Ganhando velocidade se afastaram do velho casarão. Deixando para trás outras casas abandonadas, por donos já mortos. E aqueles que viviam, não queriam mais voltar. Em seus terrenos quietos, mordedores caminhavam sem rumo, estavam claramente perdidos, sem saber o que procurar. Carl sem muita pretensão os olhava, enquanto seu rosto ainda colado nas costas de Charlotte, admiravam àqueles mórbidos ambulantes. Seus olhos começaram a lacrimejar.
Ele sentia o calor de suas costas atravessarem a jaqueta jeans que ela usava. Dali ele não queria sair, agarrado àquele pequeno corpo, permaneceu imóvel, sentindo a fina cintura de Charlotte, e em alguns momentos, seu quadril. Carl teve uma ereção, e Charlotte não pôde notar, pois a mochila que ela carregava, separava.
Pararam minutos mais tarde, numa pequena casa de dois andares. Carl entrou primeiro; com o fuzil na mão, ameaçou, qualquer indivíduo inesperado. Mas lá não tinha ninguém, há não ser pelo cadáver no banheiro de baixo; aparentava ser um idoso, seu corpo escuro exibia a clara deterioração, e seus braços rijos, seguravam firmemente um revólver Taurus. Em seu crânio um buraco, e a sua volta, moscas enormes. Ele estava com as pequenas costas na parede branca do banheiro, e seu sangue já seco pintava o piso, piso que só havia no banheiro. Os dois sofreram um pouco para tirar de lá o pobre defunto, mas pelos fundos da casa, o deixaram em um pequeno porão organizado, e lançaram sobre ele, um grande lençol branco, o esquecendo por agora.
Na sala apertada, conseguiram espaço para a motocicleta, entre a mesa de centro, e a tv de tubos de raios catódicos. O chão era coberto por um carpete vinho, e sobre ele, um pequeno sofá de dois lugares, brigava com uma poltrona solitária, para se ter algum espaço. A lareira ainda tinha os resíduos de madeira queimada, que por muito tempo não fora trocado. A mesa de centro estava enfeitada com garfos, colheres, um cinzeiro, e alguns enlatados abertos.
- Acho que ele não aguentou mais, por isso... Bum! - Carl tentou explicar para Charlotte, sem parecer muito violento.
Charlotte correu para à cozinha, desviando da mesa quadrada, abriu os armários; havia ovos, enlatados, biscoitos em pacotes novos, leite, água, e até mesmo carne enlatada, a carne Charlotte deixaria para Carl.
Minutos mais tarde estavam os dois ali na cozinha. Carl esperava sentado como a criança que era, e Charlotte estava de pé, sobre o fogão sujo, ela fritava ovos mexidos, e colocava em um prato branco de porcelana. O estômago vazio de Carl, roncava, e parecia conversar com o estômago vazio de Charlotte. A manhã logo passava, e as coisas pareciam dar certo. Sentados, os dois comeram, conversaram pouco, e de vez em quando olhavam para os olhos um do outro, exibindo uma certa felicidade. Carl estava realmente feliz, mas escondia seus sentimentos naqueles olhos verdes. Charlotte comia depressa, parecia que a qualquer momento, teriam que correr para sobreviver outra vez, devia ser esse um medo constante que eles sentiam.
- Parece que as coisas vão melhorar agora. - disse Carl tomando um gole do café quente em uma pequena xícara (Carl estava com muita vontade de tomar café, e Charlotte, encontrou um pacote pela metade) - conseguimos sair de lá, e ainda encontramos algo só nosso.
- Verdade, eu só espero que dure por um bom tempo. - a voz de Charlotte era melancólica. Sentada, com uma das pernas sobre a cadeira, tomava o café doce, enquanto seus olhos vislumbravam o nada, na direção da janela fechada. Ela amarrou os cabelos do jeito que deu, e tirou sua jaqueta, a colocando no encosto da cadeira - E como veio sobrevivendo até chegar aqui? É... - queria saber seu nome.
