1. Spirit Fanfics >
  2. Catnip >
  3. My heart has grown like bubblegum

História Catnip - My heart has grown like bubblegum


Escrita por: hwanwoong

Notas do Autor


CARALHO, JENNY, ONZE MIL PALAVRAS? sim. assim que trabalhamos aqui. desculpa. informações adicionais: na falta de categoria, botei em "original" que era o que todo mundo tava botando? e mudei romanização de alguns personagens no meio da fic então se tiverem pessoas com nomes diferentes, sejam compreensivos lol a fic é não betada também mas acho que isso dá pra perceber lendo a coisa toda

pra quem não sabe: gunmin é um dos trainees da rbw que o yongguk é meio próximo de; insoo é trainee independente (tava no team 2 de Boy In Luv e no falecido Pop team, foi eliminado no top 60), eunki (inventou o waacking, tava no 10 out of 10 do woojin e em Right Round, foi eliminado no top 60) é de uma label flop que eu não lembro o nome e eles + Kenta tão no poliamor mais lindo do mundo. O resto todo ficou acima do top 35 e eu tô presumindo que se cês conhecem kencall conhecem eles também!
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS: à theresa (@167cloud no twitter, vai ler as fics dela que são muito melhores que qualquer coisa que eu for escrever) por ter me aturado chorando desesperadamente nas DMs dela E por ter feito esse xodó de capa <3 e à nalub pelo apoio de sempre. miga, se você estiver lendo isso, eu te amo e desculpa por não ter terminado isso mais cedo procê ser a primeira a ver o desastre :( caralho eu falo muito meu deus vai ler a fic vai (ou não) (se eu fosse você não lia)

Capítulo 1 - My heart has grown like bubblegum


Yongguk tinha plena consciência de que estava sendo irracional.

 

Começando pelo horário: duas e meia da manhã, compreensível caso fosse final de semana e ele estivesse jogando uma partida de Overwatch, porque todo mundo sabe o quão melhor é jogar de madrugada, sem os sons urbanos irritantes, os amigos barulhentos de Shihyun que vira e mexe visitavam o apartamento e as preocupações do dia a dia. Porém, naquela terça-feira fria, nenhuma dessas condições se aplicavam. Seu colega de quarto estava dormindo no sofá, seu livro de Estatística aberto no chão, cabelo bagunçado, Tolbee casualmente deitado na cabeça dele.

 

E claro, quartas costumam vir depois das terças, e ele tinha aula às quartas. Especificamente Microbiologia, matéria que ele estava perto de reprovar pela segunda vez. Logo, racionalmente falando, ele realmente não devia estar acordado.

 

No entanto, o motivo que o mantinha de pé era de extrema urgência. Mais urgente que suas notas, sua vida acadêmica ou o quão inchado seu rosto ficaria pela manhã.

 

Rcy pula no colo de Yongguk, posicionando-se confortavelmente em cima das teclas de seu notebook. Ele fez carinho na cabeça dela enquanto franzia a testa, preocupado. Eles — ele e Shihyun, o colega de quarto mencionado — acharam a gata já faziam alguns meses perdida na rua, machucada, magra e perambulando pelo lixo. Yongguk sabia que considerando o tamanho do seu apartamento, levar mais um animal pra casa não era uma boa ideia, então ele costumava passar longe de eventos de adoção ou qualquer coisa que o faça querer criar mais algum bichinho, especialmente porque ele sabia que não haveria resistência por parte de Shihyun.

 

(Ao contrário de Yongguk, o mais novo era suscetível não só à manipulação animal mas também à humana.)

 

Mas aquilo era diferente. Rcy seguiu os dois universitários com determinação admirável, parando na porta do prédio sem cerimônias e dirigindo um olhar desafiador (e ao mesmo tempo levemente melancólico, como se tivesse certeza que seria largada na porta) aos dois. A pretensão inicial era só dar um banho nela — a pobrezinha fedia a mofo, chorume e peixe podre —, alimentar e entregá-la ao centro de adoção mais próximo, porém, eles se renderam aos encantos da gata em menos de uma hora e resolveram ficar com ela. Claro, tiveram que abrir mão de mais uma parte de seu tempo livre e trabalhar horas extras, contudo, valia a pena.

 

Yongguk amava aquela gata de verdade e ele não era conhecido por amar muitas coisas. Quando Rcy começou a ter crises de vômito durante a noite, ele entrou num estado de inquietação comparável somente a quando Tolbee fugiu de casa por um dia ou quando ele soube que Shihyun desmaiou no meio do campus (não que ele fosse admitir a segunda parte em voz alta).

 

Ele começava a sentir o remorso e a culpa martelando na sua cabeça, grudados nos cantos mais obscuros do seu cérebro. Yongguk não tem o costume de levar seus gatos ao veterinário por dois motivos: primeiro, ele evita contato social o máximo possível, então marcar uma consulta e ter que falar com o médico era simplesmente muito trabalhoso e problemático. Segundo, ele conseguia cuidar muito bem de seus felinos com a ajuda de vídeos pela internet e do seu curso, obrigado - ele fazia Veterinária, pelo amor de Deus, as horas intermináveis que ele passava trancado na faculdade tinham que servir pra alguma coisa.

 

Se ele não fosse tão teimoso, talvez Rcy não estivesse doente agora. Talvez, ao invés do olhar desanimado e caído que estava recebendo dela, Yongguk teria sua gata enérgica subindo em seus ombros. Com um suspiro, ele a tirou de cima de seu computador e a colocou em cima da mesa de centro na sala. Ela mal se mexeu.

 

Ok, talvez fosse o medo influenciando sua capacidade de julgamento, mas Yongguk levava a saúde dos seus gatos muito a sério. Ele não podia esperar até o dia seguinte: e se ela ficasse pior pela madrugada? E se ela sufocasse no próprio vômito? E se…

 

Ele respirou fundo e tentou se acalmar, lembrando-se que surtar nessa situação seria pouco efetivo e nada útil na recuperação de Rcy. Ele estava acordado com ela agora e era isso que importava.

 

Sua antiga analista dizia que ele projetava o impacto do seu distanciamento de pessoas em animais e ele deliberadamente ignorou a constatação. Agora, navegando no Google a procura de uma clínica veterinária 24 horas, ele conseguia admitir que havia um pouco de verdade nisso. Era mais fácil se preocupar com Rcy, que não faria nada com esse afeto a não ser torná-lo recíproco e se aproveitar dele para ter alguém que limpe sua caixa de areia mais vezes. Era mais fácil dar banho em Tolbee e cuidar das feridas dele toda vez que se machucava do que ver o sorrisinho satisfeito de Shihyun no momento em que ele viu Yongguk do lado da sua cama, no hospital.

 

(Não é o fato de gostar de pessoas dar a elas poder sobre você, é o que elas podem fazer com esse poder. Vinha muito mais fácil pra ele confiar em gatos: eles eram muito mais fáceis de lidar, no geral.)

 

Ele sorriu quando achou o endereço de um veterinário próximo, deixou um bilhete explicando seu paradeiro ao seu colega de quarto e acomodou a gata em seus braços. Não havia pessoas circulando nas ruas, nem mesmo os bêbados que viviam no bar ao lado de seu prédio, e o táxi que pegou não dirigiu-lhe uma palavra a não ser o comprimento de praxe e o anúncio de quanto custou a viagem. Yongguk realmente devia sair de madrugada mais vezes.

 

Na sala de espera, ele prendeu a risada ao ver que o recepcionista tirava um cochilo. O que deveriam ser cabelos dourados e penteados com cuidado durante o dia embolavam-se num ninho de cachos e o que Yongguk julgava ser um marca texto laranja preso neles. Para sua surpresa, ele encontrou outra pessoa aguardando uma consulta, um homem de baixa estatura coberto por três casacos e um cachecol grosso, segurando um cachorro maior que ele pela coleira. Rcy encolheu-se um pouco nos braços de Yongguk — suas experiências na rua fizeram com que ela desenvolvesse algo entre medo e repulsa com relação a cães.

 

— Ele tá assim já faz um tempo — o outro homem assinalou, soando entediado — Não vai acordar sozinho.

 

Yongguk assentiu pra mostrar que tinha escutado. Em condições normais, ele esperaria o recepcionista acordar porque ele sabia bem o quão preciosa é uma soneca nessas horas, mas já são três e vinte da manhã e Rcy não parava de ter calafrios no colo dele. Situações drásticas exigem medidas drásticas.

 

— Você podia saber falar, né — ele sussurrou para a gata que, se de fato soubesse falar, zombaria de seu dono até o último dos seus dias.

 

O homem, provavelmente notando o dilema de Yongguk, levantou da sua cadeira e deu dois tapas nas costas do recepcionista com a menor delicadeza possível. — Donghan, acorda.

 

Levantando-se num sobressalto, o recepcionista — Donghan, aparentemente — piscou três vezes para assimilar onde estava e limpou a garganta antes de sorrir amarelo. — Ahn… Posso ajudar?

 

O homem atrás deles soltou uma gargalhada pouco discreta. Yongguk sentiu-se ainda mais desconfortável, se é que isso fosse possível. — Minha gata tá passando mal, vomitando, etc. É meio urgente. Ainda tem algum médico aqui?

 

— Claro, tem sim — Donghan soava sonolento, apesar de manter o tom polido — Vamos preencher sua ficha?

