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História Cordas e Velas - Cordas e Velas


Escrita por: ClarisseHugh

Notas do Autor


Essa história está diretamente conectada com minha fanfic Amarras e, portanto, recomendo lê-la apenas após já ter lido a anterior, já que esta oneshot contém spoilers dos últimos capítulos (alguns trechos na íntegra, inclusive). Além disso, boa parte do clima desta história é inspirado pela música “Abandon Ship”, de Steffan Argus, embora o EP “Lost at Sea” inteiro seja ótimo. Dito isto, sejam bem-vindos a bordo do Olympique. O capitão deseja a todos uma ótima viagem!

Capítulo 1 - Cordas e Velas


“Com que fúria ergo a ideia dos meus braços

Para a ideia de ti! Com que ânsia bebo,

Os olhos pondo em teus sonhados traços,

Todo fêmea em teu corpo de mancebo!

 

Teu hálito sonhado até cansaços

Como em meu vívido hálito recebo!

Ó carne que já sonho és tantos laços

Para mim! Deus-deus, Vênus-Éfebo!

 

Ó dolorosamente só-sonhado!

Soubesse eu o feitio exterior e o jeito

Em gestos e palavras e perfeito

 

As palavras a dar a este pecado

De só pensar em ti, de ter o peito

Opresso em pensar-te entrelaçado!”

 

–  O outro amor, Fernando Pessoa

 

França, 1885

 

Ícaro não era grande fã da escuridão, ainda que essa parecesse ser uma das coisas que conhecia melhor.

O ar estagnado do bar costumava envolvê-lo como o abraço de um amigo de infância, o amargor pungente da bebida nublando seu senso e contribuindo para que o dia anterior se fundisse ao próximo na procissão punitiva de um homem atormentado, desiludido.

Frequentara aquele ambiente com relativa frequência sem saber indicar bem qual força o conduzia até ali. Logo ele, que gastava tão pouca energia para as coisas, constantemente melancólico e conformado com a própria derrota. Seu azar, sempre ele, seu pior e maldito estigma. Isso é, até que um certo capitão de olhos tão verdejantes quanto sinceros apareceu para transformar sua vida.

Um encontro.

Apenas um encontro foi necessário.

Entre um “Dia difícil?” e “Pois bem, Ícaro. Até.”, uma conversa (e um convite) que poderia mudar tudo.

(E mudou).

 

○●☼●○

 

Ícaro não estava exatamente brincando ao escolher “eu realmente não sei quem está mais fora de seu juízo” como suas primeiras palavras a bordo do Olympique. O rapaz definitivamente cultivava um milhão de dúvidas em relação àquela oportunidade oferecida por Poseidon Legrand, mas, do mesmo modo que o medo e a vergonha o paralisaram por boa parte de sua vida, agora havia uma força nova, inédita, que o impelia adiante.

Esta chama discreta, mas ardendo constante em seu peito, o fez arregaçar as mangas da camisa e dedicar-se a demonstrar suas habilidades náuticas para o capitão e não demorou muito para que nem mesmo sua insegurança fosse capaz de contestar o quanto os dois pareciam se entender.

Quando o sol já havia alcançado o topo do céu, um jovem bonito e sorridente apresentado como Hermes Loreto, o primeiro imediato de Poseidon, juntou-se a eles trazendo consigo uma porção generosa de peixe frito como almoço. Os três homens consumiram a comida ainda quente, acompanhada de pelo menos um cálice de vinho, observando o ir e vir das ondas no cais como velhos camaradas.

O capitão realizou uma troca de olhares com seu amigo antigo, ao que ele assentiu discretamente e, tendo tido a confirmação desejada, Poseidon anunciou, por fim, sua decisão a Ícaro:

          - Bom, meu caro, acho que já está claro que, caso queira, tenho uma vaga para você em meu navio. Seja bem-vindo, marujo.

          O loiro contemplou o sol com lágrimas no canto dos olhos e sorriu.

