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História As the sky gently falls - Burn


Escrita por: meujabutifugiu

Notas do Autor


Oi gente, só para esclarecer umas coisas: Eu não abandonei MR é só que essa fic tava sendo escrita lentamente desde o ano passado, eu ia publicar ela como uma oneshot mas quando eu percebi que tava ficando bem maior do que eu tinha planejado, resolvi postar de pouco a pouco. MR continua sendo minha prioridade e inclusive, essa fic se passa no mesmo universo dela :) provavelmente vão ter umas surpresinhas pra quem tiver lendo as duas.

Capítulo 1 - Burn


Fazia mais de vinte minutos que Ugetsu se encontrava naquela sala de espera. Para evitar pensar no tempo que se esvaía, ele começou a puxar impacientemente os pequenos pedaços soltos de cutícula ao redor de suas unhas e, ignorando a dorzinha irritante do seu polegar, passou para o indicador, murmurando alguns xingamentos. Não para alguém em particular, provavelmente para si mesmo.

Cada fibra do seu corpo parecia gritar para que levantasse daquela cadeira desconfortável e desse meia volta, se conformando com a mera tentativa. Já era irritante estar fora do horário, mas tudo naquele lugar parecia ter sido agregado especificamente para lhe dar nos nervos. 

Havia uma televisão de tela plana enorme transmitindo um programa de variedades com pessoas extremamente barulhentas e esdrúxulas cujas vozes faziam seus tímpanos reclamarem. O lugar era estreito e estéril, tinha paredes brancas como um corredor de hospital. De um lado havia cadeiras e do outro, uma porta. Ele odiava lugares assim, pareciam sufocá-lo. 

Ugetsu apertou os olhos, tentando ignorar tudo à sua volta enquanto travava uma luta contra sua própria mente, se convencendo de que estar ali era a escolha certa.

É muito caro. Dinheiro não é problema.

Você vai confiar mesmo em uma total estranha? Não seria a primeira vez.

Ela é uma estrangeira, não vai entender as nuances do que você contar. Qualquer coisa, eu falo em inglês.

Era um esforço quase homérico, tendo em vista que nunca fora o melhor guardião de si mesmo. Talvez, a consciência desse fato fosse o que lhe mantivesse esperando com os pés fincados no chão.

A verdade é que ele não aguentava mais.

O som da porta à sua frente finalmente se abrindo acabou o sobressaltando. Dela saíram duas mulheres, uma usava jaleco branco e óculos, e a outra cobria o rosto com a ajuda de uma máscara e uma cortina de cabelos negros – ela estreitou os ombros e caminhou para longe de cabeça baixa, seus olhos estavam ligeiramente inchados. 

“Murata-san?” — chamou a voz, muito mais grave do que ele esperava, enquanto gesticulava em direção a sala. — “Vamos começar?”

Ugetsu levantou um pouco rápido demais. Era ridículo admitir, mas suas pernas estavam bambas o caminho todo até o divã. Ele debateu em silêncio se deveria deitar dramaticamente como nos filmes, mas se resguardou a sentar exatamente no meio do acolchoado, cruzando as pernas enquanto esperava a mulher fazer o mesmo na poltrona à sua frente. Ela clicou a caneta duas vezes, levou a ponta até o papel preso em sua prancheta e o som dos riscos pareceram ensurdecedores no silêncio desconfortável entre eles. 

Ela já estava fazendo anotações sobre ele? Ugetsu engoliu a seco. Será que seu martírio era tão óbvio a ponto de estar estampado na cara dele? Ele sentiu uma pontada de dor quando apertou suas mãos uma contra a outra. Seu polegar estava sangrando.

“Acho que, como nós começamos um pouco tarde por minha causa, podemos pular as apresentações e já ir direto ao ponto” — comentou ela, com um sorriso constrangido — “O que você acha?” 

Ugetsu suspirou cansado.

“Por onde se começa? Eu tenho que fazer um resumo da minha vida até aqui?”

Deus, sua cabeça doía só de pensar em ter que refletir cada coisa desde a sua infância. 

“Você começa por onde achar melhor. Nós vamos encontrando o contexto aos poucos.”

O rapaz passou longos minutos ponderando suas palavras e ela pareceu esperar pacientemente até que resolvesse falar.

“No colégio, você escolheu humanas ou exatas?” — decidiu começar por uma pergunta.