 

Yongguk concordou com a cabeça, sem graça. Ele odiava essa parte, só não mais que odiaria conversar com o médico de fato e admitir que nunca levou sua gata antes para um check-up geral porque lidar com pessoas o desgastava. Por sorte, Donghan conseguiu ser o mais sucinto possível nas perguntas, não mais feliz por estar ali que o próprio Yongguk. O nome do médico de plantão era Takada Kenta e, de acordo com o recepcionista, ele tinha uma leve preferência por gatos. Yongguk ponderou se compartilhar essa informação seria anti-ético, porém, ele não poderia se importar menos. Que tipo de pessoa ele seria se confiasse a saúde de Rcy a alguém que prefere cachorros?

 

Ele pegou sua ficha e sentou-se a três cadeiras de distância do homem com o cachorro. Parte porque Rcy ia acabar arrumando problemas com o outro animal, parte porque Yongguk estava evitando jogar conversa fora.

 

Isso não impediu o estranho de puxar assunto. O nome dele era Sanggyun, ele trabalhava numa firma de contabilidade mas a real paixão dele era o grupo de hip-hop do qual fazia parte, onde ele participava de batalhas de rap e competições com pessoas de outros bairros. Ele conhecia Donghan por amigos em comum e geralmente passava na clínica pra fazer companhia ao mais novo antes de pegar em seu trabalho no turno da manhã. Yongguk digeriu a chuva de informações educadamente, com os sim, não, claro, tudo bem, sério? e faz sentido de praxe, e contentou-se com dizer que era um universitário e tinha mais um gato. Donghan também fazia comentários ocasionais sobre quaisquer assuntos que Sanggyun abordasse e Yongguk se questionou, distraído, se era fácil assim pra extrovertidos.

 

O lugar era bem aconchegante, porém, com cadeiras acolchoadas e uma mesa com revistas sobre animais espalhadas sobre elas. Também havia brinquedos espalhados pelo chão e um tapete no qual Rcy de imediato resolveu descansar, dispensando a posição de Yongguk como travesseiro humano dela. Ela estava no meio de um embate acalorado contra um peixinho de borracha quando a última paciente saiu da sala: uma velhinha carregando três poodles em suas coleiras, perguntando quem era Kim Yongguk com uma voz sonolenta. Ele checou o horário — 3:15, engoliu um xingamento —, tirou Rcy da cadeira debaixo da qual ela estava escondida dos cachorrinhos e se despediu de Sanggyun e Donghan. Eles não tinham sido más companhias.

 

O veterinário foi uma surpresa.

 

Começando pelo fato de ele mal parecer mais velho que Yongguk, com sua estatura de médio para baixo, seu cabelo tingido de castanho claro e a sua camisa com estampa de algo que parecia CatDog, e terminando no fato do seu sorriso ser muito adorável e muito animado para alguém acordado às três da manhã.

 

— Boa noite! — ele cumprimentou — Bom dia? Não sei. Perdi a noção do tempo.

 

Isso tirou um meio sorriso de Yongguk. Ele esperava o sotaque — o nome do veterinário já denunciava que ele definitivamente não era coreano —, mas não esperava que fosse acentuado assim. — Boa noite — ele corrigiu — Ainda tá de madrugada.

 

Ele não conseguia achar em si mesmo a capacidade de se referir à esse cara que parecia ter doze anos como doutor. Por sorte, o veterinário não pareceu se importar. — Ah. Obrigado. Bom, quem é essa coisinha fofa?

 

Rcy pareceu sentir que estavam falando dela e pulou dos braços de Yongguk para a maca como se quisesse enfatizar o fato que era ela a paciente, o que o surpreendeu. Por mais amável e agitada que a gata fosse, ela costumava ser muito cautelosa quanto a pessoas novas. Shihyun dizia que havia uma possibilidade daquilo ter vindo do trauma de ter vivido nas ruas. Talvez fosse parte da personalidade também, porém, o ponto é  que Yongguk não conseguiu disfarçar o choque quando Kenta esticou a mão para fazer carinho no topo da cabeça de Rcy e ela ronronou.

 

O veterinário levantou uma sobrancelha para ele, esperando uma resposta.

 

Yongguk só notou que estava de boca aberta quando tornou a fechá-la. Que vergonha. — Ahn, é Rcy.

 

— E você é Yongguk, certo? — Kenta parecia estar se divertindo com a surpresa do outro — Kim Yongguk?

 

Ele concordou com a cabeça, ainda estupefato.

 

Kenta riu. Não era bem uma risada completa, mas um quarto de risada. Uma risada-soluço. — Então…? O que houve com ela?

 

Yongguk olha para ele e para a gata na vã esperança de que Shihyun se materializasse e começasse a tagarelar ininterruptamente como de costume. Ele tinha esquecido o quanto odiava falar com pessoas e explicar coisas, ainda mais quando o dito-cujo era um médico que conhecia palavras difíceis e tinha um consultório. A ideia de ter um lugar onde ele pudesse cuidar de bichinhos soava tão surreal que ver tudo aquilo com seus próprios olhos o deixava atordoado. Yongguk ficava com a maior parte das funções domésticas e dos primeiros-socorros, mas não tinha experiência em idas ao veterinário. Ele não fazia ideia de como agir.

 

— Tá tudo bem? — Kenta perguntou, a cabeça inclinada de leve.

 

Rcy, de novo com seu sexto sentido felino, desvencilhou-se dos cuidados do veterinário e pulou nos braços de Yongguk outra vez. Ele engoliu em seco. — Uhum, hã, é... Ela começou a passar mal? Hoje cedo?

 

— Você tá me perguntando? — Kenta provocou, o tom descontraído, suave — Pode dar detalhes?

 

— Ela tava vomitando muito, tendo calafrios — ele conseguiu dizer, apesar dos pesares — Eu fiquei preocupado e vim pra cá.

 

Kenta pôs a mão no queixo. — É você quem cuida dela normalmente?

 

— Sim — Yongguk se apressa em responder — É a minha gata. Eu cuido dela, mas meu colega de quarto que leva ela no médico porque eu não sou muito bom com… — ele tenta fazer gestos vagos para simbolizar pessoas, interações, conversas — Isso.

 

Kenta pareceu compreender a mensagem. — Entendo. Vamos focar na Rcy por ora, hm?

 

Yongguk fez que sim, aliviado. Após as perguntas costumeiras, o veterinário receitou um remédio específico para a gata, uma dieta e pediu uma série de exames só por precaução. A princípio, Rcy aparentava ter uma verminose: definitivamente ruim, porém, comum e tratável. Curável. Durante todo o processo, Kenta mostrou-se perfeitamente capaz e profissional, um abismo imenso entre o seu comportamento entusiasmado e seu profissionalismo enquanto trabalhava. Ele tropeçou em algumas palavras, mas Yongguk acha que deve ser mais por ser estrangeiro do que por falta de domínio na sua área e, por mais exigente e protetor que fosse com a saúde dos seus animais de estimação, estava satisfeito.

 

— Ah, Yongguk, mais uma coisa — Kenta falou ao fim da consulta e Rcy ergueu seu olhar atento para ele de imediato — Não tem nada a ver com a situação da sua gatinha, mas eu estava pensando e…

 

Yongguk piscou, aguardando a continuação da frase. Começava a sentir os impactos das suas noites de sono perdidas, as pálpebras cada vez mais pesadas, então não o culpe por não prestar tanta atenção às palavras do outro quanto deveria.

 

— Eu- Eu pareço intimidador pra você? — Kenta aparentava estar num impasse sobre o quão inapropriada a pergunta tinha sido, recusando-se a olhar nos olhos do dono de sua nova paciente.

 

Yongguk fez que não ferozmente. O quão patético ele pareceria se dissesse que aquele estrangeiro amigável com camisa de desenho animado e aparência juvenil o intimidava? — Não, não, eu só… Não falo muito bem.

 

Isso era ser gentil. Se ele tivesse feito uma conta no Tinder — como seus amigos tanto insistiam —, sua biografia seria Kim Yongguk, 22 anos, gamer, futuro médico veterinário e desastre social iminente.

 

— Eu acho que você fala bem — Kenta disse e, por incrível que pareça, as palavras não soaram condescendentes saindo da boca dele, como acontecia na maioria dos casos. Na verdade, seus olhos quase transmitiam sinceridade.

 

Yongguk, contudo, permaneceu cético e deixou que sua expressão facial falasse por si.

 

Kenta riu. Não uma risada-soluço, uma risada de verdade, fácil e solta. — É sério! Não importa quanto tempo eu passe em algum lugar, sempre confundo algumas palavras. Quando eu ligo pros meus pais, esqueço várias palavras em japonês. Na faculdade, eu tinha um amigo que fazia resumo de palestras pra mim porque eu simplesmente não conseguia acompanhar. Sei o que é não ser bom com palavras.

 

Yongguk franziu o cenho. Tinha certeza que ele e Kenta estavam falando sobre inaptidões diferentes, no entanto, apreciava o esforço. — Meu problema não é exatamente esse, eu acho. Eu acho pedir comida, marcar consultas e bater papo muito difícil. Meu colega de quarto diz que eu sou um introvertido antissocial.

