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História Bells of Notre-Dame - Escolha


Escrita por: ElvishSong

Notas do Autor


Olá! após uma eternidade, aqui estou afinal com a continuação dessa história! Tomara que gostem!

Capítulo 12 - Escolha


Fanfic / Fanfiction Bells of Notre-Dame - Escolha

                - Aonde vai, Esmeralda? – Clopin interceptou a jovem quando esta ia deixando o Pátio, no meio da tarde. O cigano parecia desconfiado e ainda não esquecera o episódio de meses atrás.

                - Vou à cidade, Clopin – respondeu a moça, tendo nos braços uma cesta com pães feitos de cevada e água, junto a algumas ervas que cultivava junto a seu carroção – passei meses longe, e alguns amigos estão doentes. Vou levar-lhes comida e medicamentos.

                - Algum deles exigirá quatro dias de cuidados, criança? – perguntou ele, nem um pouco convencido.

                - No mais tardar, amanhã cedo estarei de volta. – respondeu ela, ainda magoada com o pai por cercear daquele modo sua liberdade, a dádiva que os ciganos prezavam acima de tudo! Ia se virando para continuar seu caminho quando a mão do cigano pousou em seu ombro:

                - Sei que está zangada comigo, e tem direito de estar... Mas compreenda que o que faço é na intenção de proteger não apenas você, mas todo o nosso clã.

                - Eu entendo, Clopin. – suspirou a jovem – mas precisa começar a me encarar como uma mulher, não como uma garotinha.

                - É porque a encaro como mulher que vejo os perigos que a cercam; perigos que não ameaçam uma garotinha, mas que você é pura e jovem demais para considerar.

                - Eu sei me defender, pai: você me ensinou bem. Agora precisa confiar em mim para fazer minhas próprias escolhas. Sabe que eu nunca poria nosso clã em risco.

                O homem encolheu os ombros e suspirou: por que Esmeralda não podia ser como as outras ciganas, que se contentavam em ficar nas proximidades do clã ou, no máximo, saíam à cidade em grupo? Por outro lado, sabia que sua menina era tão indefesa quanto qualquer homem do Pátio; pequena e de aspecto inofensivo, era tão rápida quanto um vendaval, e sua adaga embebida em veneno feria como a picada de uma serpente, rápida e letal. Sim, Esmeralda era capaz de se defender, mas a angústia de não acompanhar a menina – que, para ele, era tão sua filha quanto se partilhassem o mesmo sangue – não podia ser ignorada.

                - Deixe Djali, então – pediu, vendo a pequena cabra acompanhar sua dona – ela seria um estorvo, se precisasse fugir,

                - Pai, Djali é praticamente o meu bebê! Sem a mãe, ela precisa de quem cuide dela. – explicou a cigana, e então deixou seu rosto se abrir num sorriso antes de dar um beijo estalado na bochecha de Clopin – pare de ser tão preocupado com tudo e todos. Eu estarei bem.

                - Vou rezar para que continue assim – resignado, o chefe do grupo viu sua adorada menina seguir em direção às portas da cidade... Não lhe saía da cabeça a ideia de que algo estava muito errado, e ele tomou uma decisão: ia pedir a Alba que lesse as cartas para Esmeralda. Não era certo pedir para ver o destino de outra pessoa, mas naquele caso fazia-se realmente necessário.

                Enquanto isso, a cigana se embrenhou nas vielas de Paris e começou a procurar pelas casas e barracos dos conhecidos em necessidade: idosos, mulheres grávidas, pessoas com doenças que podia tratar. Não possuía os mesmos vastos conhecimentos de sua mãe, mas era mais capacitada do que muitos “barbeiros-cirurgiões” de Paris, que jamais haviam feito uma universidade, de fato, e só conheciam sangrias e purgantes.