“Hm, humanas. Sempre fui boa em literatura e história.” — ela respondeu, arrumando o aro de seus óculos — “E quanto a você, Murata-san?”

“Eu sou musicista, então as pessoas tendem a achar que sou bom em humanas,” — ele riu — “Mas não, eu sou péssimo! Sou muito mais familiar com números, música no final das contas é basicamente matemática.”

Ugetsu tentou ignorar que ela rabiscou outra coisa em sua prancheta.

“Eu frequentei uma escola de artes quando cheguei no Japão e fiquei aliviado na hora da matrícula quando me deram um formulário para escolher uma das duas. Essas coisas de humanas… Linguagem em si...tem muitas nuances, é tudo muito subjetivo. Números sempre são os mesmos, não importa onde você vá.”

“Mas você não consideraria música uma forma de expressão subjetiva também?”

O rapaz ponderou.

“Talvez… Afinal, acho que é a única forma que eu consigo me comunicar com os outros.” — ele deu uma pausa — “De expressar o que eu realmente sinto.”

“Você não é bom em se expressar, Murata-san?”

Ele não pôde conter o riso.

“Isso é pra dizer o mínimo, eu sou tão unicamente péssimo que, às vezes, as pessoas acham que eu sou incapaz.”

“Incapaz de quê?”

Seu estômago retorceu em nós.

“Ter qualquer tipo de sentimento profundo, tipo... Demonstrar afeição, amor… Realmente não é o meu forte. Esse tipo de coisa poderia ser guardado para quem faz jus a ele.”

“Todos merecem sentir amor.”

Ela provavelmente teve a intenção de ser gentil ao dizer essa frase, mas soava tão condescendente aos seus ouvidos que pareceu que não havia nada além de pena escondida entre as sílabas. Era como receber um soco no estômago.

Ugetsu tentou se defender como podia.

“Você não diria isso se me conhecesse,” — desta vez, seu riso saiu desgostoso — “Eu sou muito ruim com o amor, por mais que eu tente… Parece que tem um interruptor dentro de mim que não liga, um defeito de fábrica.”

Mais riscos na prancheta.

“Se tivessem me dado um formulário pra preencher antes de nascer, eu teria escolhido não sentir nada.”

 ---

Quase sempre, acordar era como um trabalho de detetive. 

Principalmente em momentos ociosos como aquele, onde ele não tinha nenhum compromisso com a orquestra ou uma competição para se concentrar. Ugetsu sabia que descarrilhava sempre que não possuía um objetivo a cumprir. Quando tinha trabalho, ao menos ele conseguia se convencer a levantar da cama, a tomar um banho…

A verdade é que o marasmo fazia a pouca disposição que tinha se dissipar por completo e os dias começavam a emendar na névoa de sua consciência, como pequenos flashes aleatórios que ele tinha que encaixar como um quebra-cabeças.

Ele havia acordado à noite, não sabia quanto tempo havia dormido –  uma vez que vivia oscilando entre passar dias em uma insônia terrível e em algum momento sucumbir ao seu cansaço por horas a fio. Seu celular estava jogado no chão com a tela virada para baixo, provavelmente já descarregado, ele não tinha relógios de parede e tampouco coragem para ligar o rádio que Akihiko havia deixado para trás (ainda intocado no mesmo lugar). 

Já era a terceira ou quarta vez que esse mesmo cenário se repetia – talvez ainda fosse um dia de semana. Ugetsu começava a teorizar que poderia estar preso em um time-loop como nos filmes, se não fosse o fato de seus maços de cigarro sempre acabarem rápido demais – ele constatou, ao tentar encontrar um para fumar mas se deparando com o pacote vazio.

 “Tsc.” — ele estalou a língua, reclamando para o ar vazio à sua volta. 

Seu corpo parecia protestar veementemente quando tentou se levantar da cama, cada junta estalando com a grosseria de um portão enferrujado. Ugetsu caçou no escuro algum pedaço de roupa que com certeza havia abandonado pelo chão dias antes e vestiu sem se preocupar muito com as linhas amarrotadas no tecido, afinal, era pouco provável que fosse encontrar alguém àquela hora da noite – sabe-se lá qual fosse.