 

Ele faz aspas no ar para representar, o que Kenta pareceu achar super engraçado.  — Ah, ok. Faz sentido — ele conseguiu verbalizar entre risadinhas  — Bom, se marcar consultas é difícil pra você, pode me mandar uma mensagem — ele pegou um cartão que tem seu nome e número escrito em letras pretas num design minimalista — Deve ser mais fácil.

 

Dessa vez, Yongguk tentou não ficar boquiaberto. — Isso é permitido?

 

Kenta deu de ombros.  — É meu número profissional, não vejo por que não seria. Se você estiver desconfortável…

 

— Não, não — Yongguk negou com veemência  — É provavelmente melhor assim pra mim.

 

— Bom saber  — Kenta sorriu. Parando pra reparar, seus dentes eram meio tortos, desalinhados, mas havia algo sobre o jeito que eles pareciam brilhar em harmonia com o resto do rosto dele, Yongguk sentia-se estupidamente envergonhado olhando assim — Manda mensagem quando os exames estiverem prontos?

 

Yongguk assentiu. Aquilo o beneficiava de várias maneiras: não gostava de depender das pessoas, mesmo que sejam tão bem intencionadas quanto Shihyun, e agora tinha um veterinário pouco intimidador de prontidão na sua lista de contatos. Já era alguma coisa.

 

Claro, a realidade tornou a atingí-lo como um trem em alta velocidade quando ele saiu da clínica e notou que já eram quatro da manhã. Só teve tempo de pegar um ônibus até seu apartamento, deixar Rcy lá, se arrumar (com Shihyun ainda desmaiado no sofá, porém, Yongguk estava atrasado demais para tentar acordar o mais novo de seu coma), comprar o remédio dela e pegar outro ônibus até a faculdade. Ele sentou na última fileira da aula de Microbiologia, miraculosamente antes da professora entrar.

 

Daniel acenou pra ele e, muito exausto para retornar o gesto com a mesma animação, balançou a própria mão na frente do rosto, o que fez o loiro explodir numa gargalhada silenciosa.

 

Yongguk ficou feliz que seu cansaço causou alegria em alguém, mesmo sendo em uma pessoa que originalmente ri da cara de todo mundo pelas coisas mais ridículas. Gunmin chegou logo depois com dois copos de café preto nas mãos e deu um para Yongguk, como de costume. Pra alguém que vivia reclamando sobre ser um universitário pobre, ele não deveria gastar em dois cafés ao invés de um todos os dias.

 

— Quanto foi? — Yongguk perguntou, mesmo sabendo que a resposta não viria em valor monetário.

 

— O motivo da sua cara de morte hoje — Gunmin previsivelmente responde — Sério, a cada dia que passa você parece mais um guaxinim. É assustador.

 

Yongguk revirou os olhos e abriu seu livro assim que a professora chegou, rosto já contorcido numa careta azeda. Ele imaginava com quem ela deveria morar para acordar com tamanha cara de desprezo todos os dias, sem falta. — Tive uma emergência com a Rcy tarde da noite. Não  dormi.

 

— Pega o café, então — Gunmin pôs o copo de plástico na frente dele — Não sei você, mas eu não preciso de uma dose extra de cafeína.

 

Sem o que responder, Yongguk bebeu seu café e esperou que fizesse efeito o suficiente para que ele conseguisse focar nas palavras da professora dessa vez.

 

Seu círculo de amizades era limitado. Além de Gunmin, que tornou-se próximo dele porque tinha ido a um acampamento de verão com Shihyun, havia Youngmin, um veterano de 23 anos tão alto quanto gentil e amigável: acredite, ele era bem alto. Haknyeon foi calouro de Yongguk e Daniel, andando com eles mesmo depois que o trote havia acabado.

 

Yongguk estava bem assim, não sabia se conseguiria aguentar ser muito popular ou cheio de amigos, mal conseguia inventar desculpas o suficiente para faltar aos eventos das pessoas próximas dele agora, que dirá se esse número aumentasse.

 

Você pode dizer que a vida dele tinha um ponto de equilíbrio e, por mais que as coisas oscilem, o quadro geral nunca muda. É sempre Yongguk, as três pessoas que ele se permite importar-se com, e seus gatos.

 

A ordem do universo estava estabelecida.


 

(Ou não.)


 

Numa aula de campo, Yongguk e seus colegas de classe visitaram um abrigo de animais. Todos os trabalhadores dali eram voluntários, dentre eles inclusos mais de vinte universitários e dez médicos, as doações recebidas sendo diretamente gastas com comida, bebida, remédios e infraestrutura. Mesmo com essas conquistas e com o estado limpo e conservado do lugar, não parecia ser o suficiente. A quantidade de bichinhos doentes e desabrigados superava a de bichinhos saudáveis e prestes a ser adotado num número alarmante demais para ser ignorado. Enquanto andavam pelo celeiro, tudo o que se falava era sobre ajudarem o lugar de alguma forma: a turma dele ficou conhecida no curso por ser meio segregada, cada um com seu grupinho e não demonstrando muito esforço para interagir com pessoas fora dele, mas a maioria ali tinha um amor genuíno pelos animais. Era bonito de ver.

 

Um chihuahua com uma perna amputada gostou de Hyunbin, a dupla de Yongguk para o trabalho, e eles tiveram que correr para o banheiro porque o mais alto não queria chorar na frente dos cachorrinhos. Yongguk sentiu a garganta apertar, mas racionalmente sugeriu que eles tentassem ser voluntários no semestre que vem ou ao menos fizessem alguma doação. Hyunbin pareceu acalmar-se, apesar de continuar insatisfeito.

 

Quando o guia chegou à seção dos gatos, Daniel literalmente saiu correndo na frente de todo mundo, puxando sua dupla pela mão, e Yongguk sentiu-se tentado a fazer o mesmo. A cena era inegavelmente engraçada, um cara alto com ombros três vezes o tamanho de um crânio adulto ajoelhado na frente do cercado onde os felinos ficavam, choramingando e miando.

 

Hyunbin o puxou pela camisa, sorrindo. — Yongguk, ele gostou de você!

 

Era um gato adulto, preto de olhos dourados, esfregando a patinha nos sapatos de Yongguk pela abertura do cercado. Ele teve que se controlar tanto pra não soltar gritinhos afetados quando o guia abriu o cercado e o gato veio em sua direção, se enroscando na perna dele. Shihyun tinha que ver isso.

 

— Pergunta se a gente pode tirar foto — Yongguk mandou, cutucando Hyunbin.

 

— Pode tirar foto? — ele gritou para o guia e recebeu um sinal de joinha como resposta — Pode. Vai mandar pra quem?

 

— Pro Shihyun — Yongguk quase cantarolou, tirando o celular do bolso — Ele vive dizendo que os bichos gostam mais dele, o que é uma baita mentira, então a gente fica competindo.

 

Hyunbin revirou os olhos, uma dose de afeto no gesto. — Estranhos.

 

Depois de satisfeito com a filmagem, ele encaminhou o arquivo para o contato de Shihyun (salvo sob o nome colega de quarto). Ou pelo menos ele achou que enviou: antes que pudesse cancelar, o vídeo era a primeira mensagem que mandou para o número de Kenta (salvo sob o nome dr. takada, também em minúsculo, porque ele tinha uma estética a manter).

 

— Puta merda — Yongguk xingou sem cerimônias e recebeu um olhar questionador de Hyunbin — Mandei pra pessoa errada sem querer.

 

— E daí? — ele segurou um filhotinho malhado contra a sua bochecha, ignorando o quão desconfortável o animal estava — Quem não gosta de receber vídeos com gatinhos? Só fala que foi sem querer e segue em frente.

 

Yongguk assentiu. Era um bom ponto, ele só precisava esclarecer o engano e tentar mandar o vídeo para a pessoa certa dessa vez. Sem problemas, sem desespero, sem pânico.


 

[9:55 17/08] colega de quarto: aff :( q fofo

[9:56 17/08] colega de quarto: mas aposto q se eu tivesse ido ele ia gostar mais d mim

[9:56 17/08] colega de quarto: qual o nome dele?

 

Yongguk riu para o telefone enquanto eles visitavam a seção das aves, Gunmin prestes a chorar com uma coruja em seu braço, Hyunbin gritando pra um papagaio. Tinha um pássaro especialmente bonito no meio de todo o caos, os tons róseos e alaranjados de suas penas lembrando o pôr-do-sol. Yongguk encaminhou a foto que tirou para Shihyun.

 

[9:57 17/08] kim yongguk: olha que graça!!

[9:58 17/08] kim yongguk: esqueci de perguntar :(

[9:58 17/08] kim yongguk: será que seria uma boa ideia ser voluntário aqui?

[9:59 17/08] colega de quarto: eu acho!!!

[10:00 17/08] colega de quarto: na pior das hipóteses, eu te ajudo com os gatos

[10:00 17/08] colega de quarto: e nossa q lindo EU QUERO

 

Quando ele estava prestes a responder, uma outra notificação apareceu na tela. O sorriso de Yongguk ficou mais tenso.

 

[8:30 17/08] kim yongguk: meu deus desculpa isso era pro meu amigo

[8:31 17/08] kim yongguk: aqui é o yongguk… você não deve se lembrar ok eu fui na clínica às 3 da manhã porque minha gata tava passando mal e você me deu seu número porque eu disse que marcar consultas por telefone era difícil pra mim e enfim

[8:31 17/08] kim yongguk: desculpa!!!