                Naquela tarde a jovem tratou de um homem cuja perna tivera de ser amputada após infeccionar com a mordida de um cão – a amputação fora mal cauterizada e apresentava uma ferida permanente, que só os cuidados da cigana haviam conseguido diminuir – de várias gripes – com o inverno se aproximando, aquela doença era uma das que mais matavam – de uma mulher coberta pelas chagas da Sífilis e algumas crianças com febres e gargantas inflamadas. E a cada vez que cuidava de um paciente sem condições de manter a si mesmo, com ele deixava um dos massivos pães de cevada, feitos com cereal que ela conseguira comprar com um pouco de dinheiro guardado ao longo do verão. Djali a acompanhara diligentemente em cada visita, distraindo-se com as crianças das cercanias que se encantavam à visão do animalzinho de pelos brancos e macios.

                O anoitecer trouxe consigo o som distante do repicar dos sinos, bem na hora em que a cesta da cigana ficava vazia, afinal; com um sorriso ela se voltou para Djali e perguntou:

                - Vamos à Catedral, pequena? – a cabritinha baliu, como se entendesse sua dona, e a seguiu de perto em direção ao centro da cidade. O coração de Esmeralda ia disparado ante a perspectiva de rever Aaron, e agora já não havia como negar: estava completamente apaixonada pelo homem. E por mais que aquele amor parecesse fadado ao fracasso, três dias pensando a respeito a haviam levado a uma conclusão... Tomaria o que a vida lhe oferecia, e daria o que ela própria podia oferecer, vivendo um momento de cada vez. Mas pensara também outras coisas, as quais queria compartilhar com o homem a quem agora sabia amar.

                Estava perto do centro quando uma voz conhecida chegou a seus ouvidos, surpreendendo-a, mas não chegando a assustá-la:

                - Boa noite, mademoiselle. – virando-se, ela se deparou com a figura do Capitão Phoebus, que puxava pelo cabresto seu cavalo, andando calmamente em direção à cigana.

                - Boa noite, capitão – saudou ela, sem motivos para temer de fato a aproximação do homem. Ele era inconveniente, mas não se mostrara uma ameaça, até então. Com um olhar interessado demais sobre a mulher, ele se colocou frente a frente com ela:

                - O que faz pelo centro, a tal hora? Certamente não veio rezar a Notre-Dame.

                - Uma cigana não pode ser cristã, cavaleiro? – perguntou ela – minha fé não é condicionada a minhas origens.

                - Palavras difíceis para uma estrangeira – provocou ele, desviando o olhar daqueles perturbadores faróis verdes que eram os olhos de sua interlocutora – não precisa se dar esse tipo de trabalho ao falar comigo, senhorita: sou apenas um soldado do rei.

                - Então continue seu trabalho, monsieur, e eu continuo a fazer o que pretendia quando fui interrompida: orar. – ela tentou se esquivar dele, mas um braço forte se estendeu para barrar sua passagem:

                - Senhorita, sua presença seria não apenas um incômodo, mas uma grande perturbação. Aguarde aqui que a missa se encerre, e então, se ainda desejar, permitirei que entre na Catedral. Não antes disso.

                - Agora os homens do rei decidem quem entra ou não nas missas? – perguntou, irritada – deixe-me passar, capitão.

                Ele pareceu se irritar e, por alguns segundos, toda a postura cavalheiresca desapareceu, substituída por algo que, à moça, só poderia ser orgulho ferido:

                - Estou dizendo que não entrará, cigana! – ele a segurou pelo braço de modo rude, ao que a jovem se esquivou num movimento rápido, pondo-se na defensiva:

                - Não me toque! – e deu um passo para trás, querendo se afastar das mãos rudes do capitão – se me tocar outra vez, senhor, eu o farei engolir os próprios dentes!

                Ele pareceu perceber o que fazia, e ergueu as mãos em gesto de paz:

                - Senhorita, meu dever é evitar confusões como as que ocorreriam se entrasse agora na Catedral. Creia-me, mademoiselle, que seria a pessoa mais negativamente afetada por isso. O que faço é um favor à cidade, e à senhorita. – e com uma breve reverência – por que não se acalma e me faz companhia, por alguns momentos?