Enquanto ele tropeçava escada acima, achava certa graça que a abstinência era a força motora que o fazia sair pela primeira vez depois de dias enfurnado em seu porão. Era quase como se um mau hábito tentasse remediar outro. Quando abriu a porta, notou que precisou de um tempo para se acostumar com a vista porque até mesmo a iluminação dos postes parecia atacar seus olhos. A rua, entretanto, era agradavelmente silenciosa de madrugada.

Nos primeiros momentos, ele lembrava, gostava de subir a ladeira e gritar a plenos pulmões, sem motivo algum, apenas porque podia. A adrenalina fazia seu coração pulsar contra o peito, mas agora que a agitação havia passado, ele encontrava uma certa paz em se misturar a inércia de tudo. Não haviam motores de carro roncando, congestionamento, multidões de vozes se sobrepondo uma à outra e até mesmo os passarinhos estavam quietos... E o melhor de tudo: Não havia ninguém para lhe fazer perguntas.

As pessoas que pareciam dividir a existência noturna, se moviam de forma furtiva – todos pareciam se dar distancia o suficiente para serem ignorados, mas era estranho como agora lhe eram familiares – havia quase decorado o rosto de todos e, às vezes, se perguntava se algum deles conseguia reconhecê-lo. Colegas invisíveis, era o apelido que tinham em sua mente. 

Ugetsu acabou se acostumando a caminhar pela calçada em passos lentos, trafegando pelo local sem deixar rastros, como se fosse um fantasma – sua única companhia era o vento que assobiava em seus ouvidos.

Ao adentrar a loja de conveniência, ele apenas acenou a cabeça sem realmente escutar ou responder a usual saudação de boas vinda que todo balconista era obrigado a fazer. Seu objetivo era dois maços de cigarro, mas uma voz jovial ecoou em sua memória:

“Você tem que se alimentar melhor, Ugetsu-san.”

Ele deixou escapar uma pequena risada nasal enquanto seus pés o guiavam até a área de refrigeração onde guardavam os bentôs. Mesmo sem vontade e com plena certeza que iria odiar a falta de sabor naquela comida – afinal, seu paladar era acostumado com comida caseira -, ele agarrou dois da prateleira. Era incrível, até um adolescente estava botando juízo nele.

Porém, quando chegou ao caixa jogando de qualquer jeito os recipientes de plástico no balcão, ele espremeu os olhos tentando encontrar onde a razão dele ter saído de casa estava. Ugetsu percorreu a estante duas, três, quatro vezes e todas as marcas estavam lá – menos a que ele queria. De repente, uma sensação de desolamento profundo o abateu, sua mente parecia sempre estar à espreita de lhe sabotar ao menor erro possível.

Está vendo? Não deveria ter vindo aqui. Não deveria ter saído da cama. Não devia nem ter acordado. Você não consegue fazer nada, nem uma coisa simples dessas. Tudo vai dar errado. Vai continuar dando errad-

E quando parecia que seu estômago estava prestes a se afundar em suas entranhas, sua torrente de pensamentos foi interrompida por uma exclamação de surpresa.

 “Ah! É você!”

Sido pego de surpresa, Ugetsu não soube como reagir. Ele parecia ter sido puxado com muita força pra fora de seu mundo onde ele era um fantasma e posto rápido demais na realidade – quando sua visão focou na fonte da voz, ele apenas encontrou um tufo de cabelo platinado, se erguendo por cima do balcão como uma palmeira albina.

“Aqui!” — a pessoa acoplada ao tufo de cabelo se ergueu novamente, colocando no balcão exatamente dois maços da marca do seu cigarro — “O de sempre, né?”

O rapaz parecia mais jovem que ele, apesar de claramente ser bem mais alto, tinha uma massa de cabelo platinado que caia como ondas pela lateral de seu rosto. A franja estava amarrada para cima com ajuda de um elástico e apesar das olheiras pronunciadas embaixo de seus olhos, ele sorria com tamanha energia que parecia irradiar luz própria.

Seus olhos fitavam os seus com facilidade – Ugetsu fugia tanto do olhar alheio que não se lembrava a última vez que alguém o tinha observado tão diretamente, era o bastante para fazê-lo sentir desconfortável. Seus lábios se moveram, mas nenhum som saía deles, por fim, decidiu encarar os itens que o rapaz agora escaneava.

“Como…” — sua voz estava seca por desuso e pareceu subir arranhando pela garganta. 

Ping.

“Huh?” 

Ping.