 

Com o rosto contorcido de vergonha, ele releu suas mensagens de desculpa que poderiam ser consideradas as piores e menos eloquentes mensagens de desculpas da história das mensagens de desculpas. O recado foi dado, pelo menos.

 

[10:01 17/08] dr. takada: Tudo bem!! Eu lembro de você!!

[10:01 17/08] dr. takada: E esse gato me é familiar? Você tá no abrigo de Daejeon?

 

Yongguk arregalou os olhos. Não é possível.

 

[10:01 17/08] kim yongguk: sim, por que?

[10:02 17/08] dr. takada: Eu sou voluntário aí!!

[10:02 17/08] dr. takada: Você vai adotar??

 

Ele enviou um sticker com os olhinhos brilhando após aquela mensagem. Yongguk sorriu.

 

[10:03 17/08] kim yongguk: eu queria muito, mas não posso :(

[10:03 17/08] kim yongguk: tô visitando pela faculdade

[10:03 17/08] kim yongguk: pensei em me inscrever pra ser voluntário…

[10:04 17/08] dr. takada: Eu recomendo muito!! É um lugar ótimo! Você faz faculdade de que?

 

— Presta atenção, porra — Hyunbin cutucou Yongguk abaixo de suas costelas antes que pudesse responder a mensagem — O guia tá olhando feio pra gente por culpa sua.

 

O moreno guardou o celular na mochila, contrariado. — Prestar atenção em você gritando pro papagaio como se ele fosse responder? Não, obrigado.

 

— Ele tá respondendo, otário — Hyunbin, no ápice da maturidade, mostra a língua e volta a berrar cumprimentos para a pobre ave, que os repete com energia.

 

Sem saber como encarar essa cena, Yongguk pôs as mãos nos bolsos do casaco e voltou a observar os passarinhos bonitos.

 

Ele lembrou que não havia respondido Kenta já pela noite, beirando às 22 horas, no meio de uma partida de Overwatch, porque um jogador japonês começou a xingá-lo usando kanji. Tolbee estava deitado no travesseiro de Shihyun enquanto o mesmo arrumava seu álbum de fotos, colando um adesivo de coração numa foto que ele havia revelado do dia em que encontraram Rcy nas ruas.


 

Por incrível que pareça, não foi um daqueles momentos nos quais você se dizia que tinha de responder alguém, esquecia novamente e só tornava a lembrar três dias depois. Yongguk se deu um tapinha mental nas costas por estar melhorando na manutenção das suas relações sociais: ele até perguntou Hyunbin se ele havia chegado bem em casa antes de abrir a janela de Kenta.

 

[22:35 17/08] kim yongguk: faço veterinária

[22:35 17/08] kim yongguk: eu e meu colega de classe assinamos o formulário p/ voluntário heheh

[22:35 17/08] kim yongguk: ele é meio legal, meio barulhento mas legal

[22:36 17/08] dr. takada: Meio barulhento é bom, deixa a gente acordado ^^

[22:36 17/08] dr. takada: E por que você não me disse que fazia veterinária? ):

[22:36 17/08] dr. takada: Quer trabalhar com algum animal específico?

 

Yongguk soltou uma risadinha afetada. Shihyun ergueu uma sobrancelha para o mais velho, que optou por ignorá-lo prontamente.

 

[22:37 17/08] kim yongguk: adivinha

[22:37 17/08] kim yongguk: sobre meu curso… você não perguntou

[22:38 17/08] dr. takada: Gatos!!!

[22:38 17/08] dr. takada: Caraca, você é grosso assim com todo mundo?

 

A risada de Yongguk ficou ainda mais afetada, porque não era concebível o quão fofo era o jeito que Kenta formulava frases. Não podia ser real.

 

[22:39 17/08] dr. takada: Enfim, se for gatos mesmo, eu posso te botar pra ficar naquela área comigo

[22:40 17/08] kim yongguk: obrigado ;;

[22:41 17/08] kim yongguk: e você ia me achar idiota por ter medo de gente e estar estudando pra lidar com gente

[22:42 17/08] dr. takada: Eu definitivamente não ia te achar idiota! Até porque você tá lidando com bicho e não gente

[22:42 17/08] dr. takada: É diferente

[22:42 17/08] dr. takada: Além do mais, a gente faz faculdade pra aprender, Yongguk

 

— Tá falando com quem? — Shihyun quis saber, fechando o álbum de fotos e espiando sobre os ombros de Yongguk — Ih, quem é esse? Deixa eu ver a foto.

 

Uma das coisas que aprendera ao longo dos últimos anos morando com o mais novo foi que resistência era inútil. Quando Shihyun queria ser intrometido, ele insistia nisso como se fosse uma missão pessoal. — Fofo. Deus do céu, você mandou o vídeo pra ele sem querer? Que mico.

 

Yongguk manteve sua expressão lívida. — Você poderia me dar meu celular?

 

— Não até você falar quem é o bonitinho — Shihyun segurou o aparelho contra o peito.

 

— Não é ninguém — Yongguk praticamente rosnou, nem um pouco disposto a elaborar o porquê não tinha contado a ninguém sobre a existência de Kenta. Talvez fosse por ele viver superconsciente do fato de seus amigos serem sempre amigos de seus amigos e começar a falar com alguém fora desse círculo o orgulhava. Talvez fosse por ele querer manter qualquer possibilidade além de um relacionamento conhecido-conhecido com Kenta longe da sua mente e Shihyun, ao contrário, se alegraria em trazer outras possibilidades à tona.

 

Yongguk não conseguia pôr o dedo no motivo exato de estar tão na defensiva, porém, estava. — Ele é… — ele começou, porque não conseguia mais afastar o mais novo sem se sentir mal no fim do dia — Quando eu fui na clínica com a Rcy, ele que tava de plantão. Em algum ponto eu deixei escapar que odiava marcar consulta por ligação então ele me mandou o número dele e me disse pra mandar mensagem quando precisasse de alguma coisa. Só isso.

 

Shihyun sorriu: o brilho dos seus olhos só poderia ser descrito como travesso e, nessas horas, ele não aparentava ter mais de oito anos. — E ele trabalha no abrigo, hm?

 

— Nem começa — Yongguk rosnou, soando menos firme do que desejava.


 

O resto da semana fluiu mais ou menos assim: Shihyun levou Rcy pra fazer alguns dos exames marcados (o remédio tinha funcionado, mas eles queriam ter certeza que não havia mais nada errado), o caos acadêmico tomou conta dos seus arredores ao ponto de Gunmin esquecer de comprar o costumeiro café preto três vezes e os calouros de seu colega de quarto deixarem de encher a cara na sala do apartamento deles para estudar na biblioteca, Yongguk foi chamado para ser voluntário dois dias após ter mandado o formulário e ficou conversando com Kenta por mensagem durante todos esses dias.

 

Yongguk não esperava por esse último item, de verdade. O problema dele não era só ser introvertido, o problema dele era genuinamente não querer falar com pessoas na maior parte do tempo e, por isso, suas conversas em redes sociais acabavam sendo secas e sem ânimo. Era Kenta quem puxava assunto na maior parte do tempo, mandando fotos dos seus bichinhos favoritos do abrigo e falando sobre coisas casuais do seu dia. Yongguk respondia com o maior número de detalhes que podia, mas isso não fazia a menor diferença porque Kenta não se importava. Ele não ligava se Yongguk demorasse horas pra responder, não se importava em escrever um texto gigante e receber apenas uns ㅋㅋㅋ como resposta.

 

Quando eles se falavam, Yongguk não se sentia cobrado e isso lhe dava uma amálgama de sensações boas que não sentia já fazia algum tempo. Era apenas natural, então, que ele estivesse feliz de verdade chegando ao abrigo com Hyunbin.

 

Claro que sua alegria não passou despercebida.

 

— Qual é a sua, Yongguk? — o mais alto questionou, os braços cruzados — Por que tá com essa cara de quem ganhou na mega sena?

 

Yongguk piscou vagarosamente, fingindo confusão. — Eu gosto de animais, Hyunbin, foi por isso que eu escolhi esse curso.

 

Hyunbin não engoliu a atuação do outro e fez questão de parecer ainda mais desconfiado. — Você não fica assim na aula.

 

— Eu gosto mais de animais do que de pessoas falando sobre animais — Yongguk respondeu casualmente. Ele não via problema em admitir que, além de cuidar de gatinhos, encontrar um amigo em potencial o animava se não fosse Hyunbin, tão romântico quanto indiscreto.

 

Eles acabaram cuidando de coisas diferentes para o primeiro dia, o mais alto se dirigindo à parte do celeiro dedicada aos cachorros e Yongguk, à dos gatos. Um guia mostrou-o onde ficavam as rações, os remédios e quaisquer outras ferramentas que precisasse usar. Alguns dos felinos tinham que seguir dietas específicas e tomar alguns medicamentos num determinado horário, no entanto, nada de sobrenatural foi apresentado a ele. Escondeu-se no banheiro para checar as redes sociais: mesmo sendo trabalho voluntário, não queria parecer preguiçoso.

 

[13:17 24/08] colega de quarto: CHEGOU?

[14:32 24/08] kim yongguk: s

[14:32 24/08] kim yongguk: provavelmente volto 18hrs, nao sei, nao esquece de limpar a caixa de areia do tolbee!!

 

O mais novo deveria estar estudando ou saindo com seus amigos a essa hora, então Yongguk não esperou uma resposta imediata e saiu do cubículo onde estava escondido.

