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História Beijado Pelo Sol - O sol e a morte são inseparáveis


Escrita por: saraleo

Notas do Autor


Olá!

Cá estamos nós com o aguardado capítulo final. Esse sem dúvidas foi um capítulo que exigiu muito de mim, porque tinham muitas pontas que eu precisava unir e, além disse, finalizar a história de um jeito legal. Por isso demorei, mas acho que vão gostar do resultado.

Algumas informações utilizadas nesse capítulo não condizem com a mitologia grega de fato, nem com o universo do Riordan, mas foram necessárias adaptações para contextualizar tudo na Tailândia.

Enfim, é isso. Nos vemos lá embaixo. Boa leitura! ❤️

AVISO: O que capítulo a seguir contém sérias doses de surto e uma escrita não confiável. Aconselha-se que leia com moderação.

Capítulo 9 - O sol e a morte são inseparáveis


Fanfic / Fanfiction Beijado Pelo Sol - O sol e a morte são inseparáveis

"A vida é bem parecida com uma música. No começo, há mistério, e no final, confirmação. Mas é no meio que reside a emoção e faz com que a coisa toda valha a pena."

("A Última Música", Nicholas Sparks)

 

 Apesar de ser filho do deus dos mortos, Sarawat nunca se sentiu atraído pela ideia de morrer. Nem mesmo em seus piores dias.

Mesmo quando sentia-se destruído, querer desistir parecia algo extremo demais. Talvez, o momento em que se sentiu mais perto disso tenha sido quando sua mãe morreu, naquele terrível acidente de carro. Ele estava com ela no dia, iam ao zoológico. Ela sempre trabalhava muito e quase não tinham tempo para ficarem juntos. Então ela pediu uma folga e tirou o dia para saírem. 

Sarawat ainda se lembra do quão feliz ficou por poder estar com a mãe. As bochechas doíam de tanto que sorria. O dia que seria um dos melhores de sua vida, tornou-se o pior deles. Um carro vindo na contra-mão chocou-se contra o carro em que eles estavam. Ela morreu instantaneamente e só o garoto de oito anos sabia que foi porque ela se jogou contra o corpo dele. Num reflexo para protegê-lo do baque, ela abriu mão da sua própria vida.

Ela foi a única pessoa que o amou de verdade e que ele amou de volta com todas as forças. Até a chegada de Tine. Claro que os sentimentos eram distintos, mas ainda sim com a mesma intensidade.  Tine chegou em sua vida quando ele pensava que não poderia ser feliz outra vez e, apesar dr não serem mais próximos, ele era grato por saber que o outro estava seguro.

Contentava-se em apenas observá-lo de longe. Mesmo que às vezes o que ele mais queria era correr até o outro e implorar para que tudo voltasse a ser como era antes, mesmo que quem tenha se afastado tenha sido ele mesmo.

Certa vez, quando tudo ainda era normal entre eles, Tine disse que tinha certeza que um dia eles iriam numa missão muito importante, destruiriam muitos monstros e voltariam sem um arranhão para o acampamento. E fariam tudo isso juntos. 

Sarawat sorriu no dia, feliz por Tine incluí-lo em planos tão importantes para o futuro. Mas ele gostaria de poder ter dito a Tine que a vida nem sempre acontece conforme planejamos. 

E ali, naquele telhado, com o corpo de Tine nos braços, ele finalmente entende o que é ter vontade de morrer. Não uma morte  ao acaso, mas sim no lugar da pessoa que mais ama e que jamais mereceu tal destino.

"Devia ter sido eu", é o que ele pensa. "Devia ter sido eu no lugar dele…"

Desde quando Phukong leu as cartas para eles, no primeiro dia da missão, parecia claro entre ambos que a pessoa a morrer seria Sarawat. Era quase como um acordo mútuo, sem que precisassem dizer em palavras. Isso assustava Tine, mas era reconfortante para Sarawat. Saber que quem sofreria seria ele.

O filho de Hades estava tranquilo por saber que seria a pessoa a morrer e quis aproveitar cada minuto com Tine, atingindo os limites que ele nunca imaginou que atingiria. No final daquilo, se seu pai não aprovasse sua decisão não faria diferença, pois ele não estaria mais ali. Teria sido um bom final para si. Tine estaria seguro e superaria a perda cedo ou tarde.

Mas o que de fato aconteceu foi infinitamente mais doloroso. 

Parece até meio altruísta pensar que Tine tenha gostado do rumo que as coisas tomaram, como se ele estivesse grato por ter se entregado em seu lugar. Isso com certeza é algo que ele faria, mas Sarawat nunca quis que acontecesse.

A lembrança dos olhos de Tine perdendo a vida, a pele empalidecendo, o corpo caindo, se repete em loop na cabeça dele. Foi tudo tão rápido, que Sarawat não pôde fazer nada a respeito, além de ver acontecer e se culpar amargamente por isso.

"Cuide do meu filho por mim".

Ele não conseguiu cumprir a única coisa que Apolo tinha pedido. A única coisa que ele sabia, mais do que tudo, que era seu dever fazer. Sarawat daria sua vida por Tine, mas não fez nada quando ele realmente precisou.

O choque da situação impediu que Sarawat chorasse, mas ele não consegue se conter quando a confirmação vem. A respiração de Tine se esvai, lentamente até não mais existir. O coração diminui o ritmo e, então, para de bater. Sarawat sente como se o seu coração estivesse pronto para ter o mesmo destino. Não há mais volta e saber disso causa-lhe uma dor quase insuportável.

— Meu amor… — ele sussurra, a voz embargada pelos soluços sufocados. — Me perdoa…

A blusa de Sarawat estaria vermelha pelo sangue se não fosse preta, devido ao aperto firme em que ele mantém Tine; um abraço necessitado. Seus dedos agarram o cabelo dele e o próprio rosto se esconde na curva do pescoço alheio.

Cinco segundos.

Apenas cinco segundos teriam sido o suficiente para ter se jogado na frente de Tine e ser ele ali em seu lugar. O suficiente para impedir que aquilo acontecesse.

— Au!

Um latido é ouvido, seguido do barulho de um animal correndo desesperado. Incômodo para perto dos dois, observando Tine. Os latidos se transformam em ganidos tristes. Até mesmo ele sente a perda do amigo. Mas faz sentido, Tine era a pessoa mais incrível que já deu a honra de viver na terra.

O Sol lá em cima brilha tanto que o calor do meio dia faz a pele das pessoas, que pela rua caminham, queimar. Um dia quente como qualquer outro, mas ninguém esperava o que vem a seguir.

Sarawat está de olhos fechados, mas consegue notar que algo errado está acontecendo. O corpo de Tine, preso ao seu, brilha tão intensamente quanto o Sol lá no alto. Devagar, ele afrouxa o aperto, deitando Tine no chão novamente. Incômodo se encolhe, mantendo distância. À medida que a intensidade do brilho dourado do corpo dele aumenta, a luz do Sol diminui. Nuvens negras começam a se movimentar mais rápidas que o normal, cobrindo a grande estrela em um eclipse nunca antes visto.