Ele indagou, voltando a encará-lo. A íris era tão escura que quase não se diferenciava da pupila, Ugetsu conseguia até mesmo se ver refletido neles.

Ping.

“Como você sabia?” 

O rapaz piscou confuso parando antes de passar o último item no registro. Por um segundo, ele pareceu distraído por algo no ar a sua volta – Ugetsu até mesmo olhou por cima de seu ombro, mas estavam apenas eles dois na loja. Como se alguém tivesse estalado os dedos para despertá-lo de um transe, as bochechas do rapaz adquiriram um leve tom rosado e ele voltou a si, respondendo:

“Ah… É que você sempre vem aqui mais ou menos nessa hora e sempre compra essa marca.” — ele sacudiu a pequena caixa em sua mão — “A gente tava ficando sem, então eu resolvi guardar pra você.”

“Oh, e você lembra das compras de todos os clientes?” — indagou ele, o tom levemente cínico. 

Ele respondeu com um outro sorriso, no que lhe entregava as sacolas.

“Seria difícil esquecer você.”

Ugetsu ficou mortificado ao sentir seu coração aumentar levemente o ritmo de suas batidas.

“Afinal, você é um cliente regular.” -completou ele e o violinista tentou ignorar o sutil gosto de decepção que invadia sua boca. – “Mas os bentôs são novidade.”

“Não dá pra viver só de nicotina.” – brincou, enquanto erguendo um pouco as suas compras – “Obrigado, inclusive.”

Ele parecia tão empolgado que Ugetsu conseguia imaginar claramente uma cauda abanando de um lado para o outro atrás dele.

“Volte sempre.” – ele respondeu.

Apesar daquela ser a resposta automática que aquele rapaz tinha que dar a todos os clientes, Ugetsu saiu da loja se sentindo um pouco mais leve – ele não se sentia mais como um fantasma perambulando o quarteirão – alguém, realmente, o havia visto. Ele levou os dedos trêmulos em direção aos seus lábios que se retorciam na intenção de formar um sorriso. 

Ele desejava ter se lembrado de escovar os dentes antes de sair de casa.

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Era comum Ugetsu subir escondido as escadas até a cobertura da escola durante as horas vagas – também era um ótimo lugar para matar aula, se julgasse necessário. Em sua opinião, aquele era o melhor lugar para se estar, você tinha a vista do campus inteiro e conseguia escutar todos os sons da vida pulsando ao seu redor – pessoas conversando, pessoas praticando canto ou algum tipo de sinfonia ao longe. Quase ninguém sabia daquela única porta com fechadura enferrujada que abria facilmente se você a empurrasse da maneira certa, era o seu esconderijo secreto e, também, o melhor lugar para cochilar. 

Ele estava sonhando com o seu momento a sós depois de ficar quarenta minutos em uma aula de debate, precisava recarregar suas energias longe da sala de aula. Porém, quando abriu a porta, ele prontamente esbarrou na costa de alguém.

“U—UGETSU?!” – a voz exclamou, surpresa.

O rapaz nem precisou abrir os olhos para saber quem era, ele conhecia aquela voz e até mesmo o calor de seu corpo – era difícil esquecer o abraço que Akihiko lhe havia dado na sala de música, foi desconfortavelmente longo e, ao mesmo tempo, a coisa mais terna que já havia sentido; seus corações que batiam ensandecidos um contra o outro pareciam se misturar em uma coisa só, enquanto eles se seguravam um no outro como se suas vidas dependesse daquele contato, suspensas por um único fio que era frágil demais.

Eles nunca tinham ficado no mesmo ambiente sozinhos desde então.

“Ugh, esbarrar com você é como dar de cara numa parede de tijolos. – reclamou ele, massageando o nariz – O que você vai fazer se tiver quebrado?”

O loiro revirou os olhos.

“ Você vai viver.”

“Que cruel.” – ele rebateu com um sorriso. 

“Eu achei que ninguém mais conhecia esse lugar.”- comentou Akihiko, tentando esconder algo atrás de suas costas, mas a fumaça e o cheio não enganavam Ugetsu.

“Eu também achava...Mas, era bom demais pra ser verdade.”

“Pelo menos tem espaço o suficiente aqui pra nós dois.”

E como se no aguardo daquelas palavras, gotas grossas de chuva começaram a despencar do céu com violência – fazendo com que ambos os rapazes dessem um passo para trás, afim de se proteger na única cobertura rente à porta. Seus ombros se tocaram. Ugetsu não conseguiu prender a risada e apontou para a chuva.