 

Só pra trombar em Kenta no meio do caminho.

 

Não foi nem um esbarrão, ele praticamente atingiu o peito do mais velho com a cabeça igual um touro seguindo o pano vermelho. Ele sorriu amarelo, sem graça até a unha do pé. — Ahn, oi.

 

Kenta sorriu de volta, mas não foi amarelo. Foi vermelho, azul, verde, roxo e laranja também: como se um arco-íris nascesse sob a cabeça dele. — Yongguk! Eu tava te procurando!

 

— Cheguei tem pouco tempo… Desculpa por ter te amassado, eu não tava olhando — ele coçou a nuca, embaraçado.

 

Kenta deu de ombros. — Menos desculpas, mais movimento — com a maior naturalidade do mundo, ele segurou Yongguk pela mão e puxou-o pelo corredor — A gente tem muito caixa de areia pra limpar.

 

Ele conseguia fazer com que passar o dia catando cocô de gato soasse como o melhor programa para uma segunda à tarde.

 

Algumas pessoas têm o dom.

 

(Kenta estalou a língua no meio do caminho, os dedos fechando-se em torno do pulso de Yongguk. — Você emagreceu desde a última vez que a gente se viu?

 

— Eu esqueço de comer às vezes — o mais novo murmura, olhando pro próprio tênis. Se ele estava sem graça por estar sendo observado com tanta atenção, nunca admitiria.

 

— Minhas mãos são pequenas, cê sabe, as pessoas me dizem isso o tempo todo — Kenta inclinou a cabeça de leve, juntando as sobrancelhas em confusão, o polegar queimando contra a pele do moreno — Mas elas fecham no seu pulso, olha. Até sobra.

 

Yongguk assentiu, engoliu em seco, esperou que tivesse passado despercebido.

 

Kenta soltou a mão do mais novo quase que deliberadamente devagar. — Vou começar a te mandar mensagem te lembrando de comer, então. Se seus amigos da faculdade não se importarem, a gente pode almoçar junto alguns dias também.

 

Hyunbin definitivamente iria se importar, porém, Yongguk decidiu que não dava a mínima.)


 

Yongguk saiu do abrigo ainda mais feliz que entrou.

 

Feliz demais pra ser normal. Feliz demais pra se convencer que era apenas auto satisfação, que tamanho bom humor não significava nada e que mesmo há quatro dias sem ter uma noite completa de sono, ele se sentia leve só por puro orgulho de fazer o que estava fazendo. Então, ao invés da estratégia clássica negar-até-que-não-exista, ele decidiu simplesmente não pensar nisso. Foi bom. Ele se divertiu, aprendeu muita coisa e decorou o nome da maioria dos gatinhos. Se alguém perguntasse, era isso que ele ia dizer.

 

(No topo da lista de coisas nas quais Yongguk não iria pensar estava o fato dele ter passado o dia inteiro seguindo Kenta, sendo apresentado aos voluntários e esquecendo o nome da maioria, impressionado com como o mais velho conhecia todo mundo, até quem cuidava dos outros animais ou da administração. As pessoas pareciam gostar dele, também, sempre o cumprimentando de forma calorosa — um abraço, um soquinho, um aperto de mão amigável. Yongguk, por sua vez, falou cerca de três frases para cada um no total, o que o desapontou já que Kenta fazia tanta questão que ele se enturmasse.

 

Mas quando Yongguk se desculpou por isso enquanto trocavam os potes de ração dos gatos, ele disse que não se importava.

 

Yongguk, apesar de sua péssima memória, lembrava-se do esquadrão de Kenta dentro do abrigo: Um deles era Insoo, um cara legal, com um senso de humor incrível, fazia Biologia ali perto e olhava pra Yongguk como se soubesse de um de seus segredos mais profundos ou como se fossem amigos há 10 anos. O outro era Eunki, amigável, sábio demais para a sua idade, ligeiramente mais reservado — não tímido, mas não um extrovertido gritante — e definitivamente mais ligado em contato físico, na maior parte do tempo debruçado nos ombros de Kenta enquanto contava uma história sobre algum pobre coitado ficando pra trás na sua aula de dança. Os três tinham um grupo no Kakao chamado EunKenSoo e a sinergia entre eles era tão irreal que Yongguk sentiu-se zonzo nos primeiros cinco minutos da conversa e foi dar banho nos cachorros com Hyunbin ao invés de continuar ali.

 

Ele não achava que conseguiria ter um relacionamento daqueles nem nos seus delírios mais profundos, porém, ali estava Kenta, cultivando-no e ao mesmo tempo olhando pra Yongguk como se ele estivesse carregando o Sol nos braços. Jorrando afeição para todas as pessoas disponíveis como se fosse grátis.

 

Quanto mais Yongguk parava pra refletir, mais percebia que não deveria refletir. Seu cérebro estava bem no lugar onde estava, obrigado.)

 

Tornou-se ainda mais fácil não pensar nisso no ponto de ônibus, Hyunbin insistindo que casaria com um dos voluntários e Daniel — ele também tinha se voluntariado para ajudar no abrigo, previsivelmente ficando na ala dos gatos junto de Yongguk — gargalhando na cara dele.

 

— Para de rir, eu nunca falei tão sério na minha vida! — Hyunbin reclamou, um bico inversamente proporcional à sua idade e altura brotando em seu rosto — Ele tem o rosto mais angelical e o sorriso mais fofo que eu já vi na vida e a gente vai se casar e adotar dois gatos siberianos.

 

— Cara — Daniel tentou começar, a barriga doendo de tanto gargalhar — Você conhece ele faz tipo, quatro horas. Ainda por cima derrubou ração velha na cabeça dele.

 

Yongguk não teve como prender a risada com isso.

 

Hyunbin, por outro lado, estava à beira das lágrimas, o que tornava a situação ainda mais hilária. — Foi sem querer! E ele riu pra mim e disse que tava tudo bem. E que eu tomei conta dos cachorrinhos bem… — ele aumentou o bico quando notou o sorriso estampado no rosto de Daniel — Ah, cala a boca, você ficou encarando o médico bonitinho amigo dele também!

 

— Você tem como provar isso? — o loiro perguntou, esforçando-se para manter o rosto impassível.

 

Hyunbin pigarreou. — Ele abaixou pra pegar os brinquedos que os cachorrinhos receberam nas doações e você ficou olhando pra bunda dele?

 

Daniel riu ainda mais, mas suas bochechas jaziam tingidas de um tom intrigante de rosa. — Você ainda não tem provas.

 

Por sorte, o ônibus deles chegou antes que pudessem prosseguir naquela linha de pensamento, no entanto, ainda conseguia ouvir Hyunbin resmungando sobre a quantidade de pessoas chamadas Kim Jonghyun no Facebook e Daniel dormindo no ombro dele. Yongguk sentou-se numa cadeira separada, observando os prédios e árvores passarem por ele com um comichão estranho no peito.

 

Foi um dia bom.


 

Já de pijama, embrulhado com três cobertas diferentes, ele mudou o nome de contato de Kenta para kenta, apenas. Eles eram conhecidos ao ponto de se referirem ao outro pelo primeiro nome e kenta do abrigo era desnecessariamente longo.

 

Quando Shihyun apontou que colega de quarto era ainda mais desnecessariamente longo, Yongguk jogou um de seus travesseiros na cabeça dele. Não tinha se referido a ele em nenhum momento e sua opinião não era bem-vinda.

 

Foi um dia bom. Ele deveria focar naquilo.



 

[02:45 27/08] kenta: Tá acordado?

 

Yongguk fechou o notebook sem muita cerimônia quando viu a mensagem brilhando em sua tela. Ele estava finalizando uma apresentação em PowerPoint para um seminário que teria que apresentar dali a menos de seis horas, mas já tinha se conformado com o fracasso iminente: metade do grupo desapareceu e a outra metade não sabia o suficiente para salvá-los.

 

[02:46 28/08] kim yongguk: não deveria estar mas tô

[02:46 28/08] kim yongguk: pq?

[02:48 28/08] kenta: Tédio :(

[02:48 28/08] kenta: E eu tava com saudade

[02:49 28/08] kenta: Posso ligar?

[02:50 28/08] kim yongguk: beleza

 

Yongguk não se orgulhava em dizer que tinha ficado ridiculamente corado até o momento que o telefone tocou. Por sorte, Shihyun estava focado em terminar um artigo e não fez nenhum comentário espertinho a respeito.

 

Ele só foi atender após o quarto bipe. — Alô?

 

— Yongguk! — Kenta exclamou, o sotaque enrolando suas palavras mais que o normal — Eu tô sentindo sua falta, sabia?

 

— Hm, ok. Você bebeu? — Yongguk perguntou, com cautela. Não ousaria admitir que também estava com um pouco de saudades porque mal faziam quatro dias desde que Kenta foi ao abrigo pela última vez e, racionalmente, não tinha passado muito tempo. Não tempo o suficiente pro som da voz dele fazer algo no estômago do mais novo apertar e revirar.

 

— Não! Eu tô trabalhando — Kenta fungou, fingindo estar ofendido — Bêbado de sono, talvez. Essa expressão faz sentido em coreano? Tô bêbado de tanto sono.

 

Yongguk sorriu com tanta força que suas bochechas doeram. — Eu entendi da primeira vez. Aconteceu alguma coisa?