 

○●☼●○

 

Havia momentos em que Ícaro gostaria de poder ser mais racional, como seu pai – Dédalo – fora um dia. Ou, pelo menos, como a versão dele de que se lembra era. Apesar de marinheiro, sempre fora um homem pragmático. Seu chamado para o mar advinha de suas contas e estratagemas geniais, jamais do perigo e da emoção do velejar. Até mesmo a mente juvenil de Ícaro podia enxergar esse fato com careza, à época.

O tempo passou e nem mesmo o trauma daquele naufrágio em que perdera sua vida como a conhecia foi capaz de decalcar essa característica no rapaz de tez pálida. Agora, sua pele cobria-se inteira de sardas causadas pelo sol e ele nem sequer saberia fingir se importar. Que o astro rei o marcasse de todas as formas possíveis. Aceitaria tudo de bom grado diante da sensação libertadora de ter a maresia preenchendo seus pulmões e o vento das correntes marítimas lhe soprando o rosto.

Poseidon o nomeara almirante em decorrência da aposentadoria de Nereu e a cada vez que alcançava o topo do mastro do Olympique, encontrando seu lugar na cesta da gávea, Ícaro tinha mais certeza de que ali repousavam todos os seus sonhos para o futuro.

Bem, quase todos...

Era o dia do noivado de Poseidon e Atena e jovem sabia que deveria sentir-se feliz pela alegre celebração desenrolando-se a sua volta. Por deus, o capitão tornara-se rapidamente um de seus melhores amigos e ele lhe desejava toda a felicidade do mundo, mas... Mas seu coração sonhador não era racional como o de seu pai e, portanto, ele não conseguia livrar-se do sofrimento desse eterno querer algo mais.

Algo que, provavelmente, jamais poderia ter.

O objeto de seu desejo proibido – Apolo, conforme entreouvira as irmãs da noiva comentando – irradiava vida, beleza e uma delicadeza régia, quase como uma escultura neoclássica.

Ao cerrar os olhos e tentar ocultar sua inoportuna melancolia, Ícaro sente uma presença se aproximando e lhe oferecendo um solidário tapinha nas costas. Nem precisava virar-se para saber quem era. É claro que aquele moreno perspicaz não deixaria algo assim passar-lhe despercebido.

Engolindo o temor da rejeição e de uma nova perda da vida recém-conquistada, o almirante força um pequeno sorriso e profere, resignado:

- Não se preocupe comigo, capitão. Já aceitei há tempos que meu destino parece ser estar sempre perto demais do que desejo, sem nunca conseguir tocar... Você já me deu a oportunidade de realizar um sonho que me era tão distante... Nunca poderei expressar como lhe sou grato.

Olhos verdes marejaram e, embora ele claramente não soubesse como lhe responder, o mais novo tripulante do Olympique jamais houvera se sentido tão acolhido. De algum modo, aquele destino com o qual havia se deparado não era a condenação que sempre temera e ele não podia ser mais grato. Poseidon deixou-lhe para sair em busca de Atena, mas de algum modo Ícaro já não se sentia tão só.

Minutos depois, foi a vez de Hermes aproximar-se e, ao contrário do capitão, o almirante ainda não sabia lê-lo tão bem, mas algo em seu sorriso travesso o fazia querer sorrir também.

- Não tenho uma aparência angelical como ele, mas também sou loiro, se for esse o seu tipo.

- O quê?

Ícaro o encarou fixamente em retorno, com as sobrancelhas franzidas, como se visse sua pele bronzeada, os cabelos cor de areia e os olhos castanhos absolutamente vivos pela primeira vez.

Pigarreando de leve e floreando uma cortesia, Hermes acrescentou uma última fala antes de se afastar e tirar uma das garotas russas para dançar:

- Tudo o que estou dizendo é que estou disponível, caso queira alguém efetivamente capaz de gostar de você em retorno.

Quem sabe..., permitiu-se cogitar, ao rodopiar pelo salão. De qualquer modo, o primeiro imediato consideraria um pecado ter estado de costas e, portanto, perdido a reação do colega de tripulação se soubesse a onda de choque e surpresa que tingiram de rosa as bochechas salpicadas de adoráveis sardas do almirante em resposta a sua piscadela de despedida.