A forma de Apolo demonstrar o luto.

Ao que o Sol desaparece no céu, o corpo de Tine desaparece do chão. 

Incômodo late, assustado. Sarawat está da mesma forma. E o céu continua escuro, como se uma tempestade estivesse por vir a qualquer momento.

Completamente estarrecido com todos os acontecimentos em sequência, o garoto nem mesmo se preocupa em olhar ao redor e ver se algum dos homens conseguiu recobrar a consciência, após desmaiarem pela dor. Se ele parasse para conferir, veria que dois deles continuam no mesmo lugar. O único acordado é o dono do bar, o mesmo que os recebeu no dia anterior, que levanta devagar, atento a tudo o que aconteceu. Ele se aproxima, da forma que consegue com a perna machucada por ter sido atingida pela lâmina. Demora um pouco, mas consegue estar perto o suficiente.

— Apolo levou o garoto? —  A voz dele faz Sarawat virar, assustado, a mão já agarrando a espada (que voltou para seu cinto após ser arremessada na direção do homem com camisa de flanela).

— Para trás!

— Não me surpreende. Era o filho favorito dele. — Ele ignora a ameaça.

A menção da palavra "era", no passado, faz todo o corpo de Sarawat tremer. Ele encara o homem com raiva, levantando a espada até estar a meros cinco centímetros dele. Mais um passo e não hesitaria em acabar com aquilo. O homem parece perceber a gravidade da situação e recua, levantando as mãos para o alto em rendição.

— Não vou fazer nada com você. Não estou mais sob o efeito do transe.

Ao ouvi-lo dizer isso, Sarawat percebe que o olhar dele está de fato completamente diferente que mais cedo. Mais centrado, sem toda a nebulosidade escondendo suas reais intenções. Olhando brevemente ao redor, ele finalmente percebe os outros dois apagados no chão.

— Quem fez isso com vocês? Quem quer nos matar? — o filho de Hades pergunta. Há silêncio. — Responde, cacete!

— Eu não sei. Seja lá quem for, apagou a minha mente. Não lembro de nada. Mas sou o único acordado por um motivo. E vocês não vieram até aqui ao acaso. 

— Está dizendo que vir parar nessa armadilha foi uma bela coincidência do destino? — A fala transborda sarcasmo. Ele aperta com mais força o cabo da espada.

— Claro que não. Nada que envolva os deuses tem a ver com coincidência.

Sarawat pondera o que ouve.

— Achei que você fosse um humano normal.

— Tenho a habilidade de ver através da névoa. — O homem dá um sorriso de canto. — Já ajudei muitos semideuses em missões. Obviamente eu reconheceria vocês desde o primeiro instante. Porém, é a primeira vez que acaba em morte. Sua missão deve ser realmente importante.

— Essa merda não vale o preço alto que custou.

O homem anui com a cabeça, abaixando os olhos para o chão, bem onde estão esquecidos o arco e a aljava com flechas.

— Ele era importante para você, não era?

— Ele é tudo pra mim.

O homem sorri, principalmente pelo tempo verbal usado por Sarawat. No presente, como se ainda se recusasse a aceitar que o outra havia partido. O garoto continuar segurando a espada, sendo tomado cada vez mais pela raiva.

— Você acha que ele foi para os Campos Elísios ou para os Campos de Asfódelos? — A pergunta não demonstra provocação, apenas uma real curiosidade. Mesmo assim, Sarawat não a recebe bem, travando o maxilar em resposta. — Ele parecia ser tão bonzinho, provavelmente Elísio.

— Cala a porra da boca!

— Tudo bem, não quero te irritar. Você ainda tem coisas enormes pela frente.

— Eu não tenho mais nada! — Sarawat quase grita. — Essa missão acabou aqui.

— Não estou falando apenas da missão — o homem diz, mas pondera em seguida. — Espere, você sabe, não sabe?

— Do que raios você está falando?

— Você conhece a mitologia, não conhece? Sabe que pessoas já voltaram a vida antes. As habilidades dos seres divinos não mudou, isso ainda pode acontecer hoje.

Sarawat arregala os olhos, sem saber o que falar. É claro que ele sabe a que o homem de refere. Mas parece ser uma alternativa tão sombria que ele nunca pensaria nela sozinho.

Ele olha ao redor. Os homens no chão, sangue para todo o lado. O arco e as flechas. Incômodo late. O céu continua na penumbra. As lágrimas querem voltar com tudo. Então ele sabe que precisa se arriscar, é a sua única chance. E precisa ser rápido.

— Você tem 10 segundos para sumir da minha frente.

O dono do bar sorri.

— Boa sorte na missão, semideus.

Ele se arrasta na direção das escadas, quando está quase lá, Sarawat o chama. O homem olha para trás confuso. Em circunstâncias normais, Sarawat não faria aquilo. Jamais. No entanto, acabou aprendendo algumas coisas ao sair numa missão com Tine. Não foi culpa daquele homem o que aconteceu, ele estava sendo controlado. Mas ele acendeu a única chama de esperança dentro de si.

— Obrigado.

O homem sorri e vai embora.

Sarawat espera até ter certeza de que está sozinho e volta a guardar a espada no cinto, virando-se para o cão.

— Incômodo — chama, o animal late e prontamente levanta. — Nós vamos para o submundo.

2

Sarawat nunca se imaginou pegando carona com um cão infernal, até porque nunca foi necessário. Ele também tem a habilidade de locomoção pelas sombras. No entanto, fazer isso sem saber ao certo para onde precisa ir, em uma distância longa o suficiente para deixá-lo desestabilizado por longos segundos, não é a melhor opção.

Ele pede que Incômodo o leve até a porta do Mundo Inferior mais próxima, mas, ao chegar lá, Sarawat não acredita quando vê.

O Olimpo está localizado atualmente nos Estados Unidos (como esteve na Grécia e em Roma anteriormente), por ser a potência mundial. Consequentemente, as portas para o Mundo Inferior mais conhecidas estão lá também. Mas ir até lá seria impossível em tão pouco tempo.

Tendo tudo isso em mente, o garoto nunca imaginou que veria um cão infernal andando livremente pela Tailândia. Mas só foi se tocar disso naquele momento, quando caiu de mau jeito na areia de uma praia em Phuket, a mais de 600 quilômetros de Bangkok, sentindo-se tonto, mas nem o suficiente para caminhar.

— Praia? Sério? — ele pergunta ao se levantar. Olha ao redor e não há nem sombra de pessoas. A praia é deserta o suficiente para qualquer coisa acontecer ali e ninguém notar.

Incômodo corre na direção de umas pedras e Sarawat se esforça para acompanhá-lo. Um pouco mais longe do que os olhos dele conseguiam alcançar de onde estava, há uma imensa construção rochosa, como se fosse uma montanha. Ele pisca algumas vezes para que seus olhos consigam se acostumar e então ele vê. 

A construção na verdade é uma caverna, com uma dose exageradamente alta de névoa para escondê-la dos mortais. Quase que nem ele mesmo consegue ver através dela. Quando não se concentra muito, a entrada da caverna desaparece.