 

— Não, só tá chato. Eu odeio pegar esse turno — Kenta resmungou, o que acima de tudo soava adorável, e ficou em silêncio por alguns segundos — Se não fosse esse turno eu não teria te conhecido, né, então não é todo ruim mas no geral... No geral, é pessimo.

 

Yongguk não sabia explicar o suor na palma da sua mão ou a amálgama de sensações quentinhas brotando em seu peito e explodindo como bombas de fumaça. Não era a primeira vez que falavam no telefone, porém, a noção de um Kenta sonolento debruçado sobre a própria mesa enquanto dizia que sentia sua falta era desconcertante.

 

— Ei, você não tem aula amanhã? — ele quebrou o silêncio.

 

— Não — Yongguk mentiu. Se admitisse que tinha não só aula como um seminário que valia um quarto da sua nota, ele teria que desligar. Não queria desligar.

 

— O que você tava fazendo antes de eu te ligar?

 

— Jogando.

 

Kenta riu. — Daniel me mandou mensagem falando que vocês iam chegar mais tarde por causa do seminário.

 

Yongguk engasgou no ar. Shihyun finalmente notou seu colega de quarto vermelho e quase sufocando com a própria saliva com um leve erguer de sobrancelhas.

 

Porra, Daniel.

 

— Nós somos de grupos diferentes — Yongguk tentou, só por tentar. Vai que.

 

— Aham, sei — Kenta disse como quem prende uma gargalhada; a voz suave demais, doce demais — Vou desligar, tá? Vai dormir. Boa sorte.

 

Não. — Ok, obrigado. Boa noite.

 

Yongguk desligou antes que o outro respondesse e abriu o notebook novamente. Focar na sua apresentação era a melhor decisão que podia tomar no momento, ter uma noite de sono completa já estava fora de cogitação e ainda faltavam as três últimas partes do trabalho, cada uma ocupando por volta de cinco slides. Ele abriu seu e-mail e surpreendeu-se ao achar uma mensagem de um dos integrantes desaparecidos de seu grupo e outra de Daniel, que fez a parte dos que faltavam.

 

Ele tentou ler o primeiro anexo mas sentiu suas pálpebras pesadas, a visão desfocando, e decidiu que precisava de mais café.

 

A primeira coisa que notou na cozinha, ao invés da cafeteira nova, era Shihyun sentado num dos bancos lendo algo no celular, sorrindo de orelha a orelha.

 

No celular de Yongguk, diga-se de passagem.

 

— Tá de brincadeira. — não conseguiu nem reunir energia suficiente pra soar bravo. Só chocado.

 

Shihyun levantou a cabeça como uma criança pega comendo sobremesa antes do jantar.

— Você tava rindo demais.

 

Yongguk pôs em uso todas as suas três aulas de atuação da época que queria ser uma sensação do pop global e fez-se de idiota. — Eu rio demais. Sou uma pessoa alegre.

 

— A gente não vai falar sobre isso? — Shihyun quis saber, batendo o dedo na tela do celular. O tema do APeach refletia nos óculos dele.

 

— Não — Yongguk ficou na ponta dos pés para pegar o saco de café no armário — Não vamos falar sobre isso.

 

— Você nunca gostou de ninguém? — Shihyun debruçou-se na bancada com os cotovelos, apoiando o rosto nas mãos.

 

Yongguk ligou a cafeteira. — Eu não gosto de pessoas. Eu evito pessoas.

 

— Por que? — Shihyun largou o celular de seu colega de quarto em cima da mesa e abriu a geladeira — Pessoas não são tão ruins. Eu sou uma pessoa. Seus três amigos são pessoas. Seus pais. A gente tá vulnerável a decepções o tempo todo e se fechar pra isso só vai adiar seu sofri-

 

— Ele não gosta de mim, Shihyun — Yongguk interrompeu o mais novo, exasperado por estar participando dessa conversa e pensando nisso. Todos os seus atos até o momento foram estrategicamente planejados para que ele nem ao mesmo cogitasse se perguntar o porquê de Kenta não gostar dele importar tanto assim — Não desse jeito.

 

Shihyun limitou-se a arregalar os olhos categoricamente e bater na tela do celular outra vez.

 

— Ele é assim com todo mundo. — Yongguk murmurou enquanto derramava café em sua segunda caneca favorita (com tema de Overwatch, porque a primeira era repleta de gatinhos e ele não precisava daquela referência agora).

 

Shihyun, por sua vez, estava bebendo um copo de leite gelado. — Como você sabe? — ele disse depois da primeira golada, o famoso bigode de leite acima dos seus lábios.

 

Yongguk estava tão zangado (consigo mesmo) e frustrado (com toda a situação) que nem conseguiu rir. — Ele é legal demais. Eu me sinto especial por cinco segundos antes de perceber que ele fala com o padeiro do mesmo jeito que fala comigo.

 

— Sei não — Shihyun limpou o rosto com um dos panos de prato nas proximidades — Só falando com ele pra saber.

 

Yongguk sacudiu a cabeça com veemência, a amargura do café ardendo em sua língua. — Sem chance. Nem morto. Nunca — ele adicionou a última expressão em chinês, praticamente num sibilo. Nunca tinha sido rejeitado. Não ia ser rejeitado, não interessa o método de psicologia inversa que seu colega de quarto estivesse tentando usar.

 

Shihyun teve a audácia de rir. — Pergunta se ele tá gostando de alguém. É inofensivo.

 

— Se ele estiver gostando de alguém, não sou eu — Yongguk retrucou. Sua mão segurou a alça da caneca mais forte — Eu não- Não gosto tanto dele assim, também.

 

— Tá, mantenho meu conselho — Shihyun deu de ombros e pôs seu copo vazio na pia — Você pode fazer o que eu disse ou morrer engasgado com esse não-sentimento pelo resto da vida.

 

Yongguk bebeu mais do café e encarou seu colega de quarto, ceticismo exalando de seus poros. Shihyun suspirou, resignado, e saiu da cozinha.

 

Morrer engasgado não soava tão ruim assim.


 

Às vezes, Kenta tinha mais pensamentos que sua cabeça comportava.

 

Ele inventava problemas e se convencia da gravidade destes. Ficava remoendo acontecimentos ínfimos, despedaçando momento por momento dentro de si e analisando com minúcia desnecessária cada acontecimento. Até quando saíra para beber com alguns dos seus amigos depois do trabalho, sua mente estava a milhas de distância.

 

— Gente, eu tenho uma pergunta — ele soltou quando a mesa ficou em silêncio por alguns segundos. Deu mais um gole em sua lata de cerveja numa vã esperança de ganhar coragem.

 

Minhyun desviou o olhar da coxa de galinha que comia. — Fala.

 

— Vamos supor que, numa situação hipotética, você comece a gostar do dono de uma paciente — Kenta gesticulou e falou mais rápido do que o usual, tentando disfarçar o constrangimento — Isso é errado? Tipo, antiético? Dá cadeia?

 

— Não é completamente certo, mas acho que não dá cadeia, não — Jonghyun ponderou, olhando para um ponto fixo no meio do nada como toda vez que refletia sobre algo — É como se você fosse um pediatra e namorasse a mãe de um paciente.

 

— Acho que o maior dos problemas seria que tudo dê errado entre você e essa pessoa hipotética — a ênfase que Eunki deu na última frase era inconfundível — As coisas podem ficar embaraçosas.

 

Ele sabia. Claro que ele sabia, ele conhecia Kenta com a palma da mão e não é como se ele tivesse feito algum esforço em disfarçar seus sentimentos, porque Yongguk desde o primeiro momento mostrou-se adoravelmente denso.

 

— Não vi nada sobre isso no Google — Minhyun apontou, prestativo, enquanto abaixava as páginas em seu celular.

 

— Todo mundo sabe que não tá na Internet, não existe. — Insoo disse, entusiasmado demais com a situação toda enquanto lançava o típico tapinha de brother nas costas de Kenta. Talvez fosse a bebida ou talvez a confusão interna de seu melhor amigo o alegrava. Era fácil crer na segunda opção.

 

Jonghyun franziu o cenho, como se tivesse acabado de se lembrar de algo. — Ele é de maior, né?

 

— Meu Deus, óbvio — Kenta massageou suas têmporas, ligeiramente estressado e mais do que ligeiramente envergonhado. Não sabia dizer se estava vermelho, pra piorar a situação, e com certeza seria zoado por isso de manhã — Que tipo de pessoa você acha que eu sou…

 

Minhyun passou uma mão pelos ombros dele. — Tá tudo bem, a gente sabe — seu tom era o que usava pra lidar com seus amigos bêbados, sorrindo calorosamente enquanto se virava para Jonghyun — A gente viu o garoto. É um dos voluntários novos.

 

— Qual? O modelo de três metros, o que parece uma porta ou o que parece um gato rabugento?

 

Insoo soltou uma gargalhada alta, apoiando-se em Eunki pra não perder o equilíbrio. Todo mundo também riu, mas não com a mesma intensidade. — Cara, isso foi maldoso.

 

Jonghyun corou. — Desculpa. Não sou bom com nomes.

 

Mais risadas.