 

○●☼●○

 

Um casamento talvez não fosse o melhor ambiente para uma conversa casual com potencial para alterar sua relação com uma pessoa que, acima de tudo, é sua colega de trabalho – Por todos os deuses, aquela era uma péssima ideia! – mas Ícaro não consegue parar de pensar nas palavras trocadas na comemoração anterior e a oportunidade é boa demais para se desperdiçar.

Antes que possa se acovardar diante de suas inseguranças, o marinheiro se aproxima da mesa na qual cerca de cinco pessoas conversavam animadamente e pigarreia para chamar a atenção de Hermes.

- Será que você não quer dar uma volta, para falarmos... do barco?

A sobrancelha arqueada lhe diz que o primeiro imediato sabe perfeitamente não haver embarcação nenhuma a ser discutida entre os dois, mas mesmo assim levanta-se de pronto, com um largo sorriso nos lábios.

- Do barco, claro. Com licença, senhores. O dever me chama.

 

Yo-ho, yo-ho, yo-ho, yo-yo-yo, yo-ho, yo-ho

Everyone's on board, the richest and the poor

All these lonely kids have so much left to live for

So we'll run to the sea and find no captain waiting

For we're all that we need to keep this boat from sinking

 

A desculpa, no entanto, acabou provando-se verdadeira de certa forma quando Hermes indicou o caminho em direção ao Olympique.

- Todos estão na festa, então com sorte teremos alguma privacidade...

Ícaro queria ser capaz de corar menos diante de uma insinuação tão simples quanto aquela, mas seu corpo parecia determinado a contrariá-lo, fazendo com que um arrepio lhe percorresse o tronco.

O primeiro imediato não disse mais nada até que ambos estivessem a bordo, tendo se ocupado em aproveitar a companhia silenciosa ao longo do trajeto da descida dos calanques até o porto de Marselha, mas quando enfim se encontravam sob o deque do conhecido navio, com o sol se pondo no horizonte e lançando sombras compridas e luzes alaranjadas sobre os dois, Loreto sentiu que era o momento de se pronunciar:

- Ei, não precisa ficar assim todo sem graça. Eu sou o cara com quem você dividiu uma refeição em sua primeira vez neste convés. Exatamente o mesmo pateta que fingiu um motim para que pudéssemos nos livrar daquele nobre enxerido na Itália. Nada vai mudar isso.

- Nada? – O dono das mechas douradas se arriscou a perguntar.

- Bom, só se for pra melhor... – Hermes lhe respondeu, empurrando-lhe com o ombro, de brincadeira.

Inspirando profundamente, o melhor amigo de Poseidon fez o possível para sua voz soar firme e tranquilizadora:

- Agora é sério. Eu posso ver que você está nervoso e só... por favor, não. Nós podemos conversar ou até só ficar aqui em silêncio, se for o que você quiser, mas de forma nenhuma sinta que você me deve alguma coisa só pelo que te falei aquele dia. Eu só queria ajudar, porque, embora a gente se conheça há pouco tempo, eu gosto de você, Ícaro.

Já gosto agora e acho que poderia gostar ainda mais se a gente se permitisse... Ele não profere essa confissão em voz alta, no entanto. Ao menos não neste momento, pois sente que haverá tempo suficiente para isso no futuro.

A conversa mal havia começado e o filho de Dédalo já se sentia a um passo das lágrimas ou de um ataque de riso. Como explicar o que aquelas palavras significavam para uma alma há tanto sozinha? Uma vastidão de oceano diante da pequenez deles dois e aquilo já bastava para não mais sentir-se solitário, qualquer que fosse a conotação do gostar da fala anterior.

- Obrigado. De verdade. Por absolutamente tudo que você, Poseidon e a tripulação têm feito por mim. Obrigado.

- Eu agradeço o sentimento, mas hoje não estou aqui como o braço direito de monsieur Legrand. Não há capitães no barco esta noite. Só Hermes e Ícaro, está bem?