                - Sei bem o tipo de companhia que deseja, monsieur, e faria bem em tratar-me por senhora, pois sou uma mulher casada, agora – adotando a postura mais agressiva que podia, ela esperava encerrar a conversa com aquela informação, mas Phoebus era insistente:

                - Então, seu marido deve estar preocupado com a ausência de minha senhora, após o escurecer. Permita-me acompanha-la até seu lar, Madame. Sabe me dizer onde reside, para que eu a leve em meu cavalo?

                - Na esquina da rua “deixe-me em paz” com a viela “vá se ferrar” – respondeu ela, mais do que depressa, virando as costas para o cavaleiro – boa noite, monsieur.

                Ao ver a cigana desaparecer por uma viela, o capitão deu um sorrisinho cafajeste e comentou consigo mesmo:

                - Essa é das difíceis... Pois bem, cigana... Se não é mais uma donzela a ser conquistada, então as regras do jogo mudam. Não hoje, mas em breve...

                O arqueiro nunca poderia imaginar a tolice que cometia ao pensar que Esmeralda era uma jovem indefesa que servisse de presa a seus caprichos...

 

*

 

                Mais cedo, naquele mesmo dia, Aaron se preparava para descer do campanário e fazer soar o órgão de foles durante o ato litúrgico, quando passos conhecidos soaram nas escadas: Claudius Frollo. Ninguém mais caminhava daquele modo tão suave, como se temesse fazer algum barulho, e só o rangido da madeira é que anunciava sua aproximação. A consciência de que seu padrinho ali estava fez o peito do homem se apertar: era incrível a influência que, mesmo após sua briga, o juiz ainda exercia sobre sua pessoa.

                À medida que os passos se aproximavam, o organista sentia seu peito se apertar, como sempre fazia, e um suor gelado porejou em sua testa; as mãos igualmente frias secaram as gotas que tentavam escorrer por seu rosto, e foi com o ar mais impassível de inquisidor que ele recebeu o sacerdote em seu “lar”.

                - Boa noite, Aaron – saudou o ancião, menos cáustico do que costumava ser, o que deixou o homem mais jovem em alerta: Frollo raramente desistia de uma meta e, uma vez que as tentativas anteriores haviam fracassado, certamente trocara seu método. O antigo sineiro precisaria ficar muito alerta para não ser enredado por alguma artimanha ou chantagem daquele que o criara, e que bem conhecia os pontos mais frágeis de sua alma.

                - Boa noite, Meritíssimo – respondeu o artista, sua voz soando tão desprovida de emoções quanto se estivesse em um interrogatório no Palácio da Justiça. – A que devo sua visita?

                - Oras, Aaron, pare com isso, garoto. – Frollo deu de ombros e um longo silêncio se transcorreu, antes que falasse outra vez – Não é certo um pai e seu filho deixarem de se falar, especialmente quando o assunto é uma mulher. Desde Eva, o gênero feminino vem causando a discórdia e os malefícios entre os homens – e antes que Aaron protestasse – e antes que diga ser isso algo obra de meu fanatismo, veja o que dizem, então, os próprios gregos, aos quais tanto admira. Veja a lenda de Pandora e sua caixa, relembre o que diziam os filósofos sobre o modo como a tagarelice e as influências carnais femininas desviam o homem da razão e do pensamento, tornando-o bestializado e muito aquém de seu verdadeiro potencial.

                Aaron silenciou: de fato, os maiores filósofos nos quais se inspirara durante sua educação haviam sido ascetas, muitos deles celibatários por toda a vida, ou durante boa parte dela, e isso sem qualquer motivação religiosa. Contudo, ele não cria que a culpa fosse intrinsecamente do gênero feminino, e sim, da incapacidade humana em alimentar corpo e mente simultaneamente. Isso, porém, era apenas uma convicção pessoal, nunca corroborada por algum estudioso ou pensador.

                - Seu pequeno discurso acerca do quão perniciosas são as fêmeas já foi dito por alguns filósofos, tanto da Igreja quanto fora dela, senhor, e conheço bem seus dizeres.