 

O assunto mudou para o quão desajeitado Jonghyun era mesmo do alto de seus 25 anos de idade, mas Kenta ainda queria enfiar a cabeça no buraco mais próximo e nunca mais sair de lá. Levantar aquela possibilidade era ridículo por si só, ele não esperava ter alguma coisa com Yongguk porque ele não era de relacionamentos e já explicitou isso inúmeras vezes. O número de pessoas com as quais ele se importava era mínimo, um grupo seleto de privilegiados que souberam como respeitar o espaço pessoal dele e não distanciá-lo. A força desse fato pesava sobre Kenta com uma força descomunal nos últimos dias: Um passo em falso e ele acabaria não só cortando contato com um interesse romântico como perdendo o que poderia ser uma boa amizade.

 

No entanto, sonhar não pagava imposto. Já no conforto da sua casa, ele permitiu-se viajar em cenários nos quais Yongguk quisesse ficar com ele, também.


 

A psicologia inversa de Shihyun acabou funcionando.

 

O fim de semestre não trouxe a paz de espírito que Yongguk esperava, porque entre os inúmeros planos que seus amigos faziam durante as férias e seu apartamento cada dia mais abarrotado de gente, ele bolou um plano arriscado.

 

Teria que se livrar de Kenta e do que sentia por ele de uma vez por todas.

 

Não tinha outro jeito. Ele não iria se submeter ao estresse de uma confissão, ainda mais sabendo do resultado. Que Shihyun e seu otimismo se explodissem: por menor que fosse a possibilidade de ele ser rejeitado, ela ainda existia, enfiada debaixo da pele dele e devorando-no de dentro pra fora. Ela era enorme, assustadora e abafava quaisquer outras hipóteses.

 

Até porque outras hipóteses não existiam. Não era falta de autoconfiança — ele conseguia conceber que Shihyun tinha uma quedinha por ele no primeiro ano. Ele conseguia entender que as intenções de Gunmin comprando café pra ele todos os dias, de início, não tivessem sido de todo platônicas. Ele conseguia digerir que nas três vezes que Haknyeon cozinhou pra ele, poderia ser mais que um calouro solícito. O problema era Kenta, cercado por pessoas incríveis, brilhantes, animadas.

 

O problema era não conseguir visualizar Kenta ignorando Insoo ou Eunki para dirigir seu afeto amoroso para Yongguk, um amigo casual que não sabia iniciar conversas ou fazer poemas acrósticos. Partindo desse princípio, resolveu iniciar a primeira etapa de seu plano: Evitá-lo. Yongguk tinha facilidade com fugas — era arisco em seus melhores dias e absolutamente intocável nos piores —, então só precisava fugir do mais velho no abrigo e ignorar suas mensagens. Estipulou o prazo de dois meses, menosprezando a amizade que havia se formado ou o quanto sentia falta dele. De qualquer forma, pôs tudo em prática com sucesso.

 

O que resultou no seguinte quadro, ao fim da terceira semana: Kenta, no seu apartamento, sentado no seu sofá, agarrado no pescoço dele feito um coala e perguntando por que você me odeia com voz de bebê.

 

Yongguk não conseguia reagir como de costume. Se fosse qualquer outra pessoa, ele teria empurrado o dito-cujo, chutado e trancado do lado de fora caso houvesse insistência mas, nas circunstâncias atuais, tudo o que fez foi manter-se inexpressivo enquanto suas bochechas eram cutucadas. Suas maçãs do rosto queimavam e seu coração parecia martelar na sua caixa torácica e ele não queria se afastar. Kenta estava ali, próximo demais pra ser seguro, e ele simplesmente não queria se afastar. Talvez mudar de posição, talvez segurar as mãos dele, deixá-lo absorver toda a ansiedade e incerteza que emanava em ondas do corpo de Yongguk.

 

— Como você descobriu onde eu moro? — foi o que ele conseguiu fazer, perguntar, a voz poucos decibéis acima de um sussurro.

 

Essa foi a deixa para Kenta desgrudar de Yongguk para tentar olhá-lo nos olhos, o que não era muito útil já que ele estava fixado num ponto acima da sua televisão e não desviaria o olhar nem que lhe pagassem. — Eu pedi pro Hyunbin e ele perguntou pro seu colega de quarto. Isso provavelmente tá invadindo seu espaço pessoal, mas eu não ligo.

 

Porra, Hyunbin. Porra, Shihyun. O conceito de “amigos” era superestimado.

 

— Você tava em cima das minhas costas — Yongguk apontou, xingando-se mentalmente por soar tão conformado invés de irritado ou zangado — Já sabia que você não ligava.

 

Kenta suspirou. Ele soou cansado, magoado, e ser a causa disso deixou Yongguk com um gosto amargo na garganta. — Eu fiz alguma coisa? Eu achava que a gente se dava bem, muito bem, mas aí você começa a agir como se estar perto de mim te incomodasse e... — ele deu uma pausa, sentou mais distante, a almofada fazendo um leve puf — Não quero ser seu melhor amigo. Só quero um motivo.

 

As cartas foram dadas.

Yongguk tinha que escolher um caminho para seguir — e, por mais imbecil que isso possa soar, ele não tinha considerado que uma das consequências de seu plano envolveria afastar Kenta de verdade, pra sempre. Sem mais ligações no meio da noite ou fotos de gatinhos ou mensagens trocadas quando ambos deveriam estar fazendo coisas mais produtivas. Pensava que conseguiria ficar distante só o suficiente para superar o quanto seu peito apertava quando falava com o mais velho, o suficiente para amenizar o sorriso afetado que brotava em seu rosto toda vez que o mencionava.

 

Ele era burro. Não, pior, estava deliberadamente se fazendo de burro e tornando tudo mais difícil.

 

— Você não fez nada.

 

Kenta esperou. Sem notar, seus dedos tamborilavam no braço do sofá, uma denúncia de sua inquietude.

 

— Você não fez nada — Yongguk disse e mordeu o lábio inferior. Sentia como se fosse entrar em combustão espontânea a qualquer momento — A culpa é minha.

 

Rcy pulou na mesa de centro perto deles. Tolbee só estava encarando-no com ceticismo evidente em suas feições felinas do alto do tapete. Típico. Seus gatos inconscientemente sabiam de sua pretensão e Yongguk não pretendia desapontá-los.

 

Ele checou o horário. Duas e meia. Shihyun costumava chegar em casa por volta das três, quinze pras três se não tivesse trânsito, então não tinha muito tempo restante. Na vida, você tem momentos de agora ou nunca, como os segundos antes de um balão estourar por estar cheio de ar, ou água, ou alguma coisa. Nesses momentos, o impulso decidia por você.

 

O impulso que o fez virar para Kenta, encolhido no canto do sofá, e chegar mais perto. Tão perto que parecia irreal; as linhas de confusão e nervosismo claramente marcadas em seu rosto; os lábios fechados, apreensivos. Yongguk segurou o rosto de Kenta com as mãos, o polegar traçando círculos nas bochechas dele, e sentiu quando a tensão evaporou do rosto dele. Sentiu quando ele fechou os olhos e soltou a respiração. Sentiu algo dentro de si puxando, empurrando, se contorcendo.

 

Yongguk definitivamente sentiu mais quando o beijou.

 

Ele estava aterrorizado demais para tomar tanto tempo, porém, Kenta pareceu ler toda a sua hesitação e puxou-o mais para si, uma mão no pescoço de Yongguk, o outro braço na cintura dele. Era doce, macio, confortável, numa intensidade que parecia surreal. Foi ele quem se separou, zonzo e sem ar por uma série de motivos diferentes.

 

— Desculpa — ele murmurou, olhando para o chão porque sabia que se arriscasse olhar para o mais velho agora iria derreter e morrer e aquela não era uma boa hora pra morrer — Por tudo isso.

 

Aparentemente, Kenta queria que ele tivesse alguma espécie de taquicardia e deixasse esse mundo de vez, porque fez questão de levantar o rosto de Yongguk pelo queixo com a maior gentileza possível e sorrir brilhante ao ponto de cegar um homem menos preparado. — Tá tudo bem.

 

Yongguk riu, embora não reconhecesse o som saindo. Seu crânio tinha ar e suspiros ao invés de um cérebro, era ridículo.

 

Kenta riu de volta. Parecia um sino: claro e alegre e ressonante. — A gente não vai falar sobre isso?

 

Yongguk deu de ombros.

 

— Você me fez achar que você me odiava por um mês.

 

— Três semanas — Yongguk corrigiu e, de frente com a careta nitidamente insatisfeita de Kenta, caiu na gargalhada. Quando recuperou o fôlego, não era o único que estava sorrindo.

 

— Ei, é sério — Kenta aproximou-se outra vez, com a naturalidade de quem já havia imaginado aquela situação acontecendo — Até quando você tá sendo cruel assim, eu não consigo não gostar de você sorrindo. Não consigo não gostar de você. Então, o que isso significa?

 

Yongguk podia tender para o drama em situações de emoções intensas, ele sabia, mas tinha certeza que estava quase chorando de felicidade. — Não sei. Talvez eu não te odeie.

 

Kenta balançou a cabeça, fingindo desgosto. — Resposta errada — ele disse e, antes que o outro pudesse retrucar, segurou-o pelos pulsos e deitou-o no sofá, os braços esticados grandes demais para caberem ali completamente.