- Ah, sou Carl. - a aparência de um garoto, mas a voz já engrossada demonstrava sua prematura maturidade. - Acabei se separando de meu pai e de seu grupo. Foi uma fuga necessária da prisão... não me lembro o nome. - ele tomou mais um gole do café. - mas como os planos de meu pai era chegar até a Geórgia, pretendo fazer o mesmo, e encontrá-lo.
Houve um silêncio entre eles, que só foi quebrado por um espirro de Charlotte, os dois riram. Seu rosto era tão lindo, que Carl passaria o dia todo só o admirando. Havia um brilho naqueles olhos cor de mel.
- E sua família, o que aconteceu? - Carl perguntou. Ele passava o dedo numa fenda na mesa de madeira, ele não notava, mas fazia.
- Ah... É meio difícil falar disso. Mas posso tentar. - Charlotte o olhou nos olhos.
- Ah me desculpe, não quero ser incoveniente. - Carl estava envergonhado.
- Deixa eu tentar... - ela insistiu.
- Charlotte! Charlotte! - Henry entrou correndo pela porta do velho casarão. Quase levou um tombo passando pelo pequeno tapete da sala - Charlotte! Filha!
- O que foi pai!? - o olhar inocente de sua filha, estava claramente assustado. Ela desceu as escadas numa correria desengonçada, e quase caiu no último degrau.
- Filha, filha! - Henry lhe abraçou como se fosse uma despedida. - Aonde está sua mãe e sua irmã? - ele estava nervoso e desesperado.
- Não sei, não sei. As duas foram para a cidade, já faz algumas horas. - Charlotte chorava, sem nem mesmo saber o por quê.
- Está tudo um caos filha. Alguns... doentes estão atacando as pessoas nas ruas, eram tantos filha. - Henry ainda abraçava sua filha. Estava sem os óculos, o rosto arranhado sangrava, e sua camisa branca estava suja e rasgada, em seu braço, mordidas profundas, e ele sangrava muito.
- Pai, está sangrando. - Charlotte se afastou dele. - vou pegar o kit de primeiros socorros! - Ela correu até o banheiro, deixando seu pai ali parado no meio da sala.
Henry estava com medo. Estava preocupado. Sua mulher e sua outra filha não haviam voltado, e um caos jamais visto havia se iniciado. Ele pensava mil coisas, e mais mil para se fazer. Olhando àquelas mordidas profundas, notava como a voracidade humana era terrível. Henry repetiu em sua própria cabeça, as pessoas ''loucas'' que tomavam as ruas, mordendo e arrancando pedaços de outras pessoas, como se fossem alimento.
- Ah meu Deus. - com as mãos sobre o rosto, se pôs a chorar.
- Toma pai. - Charlotte apareceu com o kit ainda embalado nas mãos.
- Só um minuto filha, não estou muito bem! - ele se agachou, as mãos foram ao estômago, e ele vomitou, expeliu tudo o que tinha em seu estômago, foi sem controle e isso ele não pôde evitar. Correu ao banheiro, e o trancou logo em seguida. Deixando Charlotte ali parada, com o kit nas mãos, esperando que alguém a confortasse nesse momento de dor. Já que seu pai estava doente e fora de si, e sua mãe e sua irmã, não estavam ali. As duas nunca mais voltaram, e Henry, nunca mais saiu daquele banheiro.
- Sinto muito Charlotte. Só de pensar que meu pai possa estar morto, meu coração se aperta em tristeza. - Carl disse, com o coração partido, o resto do café já esfriara enquanto ele ouvia a trágica história.
Charlotte secava as lágrimas, com a manga da camisa, e soluçava sem perceber.
- Ao passar das horas, eu pude escutar seus gemidos... estranhei muito, chorei do lado de fora muitas vezes e ele não saiu para me confortar. - ela fechou os olhos, e chorou sobre a mesa de madeira, deixando suas lágrimas caírem nas rachaduras expostas.
Carl não soube muito o que fazer, mas se levantou calmamente, como se sentisse sua dor. Ele se aproximou e à abraçou como se fosse um amigo tímido. Tirou o chapéu que cobria sua cabeça, e o pôs na mesa. Lentamente, apoiou seu rosto nos cabelos finos de Charlotte, e inutilmente tentou confortá-la, já que seu choro não cessava. Os dois ficaram ali parados, enquanto a manhã se ia. Não havia mais ninguém por perto, e a solidão parecia eterna para esses dois.