“Você tava dizendo?  – Akihiko virou de costas para ele e estalou a língua – Aah, não seja assim. Você é um rapazinho grande, tenho certeza que sabe dividir.”

“Não é isso...”- comentou ele, sua voz baixa. 

Apenas o som da água chicoteando no piso ao redor deles se fazia presente. 

“Você vem aqui pra fazer o que?”

“Pensar...”

“Então essa fumaça toda é você queimando seus neurônios ou...?”

Akihiko virou em sua direção novamente e dessa vez não tentou esconder o cigarro aceso que segurava entre seus dedos. Por mais que tentasse manter a compostura, suas bochechas completamente coradas já destruíram por completo a pose ameaçadora que tinha. Ele parecia uma criancinha que tinha sido pega fazendo uma coisa errada, mas que se recusava a ceder. Ugetsu achava aquilo adorável.

 “O que foi?! Vai me dedurar?! Porque eu...”

“Eu posso guardar segredo, se você guardar.” – afirmou ele, estendendo a mão. 

Os olhos verdes de Akihiko pousaram em Ugetsu como se a questioná-lo silenciosamente. Por fim, ele entregou o cigarro entre seus dedos.

“Você fuma, também?”

“Claro.”

Mentiu. 

Mas Ugetsu era bom em fingir naturalidade. Apesar de sempre ter curiosidade de qual seria a sensação de fumar, nunca houve uma oportunidade até aquele momento mas ele deveria admitir, metade da razão que o levou a tragar profundamente era a certeza que aquele objeto estivera entre os lábios do outro rapaz alguns momentos atrás. 

A fumaça pareceu queimar tudo que tocava dentro dele e seus pulmões prontamente rejeitaram aquele componente estranho, fazendo com que Ugetsu tivesse uma crise de tosse. Ao longe, ele percebeu as risadas de Akihiko salpicando o ar entre eles.

“Você já fumou mesmo ou só está tentando dar uma de durão pra cima de mim?”

“A culpa é desse seu cigarro de gosto horrível.” – reclamou entre tosses, prendendo lágrimas no canto de seus olhos.

Akihiko deu de ombros, pegando o cigarro de volta. Ugetsu engoliu a seco quando o observou o outro rapaz depositar o cilindro de papel entre seus lábios sem nenhuma hesitação – era estranho se agitar tanto assim por um beijo indireto no alto de seus dezesseis anos? O loiro inalou profundamente – liberando a fumaça com delicadeza enquanto sorria.

“Verdade, mas é o mais barato que tem, então é melhor que nada.”

Entre os dois, o cigarro não durou muito tempo, eles acabaram fumando mais um antes de decidir voltar para o interior do prédio – havia uma certa relutância quando Akihiko abriu a porta atrás deles, eles pararam aos pés da escada como se esperando por algum sinal. Talvez, em seus âmagos sentissem que aquele era um momento especial, um momento que não voltaria mais se escapasse.

“Ugetsu, você—“

Ele nunca soube o final daquela frase, já que havia tomado a boca do outro rapaz com a sua. Akihiko pareceu derreter completamente sobre seu toque e não demorou muito tempo para que retribuísse o beijo de forma faminta – como se estivesse esperando aquilo a muito tempo. E apesar de suas línguas reterem o gosto horrível daquele cigarro, havia alguma coisa viciante que o fazia continuar, um calor que aflorava em seu peito.

“Quer matar aula comigo?” indagou, no breve tempo que se separaram para pegar ar.

Akihiko não respondeu, apenas deixou a porta bater atrás deles.

Apesar do cigarro não ter nenhuma qualidade, ele sempre associaria aquela nostalgia adolescente de estar ombro a ombro com a pessoa que você ainda não sabe ao certo se gosta – querendo afastá-lo de si e, ao mesmo tempo, querendo puxá-lo para mais perto. O modo com o qual seu peito aquecia por dentro num dia frio e chuvoso.

Ele queria se sentir assim novamente.

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Quando abriu os olhos novamente, ele se deparou com seu teto, pela iluminação fraca que espreitava pelas janelas deveria ser o começo da manhã, ou poderia ser apenas um clima chuvoso – ou, talvez, esse palpite fosse apenas pelo acaso dele ouvir o som de água corrente próxima.

Ah.