Mais do que bem. Tudo estava mais do que bem.

 

Abandon everything you know, sail with us and we'll show you

What it means to be alive

Yo-oh-oh

All hands on deck, stick out your neck from the sea

A pirate's life for me

Yo-ho, yo-ho, yo-ho, yo-yo-yo, yo-ho, yo-ho

 

Curioso como um momento é capaz de mostrar-se casual e íntimo em proporções iguais. Estar sentado naquele chão de madeira ao lado de Hermes, sentindo o ir e vir das ondas, era simultaneamente de uma importância absurda e também absolutamente cotidiano.

Ícaro sentia como se voasse. Planando entre as nuvens e finalmente compreendendo o que significa estar vivo. Talvez ali ele, por fim, aprendesse que seu futuro não está condenado entre a escolha entre queimar, consumido por suas vontades, ou congelar de sonhos abandonados.

Talvez... seu destino fosse flutuar.

 

All the runaways are running here today

Cowards and the brave are all looking to save

What little pieces left of their imagination

'Cause the rest is adrift

Deep inside the ocean

 

- Há alguns meses eu jamais me imaginaria aqui. – O rapaz mais novo confessa, tentativamente. – Nunca pensei que teria a chance de navegar novamente e muito menos... ser como sou.

- Você... Você nunca...?

- Não.

Tivera muito tempo para pensar sobre sua vida e sabia que, objetivamente, aquela não era uma escolha que cabia a si, mas acostumara-se a viver com medo e vergonha e os desígnios de seu coração pareciam apenas somar ao peso de todas as coisas que o condenavam a escuridão.

Finalmente, tomava ciência de estar a céu aberto.

Era hora de ser coragem.

 

Abandon everything you know, sail with us and we'll show you

What it means to be alive

Yo-oh-oh

All hands on deck, stick out your neck from the sea

A pirate's life for me

Yo-ho, yo-ho, yo-ho, yo-yo-yo, yo-ho, yo-ho

 

- Não sei como as coisas eram da primeira vez em que você esteve em alto mar e, pelo que sei, talvez você fosse muito novo para prestar atenção a essas coisas, mas o que posso te dizer é que... bom, é bem mais comum do que você imagina, embora muitos ainda prefiram ser discretos por conta dos julgamentos em terra firme. Mas o Olympique é um lugar seguro, isso ao menos posso te garantir.

Segurança. Aceitação. Quando fora a última vez que se sentira em casa?

 

You can change the way you look

Trade your hand in for a hook

Scratch your head and wonder why

It's always storming when you cry

But when that line of blood comes down

In some ways it reminds you how

You were before you got too old to leave

And stories you were told

 

Uma lágrima solitária fez caminho na tez ainda pálida do almirante justamente quando um trovão ressoou à distância e uma garoa começou a cair sobre os dois homens sentados lado a lado no convés.

- Ícaro...

Hermes tocou-lhe o maxilar com delicadeza e a palavra suspensa no ar, carregada com tanta emoção e seriedade, saída daquela boca tão mais acostumada à brincadeiras e zombarias, em seu próprio modo dizia mais do que qualquer outra coisa seria capaz.

 

But all those fantasies are true:

Fairies, mermaids, pirates too

But all you're growing eyes can see

Depends on how much you believe

So everything you thought you knew

Like no one being there for you

Just trust me that it isn't true

This our ship, and we're your crew

(Abandon, abandon, abandon, abandon)

 

Havia uma energia poderosa entre os dois. Nesse ponto, tal conhecimento era inegável e, não importava que essa bússola não necessariamente apontasse para casa. Ela certamente apresentava um destino claro e convidativo.

Um verdadeiro tesouro.

Ícaro se permitiu navegar por águas desconhecidas e entregar-se àquela tripulação de dois ao fechar os olhos e vencer a pequena distância que o separava do primeiro-imediato, tocando seus lábios com o mais doce dos beijos.

Salgado de choro. Salgado de mar.