                - Então sabe que é tolice afastar-se de mim por conta daquela cigana. – E antes que aquilo se tornasse outra briga – não quero discutir, filho. O que quero, do fundo de meu coração, é que você tente compreender todo o amor que lhe tenho, e volte a ser o homem correto que já foi. Quero que nossa rixa termine, e que possamos ser como antes.

                Aaron sentiu os joelhos quase vacilarem ante as palavras de seu preceptor: pois era verdade que sentia enorme falta de seu mestre, seu mentor, aquele que sempre parecia ter uma palavra acertada ou conselho sábio, mesmo quando Aaron não concordava. Pois até mesmo discordar de uma posição de seu padrinho era uma reação a alguma certeza dele; sem ele, sentia-se bastante perdido, para não dizer culpado. Honrar pai e mãe era um dos principais mandamentos, e não fora Claudius o pai que ele não tivera? Não fora o juiz seu pai e sua mãe, velando por ele, dando-lhe tudo o que precisava, cuidando para que seu deformado filho adotivo fruísse de cuidados médicos que lhe haviam permitido viver, educação à qual até mesmo nobres tinham pouco acesso, um ofício que o tornara respeitável, quando sua aparência não lhe teria reservado melhor destino do que ser uma besta apresentada em circos? Sim, Claudius fizera muito por ele... E Aaron não compreendia o motivo da pérfida traição de seu mentor, ao qual dedicara cada segundo de seus dias, desde a tenra infância. Pois se ele se esmerara para ser o melhor nos estudos, para aprender a manusear armas, não obstante os ombros disformes, para aprender o que podia acerca da Fé e se esmerar nos mais diverso campos de conhecimento, nunca fora senão para tornar seu mestre orgulhoso de si.

                - Padrinho, trocamos muitas palavras rudes, mas devo dizer que o motivo não foi a mulher que o senhor chama de feiticeira.

                - E qual teria sido, se não os venenos que ela derramou em seus ouvidos?

                - A traição do senhor, ao preparar a armadilha para que eu fosse exposto na berlinda. Senti-me traído, abandonado, e creio que dificilmente conseguiria confiar em sua pessoa como o fazia antes.

                - Entendo... – o juiz se serviu do vinho sobre a mesa, provando-o antes de prosseguir – talvez não tenha sido sábio de minha parte. Pensei que tal provação o faria ressentir-se da cigana... Bem, eu claramente subestimei seu poder de raciocínio lógico, e também os ardis das ciganas. – Aaron revirou os olhos, mas não discutiu. Esmeralda era um assunto que ele, para o próprio bem da moça, estava determinado a não reviver com seu mestre.

                - Pensou que eu não compreenderia que foi o senhor quem enviou alguém para alertar os guardas?

                - Pequenas falhas ocorrem nos melhores planos. De qualquer modo, reconheço meu erro... Ferir você foi... Uma traição abominável, e Nosso Senhor sabe o quanto já orei pedindo perdão por meus atos. Ainda assim, errei na intenção de salvá-lo, meu garoto. Errei por amá-lo demais, e preferir vê-lo sofrer na carne, neste mundo, do que na perdição do fogo infernal.

                Aaron sentiu reacender em si a centelha do medo do castigo divino, medo este que lhe fora incutido por toda uma vida, até tornar-se praticamente parte de si... E se Frollo estivesse certo? E se ele fosse, mesmo, um pecador? Não passava por sua mente que Esmeralda fosse uma bruxa, ou tivesse qualquer mal em si, mas e ele? Os sonhos que tinha com a jovem estavam longe de ser puros... Não! Não deixaria aquele medo irracional o tomar e destruir sua linha de raciocínio! Seus pecados diziam respeito apenas a ele, e a Deus. Não a Frollo.

                - Devo crer que está arrependido, padrinho?