Ugestu apenas percebeu que não estava sozinho quando esticou o braço para pegar um dos cigarros que deixava perto de sua cama, quando notou uma trilha de roupas que não lhe pertenciam espalhadas pelo chão junto às dele. Ele acendeu o cigarro enquanto seus olhos percorriam o único feixe de luz amarela que cortava o quarto, proveniente da fresta da porta do banheiro, de onde também escapava um cantarolar baixo.

Ao exalar a fumaça, ele novamente se pegava tentando encaixar as lembranças do dia anterior: Qual dos seus companheiros mais recentes era o que estava embaixo do chuveiro naquele momento? Ultimamente – com seus lapsos de memória e, porque não dizer logo, puro descaso – era difícil se lembrar de todos que já adentraram sua casa e debaixo de suas cobertas. 

Ele não se orgulhava exatamente dessa sua atitude, se fosse completamente sincero. Mas ao mesmo tempo, era difícil não se deixar levar por toda essa solidão que parecia vazar de seu coração como um lodo imundo. Ocasionalmente, a sua parte mais patética demandava ser acalentada, não importava por quem ou por qual motivo. Ele só queria se deixar afundar em alguma coisa que não fosse seus próprios pensamentos e, às vezes, se ele fechasse os olhos no momento certo, quase conseguia acreditar que estava sendo amado de verdade – por mais efêmero que o encontro fosse. 

Além do mais, seus parceiros nunca pediam nada mais além dele - nem ligavam, não conversavam, até mesmo deixavam de olhá-lo nos olhos. Ugetsu às vezes teorizava que eles evaporavam ao entrar em contato com o sol depois que deixavam seus aposentos. Eles o usavam da mesma forma que estavam sendo usados. Ao que lhe diz respeito, aquele era um bom acordo.

Por hora.

Para sempre?

De qualquer maneira, era fácil e, talvez, ele fosse incapaz de qualquer coisa além disso.

“Credo, de novo com esse cigarro? Parece que você tá fumando um carburador. ´´ 

Ugetsu ergueu os olhos na direção do homem, ele tinha a toalha nos ombros e nada além disso, gotículas escorriam por sua pele úmida. Ah, certo. Aquela deveria ser a terceira vez que dormiam juntos (um recorde!). Ele estava na última orquestra que tinha participado tocava oboé, ou clarinete… algo assim. Não fazia muito o seu tipo, verdade. Porém, há coisas interessantes que provém de um músico especializado em instrumentos de sopro, não poderia negar. 

Ele deu um sorriso torto. 

“A porta da rua é a serventia da casa.´´ - falou em um tom jocoso, acenando o cigarro no ar de forma que espalhasse ainda mais a fumaça.

O rapaz revirou os olhos no que vestia suas roupas à medida que as fisgava do chão. 

“A sua sorte é que eu tenho um avião para pegar daqui a pouco ou eu ia te ensinar a não ser abusado assim.´´- disse com malicia em sua ameaça.

“Oh, que medo.” – rebateu impassível, dentre suas cobertas. 

O homem (infelizmente) botou sua camisa, passando as mãos pelo seu torso para tentar diminuir as vincos no tecido.

“Eu vou para Suiça.” – ele constatou, quase como se estivesse pensando alto, porém espiava o outro na cama com o canto dos olhos.

Pelo silêncio que se seguiu, parecia esperar que Ugestu falasse algo, embora sua mente estivesse completamente em branco – ele deu uma tragada arrastada. 

“Parabéns..?”

Ele cruzou os braços.

“Só isso?”

Ugetsu passou o cigarro de um canto da boca pro outro, erguendo as sobrancelhas.

“O que você quer que eu diga?”

O violinista não era burro, sabia o que o outro queria ouvir e, em algum outro momento, talvez o tivesse dito – mas aquilo não era parte do acordo e ele não aceitava concessões, não mais. Até porque, qual seria a finalidade de deixar a guarda baixa àquela altura? Como ele ousa querer plantar algum sentimento ali para depois ir embora? Se você vai terminar indo embora, apenas vá de uma vez e me deixe em paz!

O outro rapaz apenas suspirou, cansado. 

“Esquece, eu nem sei porq—esquece. – ele pegou todos os seus pertences e desapareceu na curva da escada. – Adeus, Murata-san.”

A batida forte de sua porta foi como um ponto final sonoro.