Por um momento, Sarawat pensa em recuar; sente medo do que vai acontecer quando estiver cara a cara com o pai. Mas pensar em Tine e que essa é a sua única chance de salvá-lo é o suficiente para balançar a cabeça e afastar qualquer incerteza que possa ter. Ele precisa fazer isso. Por Tine. E por si próprio.

Incômodo segue na frente, como se não tivesse medo do que os espera lá dentro. E provavelmente não tem mesmo, já que aquela é a sua casa. Sarawat, por sua vez, nunca foi ao Mundo Inferior. Na verdade, a única vez que viu o pai foi quando ele o visitou no chalé 13. Depois disso, ele nunca mais apareceu e o garoto também não fez questão de procurá-lo, por motivos óbvios.

Sarawat segue o cão, cauteloso, caverna à dentro. Está escuro demais para enxergar um palmo à frente do próprio nariz, ele quase tropeça pelas pedras no chão duas vezes, então pega a espada no cinto para tentar iluminar ao redor. Mesmo que o ferro estígio não faça muita diferença, é melhor que o completo breu de antes.

Quanto mais adentram a caverna, parece que mais sufocante o ar vai se tornando. Sarawat não sabe se é por conta de estarem longe do ar puro ou se é por estar muito nervoso.

No final da caverna, há um brilho estranho, em tons de azul e roxo. Ao se aproximarem mais, é fácil perceber o pequeno lago formado ali. Do outro lado, um portão cinza enorme. Incômodo entra no lago como se estivesse acostumado a fazer aquilo. A água não é funda o suficiente para afogá-lo, apenas lhe cobre o corpo, deixando a cabeça para fora.

Sarawat o segue, a água bate na altura de suas coxas, molhando a calça jeans gasta. Eles alcançam o portão, mas está trancado e ele duvida que consiga abrir com a espada desta vez.

— E então? O que fazemos agora?

O garoto pergunta, mas logo se recrimina por fazer perguntas a um animal.

— Au!

— Ótimo. — Ironiza. — Por que não disse antes?

Incômodo late mais uma vez, como se estivesse indignado com o que Sarawat acabou de dizer. Com a cabeça, ele aponta incessantemente para a fechadura, mas apenas recebe um olhar confuso em troca. O cão fica de pé, apoiado nas patas traseiras, e com as dianteiras toca a fechadura. Continua latindo, chamando o garoto para fazer o mesmo.

— Você quer que eu chame com você? Olha, eu não sei latir.

Se Incômodo fosse uma pessoa, ele com certeza teria rolado os olhos nessa hora. 

Mesmo sem entender, Sarawat toca a fechadura, na mesma parte em que o cão aponta, com a intenção de examiná-la. Mas não tem tempo para isso. Ao seu toque, os portões se abrem, como se as digitais dele fossem a senha. E é quase isso mesmo. O filho do deus dos mortos tem acesso direto ao "inferno".

Sarawat não pensa muito no que acaba de acontecer, deixará todos os surtos para mais tarde. Sua única preocupação no momento é Tine. Ao que os portões abrem o suficiente para os dois passarem, eles seguem, novamente num caminho de terra e não mais na água. As paredes são bem estreitas e eles não podem andar um ao lado do outro, mas Incômodo já vai na frente desde o início, então não faz diferença.

Há, um pouco mais à frente, uma movimentação diferente. Incômodo não está latindo mais, o único barulho sendo dos passos e das filas enormes não muito longe. Almas esperando para receberem seus destinos. Sarawat contém a vontade de procurar por Tine, apesar de imaginar que não o reconheceria ali.

O cão infernal segue por entre as almas, tranquilamente, acostumado com esse trajeto. Nos cantos das filas, guardas em forma de esqueletos se mantêm parados, a observar tudo ao redor. Sarawat devolve Makaira ao cinto, tentando evitar ao máximo chamar mais atenção do que ser um garoto vivo no meio de tantas almas.

No fim das filas, alguém (numa parte escura demais para ser reconhecido), segura uma espécie de foice, de pé em cima de um barco. Sarawat supõe ser algum tipo de anjo da morte, mas não fica parado ali o observando para ter certeza. Ele segue o cão infernal por entre as profundezas do Mundo Inferior.

Conforme se aproximam do destino, mais ansioso Sarawat se torna. O coração palpita disparado no peito, a mão sua e o corpo treme. Sente que a qualquer momento pode desabar no chão. Contudo, faz o possível para se manter de pé.

Há mais um corredor estreito, aparentemente vazio. Mas quando fazem menção de avançar, seguranças esqueletos se tornam visíveis, olhando na direção de Sarawat. Não é possível identificar suas expressões, porque, bem, eles não têm. Mas a julgar pela forma como fincam as lanças no chão, não parecem dispostos a atacar. Em vez disso, ajoelham-se onde estão, um joelho no chão e o outro no alto, com as cabeças baixas. Um claro sinal de reverência.

Novamente, o semideus não entende o que está acontecendo, mas também não faz questão de tentar entender, correndo por entre os esqueletos pelo corredor estreito, logo atrás do cão.

Ao fim dele, há um enorme buraco, do tamanho de um campo de futebol, separando o corredor de um palácio gigante do outro lado. Olhando para baixo, é possível ver lava alaranjada, como a de um vulcão em erupção.

Um dos guardas esqueletos levanta, virando a cabeça para Sarawat.

— Bem-vindo ao lar, mestre.

O garoto não tem tempo de assimilar aquilo, pois no instante seguinte é jogado no buraco.

3

 

Semideuses não têm um minuto de paz. Se é isso que você está pensando, acertou em cheio. Agradeça se você não for um deles. Infelizmente, Sarawat não teve a mesma sorte. E pior, é filho de Hades, o rei do submundo e dono daquele imenso palácio, mais amedrontador do que casas mal-assombradas de filmes de terror com baixo orçamento.

Ao ser jogado na direção das lavas, teve a sensação de ver o famigerado filme de sua vida diante de seus olhos, mas ainda não foi desse jeito que ele morreu. A última coisa que ouviu foi o latido de Incômodo, antes de desaparecer pelas sombras e reaparecer num chão estranhamente frio. Ele apoia as mãos ali, impulsionando o corpo para cima. O lugar parece a sala de um rei num castelo. Ao redor, centenas de guardas esqueletos em posição de sentido. 

Só então o garoto ergue o olhar para o centro do salão e percebe que nunca esteve preparado para esse momento: suportar o olhar frio de Hades em sua direção, novamente, após quatro anos. 

Sarawat não é mais aquele garoto indefeso e amedrontado que conheceu o pai pela primeira vez aos quatorze anos de idade e teve uma crise em seguida. Ele não é mais aquele garoto que não dormia à noite com medo de que ele aparecesse novamente e fizesse alguma coisa contra Tine, como prometeu que faria. Mas mesmo tendo crescido, estar cara a cara com ele de novo, nas atuais condições, faz seu estômago revirar e ele teme colocar a refeição do dia anterior para fora.