 

Abandon everything you know, sail with us and we'll show you

What it means to be alive

Yo-oh-oh

All hands on deck, stick out your neck from the sea

A pirate's life for me

Yo-ho, yo-ho, yo-ho, yo-yo-yo, yo-ho, yo-ho

 

Certamente havia mais a ser discutido. Gostos a se conhecer, barreiras a se respeitar, mas naquele instante – com braços fortes e convidativos de um homem bom o aquecendo no começo de uma noite estrelada – não havia qualquer outro lugar do mundo onde Ícaro preferisse estar.

 

The best is yet to come

The treasure and the rum

The best is yet to come

 

(Ninguém pareceu notar a ausência dos dois no restante da festa).

 

○●☼●○

 

Nas semanas seguintes, aquele primeiro contato entre Ícaro e Hermes começou a desabrochar como um novelo se desenrolando para tecer rica tapeçaria (ou quem sabe uma bandeira pirata?). As palavras deixadas de lado em favor de ações que significariam mais do que qualquer outra coisa naquele momento inicial encontraram seu caminho através de conversas honestas entre os dois.

Dúvidas, questionamentos, memórias, expectativas... gradativamente todos estes assuntos vieram a tona e, a cada novo dia, era claro o quanto os dois homens sentiam-se cada vez mais confortáveis na presença um do outro.

Olhares trocados e toques secretos em seu expediente no navio evoluíram para aquela madrugada insone na penumbra do quarto de uma das casas humildes localizadas próximas ao porto.

Haviam se encontrado mais cedo para caminhar pela orla da praia, mas conforme a noite começava a tomar o céu, nenhum dos dois parecia querer despedir-se e, sem pensar em mais nada, Ícaro tomou a mão direita de Hermes na sua e o guiou até sua casa.

Estava farto de temer. Os dias anteriores não haviam sido nada se não perfeitos e aquele homem de sorriso fácil lhe dava a coragem necessária para tentar.

O cerrar da porta metaforicamente deixou para trás as inseguranças e não havia nada naqueles dedos quentes entrelaçados com os seus que não fosse absolutamente certo.

Entendendo-se apenas com o olhar – ah, como era bom ter aprendido a lê-lo! – Ícaro conduz Loreto até a cama simples, meio desfeita, indica para que ele se sente no colchão e começa a se despir de mais do que apenas roupas.

Adeus ao casaco, às botas e às meias. Suas palmas transpiram e tremem ao afrouxar os laços da camisa branca que, num instante, pende folgada em seu torço, mas basta um olhar para o pomo de Adão de seu companheiro movimentando-se num engolir nervoso para se reassegurar de não estar sozinho naquela nova jornada.

Ao menos não naquelas condições. Aquele passo significa tanto para Hermes quanto para si.

Livra-se daquela peça e, ainda de pé defronte ao primeiro-imediato, estende o braço, timidamente, para conduzir as mãos calejadas do marinheiro em direção a seu baixo ventre e é com um suspiro incontido que recebe aquele primeiro contato de outro alguém na pele abaixo de seu umbigo.

Um tremor lhe percorre de cima a baixo em resposta ao deslizar cuidadoso de apenas a ponta dos dedos masculinos – suaves, suaves – por sob os pelos claros de seu abdome.

Hermes interrompe o movimento ao alcançar o cós de suas calças e, quando seus olhares se cruzam, é como se ele despertasse de um transe. Usa sua posição para trazer Ícaro ainda mais perto pela cintura e então é a vez de seus lábios traçarem o caminho inverso, provando a pele macia de seu estômago e subindo. Loreto vai pondo-se de pé enquanto reverencia cada pequena cicatriz e pinta espalhadas pelo peito de seu querido amante.

Beija-lhe um dos mamilos, mordisca-lhe o pescoço, acaricia-lhe o nariz com seu próprio numa intimidade carinhosa e está pronto para o amar por quanto tempo aquele homem lhe quiser por perto.

- Hermes...