                - Acha que eu estaria aqui, se não estivesse? Santa Maria é prova de que o orgulho é meu pecado mortal, e ainda estou aqui... Estou aqui para lhe pedir perdão, meu filho. Por ter errado. Por tê-lo deixado sofrer uma punição desmedida... Por ter castigado a vítima, em vez da feiticeira que o atormentava. – aquilo fez a expressão de Aaron se endurecer, e a tentação de perdoar seu mestre se tornar menos intensa. Como podia perdoar Frollo quando ele pretendia continuar a culpar Esmeralda pela rebeldia e independência do afilhado? Não! Enquanto Frollo não parasse de perseguir a cigana, não poderia haver reconciliação entre eles! E apenas para confirmar suas suspeitas, perguntou:

                - E quanto a Esmeralda?

                - A bruxa que o enfeitiçou?

                - A mulher que salvou minha vida. – corrigiu A Sombra, inflexível – vai caçá-la, ainda assim? Mesmo quando eu lhe digo que ela é apenas pureza e bondade?

                Frollo se levantou, irado à menção da cigana cuja simples menção do nome era suficiente para evocar a demoníaca imagem da mulher ondulando seu corpo naquele desditoso dia do Festival! Como Aaron podia não enxergar que aquela mulher era uma sereia vinda não das águas, mas do fogo do inferno para acender as mais impuras paixões e desejos mais infames?

                - Vejo que ela o tem em rédeas curtas, completamente dominado. – o juiz torceu a boca em nojo – pensei que poderia chama-lo à razão... Mas não haverá retorno para você, antes de eu me livrar dela, não é? Então, que seja. Eu farei isso, Aaron. Farei por nós dois.

                Aquelas palavras fizeram o outrora inquisidor avançar com firmeza contra seu mestre e, alheio a tudo o mais, segurá-lo pela frente das vestes e ciciar ameaçadoramente:

                - Não se atreva a ferir Esmeralda, juiz Frollo. Ela foi a única pessoa a me estender a mão quando todos os outros, inclusive o senhor, me haviam voltado as costas. Tenho para com essa mulher, acima de tudo, uma dívida de honra, e se fizer mal a ela, terá de o fazer a mim, primeiro.

                - Tire suas mãos de mim, Aaron – sibilou o juiz, o que fez o gigante soltá-lo, mas não sem antes rosnar:

                - Eu o amo, padrinho, mas minha dívida para com você foi quitada com cada segundo de irrestrita devoção. E a menos que deixe Esmeralda em paz, estaremos em lados opostos do tabuleiro, pois eu ficarei entre o senhor e ela, mesmo se o preço for a morte. Só fará mal a ela por sobre meu cadáver.

                - Acha que ela o ama, Quasímodo? – perguntou o sacerdote, fazendo o mais moço cerrar os dentes, já esperando pelo que viria – Arranque essa máscara e olhe para si mesmo, homem! Como alguma mulher poderia amá-lo ou deseja-lo?! Que mulher iria se entregar de livre vontade a um monstro como você? Apenas uma bruxa, que se deita com demônios, poderia suportar a visão de seu rosto sem se enojar!

                - Algumas pessoas enxergam mais do que o rosto de alguém, juiz. – Aaron fazia da frieza o seu escudo contra a dor emocional que o tomava – você já foi capaz disso, um dia... Antes de enlouquecer. – E se afastou – Eu o admirei, um dia, Claudius: você era um homem bom, sábio... Não consigo compreender como pode se afundar cada vez mais no fanatismo alguém com tanto conhecimento quanto você. Está enlouquecendo! A fé desprovida de razão, você mesmo o disse, é uma falsa ciência que corrompe a luz do conhecimento verdadeiro, este proveniente diretamente de Deus. Já se esqueceu disso? Suas próprias palavras agora já nada valem?!