Hades o fita fixamente, seu rosto é completamente inexpressivo, mas o olhar é cortante como uma navalha.

— Sarawat.

Todo o corpo do semideus se arrepia ao ouvir seu nome ser dito por aquela voz gélida pela segunda vez.

— Pai — responde, mas teme não ter sido alto o suficiente para ele pudesse ouvir de tão longe. A julgar pelo pedido seguinte, o deus ouviu sim.

— Aproxime-se.

Com as pernas trêmulas, Sarawat obedece. Cada passo é como pisar em cacos de vidro. Um silêncio mordaz se instala no salão, ao que ele já está a meros metros de distância do deus.

— Devo dizer que estou de fato surpreso com sua vinda — Hades diz. — Imaginei que você preferiria morrer a pôr os pés aqui embaixo. Não estou certo?

Sarawat entreabre os lábios para responder, mas as palavras não têm força o suficiente para sair.

— Seria hipocrisia negar. Nós dois sabemos a verdade. — Hades tem seu cotovelo esquerdo apoiado no braço do trono de pedras preciosas. Os dedos brincam no ar. — Então, a que devo a sua visita a um lugar tão desprezível quanto esse?

Sarawat tem a perfeita noção de que ele sabe muito bem o motivo para sua ia até ali. Os deuses sempre sabem de tudo, principalmente quando o assunto envolve seus filhos. Mas parece que vê-lo se humilhar e pedir ajuda é o um grande prazer para o pai.

Com um suspiro, reunindo toda a coragem necessária para aquele momento, ele diz sem rodeios:

— Tine. 

O ar pesa. Sem parecer esperar pela resposta tão rápida e simples, Hades se ajeita no trono, apoiando ambos os braços deitados no encosto.

— E quem seria esse?

Sarawat trava a mandíbula para se conter.

— O filho de Apolo que o senhor me obrigou a me afastar, quatro anos atrás.

— Bem, se eu fiz isso algum motivo eu tinha.

— Me ver infeliz, talvez.

Os olhos, anteriormente sem expressão, de Hades queimam em fúria. Sarawat sente o medo de apoderar de seu corpo, mas não recua.

— Ele é o meu parceiro de missão e — as palavras pesam em sua garganta — morreu… durante uma batalha.

— E você espera que eu o ressuscite, é isso? — O silêncio do semideus é o suficiente como resposta. Hades ri. — Não tenho tal autonomia e mesmo se tivesse, por que, exatamente, eu faria isso? Não tenho nenhum motivo. Quero que todos os olimpianos e seus descendentes se explodam. É assim que vocês, humanos, falam hoje em dia, não é? Eu não costumo visitar o mundo exterior com frequência, desde que sua mãe… você sabe.

— É, eu sei.

As amargura que sai com suas palavras sussurradas não é proposital. Se Hades a ouve, finge que não.

— O pai dele já conversou comigo, sabe. Sobre vocês. Há algum tempo. — Isso chama a atenção de Sarawat, que ergue os olhos para o pai novamente. — Não que isso faça muita diferença agora. 

— Faz. Muita. O senhor sabe disso.

O deus suspira audivelmente.

— Ele era só mais um meio-sangue que morreu numa batalha, Sarawat. Acontece o tempo todo. Se ele foi fraco o suficiente para se deixar ser atingido, não há nada que eu possa fazer.

A raiva torna a aumentar dentro do peito do garoto, que não consegue se conter dessa vez.

— Fraco é a última coisa que alguém pode falar sobre o Tine! Ele é a pessoa mais forte que eu conheço. A mais doce e bondosa também. A pessoa que eu mais amo e você me impediu de conviver!

Hades o observa com o queixo erguido, mas o olhar é direcionado para baixo.

— Você o ama?

Desta vez, Sarawat não hesita nem um segundo.

— Mais do que tudo no mundo.

O silêncio que segue aquela fala é estranhamente necessário para que ambas as partes consigam entender o peso dela. Sarawat ama Tine como nunca amou outra pessoa. Sim, romanticamente. Ele ama um garoto, o filho do deus Sol. E está admitindo isso em voz alta na frente do pai, em seu palácio no Mundo Inferior. Nenhum dos dois esperava que esse dia chegaria.

Sarawat expira pela boca depois de um tempo, completamente desesperançoso de qualquer argumento que pudesse dar. Como último recurso, seus joelhos cedem e se encontram com o chão. Ele ergue os olhos para o pai.

— Se não pode simplesmente levar uma alma de volta para o mundo exterior, me coloque no lugar dele. Tine nunca mereceu morrer. Todo esse tempo era eu. Esse era o meu destino, não dele! Ele merece viver por muitos anos ainda. Por favor, pai. Eu imploro.

O deus entrelaça os dedos sobre o colo, inclinando o tronco levemente para frente. Seus olhos estão levemente arregalados.

— Você daria a sua vida por aquele garoto?

— Sem nem pensar duas vezes. Sem ele a minha vida já acabou de qualquer forma.

Silêncio. Nem um único músculo na sala se move. Hades olha para o lado, em uma das portas que dão para outras partes do palácio, Pear está ali, parada, observando atentamente o semideus ajoelhado e de cabeça baixa. Ela e Hades trocam olhares significantes. O deus suspira, fazendo um gesto para Sarawat se levantar.

— Acho que acabamos nossa conversa por aqui.

O garoto olha atônito para ele.

— Não! Espera, eu-

Ele não consegue terminar sua frase. Hades balança os dedos e em questão de segundo o corpo de Sarawat é rodeado por sombras. Sua visão escurece e ele apaga completamente.

4

 

 A cabeça de Sarawat dói quando ele abre o olhos. Os tons de cinza cobrem o céu, mas agora é perceptível que não é por nenhuma influência de Apolo, mas por já ser noite de fato. O ar frio toca seu corpo, deixando-no mais gelado que o comum. Com o peso apoiado nos braços, ele levanta do chão.

Já perdeu as contas das vezes que viajou nas sombras essa semana e, principalmente, esta noite. Foram muitas. Como consequência, seu corpo já está fraco. A qualquer momento ele pode cair no chão, exausto.

Seus olhos correm ao redor, tentando reconhecer onde está, até perceber que é o topo de uma escada. À frente, está a porta de um templo, aberta para qualquer pessoa entrar. O prédio é enorme e todo branco, esperando pelas luzes que vão iluminá-lo. Não é necessário pensar muito para reconhecê-lo, mas ainda assim ele olha para cima em busca de um letreiro.

"O Templo do Alvorecer (Wat Arun)".

É exatamente como o desenhado no mapa de Fong. Alto e pontiagudo, com inúmeros andares, tantos que ele não consegue enxergar o topo de onde está.

Sua maior vontade é largar tudo e voltar para o Acampamento Meio-Sangue, onde poderia desabar de vez e vivenciar o luto. Essa missão já fez estragos demais em sua vida. Mas pensar que Tine teria morrido em vão se Pam não fosse salva é uma alternativa que não o agrada nem um pouco.

Se seu pai não iria ajudá-lo, pelo menos ele vingaria a morte de Tine.