 

Yongguk prendeu a respiração. O brilho nos olhos de Kenta era perigoso e, quando inclinou-se para beijá-lo mais uma vez, foi deliberadamente mais lento, tátil; a mão direita embaixo da blusa dele, a esquerda apertando sua coxa. Yongguk lembrou de quando pensava que morrer sufocado com seus sentimentos soasse como uma boa ideia, não era isso que estava imaginando. Mas, com os lábios de Kenta no seu pescoço, decidiu que não deveria reclamar.

 

Acabaram sendo interrompidos por um barulho especialmente alto e um puta que pariu que não poderia ter saído da boca dos gatos.

 

Yongguk saiu debaixo de Kenta apenas para dar de cara com Shihyun, choque estampado em seu rosto. Suas chaves, a ração de Tolbee, alguns de seus livros de Neurociência — todos espalhados pelo chão. Atrás dele, Donghan, o recepcionista da clínica na qual Kenta trabalhava, igualmente surpreso. Não sabia como ele e Shihyun tinham ficado amigos, porém, esse era o menor dos seus problemas.

 

Kenta parecia querer que o chão o engolisse.

 

Yongguk segurou o ataque de riso preso em sua garganta e, sem um pingo de vergonha, começou a arrumar a bagunça que seu colega de quarto fizera. Com as coisas nos braços, olhou para eles e sorriu. — Oi, Shihyun. Oi, Donghan. Não sabia que vocês se conheciam. Pode fechar a porta? Tá frio.

 

Kenta soltou uma risadinha e Donghan repetiu o gesto, mais numa paródia do que realmente achando graça da situação. Shihyun permaneceu boquiaberto. — Você…

 

— Eu tô com frio e provavelmente namorando — Yongguk fez um gesto fingindo indiferença, as bochechas doendo de tanto sorrir — E você?

 

— Definitivamente namorando — Kenta adicionou, mesmo que não fosse necessário. Era o mais perto de um pedido que conseguiria ter e estava perfeitamente contente com isso.

 

— Obrigado — Yongguk disse. Eles trocaram olhares por alguns segundos e foi o suficiente para que Shihyun fechasse a porta com força.

 

Donghan riu, dessa vez de verdade. — Cara, você vai ter que lidar com isso todo dia.

 

Shihyun soltou um grunhido que beirava o choramingo. — Cala a boca.


 

No final, o sofrimento de Shihyun não foi tão intenso assim.

 

Yongguk reservava as coisas nojentas de casal para quando ia para o apartamento de Kenta e, porque era Yongguk, nem era tão nojento assim. Ele continuava sendo meio rabugento, insuportavelmente espaçoso e com sérios limites quanto a contato físico. A única coisa contra a qual não tinha objeções em momento nenhum eram cafunés: o destino decidiu presenteá-lo com um namorado (a palavra deixava a língua dele dormente toda vez que tentava falar) que fazia os melhores cafunés do mundo e não era burro o suficiente pra desperdiçar uma oportunidade dessas.

 

Yongguk costumava passar os fins de semana lá quando seus amigos não marcavam nada de interessante e ele (outra coisa que deixava sua boca com um gosto estranho) sentia saudade. Passavam o tempo brincando com os animais de estimação do mais velho e muitas das vezes, não ficavam sozinhos: Insoo morava no condomínio vizinho e a academia de Eunki era nos arredores, ocasionando em visitas frequentes. Ver Yongguk com a cabeça deitada no colo de Kenta enquanto os três jogavam Eu Nunca era mais provável do que se imaginaria e, por incrível que pareça, não o incomodava. Até achava suspeito o quão silencioso o lugar ficava sem eles. Aprendeu a aceitar que o trio seria uma constante na vida dele e, se quisesse continuar com Kenta, teria que aceitar isso.

 

E, para seu eterno embaraço, ele queria. Muito.

 

Então, da lista de coisas que ele esperava quando se jogava na cama de Kenta na sexta-feira a noite, um gato preto não estava incluso na lista. Não só um gato preto: o gato preto. Ele reconheceria o bichinho em qualquer lugar, seus olhos dourados e a cicatriz no focinho.

 

— O que você tá fazendo aqui? — ele fez carinho na cabeça do gato, o carinho tão evidente em sua voz que chegava a soar esquisito. Aquele felino de olhos dourados foi o motivo pelo qual se aproximou de uma das suas pessoas favoritas e conheceu melhor outras pessoas que apreciava, também.

 

(Donghan passando mais tempo do que deveria no apartamento de Yongguk e Shihyun era um problema, mas ele não iria pensar nisso por ora.)

 

Kenta saiu do banheiro já rindo, secando o cabelo com a toalha. — Sabia que você ia gostar.

 

— O que… — Yongguk franziu o cenho, a alegria em ver o gato transformando-se em confusão — Eu pensei que dar abrigo temporário pros bichinhos não era permitido?

 

— Não é — Kenta sorriu mais largo, o rosto brilhando com o gesto — Eu adotei ele.



 

Se Yongguk não fosse Yongguk, teria dado um gritinho. Ao invés disso, ele puxou o gato contra o seu peito e olhou para o seu namorado feito uma criança que ganhou uma bicicleta como presente de Natal. — Jura? — e, superando o deleite infantil, botou o pobre animal na cama, imaginando que ele deveria estar se sentindo sufocado —  Será que não vai ficar caro pra você manter todos esses bichos?

 

Kenta sentou na cama, posicionado estrategicamente entre ele e o gato. — Fica não. Eu nem tenho tanto bicho assim. Além do mais… — riu quando esticou a mão pra fazer carinho no animal e ele saiu andando — Ele me lembra você.

 

— Ele é carinhoso comigo — Yongguk disse, fazendo bico sem nem perceber.

 

— Claro que é, ele é seu alter ego felino — Kenta implicou, porque tinha o namorado mais adorável do mundo e sentia-se no dever de tirar proveito disso fazendo graça com ele em todo momento possível.

 

Yongguk mantinha seus olhos no gato. — E se a gente terminar? O que você vai fazer com ele?

 

Kenta reprimiu o impulso de dizer a gente não vai terminar pois, apesar do que sentia no presente, não podia prever o futuro. Era um pensamento racional. — Vou continuar com ele, porque ele ainda vai me lembrar de uma pessoa que foi muito especial pra mim e eu acabei me apegando a ele.

 

— Mas e se… — Yongguk engoliu em seco, tenso — E se acontecer alguma coisa muito grave e eu te fizer mal e você não conseguir associar nenhuma coisa boa à ele?

 

Ok, isso já era abusar do espírito romântico e idealista de Kenta. Podia estar sendo idiota, iludido ou fantasioso mas não conseguia visualizar aquilo. — Só de você ter levantado a possibilidade já mostra que isso não vai acontecer. Você é bom, Yongguk, às vezes bom demais. Mas… Na pior das hipóteses, ele pode voltar pro abrigo.

 

Yongguk suspirou. — Ok. Obrigado. Eu posso ajudar a cuidar dele, também, mesmo que ele more aqui. Posso comprar ração ou tomar conta dele quando você estiver ocupado no consultório.

 

Kenta olhou pra ele e, pelo que parecia ser a milésima vez, maravilhou-se com a intensidade da afeição que sentia pelo outro. Ali, sentado na cama enquanto tagarelava sobre os cuidados que teria com o felino, ele era a personificação de tudo que Kenta admirava nas pessoas. Tudo de lindo e solidário e amável, ao mesmo tempo, algo que só Yongguk tinha. Uma sinceridade especial.

 

— Eu amo você.

 

O mais novo corou, desviou o olhar, coçou a nuca. — Eu também te amo, mas, ahn, não foi isso que eu perguntei. O nome do gato.

 

Kenta riu. — Eu ia deixar você escolher, na verdade. Já que é seu espírito animal.

 

— Eu já tinha pensado em um, na verdade — Yongguk confessou timidamente — Wan. Significa noite em chinês e, quando escrito, é igual padawan. Sabe, Star Wars.

 

— Star Wars — Kenta repetiu, fazendo uma careta — Nerd.

 

Yongguk bateu nele com o travesseiro. Não forte o suficiente para machucar, porém, Wan ficou alerta e andou na direção deles como se achasse que estivessem brigando de verdade.

 

— Eu gostei — Kenta disse, esticando-se para fazer carinho no gato que, dessa vez, aceitou — Não sabia que você falava chinês.

 

Yongguk fez uma pausa dramática. — Ahn, eu sou chinês.

 

Foi a vez de Kenta jogar o travesseiro.


 

(Yongguk caiu no sono com Kenta mexendo no cabelo dele enquanto ralhava no tópico de eu sou seu namorado vão fazer seis meses e você não me contou que era chinês pelo amor de Deus isso é alta traição e pensou no quanto a voz dele o relaxava mesmo quando estava tomando bronca.

Foi um bom dia por várias razões e, agora, ele se permitia sonhar com elas à noite.)

 


Notas Finais


(o donghan e o shihyun trocaram chocolatinhos e isso significa o que? ult interaction, minha 98line) (e claro que eu tinha que colocar isso na fic) (o abrigo mencionado existe mesmo) (mas as dinâmicas eu não sei porque eu sou alérgica a gato, minhas interações com eles em vida são quase inexistentes e tenho certeza que ferrei com tudo deixando essa questão super como subplot)
essa foi a fic mais estranha que eu já escrevi então se você chegou até aqui, eu já agradeço imensamente. agradeço ainda mais imensamente se puder comentar ou dar dicas de como melhorar esse gigante. <3


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...