História As Crônicas de Métesp - Livro 1: Presas, Garras e Dentes - Assassina de Maridos

Siffa

O pesado livro estava aberto sobre a cama em que estávamos deitadas, tinha um capítulo sobre cada deus, e por mais que fosse grande o bastante para matar uma pessoa, se usado como arma, era uma leitura interessante.

― Admiro-a pela paciência. ― disse Cariadrien olhando o livro pela lateral

― É melhor do que parece. ― falei

― Não entendo como pode ter paciência para ser uma sacerdotisa.

― É necessário, fiz isso para fugir de um casamento.

― Esta história conheço! ― sorriu ― Toda a Métesp conhece! Os criados a chamam de “Assassina de Maridos”!

Fiquei indignada com aquilo.

― “Assassina de Maridos”? Não matei nenhum marido! Minha prima decretou a morte de Faninder, que era meu pretendente! ― exclamei

― Tem razão em dizer que não era seu marido, porém você foi sim tão responsável por sua morte quanto rainha Thana que a decretou e o carrasco que a obedeceu. ― ela riu

― Não fui…

Ela aninhou-se em meu corpo, abraçando-me.

― Está bem! Não foi…

Beijou-me e levantou arrumando seu vestido, Cariadrien é irmã mais velha de Ken III, filha primogênita de Lady Lanrielle e Lorde Ken II, tem os olhos mais fechados da família, os cabelos escuros estavam presos presos num coque desde que a conheci, não gostava do próprio nome então sempre pede a todos que a chamem apenas de “Cari” e com motivos. Além dela, Ken tinha dois outros irmãos, seu gêmeo Kembar e uma bebê de colo chamada Okusha.

― Já foi casada? ― perguntei curiosamente, colocando meus sapatos

― Não, casada não, mas prometida um milhar de vezes! ― respondeu com uma risada ― Já fui prometida até a Príncipe Dawidh.

― Vocês não são primos?

― Sua irmã e Lorde Shelomon também não são? ― ela esperou eu assentir ― De qualquer forma meu pai achou melhor casar seu herdeiro primeiro, então ofereceu Ken em meu lugar, seu tio sugeriu Thana então… Mas Thana seria uma rainha e precisava de apoio, o apoio de uma baixa família como os Porlasus não seria o bastante.

― A próxima opção fui eu… ― completei

― Sim ― concordou ―, mas Lady Vítria não quis casar meu irmão a você por algum motivo.

― Minha mãe sabia que eu não daria-me bem com casamentos ― ri

― Ela estava errada?

Sem esperar resposta a Porlasus saiu do quarto, fechei o livro, guardei-o na estante junto aos outros e saí atrás.

Lendo aquela obra descobri que os lordes e ladies não seguem de fato o que é pregado pelos deuses, desde pequena ouvi dizer que cada família escolhe os deuses que mais simbolizam seus interesses para seguir e adorar, porém constatei que nem assim seguem todos os ensinamentos daquela divindade. Os deuses são complexos e de filosofias diferenciadas, é muito difícil obedecer a um sem desagradar a outros e não há nada que um deus deseje mais do que destruir os que não o seguem, por isso os deuses que uma pessoa escolhe para seguir tornam-se seus “protetores”, impedindo que as outras divindades façam-lhe mal, com o preço de que continuem sendo venerados.

Mas o mais interessante era a magia ligada aos deuses, o livro descrevia complexas magias que permitiam aos sacerdotes fazer coisas inimagináveis, por virem das divindades mais poderosas, as magias do clérigo são também as mais poderosas, todavia são as mais restritivas, por necessitarem de uma “aprovação divina” do deus para o qual fez-se o pedido.

No almoço testei utilizar essas magias, mover talheres ou copos, mas foi em vão, o livro dizia a verdade no trecho em que afirmava: “... Os deuses recusam automaticamente magias com objetivos fúteis ou que não os beneficiem de alguma forma…”. Resolvi então esquecer essa parte por enquanto e focar na história de cada divindade, afinal quando de fato for usufruir desta magia quero que seja de forma certeira.

Após a refeição eu e Larian saímos para andar pela ilha, havia nevado mais cedo e o chão estava coberto por um belo e traiçoeiro tapete branco.

― Ficaremos em Ilha Branca mais algum tempo, Ken está animado com a preparação do casamento, mas decidiu deixá-la para nossa mãe, resolvemos esperar até que a partida de seus pais esteja mais próxima, caso você queira ir embora, fique a vontade. ― informou minha irmã

― Eu ficarei aqui também, não tenho desejo de ir embora ainda. Posso retornar ao Leste junto aos pais de Ken. ― falei

― Como preferir.

Ficamos caladas por um longo período, segurando as pesadas saias dos espessos vestidos, nossas botas afundavam na neve e voltavam a emergir com dificuldade, andar até o túmulo de nossa tia foi bem mais cansativo do que deveria.

Encontramos uma pedra lisa e irregular fincada na terra com o nome “Palama Porlasus Lefeaten” gravado, minha tia não foi deixada nas criptas junto aos outros mortos, ela sempre quis ser enterrada ao ar livre, sob a neve, e o irmão concedeu-lhe esse desejo, retirei uma flor do chão.

― Ela está feliz no plano dos deuses, eu tenho certeza. ― falei com seriedade, entregando a flor à Larian

Ela foi até a pedra e depositou a flor, porém quando deu um passo para trás, para retornar, o chão ruiu sobre seus pés e ela caiu dentro da cova. Abafei um grito correndo para a borda do buraco que havia se formado.

― Larian, você está bem?! ― questionei, preocupada

Ao invés de um túmulo ela havia caído alguns metros abaixo, num largo túnel escavado no subsolo como que por uma minhoca gigante.

― Eu não diria bem. ― levantou batendo a poeira das vestes ― Pelo menos este vestido grosso protegeu-me de arranhões ― olhou a volta ― e parece que roubaram os ossos de nossa tia por um túnel subterrâneo.

― Chamarei ajuda. ― virei-me e corri, o mais rápido que a neve alta permitia-me, de volta a Fortaleza Espinheiro dos Dragões