Mais uma vez no dia, ele pega a espada do cinto. O ferro estígio tremula ao mudar de tamanho. Os olhos de Sarawat queimam em decisão, ele entra no templo.

Se por fora o prédio não apresenta muitas cores, por dentro é o completo oposto. As que mais se destacam são o vermelho e o dourado, apesar dos tons pastéis nas pilastras grossas que seguram o teto. Não há pessoas circulando por ali como deveria, visto que espalharam panfletos por toda a cidade. É estranho, mas o que foi normal até agora?

De acordo com a profecia, a verdade se revelará no alto da torre esmeralda. Se ali é de fato a tal torre, ele terá de subir as escadas, até o último andar. Em passos cambaleantes, vai até elas, deparando-se com outras pessoas pela primeira vez desde que entrou. Todas descendo. Nunca subindo.

A mesma sensação sufocante que tivera na caverna toma o seu corpo, mas desistir não é uma opção. Tine nunca o perdoaria se ele desistisse. Sarawat aperta ainda mais o cabo da espada, subindo os degraus de dois em dois para ir mais rápido. Cada passo é firme contra o chão.

Ele sobe os andares, ao passo que sua mente não para de martelar. Uma sequência de cenas se passam por ela, se ele fechasse os olhos, conseguiria vê-las claramente sob as pálpebras.

Ele pensa em sua mãe.

"Você é o meu bem mais precioso", ela disse, certa vez. Em um dos raros momentos em que eram apenas os dois aproveitando a companhia um do outro. Sua mãe, que deu a vida para salvá-lo.

Pensa na tia.

"Quero que você lembre desse dia sempre que sonhar em se interessar por algum garoto, está me ouvindo?". A que fez de sua vida um inferno, simplesmente por não aceitar quem ele é.

Pensa no pai.

"Eu não esperava muita coisa de você, realmente. Mas isso é demais!". O pai que ele viu apenas duas vezes e que nunca moveu um dedo por ele.

Até mesmo pensa no monge que os recebeu no primeiro dia da missão.

"Você não! Filho do demônio". Sarawat lembra perfeitamente do quão insignificante se sentiu naquele dia.

Mas, no meio de tudo isso, estava Tine.

"Se isso não é ser especial, eu não sei o que é". 

Sarawat nunca se sentiu alguém especial, mas quando Tine estava com ele, abrindo mão de fazer qualquer outra coisa apenas para ficar em sua companhia, ele sentia que era a pessoa mais sortuda do mundo.

Sarawat se sentia uma pessoa muito mais feliz ao lado de Tine. Porque podia ser quem realmente era, sem medo algum.

E é por ele que vai até o fim dessa missão. Para garantir que sua morte não foi em vão.

Décimo sétimo andar, décimo oitavo, décimo nono… vigésimo. 

Os andares passam mais rápido do que ele consegue perceber, porém seu corpo já dá sinais de não estar mais aguentando.

Cambaleia pelas paredes, pedindo a todos os deuses que consegue lembrar que não o deixe desmaiar agora. Ele não desmaia, mas algo muito pior acontece. 

O filho de Hades tem a impressão de estar sendo observado. Como se olhos o seguissem por onde andasse. O que não faz sentido, pois está sozinho no salão. Aturdido, olha para um lado, depois para o outro. Olha para trás, mas não vê nada. Por fim, olha para frente. Também não há nada. Porém, lentamente, seus olhos sobem, até mirarem alto o suficiente para dar de cara com a harpia empoleirada numa borda sobressalente do teto, acima da porta que divide o salão em dois.

Ela o encara fixamente. Se conseguisse lançar raios laser pelos olhos, Sarawat já estaria morto. Harpias são metade aves, então ele não se surpreende quando ela simplesmente levanta dali e voa em sua direção. O olhar furioso cada vez mais perto.

Sarawat tenta se mover, mas seu corpo já não aguenta mais. Tem a sensação de que se tentar sair correndo, as pernas não lhe obedecerão e cairá com tudo no chão, facilitando o trabalho da Harpia. Mais uma vez um filme de sua vida para pelos seus olhos. Não há tempo de pegar a espada. Não há tempo de lutar. Não há tempo de fugir. O tempo acabou.

Ele fecha os olhos e espera pelo seu fim.

Que não chega.

Segundos se passam, talvez minutos, a mente dele está tão confusa que não consegue saber qual dos dois ao certo. Porém, é certo que já se passou tempo o suficiente para que ela o alcaçasse. Mas ela não o faz.

Abrindo lentamente os olhos, Sarawat vê as roupas, que outrora ela usava, no chão, mas apenas as roupas, como se ela tivesse evaporado (como acontece sempre que um monstro é atingido e vai para o Tártaro). Ele pisca, tentando manter o foco. Tentando entender o que está acontecendo. Seus olhos demoram a focar, por um momento ele pensa que pode estar precisando de óculos também. Mas acontece e ele consegue ver algo brilhante no meio das roupas.

Uma flecha fincada no piso de taco.

Seus olhos se arregalam, surpresos. "Não é possível", ele pensa. No entanto, uma voz atrás de si deixa tudo ainda mais surpreendente. Uma voz extremamente familiar.

— O que seria de você sem mim, querido.

A primeira coisa que Sarawat pensa é em estar ouvindo coisas. A frase  "Não é possível" repete em loop em sua cabeça. Porque realmente não é, não faz sentido. Ele não consegue virar completamente, mas olha por cima do ombro para a pessoa que disse aquilo. E então o vê.

Tine está parado não muito longe. Uma pose que se Sarawat não o conhecesse, diria ser de prepotência. O arco em uma das mãos (a esquerda) e a aljava em um dos ombros (o direito). Não pareceria real, se não fosse o sorriso que ocupa todo o seu rosto quando os olhares se encontram, um sorriso puro e genuíno. 

— Tine?

— Achou que se livraria de mim assim tão fácil?

Sim, aquele é Tine. O seu Tine.

Por algum milagre (uma força divina, talvez), Sarawat consegue mover-se milimetricamente. Seus passos são lentos, então Tine ajuda correndo em sua direção. Mas, o que era para ser um reencontro feliz e emocionante, acaba se tornando em motivo de preocupação, ao que Sarawat praticamente desaba nos braços de Tine.

O cansaço é visível, desde a aparência apática até às familiares bolsas embaixo dos olhos. Viajar tantas vezes pelas sombras em um curto espaço de tempo, mesmo que não usando do próprio poder, ainda mais por estar há tanto tempo em jejum, o desgastou demais.

Não há ninguém passando por ali, parece até que o andar inteiro foi interditado. No meio do corredor, Tine segura Sarawat, que aperta seus ombros para se manter de pé. Ainda está consciente, mas não se sabe até quando. 

— O que você tem? — Tine pergunta preocupado. — Foi atingido?

Sarawat balança a cabeça.

— Eu… estou cansado demais. Acho que não vou aguentar ir além daqui.

Tine segura Sarawat com mais firmeza e o põe sentado no chão, as costas apoiadas em uma das pilastras.

