daquele lugar. O anjo voltou a olhar para cima, fitando a luz a cima de si.
Entre as lágrimas doloridas, um sorriso sereno se formou. No fim das contas, era pra ter acontecido mesmo? Aquilo o tranquilizava, de certa maneira. Sabe quando você faz algo errado, mas alguém te diz que sabia que aquilo ia acontecer e que não era culpa sua? Era a sensação que o anjo tinha. Ele estava chorando por causa do pequeno corpo que estava jogado do outro lado da sala. Ah, como queria poder abraçá-lo mais uma vez... Como queria poder tocar os lábios macios e fofos do garoto. Do seu garoto. Seu Takanori.
Deixou a conversa com o deus de lado e começou a tentar se arrastar, sem conseguir muito. Tudo doía, seus braços, tronco... Não sentia mais suas pernas, nem pés. O coração exposto parecia arder a cada vez que respirava, e também parecia perder a força de suas batidas a cada segundo. Mas não desistiu, se arrastou até o corpo agora frio do humano e então se sentou ao seu lado, com as ultimas forças que ele tinha, trazendo-o para seu colo. Abraçou-o, sentindo o cheiro do sangue misturado com o perfume fraco que tinha nas suas roupas. Então olhou para o rosto, pálido e sem vida. Selou os lábios do garoto e então o deitou no seu colo, acariciando os cabelos morenos. Ele viu suas lágrimas caindo na roupa dele e então passou os dedos no rosto frio do menor.
-Eu te amo tanto... – Sua voz era fraca, baixa e estava embargada por causa do choro. – Eu te amo tanto Takanori... Eu... Eu...
Começou a se lembrar de tudo pelo que passou. Pelo treinamento pelo ser “superior”, a primeira vez que viu Takanori, aquele dia horrível. As risadas do pequeno Takanori, junto com Akira. O chorinho baixo dele antes de dormir por medo do escuro. O amor que ele sentia pela neve, só porque o menor parecia a adorar mais ainda. A amizade com Akira, o jeito que Takanori o chamava de louco por conversarem. Cada momento, cada sorriso, cada lágrima... Um por um se passaram pela cabeça de Kouyou. Ele viveu em função de Takanori. E o faria de novo, mil vezes se necessário. Se apaixonaria de novo, se arriscaria de novo... Repetiria todo o processo dessa vida miserável só pra ter mais um minuto com ele vivo, nos seus braços antes de ir dormir tranquilamente. De ver a expressão tranquila dele quando disse o seu ultimo “te amo” para ele.
Então sentiu aquele coração parando aos poucos, aceitando que logo seria sua vez de cair no sono eterno. E mais uma vez abraçou o humano, chorando tanto que engasgava. Sentiu dedos frios tocando seu ombro, e sentiu o mesmo se desfazendo, em parte, como um pó acinzentado. Olhou para o deus, os olhos tão vermelhos e ardidos... Ele beijou a testa do humano uma vez mais. Uma ultima vez.
-Acho que é minha hora, não é? – Ele sorriu, mas um sorriso tão triste que poderia cortar o coração de qualquer um que o visse daquele jeito. – Tudo bem, eu estou pronto. Se for pra morrer agora, eu vou de bom grado... – Ele olhou para o corpo do garoto. – Eu te vejo por ai, meu amor. Eu juro que vou te encontrar...
Confirmou para o deus, que se ajoelhou na sua frente, fazendo então uma pequena reverência. O anjo, mesmo espantado com o sinal de respeito, sorriu e fez uma reverência de volta ao deus, olhando para cima e fechando os olhos lentamente. O deus enroscou os dedos entre o que restava do coração do anjo, que já estava completamente enegrecido, e com um simples puxão o desconectou. Ouviu um engasgar vindo dos lábios do anjo, e então ele caiu morto, ao lado do humano. Kai olhou para ambos com uma frieza grandiosa, o semblante ainda carregava uma seriedade que lhe era comum. Colocou sua capa, para que pudesse sair dali sem ser visto e antes de desaparecer, a única coisa que podia se escutar era sua voz...
-Dois imbecis... Dois imbecis apaixonados. Os dois mereciam morrer mesmo... Mereciam... Idiotas...
E no final, quando a morte bate a sua porta, você se esconde dela ou a recebe de braços abertos?
“Eu a recebo de braços abertos...”
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