                Frollo sentiu as palavras de seu pupilo reafirmarem aquilo que ele próprio já sabia, mas se recusava a aceitar: não era mais o mesmo homem que já fora... O ofício de juiz eclesiástico o mergulhara numa espiral de visão cada vez mais estreita e condicionada aos dogmas inflexíveis da fé, à qual se agarrava como a única coisa capaz de justificar as coisas que vira nos calabouços de Paris. Sim, ele se fanatizara ao longo de dez anos no cargo, e agora mergulhava não apenas no fanatismo, mas numa loucura atormentada que tinha como causa uma única criatura: Esmeralda. Mas admitir aquilo para si mesmo já era difícil... Para seu pupilo? Jamais o faria.

                - Questiona minhas ações, então, Quasímodo? – e deu um sorriso levemente cruel – Sabe que questionar a mim é questionar a Igreja!

                - A Igreja está podre, se o que está fazendo é o ofício da fé. Lança a culpa por seus próprios pecados sobre ombros inocentes, em vez de assumir a responsabilidade por suas ações e desejos impuros! – Aaron se agigantava diante de seu mestre, que se levantou e o enfrentou numa batalha de olhares fulminantes – Não permitirei que machuque a cigana. Não importa o que me custe, você não tocará nela!

                - Veremos, rapaz... Veremos. – o juiz tinha a expressão mais fria que Aaron já vira em seu rosto impassível e, virando as costas para o afilhado, desceu por onde viera, deixando um consternado Aaron sentado à mesa de madeira maciça, a cabeça enterrada nas mãos enquanto se sentia esmagado pelo peso de imensa culpa: por desrespeitar seu padrinho, por ter colocado Esmeralda em perigo com aquela conversa, por não ser capaz de oferecer real proteção à moça, por não conseguir mostrar a Frollo como estava errado acerca da jovem...

                - Meu Deus, ajude-me – sussurrou, em desespero, sem saber o que fazer. O mais sensato seria manter Esmeralda no Pátio dos Milagres, longe dele, de Frollo e de todo que lhe fariam mal... Mas algo lhe dizia que a cigana não aceitaria tal solução. Não porque fosse uma jovem tola, mas porque não permitiria que o medo a tornasse uma prisioneira de Frollo. Aquela mulher enfrentaria o juiz, mesmo se o preço fosse a morte... Ah, céus, o que faria? O que poderia, de fato, fazer?

 

*

 

                - Aaron? – chamou Esmeralda, esperando-o nas sombras de sua passagem oculta; onde ele estava? Teria se esquecido?

                Os receios da jovem se desfizeram, porém, quando viu uma lanterna bruxulear nas mãos de uma figura alta, as chamas fracas refletindo na máscara negra que ele usava. Um sorriso se espalhou no rosto da jovem, que deu alguns passos adiante e passou os braços ao redor de Aaron, sentindo-o enlaça-la pelos ombros em resposta. Ergueu o rosto na expectativa de um beijo, mas este não veio... O próprio abraço de seu homem era trêmulo e fraco, e logo se desfez... O que havia de errado?!

                - Aaron... O que houve? – perguntou ela, enlaçando as mãos no braço musculoso do gigante – está trêmulo! – e tocou sua fronte – está febril?

                - Não, Esmeralda, não – disse ele, segurando com delicadeza os pulsos magros e os afastando de si – estou saudável, não se preocupe.

                - Mas então... O que houve com você?! – e quando ele não respondeu – Aaron! Fale comigo!

                Sem saber que alternativa lhe restava, ele foi sincero com a cigana:

                - Frollo esteve aqui. Está obcecado por você, e decidiu crer que você lançou um feitiço sobre ele e... Sobre mim.

                - Não acredita nisso, não é?! – perguntou ela, incrédula.

                - Não, é claro que não! – ele segurou o rosto de Esmeralda nas mãos – não importa o que a Igreja diga, o que o Santo Ofício diga... Conhecer você me fez criar coragem para fazer o que eu sempre soube ser o certo: deixar o Santo Ofício. Ali não há nada de santidade, nem são aquelas atrocidades a vontade de Deus. É apenas um grupo corrupto de homens que oferece bodes expiatórios para serem sacrificados, a fim de acalmar a sede de sangue de um povo miserável. Agora eu entendo isso, Esmeralda, mas a Inquisição é um braço poderoso da Igreja... E com Frollo decidido a persegui-la... – ele suspirou – está em perigo! Volte para o Pátio dos Milagres, e não saia de lá! Não volte a entrar na cidade!