E o eco do uso de um vocativo cheio de emoção tal qual em seu primeiro beijo talvez seja demais para si, porque o marinheiro tem certeza de ouvir um grunhido numa voz que soa coincidentemente com a sua própria.

Tem ânsia de tocar cada centímetro de músculo descoberto no rapaz diante de si, mas também de livrar-se rapidamente de suas próprias vestes, tanto que Ícaro não contém um risinho envergonhado ao vê-lo atrapalhar-se no afã de se despir. Seu maior conforto com a dinâmica atual dá as caras, entretanto, e Loreto não hesita em apresentar-se absolutamente nu.

- Ei... Vamos até onde você quiser, está bem? – É a fala de Hermes em resposta à respiração mais acelerada e lábios entreabertos do jovem inexperiente.

Fiel a sua palavra, ele permite que Ícaro explore seu corpo com toques vacilantes até que o mesmo retome sua excitação confiante de antes, cerrando os olhos diante do prazer imenso que é ser analisado tão de perto por um alguém tão delicado quanto ávido.

Os minutos transcorrem e com eles vêm as mãos que arranham costas bronzeadas e embrenham-se em fios cor de areia na tentativa de colar ainda mais os corpos já separados por tão pouco.

Sentindo-se pronto, Ícaro livra-se do último tecido que o cobria e deita-se por sob os lençóis trazendo Hermes consigo. Com um breve assentir de cabeça, seus dedos arriscam um toque mais íntimo no membro do homem prestes a lhe apresentar os prazeres da carne a dois pela primeiríssima vez.

Loreto não suprime um gemido ao acomodar-se melhor por cima do almirante, apoiando a maior parte de seu peso em seu antebraço, e é sua vez de envolver o pau de Ícaro com suas mãos hábeis, determinado a extrair cada gota de prazer do corpo daquele rapaz. O ritmo de seus movimentos é acelerado e, sem muitas delongas, o dono das mechas douradas se encontra absolutamente ofegante, a firmeza de seu aperto no comprimento do outro vacilando.

- E-eu... Eu acho que vou...

- Sim. Sim, por favor. Vem comigo...

Aquela súplica rouca em seu ouvido é o que basta para que Ícaro atinja o orgasmo e Hermes o acompanha logo a seguir, sem poder resistir à quentura emanando de seus torsos e à visão pornográfica da litania de gemidos escapando a boca semiaberta do anjo sem asas abaixo de si, cabeça inclinada para trás em puro deleite.

Enquanto retomam o fôlego, esperando que seus corações desacelerem a velocidade frenética de suas batidas, embora sinta-se meio bobo, Ícaro não consegue suprimir um comentário:

- Eu não fazia ideia de que só por ser com outra pessoa isso seria tão bom. Tão melhor... Com você...

Depositando um beijo casto no topo de sua cabeça, Hermes promete a si mesmo naquele instante que irá ensinar cada pequeno êxtase que conhece àquele homem e, em resposta ao convite silencioso que os braços de Ícaro lhe oferecem, o eterno viajante escolhe ficar.

 

○●☼●○

 

Mais tarde, naquela madrugada movimentada, há um bater incessante na porta que desperta os amantes de seu descanso. Ícaro – sonolento, confuso e com as pernas ainda meio bambas – recepciona um Poseidon totalmente desesperado que não se espanta de todo ao encontrar seu contramestre logo atrás do tripulante mais novo, trajando nada além de uma calça folgada, e lhes pede ajuda para realizar uma missão maluca.

Cumprir uma profecia. Fugir de uma maldição.

No fundo era tudo a mesma coisa, não?

Nem Ícaro nem Hermes hesitam em concordar e os três partem ao raiar do sol em rumo ao desconhecido.

Por alguns dias, há certo senso de normalidade no executar das funções do navio e as tardes são pontuadas de conversas despreocupadas, acompanhadas do queimar pungente do rum. Quando a tempestade os alcança, entretanto, é outro tipo de coisa que lhes arranha a garganta.

Há água por todos os lados, trovões que lhes ensurdecem momentaneamente e o desafio constante da chuva os puxando para baixo, pesando seus movimentos, dificultando o manejar da embarcação.