No calor de uma pequena lareira, os dois estavam. Ela era tímida mas aquecia o minúsculo cômodo. Os estalidos soavam, preenchendo o vazio na noite, porque o sol já se fora, e a escuridão assumiu o controle. Os dois estavam sentados diante dela, a claridade iluminava seus rostos cansados, e criava sombras assustadoras atrás deles. Estavam próximos um do outro. Deram um jeito para conseguir espaço, dividiram com a motocicleta e com as coisas que eles mesmos levavam.
Carl estava enrolado nas pernas com um cobertor velho, encontrado no quarto de cima. Charlotte estava ao seu lado, e às vezes buscava os olhos tristes de Carl, mas eles não desgrudavam da lareira. Ela se perguntava por quê?
Carl podia sentir o calor do corpo de Charlotte, pois estavam muito próximos, ele não disse nada, e nem diria, porque tinha uma ereção, e tentava disfarçá-la. Eles haviam feito um silêncio mútuo desde de quando Charlotte se pôs a chorar na cozinha. Mas o vazio da casa, criava uma atmosfera pesada; uma casa vazia e solitária no meio de um vasto pasto, aonde um apocalipse zumbi afetava talvez o país inteiro, e um velho se matou no banheiro. Uma péssima atmosfera, e um ótimo momento para fantasias.
- Desculpe pelo aperto. - Carl disse sem olhar os olhos dela. Manteve sua atenção na lareira.
- Não tem problema, pelo menos não passaremos frio. - ela falava suavemente, e colocando as mãos entre as pernas tentou se aquecer melhor. Eles estavam de costas para um velho sofá, assim, poupariam as costas.
- Mas se quiser deitar no sofá, fique à vontade. Vou ficar aqui neste carpete, é mais fácil de agir se precisar! - Carl buscou seus olhos. Eles brilhavam pouco sobre a luz da lareira.
- Estou bem aqui sim. - ela olhava fixamente para Carl, que ficava mais e mais sem graça. - estou tão cansada Carl.
- Eu também. Mas também, estamos sem dormir direito já faz dias.
- Não digo deste cansaço, mas sim o emocional, psíquico. - Seus longos cabelos estavam soltos, mas para trás. - Parece que isso nunca terá um fim. Que a humanidade está fadada a viver esse pesadelo real, todos os dias. - Charlotte desviou o olhar.
- Eu sei como é. Penso assim também. - Carl estava sem o chapéu de seu pai. O deixara bem ao lado, em cima da motocicleta. O fuzil estava encostado na roda dianteira, e a trava estava em posição de fogo. O rifle de Charlotte descansava bem ao lado dela, mas dividia espaço entre as mochilas.
- Espero que haja alguma solução, para viver o resto de nossas vidas. - seu cabelo longo caía nos olhos. - Já pensei em tirar minha própria vida várias vezes. - Charlotte o olhou com pena nos olhos. Um jovem garoto, dizer isso desta forma, era cruel. - e ainda pretendo fazer, se no fim disso tudo, não haver mais nenhuma solução.
O silêncio voltou naquela sala.
- Mas por agora, não pense nisso, e sim em dormir e descansar. - a voz suave de Charlotte, acolheu os sentimentos confusos de Carl. E ela o beijou na bochecha - procure dormir Carl.
Carl ficou sem reação por um momento, tentava apenas raciocinar o que aconteceu. Foi apenas um beijo na bochecha, mas um sinal de carinho, que ele não sentia há um bom tempo. Ela se ajeitou e com uma das fronhas, acomodou sua cabeça, de costas pra ele tentou dormir. Quem sabe em seus sonhos, pudesse ser feliz. Carl ainda ficou a pensar, sentindo o cheiro de óleo que exalava da moto, se misturando ao cheiro de lenha queimada. Já não podia sentir o odor putrefato do banheiro fechado, e nem do mofo na casa inteira. Dormiria também, mas antes; beijou a bochecha macia de Charlotte:
- Boa noite! - disse ao seu ouvido. Ele se virou e não pôde notar, como Charlotte havia ficado ruborizada.
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