                Esmeralda olhou para o moço com ternura, e meneou a cabeça negativamente:

                - Aaron... Acha realmente que o desejo de Frollo me põe em maior perigo?

                - Você não conhece aquele homem como eu. Ele não desiste de suas metas, e está decidido a destruí-la. – Ele não entendia o sorriso compadecido da jovem; ela não compreendia o perigo?! – Não entende o risco que corre?

                - Sim, Aaron, eu compreendo. Compreendo desde que era uma menininha. – disse ela, serena – por acaso, o homem decidido a me perseguir e destruir é Frollo, seu mentor... Mas alguém como eu... Digamos apenas que era só questão de tempo até acontecer.

                Foi só ao ver a resignação e a calma na voz dela que Aaron deixou de lado a aflição e preocupação para analisar e compreender o que viviam: Esmeralda era mulher, cigana, pobre, bela e independente. Isso, por si só, era motivo para que cedo ou tarde olhares maldosos se voltassem para ela. E, pelo visto, a moça também tinha consciência do fato.

                - Entendeu, não é? – perguntou a jovem – Sua gente me odeia pelo que sou. Não precisam de um motivo para querer minha morte, e Frollo não será o último homem a tramar minha morte. – ela baixou os olhos, e naquele momento a alegria onipresente retrocedeu, deixando à mostra a tristeza no coração da cigana – meu povo já se acostumou com isso. E depois de ver tantos autos-de-fé... Apenas com muita sorte meu fim não será a forca ou, pior ainda, a fogueira.

                - Não diga isso, Esmeralda!

                - Tenho consciência do que sou, Aaron. Se não for presa e morta por feitiçaria ao ler mãos ou curar alguém, serei presa ao ferir um homem que tente me violentar, acusada de roubo, assassinato ou que passar pela cabeça de um juiz, seja eu culpada ou não. – ela deu de ombros – não permitirei que as autoridades me restrinjam ao Pátio. Vencem-me em tudo o mais, na vida... Não me tirarão o direito de ir e vir aonde bem entendo.

                - Mesmo se o preço for sua vida?

                - O que significa uma vida não vivida, senão a eterna chance perdida de tudo o que poderia ter sido, e não foi? – devolveu ela. Aaron sorriu e acariciou o rosto de sua cigana, fascinado: como uma mulher sem qualquer educação, criada nas ruas e na miséria, podia ter mente tão afiada e ser capaz de colocações tão... Tão filosóficas? Ela sorriu ante o encanto de Aaron, e prosseguiu – Aaron, pensei muito sobre nós dois, nesses dias...

                - Não fui o único, então. – ele pensara muito, naqueles dias. Pensara no que vinha acontecendo entre Esmeralda e ele, desde que pusera seus olho pela primeira vez na jovem. Fora isso que o fizera, enfim, conseguir enxergar a hipocrisia do trabalho que havia feito para Frollo por muitos anos... O modo como homens mesquinhos e hipócritas denominavam-se porta-vozes de Deus, e faziam da fé aquilo que bem entendiam, manipulando as pessoas através daquele falso argumento... Sim, Esmeralda fora a peça que faltara para ele enxergar muitas mentiras que lhe haviam sido contadas. Ela desconstruíra verdades que supunha absolutas de um modo que já não tinha certeza de coisa alguma. À luz das lanternas, a pele morena de Esmeralda brilhava, e seus olhos faiscavam de modo quase sobrenatural; não uma bruxa, certamente, mas tampouco parecia humana. Poderia muito bem ser uma musa, uma fada das histórias antigas... – Esmeralda, você me fez ter coragem de aceitar fatos dos quais eu só me atrevia a desconfiar... Mudou o modo como enxergo o próprio mundo... Eu não sei que destino pode estar reservado a nós dois, mas sei que estou disposto a dar até a última gota de meu sangue para descobrir.