— Eu vou tentar fazer uma coisa, tudo bem? — Tine pergunta, e não espera que Sarawat concorde.

O filho de Apolo pega uma das mãos do outro, entrelaçando os polegares e apertando as palmas um na outra com firmeza. Tine nunca tentou algo assim. Embora ele e seus irmãos tenham a habilidade de curar, externamente falando, nunca tentou curar a parte interna de alguém. Em casos como os de Sarawat, a ambrósia é muito mais eficiente. Mas eles não a possuem no momento, tampouco têm tempo para procurar.

Tine se concentra. Os dedos formigam e algumas faíscas saem deles. Sarawat olha fixamente para as mãos unidas, a cabeça apoiada na pilastra e os olhos semicerrados, pronto para desmaiar a qualquer momento. Mas isso não acontece. Seu corpo sente subitamente um calor que nunca sentiu antes. Uma onda de energia o invade, mais forte do que qualquer ambrósia que já comera na vida. Sarawat se pergunta se é assim que os aparelhos eletrônicos se sentem ao serem carregados.

A expressão derrotada do garoto, dá lugar a olhos atentos e respiração acelerada. Eles se encaram por alguns segundos, Sarawat analisa Tine de um jeito mais consciente agora, até quebrar o silêncio. 

— Como? Como isso aconteceu?

— Eu não sei bem… nunca tentei algo assim antes. Eu só deixei fluir.

— Não, não estou falando sobre isso. Quero dizer como conseguiu voltar?

Agora ele já tem força o suficiente para se inclinar para frente, estando bem próximo de Tine, que está ajoelhado.

— Você por acaso não queria que eu voltasse? — O tom de Time é provocativo ao perguntar, uma clara brincadeira. Mas Sarawat não ri.

— Não brinque com isso.

Tine anui com a cabeça.

— Foi o seu pai. 

— Meu pai?

Tine assente.

— Ele liberou a minha alma do Mundo Inferior. Não sei bem como aconteceu, mas de uma hora para outra eu estava aqui. Eu… sei que você foi lá.

— Sabe? — Sarawat pergunta. A voz tremula perante o choque da revelação.

— Sim. Tenho certeza que ele fez isso por você. Acho que ele se arrependeu, sabe? De tudo o que fez. E sua visita ao Mundo Inferior, enfrentando qualquer medo que pudesse ter só para me salvar, foi a gota que faltava num copo prestes a transbordar.

É informação demais para se assimilar. Seu pai, Hades, a pessoa que menos queria que eles estivessem juntos, atendeu ao seu pedido e trouxe Tine de volta. É chocante demais. Sarawat sente um soluço preso na garganta ao se dar conta de que, independente de como, Tine não está morto.

— Achei que nunca mais veria você. — Os olhos ficam turvos pelas lágrimas. — Eu fiquei com tanto medo…

Tine não permite que ele continue falando e o abraça. Uma mão acaricia o cabelo dele, que apoia a cabeça na curva entre o seu pescoço e o ombro, enquanto a outra lhe afaga as costas. Sarawat, por sua vez, segura com força a blusa de Tine, os botões quase cedem.

— Não me deixa de novo, por favor — Sarawat volta a falar, entre lágrimas. — Eu não vou suportar te perder mais uma vez.

Tine separa o abraço, ambas as mãos vão de encontro a cada um dos lados do rosto de Sarawat. Os polegares acariciando-lhe as bochechas e limpando as lágrimas que por ali passam. Como sempre, ele sorri.

— Eu não vou a lugar algum.

Um inclinar de cabeça é o suficiente para que as bocas se encontrem, no talvez beijo mais urgente e singelo que eles já deram. O gesto que faltava para selar de vez a promessa muda de nunca mais se afastarem um do outro. As bocas se separam, as testas se unem.

Só então, estando tão perto, Sarawat percebe.

— Seus olhos… não voltaram a cor natural.

— O quê? 

— Eles continuam dourados, desde que você começou a me curar.

Tine fica confuso, mas dá de ombros por fim.

— São os olhos de quem venceu a morte. — Ele sorri, levantando e estendendo a mão para o outro.— Vamos terminar com isso de uma vez? Juntos.

Da primeira vez que Tine disse isso, Sarawat não acreditou de fato. Mas ainda assim concordou, pois uma parte de si queria mais do que tudo que acontecesse. Desta vez, ele sorri genuinamente, sabendo que é a mais pura verdade. 

Tine está ali, com ele, e não vai mais embora. Jamais vai deixá-lo ir novamente.

Sarawat sorri e aceita a mão do outro para levantar. Tine o deixou melhor do que toda a ambrosia do mundo deixaria. Eles correm até a escada mais próxima e tornam a subir as escadas. No total, são vinte e cinco andares. 

A arquitetura do vigésimo quinto andar é um tanto quanto diferente dos outros. O salão está totalmente escuro, sendo iluminado apenas pela luz da lua e reluzir da espada de Sarawat, que ele pegou novamente. Não é muito fácil ver o que há pelo caminho, mas em um dos cantos é possível enxergar, com certa dificuldade, uma escada de madeira, dando para sabe-se lá onde. Não tem mais para onde subir.

Está tudo calmo demais, o que torna as coisas ainda mais estranhas. Tine anda com a flecha em posição, os olhos atentos por trás das lentes dos óculos. Sarawat segura o punho de Makaira como se sua vida dependesse disso. E talvez realmente dependa.

Tine move a boca, prestes a dizer algo, quando um barulho é ouvido, seguido por um vibrar em todos os móveis do salão. Mais uma vez, depois outra. 

— O que foi isso? — Sarawat pergunta, num sussurro. 

— Não sei e me questiono se quero descobrir. 

O barulho se repete, todo o prédio vibra. Tine olha para o alto.

— Veio lá de cima.

— Do telhado?

Não é necessário explicar a intenção da pergunta, porque ambos lembram muito bem o que aconteceu da última vez que lutaram em um. 

— Sim. Do telhado.

Eles olham para as escadas ao mesmo tempo, quase que de forma cronometrada. Em um acordo mudo, caminham até ela, tomando todo o cuidado de olhar em todas as direções possíveis, a fim de evitar qualquer surpresa indesejável.

— Eu vou na frente.

Sarawat não espera que Tine retruque (o que ele com certeza iria fazer), pondo-se na frente dele para subir os degraus. O que quer que estiver esperando por eles lá em cima, vai encontrá-lo primeiro. 

Ele sobe a escada Um de cada vez, agora. Com a completa ciência de que, ao fim da escada, está também o fim da missão. Acima de sua cabeça, há uma portinha de madeira no teto, trancada por um cadeado enferrujado. Não é difícil quebrá-lo com a lâmina. Ao fazer isso, o cadeado cai no chão, o som do baque ecoando pelo salão. Sarawat olha para Tine mais uma vez, recebendo um aceno simples como resposta. 

Então ele abre a portinha.

De todas as coisas que eles imaginavam ver, o telhado vazio é a última delas. Não há sinal de ninguém num raio de dez metros. Mas, no final, amarrada ao muro que os cerca, uma garota grita o mais alto que consegue, devido a mordaça.