Loreto faz o possível para controlar o timão, mas quando Poseidon salta a amurada é como se o tempo parasse e não houvesse mais ar em seus pulmões. Ícaro, entretanto, não perde tempo e, tão logo desce do mastro, amarra firmemente uma corda grossa e longa na amurada e então repete o processo no próprio tronco, dirigindo apenas um rápido olhar por sobre o ombro para Hermes antes de também saltar, em busca do capitão.

Ninguém vai se afogar. Não no meu turno, foram suas palavras e o primeiro imediato precisa se forçar a acreditar na certeza delas enquanto segue conduzindo o Olympique, porque não é capaz sequer de conceber uma existência sem aqueles dois homens em sua vida.

Será que Poseidon sabia o quanto o admirava? E Ícaro, por Deus, ele certamente não fazia ideia do tamanho do carinho que nutria por si. Estavam juntos, mas nunca lhe dissera... Não teve a oportunidade de dizer com todas as letras que...

O que aconteceu na sequência foi muito rápido.

A corda se retesou em seu comprimento máximo bem quando, tão abruptamente quanto começara, o temporal cessou. Parecia mentira que a escuridão anterior pudesse se transformar neste bonito céu azul com tamanha rapidez, mas em poucos segundos não havia um único resquício de nuvens no céu e os trovões pareciam lembranças de um passado longínquo.

Dando um jeito de firmar o timão na posição correta, Hermes apressou-se para a borda, onde avistou a silhueta de um homem boiando na superfície. Agindo rapidamente, começa a puxar a corda em direção ao navio e, com o laço firme na cintura, Ícaro consegue ser içado de volta para o barco, um Poseidon inconsciente em seus braços.

Já em segurança, no chão de madeira da meia-nau, o almirante ignora completamente o cansaço em decorrência do tenso mergulho e inicia uma respiração boca-a-boca no capitão desacordado, alternando o movimento com a pressão das palmas no centro de seu tórax. Quando a ação finalmente tem efeito, Poseidon desperta cuspindo bile, água e espuma. Apesar disso, os dois homens ainda têm toda a atenção voltada em verificar se o marinheiro realmente estava bem.

- Agora eu entendo... – O moreno começou, quando finalmente reencontrou a própria voz. Ela sai rouca e arrastada, mas logo ele voltaria ao normal. – ... o que você viu nele, Loreto. O filho da mãe me deu um beijo que me deixou sem fôlego.

 Quase sem acreditar, Ícaro suspira aliviado, finalmente relaxando e deixando escapar uma gargalhada. Hermes, por sua vez, sente que poderia terminar com as próprias mãos o serviço que o afogamento não concluíra, mas prefere puxar o loiro para seus braços e dar-lhe um beijo apaixonado.

Sem acreditar na própria sorte, Poseidon encara aquelas águas com intensidade e sorri honestamente ao voltar-se para os amigos entregues naquele momento muito íntimo e proferir:

- Ei, o que foi que eu disse sobre indecências no meu barco?

Sem interromper o beijo, seu primeiro-imediato lhe mostra o dedo do meio e – pela primeira vez em muito tempo – o moreno acredita que tudo vai ficar bem. Na proteção do abraço de Hermes, com a corda ainda firme na cintura, Ícaro tem certeza de que encontrou o seu lugar.

 

●○☼○●

 

Como que proveniente das sabedorias de uma antiga feiticeira, há a certeza de que para cada marujo assustado pelos trovões da tempestade, há uma bússola.

Cada pecador arrependido encontra redenção em uma oração.

Nada mais justo, então, do que crer com essa mesma fé que, para cada jovem sonhador despencando do céu por ter voado muito perto do Sol, haverá um anjo com asas nos pés para lhe amparar a queda. Um espírito risonho, viajante, zombeteiro, que, talvez não tendo gostado do fim do mito, se propõe a reinterpretá-lo.

Dois espíritos – agora livres – navegando eternamente, rumo ao horizonte.



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