                - Fico feliz que assim seja, morro volá (meu amor). – sussurrou ela, segurando a mão do artista – porque também eu estou. – e mordeu os lábios com ar maroto – venha comigo! – e disparou pelo túnel, praticamente arrastando-o consigo. Aaron ria e a seguia, completamente encantado pela moça; de repente ele era outra vez um adolescente cheio de dúvidas, expectativas e, acima de tudo, encanto por todas as coisas novas que poderia descobrir, naqueles caminhos tortuosos e inesperados que agora se aventurava a seguir. Ah, Esmeralda, quanto mais pretendia enlouquecer sua vida? Até onde pretendia tirar-lhe o chão e fazê-lo trilhar um caminho de estrelas, revirando seu mundo? E por que sentia tanto prazer em seguir aqueles caminhos? Bem... Se fosse um feitiço, ele certamente não queria ser liberto.

 

*

 

                - Esmeralda, onde estamos? – perguntou Aaron, olhando ao redor: tratavam-se das periferias de Paris, com suas casas apinhadas e estreitas, habitadas por até dez famílias em cada unidade. O mau-cheiro não era diferente do que havia no centro da cidade, mas certamente o lugar era mais claustrofóbico e menos iluminado...

                - Como lhe disse, Aaron, pensei muito sobre nós dois, nos últimos dias. Eu conheci em parte o seu mundo, sua vida... Mas você pouco ou nada sabe sobre mim. E se vamos mesmo dar uma chance ao destino para mostrar o que nos reservou, então quero que conheça meu mundo – ele ia dizer algo, mas ela o cortou – é claro que leva-lo ao Pátio seria condená-lo à morte, mas as periferias fazem parte do meu dia-a-dia, talvez até mais do que as portas da cidade. Tenho aqui amigos, pessoas das quais cuido e que me são muito queridas... Dê-me a chance de lhe mostrar como vivo, e o que sou.

                A razão dizia ao homem que devia ir embora, que não fazia sentido expor-se desarmado a cercanias propensas a ladrões, assassinos e outros criminosos... Mas como dizer não à oportunidade que mais desejara, naqueles dias? A chance de conhecer melhor o enigma que era Esmeralda, e saber mais a seu respeito... Que se danassem a prudência e a segurança!

                - Será um prazer, minha querida cigana! – sem resistir ao sorriso dela, Aaron a puxou para si e, com profundo carinho, tomou os lábios corados e macios, saboreando o gosto de mel daquele beijo maravilhoso! Quando a soltou, a adolescente riu e abaixou-se, pegando algo no chão e o arremessando sobre seu acompanhante. – o que é isso?

                - Uma capa. Chama menos a atenção do que vestes brancas, por aqui. Vista-a, e vamos logo! Só tenho até o amanhecer!

                Com um frio no estômago característico de toda nova experiência, o irmão leigo de Notre-Dame vestiu a capa que lhe fora dada pela moça, ignorando o riso dela ao ver que o objeto só o cobria até as canelas. Uma alegria desconhecida o tomava: era a primeira vez que fazia algo simplesmente porque desejava, e não para cumprir os desígnios de Frollo, ou por temer um castigo divino. Podia haver sensação mais libertadora do que esta?

                - Vamos, monsieur? – perguntou a cigana, estendendo a mão a Aaron. Ignorando os últimos resquícios de sensatez que gritavam “não faça isso”, ele tomou nos seus os dedos morenos e finos, e respondeu:

                - Mostre o caminho, mademoiselle. 


Notas Finais


E então? Espero que não tenham se desapontado com o capítulo, que foi feito num surto de inspiração; por favor, avisem-me de eventuais erros, ok? E o próximo trará Esmeralda mostrando a Aaron um pouco de seu mundo!
Ah, morro volá, a propósito, é romani, a língua cigana oficial. Vou usar termos romani para dar mais característica às personagens ciganas. Espero que fique bom!
Deixem reviews, ok?
kisses


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