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História Continhos, Contem-se! - Ánelie


Escrita por: OmaLou

Capítulo 3 - Ánelie


Fanfic / Fanfiction Continhos, Contem-se! - Ánelie

Ánelie tinha a pele parda, como uma caneca com doses iguais de café forte e leite fresco. Cabelos cacheados e disformes da mesma cor, olhos pretos como jabuticabas e um corpo pequeno com nenhuma curva. Era sem graça e por isso não chamava a atenção de ninguém. Não importava o que fizesse, era sempre deixada de lado e esquecida.

Tinha três anos quando viu sua mãe ser assassinada por seu pai. Quando a polícia bateu na porta deles, o pai se matou. Era pequena demais para entender a dimensão do que havia testemunhado, mas o som dos tiros e dos gritos, a cor do sangue e o intenso fluxo de lágrimas dos familiares em ambos os enterros a traumatizou. Foi a primeira e única vez que Ánelie foi observada e atraiu olhares; as pessoas vinham, chorosas, falar com ela, passavam a mão em sua cabeça e lhe faziam carinho, brincavam com ela e lhe davam abraços e beijos. Tinham pena. Mas quando lhes foram questionados sobre quem seria o responsável pela guarda da garota, ninguém se manifestou. Uma avó disse que estava velha demais. Um tio disse que estava falido. Amigos disseram que não queriam criar uma criança traumatizada.

Ánelie saiu do orfanato de freiras aos dezoito anos. Ninguém nunca a quis, ninguém nunca a reparava. Tinha mil reais dados pela instituição, seus documentos e muita solidão para enfrentar o mundo. Comprou uma tesoura e cortou o imenso e embaraçado cabelo cacheado na altura das orelhas. Comprou uma mochila. Comeu um pão de queijo. E sentou-se à beira da estrada, encostada em um poste e de costas para os carros que cuspiam fumaça e ventania em seu corpo frágil. Esticou as pernas e encarou o mato a sua frente, as formigas e a terra, rodas sendo polidas pelo asfalto há dois metros de sua cabeça.

No dia seguinte encontraram o corpo de Ánelie duro e frio. Morrera de hipotermia durante a noite. Seu enterro aconteceu no cemitério da comunidade mais próxima, mas ninguém veio. Ninguém admitia, mas alguns familiares estavam aliviados por aquela trágica família ter chegado ao fim.

Mas Ánelie ainda estava por ali. Sua alma não fora notada e ninguém viera socorrê-la para leva-la de lá. Viveu, morreu e agora encararia a eternidade também sozinha. No entanto, sua solidão a tirou da inércia que regera sua vida inteira, e a levou a procurar por crianças como aquela que ela havia sido.

Crianças completamente abandonadas.

Ánelie era o fantasma, a sombra, o amigo imaginário que acompanhava essas crianças, que lhes faziam companhia, que estava sempre ali. Os adultos, como sempre quando ainda era viva, continuavam a nega-la, a fingir que não existia. As crianças, porém, a exergavam. De verdade, viam em seu interior e descobriram nela alguém para amar.

Com elas, a morta Ánelie finalmente descobrira o que era estar viva. E com ela, as crianças descobriam porquês para continuarem vivas.

Ánelie tinha a pele parda, como uma caneca com doses iguais de café forte e leite fresco. Cabelos cacheados e disformes da mesma cor, olhos pretos como jabuticabas e um corpo pequeno com nenhuma curva.

E era feliz.



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