Versalhes - 1789
Os gritos revoltados e agressivos adentravam meus ouvidos e ficavam cada vez mais próximos e altos, mas por incrível que pareça, eu estava calma e sem medo algum do que aconteceria daquele momento em diante, mesmo que eu já soubesse meu destino.
—Ainda não entendo o que faz aqui... — Comento para a garota a minha frente que delicadamente passa o corpete por meu corpo. — Você tem que fugir agora, ou...
—Basta, Cecília. — Responde despreocupadamente. — Eu prometi a ele que ficaria com você até o fim, é o que vou fazer. — E sorriu lindamente.
—Seu irmão não gostaria que morresse por mim. — Faço uma negação, mas ela apenas me ignora e continua a me vestir. — Nem sei por que visto tudo isso, eles irão...
—Não importa, duquesa. — Mesmo firme, posso notar quando sua voz vacila e suas mãos tremulam levemente, obviamente estava com medo, era só uma garota. — Está linda.
Por um segundo, considero a ideia de fugir, mesmo que não fosse realmente isso que eu quisesse e desejasse em meu coração. No entanto, sei que nossas chances seriam mínimas já que com esses vestidos grandes e pesados e a multidão cercando a casa, seria impossível.
As batidas na porta aumentam gradativamente e sei que o piano e o armário não irão segurá-la por muito tempo, mas tudo que posso fazer é rezar, pedir desculpas pelas coisas que fiz ou que não fiz e torcer para que tenham piedade por sermos duas mulheres.
Mas éramos nobres, não tínhamos chances.
Pego as mãos da garota a minha frente e vejo como seus olhos estão marejados de medo ou tristeza (não sei afirmar com certeza, mas com certeza são sentimentos ruins, os mesmos que os meus) e começo um pai nosso desesperado e angustiado, mesmo estando calma, estou temendo pela dor que sentirei e que ela também sentirá.
Notre Père qui es aux cieux,que ton nom soit sanctifié,que ton règne vienne,que ta volonté soit faite sur la terre comme au ciel.Donne-nous aujourd’hui notre pain de ce jour.Pardonne-nous nos offenses,comme nous pardonnons aussi à ceux qui nous ont offensés.Et ne nous soumets pas à la tentation,mais délivre-nous du Mal.
De olhos fechados, minhas lembranças vão para o jantar que culminou na situação em que estamos agora, a última vez que o vi, em uma última e trágica refeição...
Versalhes continuava linda, mesmo que eu tivesse partido dali já há alguns meses e assim que a charrete estacionou, e meu marido me ajudou a descer, eu notei que havia algo errado, mas como a boa dama que sou, não me meto nos assuntos dos homens e assim que Johnny permite e desengancha nossos braços, me dirijo as outras mulheres para conversar.
—Não vá muito longe querida. — Meu cônjuge diz quando faço menção a ele. — Qualquer coisa procure a mim ou Jungwoo, sim? — Assinto olhando o outro.
Jungwoo era filho de estrangeiros e fora criado junto ao meu marido, mas como um criado. Era dono de olhos puxados e negros, lindos e brilhantes, além de um sorriso de dentes salientes, extremamente doce, que geralmente distribuía a todos por aí e eu, ah... Eu era apaixonada por ele, e sabia que ele também era por mim, no entanto estive prometida a Johnny e nada pudemos fazer.
Com muito esforço e suor, conquistou o título de barão para si e para a irmã de criação, mas não foi o suficiente para que meus pais mudassem de ideia e eu casei-me com o duque, seu então, melhor amigo.
—Vocês deviam tratar de serem mais discretos. — Minha dama de companhia diz, ela sabia sobre nosso caso, já que além de amiga, era irmã dele. — Todos estão a notar.
Nem percebi que estávamos a nos encarar profundamente.
Então, tudo aconteceu rápido demais. Eu pouco sabia sobre a revolta popular que estava acontecendo no país, afinal, política não era meu forte e sempre que Johnny estava a conversar sobre o assunto com alguém, eu logo me desinteressava, mas quando as pessoas invadiram o palácio munidos de paus e pedras, percebi que corríamos perigo.
—Vá para a casa de campo e não ouse sair de lá. — Meu marido disse enquanto me colocava na carruagem às pressas, eu podia não amar Johnny, mas ele era especial para mim.
—Você não vem comigo? — Questionei aos gritos, mas ele apenas me empurrou mais.
—Duquesa, fuja enquanto é tempo. — Jungwoo me disse olhando no fundo dos meus olhos, ele não precisou dizer nada, mas eu sabia que não ia vê-lo mais, assim que desembainhou a espada. — Catarina, proteja Cecília com sua vida se for necessário, agora vão.
O estrondo alto me fez acordar dos pensamentos, eles estavam prestes a entrar.
A garota mais nova me olhou já aos prantos e rapidamente, eu a acolhi entre meus braços. Era o fim para nós duas, estávamos encurraladas, não tinha para onde correr.
—Perdoe-me, alteza. — Escuto seu sussurro baixo entre os soluços, desculpando-se com seu amor que a essa altura, já devia estar morto. — Por não poder encontrar-te.
—Catarina, escute-me pela última vez. — Digo alto chamando a atenção dela. — O amor é o sentimento que só sentimos uma vez na vida, e se o amor de vocês for real como o meu e de seu irmão... Hoje, em algum lugar dentro de você. — Tenho poucos segundos. — Ele que te amou muito, não, que ainda te ama... Dirá para você que valeu a pena ter estado nessa Terra e que a vida continua, e a morte é só uma viagem. — Engulo em seco. — Vamos nos encontrar.
Não sei se ela acredita em mim, mas eu tenho fé no que digo. Que em algum lugar, seja além ou na vida, Jungwoo estará me esperando. É o que peço a Deus momentos antes da dor estonteante me atingir, mas é rápido, frio e sangrento, muito sangrento.
E as últimas palavras que ouço são claras como o dia.
—LIBERTÉ, IGUALITÉ, FRATERNITÉ! — E apago.
***
Versalhes - 2020
—Helena, está tudo bem? — Volto a mim rapidamente balançando a cabeça e retiro as mãos daquele espelho grande e velho. — Está parada aí a cinco minutos...
—Não é nada, pirralha. — Respondo minha irmã mais nova, ainda com a visão borrada, e por alguns segundos juro que a vi utilizando um vestido rosa. — Só uma vertigem.
—A viagem de avião foi muito longa, deve ter te feito mal. — A mais nova diz preocupada, enquanto deixa as malas em um canto do quarto. — Posso pedir que tragam algo para você comer... — Nego levemente com a cabeça.
—Estamos na França, não vamos ficar dentro de um quarto de hotel. — Afirmo, já abrindo meu guia para ver onde iriamos primeiro.
Versalhes continua linda...
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