“Ugh, que dramático.” – resmungou ele, amassando a ponta do cigarro contra o cinzeiro e acendendo outro, a chama do isqueiro um ponto quente e aconchegante rente a sua pele.

Agora sim. Agora tudo estava nos eixos.

Ele respirou fundo nostálgico, já acostumado ao amargo potente contra sua língua.

No começo, ele achava que tinha começado a fumar essa marca barata novamente porque sentia saudades de Akihiko – o que poderia até ser um pouco verdade, mas não era tudo. Não mesmo. Era algo sobre ter aquele cilindro entre os lábios nos momentos em que todos os cacos de sua alma se encaixavam no lugar certo e ele se sentia inteiro, uma pessoa que sempre tinha o calor de uma mão rente a sua – que sabia que podia amar e que era amada de volta.

Aquilo era seu último elo de ligação com aquele garoto, com sua felicidade. Ele precisava se lembrar daquilo, do contrário, talvez esquecesse que aquele adolescente e ele eram a mesma pessoa e que era possível se sentir assim de novo.

Ele abriu os olhos.

De repente, se lembrou de algo que um amigo seu lhe disse muito tempo atrás. 

Não há como semear em uma terra queimada. Nenhuma semente tem chance. Já está tudo morto.

Naquele momento, até onde seus olhos podiam ver, tudo, absolutamente tudo, era apenas solo queimado.

--- 

Ugetsu passou algumas horas se virando no colchão sem nunca se sentir confortável. Havia uma estranha comichão de inquietude embaixo de sua pele e ele simplesmente não conseguia fazer com que as horas escorressem por ele como de costume. 

Ele levantou e tomou um banho, deixou seu cabelo secar de qualquer jeito sem pentear. 

Fazia algum tempo desde a última vez que estava acordado tão cedo de manhã, tinha a sensação que não sabia o que as pessoas faziam em tal horário. A noite era mais fácil de lidar, ele sentia que tinha certa liberdade para existir à noite, pela manhã porém, ele parecia confinado até mesmo dentro de sua própria casa. Em momentos como aquele, ele sentia a falta de ter alguém com quem conversar.

A pessoa que mais poderia chamar de amigo tinha dezesseis anos e provavelmente estaria dormindo naquela hora ou na escola, sabe-se lá quando as pessoas saem pra escola atualmente. Completamente derrotado, se arrastou para fora de casa sem um rumo próprio – tentando apenas exaurir a sua inquietação.

Quando deu por si, estava na frente da loja de conveniência. 

“Bem-vindo-oh! Olá!” – o semblante cansado do rapaz, se iluminou por um momento.

Era o mesmo rapaz da ultima vez que tinha estado na loja, seu cabelo platinado era difícil de não notar – Ugetsu não compreendia como havia conseguido ignorar esse detalhe por tanto tempo. E apesar de possuir olheiras intensas embaixo de seus olhos escuros, havia um entusiasmo na sua voz.

“Olá.” – ele respondeu, pela primeira vez.

“Boa noite! – ele corou, mas rapidamente se corrigiu – Bom dia!”

Ugetsu reprimiu um riso.

“Eu achei que você só trabalhava de madrugada.” –comentou despreocupado.

“Estou fazendo hora-extra. Quase no final do expediente.” – explicou ele, dando de ombros. 

“Oh.” 

Ugetsu não sabia porque tinha ido ali exatamente e nem esperava ver o rapaz novamente, mas, de um modo estranho, a presença do caixa lhe era reconfortante. Era bom ter algum tipo de interação social sem pressão.

Porém, o silêncio que se estendeu entre eles estava começando a ficar desconfortável, principalmente porque o violinista ainda não tinha feito menção de procurar um produto – estava apenas ali, na frente do atendente ao caixa – que sorria para ele.

“Você quer o de sempre?” – indagou ele, de forma gentil.

“Não! – ao responder rápido demais, ele pigarreou e tentou novamente – “Não, não, eu...” – os olhos dele percorreram o ambiente de forma desesperada, tentando se lembrar o que uma pessoa poderia comprar naquela hora. 

“Café da manhã?” – ofereceu ele, como se soubesse o que afligia seus pensamentos.

“Garoto esperto.” – respondeu, tentando parecer mais confiante do que aliviado enquanto fazia seu caminho a área de bentos e pegava qualquer coisa, sem prestar muita atenção.