Pam.

Sarawat tenta se aproximar dela, para acabar logo com tudo isso, mas Tine coloca o braço na frente dele, o impedindo de fazê-lo.

— Está tudo fácil demais.

E com fácil, ele quer dizer muito estranho.

Não dá um minuto que ele diz isso e o chão começa a tremer. É necessário firmar o pé para não cair. Sabe-se lá de onde vários monstros se aparecem, numa horripilante aparência de humanos normais. Mas agora eles sabem que não são.

Sarawat e Tine posicionam-se um ao lado do outro.

— Pronto?

O brilho do olhar de Sarawat fala por aí só, mas mesmo assim ele faz questão de verbalizar.

— Vamos logo com isso.

O que acontece a seguir é uma sequência de ataques e defesas dignas de filmes de ação. Quem visse de cima, diria com clareza que os semideuses estão desvantagem, pois para cada um deles, há mais de vinte monstros. Uma luta nem um pouco justa. Eles sabem disse, mas lutam com tudo de si.

Segundo Dim, Sarawat e Tine são os maiores semideuses daquele Acampamento Meio-Sangue. Para eles nunca ficou muito claro o porquê, mas era necessário que uma luta daquele nível acontecesse para que eles entendam.

A qualquer momento um deles seria atingido. Talvez a previsão de Phukong não tenha sido referente a morte de Tine mais cedo, mas sim morte de algum deles agora. Eles não permitirão que isso aconteça, nada nem ninguém irá separá-los de novo.

Entre flechadas e desvios, Tine sente algo que nunca sentiu antes. Seu corpo vibra com a sensação de poder tomando-lhe. É surreal, como se estivesse pegando fogo por dentro e as chamas se alastrassem de baixo para cima.

Sarawat sente a mesma coisa. Cada parte de si treme com o êxtase que o invade. Ele acerta os monstros com ainda mais intensidade, sentindo a força o invadir.

O corpo de Tine brilha como se ele tivesse um Sol particular que o ilumina. Na verdade, é como se ele fosse o próprio Sol. 

Uma fumaça negra cobre os pés de Sarawat e sobe por trás dele. Olhos brilhantes aparecem ali quando a fumaça se aglomera acima de sua cabeça.

Os olhos de Tine estão dourados como raios de Sol. Os de Sarawat, negros como a escuridão.

A benção de Apolo e Hades.

Eles não percebem num primeiro momento, mas visto de fora, o templo é iluminado por uma intensa luz verde esmeralda.

Ao redor de Tine, uma parede transparente cobre os dois, um bloqueio que impede qualquer monstro de se aproximar. Afim de acabar de vez com isso, Sarawat dá a cartada final. Ele levanta a espada o mais alto possível e em seguida a afunda no chão de pedras com toda a força. Da mesma forma que fez no museu, com os dois seguranças ciclopes. Mas com resultados infinitas vezes maiores.

Uma cratera enorme se abre no chão e um exército de esqueletos do submundo aparecem. Prontos para lutarem pelo seu príncipe. Monstros e mais monstros caem pela cratera até que não teste mais nenhum, indo todos para o fundo do Tártaro. Em seguida, a cratera se flecha como se nada tivesse acontecido.

Um silêncio mordaz toma conta, sendo quebrado apenas pelos gritos de Pam, do outro lado. Tine e Sarawat se encaram, sem entender o que acabou de acontecer. É um olhar que representa toda a dúvida, mas ao mesmo tempo certeza de que tinha finalmente acabado.

Sarawat é o primeiro a se mover. Ele caminha até Pam, atento a tudo ao redor. Tine vai atrás dele, certificando-se que estão de fato sozinhos. A olhos da garota brilham em entusiasmo à medida em que se aproximam, da garganta saem sons esganiçados, abafados pela mordaça. Time desamarra o pano na boca dela enquanto, com a ponta da espada, Sarawat corta as cordas que a prendem.

A primeira reação de Pam é se jogar nos braços de Sarawat, abraçando-o como se sua vida dependesse disso. Sua empolgação é tanta que deve poder ser vista do espaço, igual a Muralha da China. Tine observa a cena sem dizer nada, extinguindo qualquer chance de ciúmes que poderia crescer dentro de si, não é momento para isso. Sarawat, por sua vez, não retribui o abraço por estar desnorteado demais para saber o que fazer. Os braços pendem ao lado do corpo.

O que pode parecer um momento estranho, se torna ainda mais estranho quando ela se afasta e se joga nos braços de Tine. O garoto arregala os olhos, Sarawat arqueia uma das sobrancelhas. Ela demora tanto naquele abraço quanto no outro, antes de se afastar mais uma vez. Está animada demais, batendo pequenas palmas.

— Eu sabia que o melhor casal do acampamento iria me encontrar. Nunca duvidei de vocês!

Tine franze o cenho. 

— Como? 

— Minha mãe perguntou se isso realmente ia dar certo, mas eu tinha certeza que ia — ela diz. — Vocês nasceram um para o outro. Era o destino!

— Do que você está falando, Pam? — Tine pergunta mais uma vez.

Sarawat troca o peso do corpo de um pé para o outro, apontando na direção dela.

— Sua mãe… não é Afrodite?

— A própria.

A resposta não vem de Pam, e sim do lado oposto ao que ela está. Uma mulher, a mais linda que qualquer um dos dois já viu na vida. Possui longos cabelos castanhos e usa um vestido vermelho sangue, decotado propositalmente na região dos seios. Não o suficiente para mostrar nada, mas sim para deixar quem visse com vontade de que realmente mostrasse.

— Olá, semideuses.

Afrodite sorri, o que a deixa ainda mais bonita, se é que isso é possível.

Dada a confirmação dos fatos, Tine não demora a cair em si e se ajoelhar, em reverência a deusa. Pam faz o mesmo. Sarawat demora um pouco para se tocar, mas quando o faz se ajoelha também.

— Podem levantar, meus heróis. 

Os três obedecem, ficando de pé um ao lado do outro. Pam ainda está sorridente, sendo a única entre os semideuses a entender o que está acontecendo.

— Vocês foram incríveis durante todos esses dias — Afrodite continua falando. — Superaram todas as minhas expectativas.

Tine e Sarawat trocam olhares confusos.

— Suas expectativas?

A deusa ignora a pergunta.

— Quando Pam me disse que queria juntar um casal do acampamento, achei que fosse mais uma brincadeira que meus filhos adoram fazer para passar o tempo. — Ela gesticula enquanto fala. O movimento de suas mãos demonstram toda a sua delicadeza. — Mas então eu passei a observar vocês. Todos os olhares escondidos, desejos reprimidos, solidão por estarem longe um do outro.

Sarawat aprendeu, ao longo dos anos, a omitir suas reações. Mas ele não consegue evitar que todo o seu rosto seja tomado por um vermelho intenso. Afrodite continua com a palavra, pois nenhum dos dois consegue formular nenhuma frase com mínima coerência.