Ele jogou duas caixas no balcão, não estava com fome alguma – mas ao menos já teria algo se caso acontecesse. 

“Muito ocupado?”

“Como?” 

“Você parece meio corrido hoje, é por isso que está levando pra viagem?”

“Hã? Ah, nada disso. Eu só não sei cozinhar – confessou, por algum motivo – Eu poderia queimar uma bandeja de gelo.”

O rapaz pareceu hesitar por alguns segundos antes de escanear a última compra, puxando algo do bolso do seu avental.

“Você aceitaria esse cartão de pontos, então? Cada bento que você compra é um ponto e com seis você ganha um prêmio.” – ele parecia estranhamente agitado com a oferta, um leve rubor em suas bochechas.

“Qual o prêmio?” – instigou ele.

“Ahm...Hm.” – balbuciou nervosamente como resposta.

Dessa vez, a pequena risada escapou dos lábios de Ugetsu sem querer, no mesmo momento que ele puxava o dinheiro de sua carteira para pagar pela compra.

“Tudo bem, eu aceito.”

Um sorriso percorreu o rosto do rapaz de orelha a orelha.

“Então, você--!!”

Ele acabou sendo interrompido por uma tosse claramente forjada para chamar atenção. Ugetsu olhou por cima do ombro para o homem carregava alguns pacotes nos braços e batia um de seus pés no chão com impaciência. 

“Agora, você está ocupado.” – falou enquanto pegava sacolas para sair.

O outro rapaz soltou uma exclamação, como se indicasse que ainda tinha coisas não ditas – mas o violinista sentia que já tinha gastado demais o tempo daquele garoto com uma conversa que não ia para lugar nenhum. Apesar disso, até que tinha sido divertido.

De repente, ele sentiu algo esbarrar em seus ombros – era o homem dos pacotes, ainda muito estressado, resmungando algo sobre “atraso” e “pessoas no meio do caminho”. Ugestu apenas acenou em sua direção, meio debochado. Quando estava prestes a seguir seu caminho, um estrondo chamou sua atenção.

“SENHOR CLIEEENTE!” 

Ele rodou nos calcanhares e claro, o atendente de cabelos platinados rente a porta era dono do esbravejo. Novamente, o rosto dele se iluminou quando seus olhares se encontraram – ele percorreu a passos largos a pouca distância entre eles de forma entusiasmada, quase saltitando. Parecia um filhote perdido que tinha acabado de encontrar seu dono.

O rapaz abaixou a cabeça e estendeu o cartão de pontos já carimbado com uma estrela em sua direção, segurando em cada ponta, como se estivesse em uma entrevista de emprego.

“Você esqueceu o cartão, Senhor Cliente.”

O violinista riu. O som era estranho, parecia não caber na sua garganta. Aquilo que era dedicação ao emprego. O atendente ergueu o rosto, mesmerizado, seus olhos escuros pareciam reluzir.

“Ugetsu.”

“Desculpe?” – ele sorriu, um pouco sem jeito, por ter sido pego distraído. 

“Murata. Ugetsu. Meu nome.”

“Oh, Murata-san!” – seu rosto ainda tinha um tom meio rosado – “Eu sou...”

“HOSHINO-SAN! – berrou uma voz de dentro da loja, Ugestu ficou surpreso ao saber que ela pertencia a um senhorzinho tão pequeno quando este se fez presente na frente das portas automáticas– Você deixou o caixa sozinho?!”

“Ele só estava devolvendo uma coisa que eu esqueci.” – defendeu Ugetsu, se curvando um pouco no que puxou o cartão das mãos dele. – Obrigado, Hoshino-san.”

O senhorzinho lançou um olhar desconfiado para os dois, mas se deu por convencido, voltando para dentro da loja. 

“Itsuki.” – sussurrou ele, como se fosse um segredo. – “Pode me chamar de Itsuki.”

“Muito prazer.” – respondeu, sem notar que estava lhe retribuindo o sorriso quando ele adentrava a loja novamente. 

Ele olhou para a estampa de estrela no primeiro quadrado do cartão de pontos. Teria ele feito um novo amigo de uma maneira esdrúxula ou era apenas uma vítima do capitalismo, caindo numa tática de marketing emocional? 

Ugetsu deu de ombros, afinal, só saberia se ele voltasse à loja novamente.

 


Notas Finais


Opa, lembram de alguém?


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