— Fazia muito tempo que eu não me deparava com o amor verdadeiro. Mas bastou olhar para vocês e eu o encontrei.

Os cantos dos lábios de Tine se curvam num sorriso quase imperceptível quando ele olha para Sarawat, sem mover o rosto na direção dele. Ele consegue se imaginar não conseguindo esconder seus sentimentos, porque é quase impossível evitar que suas pupilas dilatassem sempre que olhava para o outro. 

— Mas o que isso tem a ver com a missão? — Sarawat consegue perguntar.

Afrodite tomba a cabeça para lado, os olhos distantes, como se tentasse lembrar de algo. Mas é óbvio que ela não esqueceu, está apenas tentando fazer com que eles se deem conta sozinhos. É Tine quem chega a uma conclusão. 

— Foi você quem criou a missão.

A deusa sorri. É resposta o suficiente.

— Pam nunca esteve em perigo. Ela era apenas a isca para atrair vocês.

Os dois garotos olham para a semideusa, que caminhou na direção da mãe, parando ao seu lado, com um sorriso estonteante no rosto.

— "Por amor ela precisará partir" — Tine repete o primeiro verso da profecia.

— O amor de vocês — Afrodite confirma. — Pelo amor de vocês ela partiu e sacrifícios foram necessários para que o amor de vocês fosse provado e pudesse sobreviver.

O choque que assume o rosto de Sarawat, está a um passo de se transformar em raiva.

— Então... tudo isso foi uma diversão para vocês?

O rosto de Afrodite endurece.

— É claro que não! Eu nunca faria nada que colocasse vocês em risco. O amor não sobrevive onde há discórdia. — Seu tom de voz é cortante no meio do telhado frio e silencioso. — Eu vigiei vocês de perto durante todos esses dias. Desde a ida a tenda do filho de Hécate, ao museu, a visita de Perséfone, o cão infernal, a luta com os humanos controlados…

— Você os controlou! — Tine constata. — Assim como me controlou no museu. Isso faz muito mais sentido, você tem um poder de persuasão enorme.

A deusa sorri para ele, satisfeita por ter sido entendida com facilidade.

— Tudo foi obra sua? — Sarawat pergunta. — Até a morte do Tine?  

A pergunta tinha que ser feita, e com ela um estranho desconforto vem a tona. Afrodite balança a cabeça.

— Essa parte não estava nos planos. Mas Apolo sabia que no fim vocês estariam bem, então eu deixei acontecer — ela diz. — Devo confessar que me surpreendi com os seus métodos, Sarawat. Ir até o Mundo Inferior para salvá-lo. É a maior prova de amor que vi em séculos. Se não em toda a minha existência.

As mãos de Sarawat se apertam em punho. Time fica confuso com a primeira parte da fala da deusa.

— Apolo? Meu pai? — pergunta. — Ele sabia disso.

A deus assente.

— Eu comuniquei o que queria fazer a Apolo e Hades. A última coisa que eu queria era uma guerra entre deuses, então compartilhei com eles meus planos. Eles não me ajudaram, mas também não atrapalharam o meu caminho.

— Por quê?

— Porque eles sabiam que não é possível vencer o amor verdadeiro. O sol e a morte estavam destinados a ficarem juntos. O eclipse aconteceria uma hora ou outra. Era inevitável. Nem a força mais maligna do mundo conseguiria ficar no caminho de vocês.

Os dedos da deusa se movem em sincronia, como se ela quisesse espantar algum inseto que a estivesse perturbando. À frente deles, aparece uma tela do tamanho de uma televisão, mas não há nada físico, apenas o brilho da tela. Pam sai do caminho para dar visão ao que quer que fosse aparecer ali. Os garotos prendem a respiração quando percebem.

Um compilado de momentos dos dois aparece na tela, desde quando se conheceram, a primeira conversa na Casa Grande, o dia em que Sarawat fora reclamado, as saídas noturnas escondidas após o toque de recolher. O quase primeiro beijo, o início das brigas, o afastamento iminente, um olhando para o outro sem coragem de se aproximar, os olhares transbordando saudades. Eles sendo escolhidos para a missão, os momentos mais importantes dela, o verdadeiro primeiro beijo. A morte de Tine.

Em todos esses momentos, mesmo que não fosse possível ver, eles sentem que Afrodite esteve ali entre eles, os observando. Movendo os pauzinhos para que tudo acontecesse até culminar no dia de hoje. 

— Eu não fiz o destino. Apenas o ajudei a acontecer. — A deusa fala por fim.

Tine sente ser atingido por muitas respostas de uma só vez. Cada de ponto de sua vida nunca fez tanto sentido. Ele entende primeiro que Sarawat, que ainda está confuso.

— Mas e o fim da profecia? "Tudo o que importa será a escuridão".

Afrodite sorri. De todos os sorrisos até então, esse é o mais acalentador.

— Acho que o Tine já entendeu o que significa.

Em um piscar de olhos, Afrodite e Pan desaparevem, com se suas presenças ali não passasse de obra da névoa. Os dois estão sozinhos, no meio do telhado vazio. O vento frio sopra, bagunçando o cabelo de ambos. Eles se encaram, Sarawat refaz a pergunta apenas com o olhar. Tine lembra da última batalha, o corpo de Sarawat coberto pela fumaça negra.

— A escuridão é você.

— Eu?

— Sim. A profecia diz que a única coisa que importará será a escuridão. — Ele segura o rosto de Sarawat com ambas as mãos. A troca de olhar mais intensa que qualquer outra coisa no mundo. Por fim, Tine faz o que sempre fez. Sorri. — Você é tudo o que importa para mim.

Eles se beijam, muitas e muitas vezes. Sem precisar mais esconder nem mesmo um por cento do sentimento que viveu trancado com eles por muito tempo, mas que agora está livre para se tornar o que quiser.

 

"Sabe por que se apaixonar é o que se pode acontecer de mais profundo com uma pessoa? Porque, quando estamos apaixonados, estamos totalmente em perigo e completamente salvos. Tudo ao mesmo tempo.

(Carta de Amor aos Mortos - Ava Dellaira)


Notas Finais


Eu preciso parar de fazer finais em telhados.

Não tirem a fic da biblioteca ainda, porque ainda vou trazer um epílogo cheiroso pra vocês.

Mas e aí? O que acharam? Valeu a pena gastarem o tempo de vocês lendo isso? Kkkkkk Digam aí.

Agradecimentos especiais à @chindo, que me ajudou, indiretamente, a plotar uma parte desse capítulo. ✌🏻😘

À @Li_02, que fez uma fanart linda dos Sarawatine semideuses e inspirou o título do capítulo 💞 (olhem que coisa linda: https://twitter.com/yllwdream/status/1281026973414891525?s=19 )

E à @GreySun, meu amorzinho, que fez uma fanart da cena final do capítulo final que me fez querer chorar, de tão perfeita😍 ( https://twitter.com/Dearlalay/status/1282655111236538368?s=19 )

Se vocês quiserem conversar, meu twitter é o @metaworn. Vamos amigar!

Até o epílogo, amo vocês ❤️


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