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História Crônicas e contos de um adolescente suicida - Joana Francesa


Escrita por: Luciuslestrange

Capítulo 12 - Joana Francesa


Ela mentia, ria e chorava excessivamente. Era falsa, fria e manipuladora. Estava manipulando ali, sentada ouvindo tranquilamente "Bom Concelho." Fingia que lia um livro da Clarice Lispector que estava muito muito velho. Só passava os olhos cor de âmbar pelas páginas amareladas. Os óculos forçavam a vista, ou era o sono que a atordoava. Os ônibus suíços não tinham lá muita diferença dos brasileiros, achou que em qualquer país o sentimento nostálgico de olhar a vida passar da janela do ônibus é válido. É uma coisa meio utópica sabe, uma mulher suas mentiras e sua janela de ônibus. Gabriela sente uma dor estranha de cabeça, logo apanha uma aspirina do potinho (nunca saía de lugar nenhum sem cigarros, remédios e goma de mascar), e toma, sem água nem nada. O comprimido passa raspando na garganta da menina, teve o medo de engasgar mas fez mais força com a garganta. Quando apoiou as costas na poltrona plástica do ônibus, acabou por deixar cair algumas moedas da bolsa. Olhou os valores, eram altos, mas pensou que principalmente teria de se abaixar, nada valeria o esforço de ter de juntar aquelas moedas. Para uma pessoa como ela, que já estava no fundo do poço, se mexer faria entrar ainda mais. As pessoas no ônibus olhavam-na com algum pudor, queriam saber interiormente se ela daria ou não algum jeito naquele dinheiro. Mal sabiam ela que aquela menina que tinha um trópico na pele (como dizia cinicamente Laura), não se importava mais com questões financeiras. Os pais mandavam dinheiro precioso da Suíça. Ela nada suavemente encosta a cabeça na janela, foi quase que uma batida. Pensou estar meio "grog" devido ao comprimido de dor na cabeça. Fechou os olhos e imaginou o fim. O seu fim. Velha, e triste. Velha e triste em uma casa de dois andares azul envolta por um mundaréu de prédios cinza. Depois que leu "Admirável Mundo Novo", tinha um medo danado do futuro. Queria sair dali, talvez parar em um bar e tomar um copo d'água, já que tomar uma taça de vinho (sua real vontade) estragaria ainda mais seu dia. Ela levanta, a muito custo, pega aquelas moedas e aperta a campainha do ônibus. Ele dá uma freada brusca e as moedas caem no chão. Ela grita em alto e bom som um "Vá a merda!" E deixa as moedas lá. Passando algum tempo, chegando próximo a quadra de seu apartamento, viu-se na vitrina de uma loja de chocolates: Estava com os cabelos ligeiramente despenteados, um jeans rasgado nas coxas, o sobretudo preto estava absurdamente desbotado e a boca estava com aftas. Tinha comido abacaxi, mesmo sabendo que dá afta. Quando se está em um estado de espírito como o dela, de sutil entendimento e decadência, coisas como abacaxi são pífias. Não pode ver seus olhos d'água na vitrina, porque tinha colocado uns óculos escuros redondos. Quando não se achava bonita, colocava uns óculos enormes.mesmo em um dia de frio como esse.

De uma beleza sutil, com seus olhos castanhos que pareciam líquidos e sua boca bonita, ela entrou no prédio sem dar alô para o porteiro. Logo no elevador, Gabriela tirou os sapatos e antes de entrar sorriu para a vizinha de porta. Era invisível. Fez questão aproveitar aquela invisibilidade toda. Foi livre e invisível para se despir toda e catar uma camisa muito mais velha no chão da cozinha. Estava com dor de cabeça, a aspirina não tinha anidado em nada. Pensou em passar um café. Isso! Um café ajudaria! Embora seus cafés sejam sempre muito fortes e quase que intragáveis, colocou a água pra esquentar. Olhou o apartamento ao redor. Era até que bonito, tinha uma coisa meio envidraçada que também parecia água. Luminárias, quadros e cortinas. Poltronas e jogo de cozinha em aço inox. Era tudo meio frio, meio burguês. Ela era invisível daquela tal casa sem cor. Nada ali era seu, nada tinha o seu cheiro de cachaça e de suor. Era tudo maquinalmente frio e sem vida. Não... Os tapetes iranianos são bonitos, cheio de cores vivas que se complicam e se completam em um caleidoscópio sem lógica. Os livros antiquérrimos, da estante de mogno também eram seus. Livros encadernados em couro, cheio de floreios prateados na capa. Tinha lido alguns. Leu O Morro dos Ventos Uivantes, Admirável Mundo Novo, a Divina Comédia... Era estranho pensar que só tinha livros e um tapete. Tudo ali não era seu, nem a vida era sua. Ela ouve a chaleira apitar, a água estava propícia para o café, mas Gabriela já não tinha mais ânimo. O que era seu ali ? Sim, propriamente seu, sem ter sido metodicamente escolhido e comprado pela mãe. O tapete que ela comprou num brechó, a prateleira e o toca discos que ela comprara num antiquário, as pedras de ágata e o porta retrato de prata, que ela comprou em uma loja de decoração qualquer. Aquilo era lindo, mesmo estando em uma mesinha de vidro toda trançada. A foto emoldurada no retrato de prata vazado, era dela com Heloisa Magalhães, ela sorria cinicamente. Não era recente, fazia cerca de um ano, era um bar em frente a praia, as duas estavam fazendo uma viagem pela Bahia. Tinha uma lua cor de champanhe francês e um cheiro de peixe sendo salgado. Helô estava linda, os cabelos louros castigados pelo sol e seus olhos que de tão azuis pareciam inexistentes. Falava das plantas que gostava e do jardim de inverno que faria no apartamento da amada quando voltassem. Gabs já nem ouvia tudo, na verdade não queria ouvir mais nada. Era uma voz meio chata, uma coisa melodiosa meio obvia. Uma coisa que falava de tudo e ao mesmo tempo cousa alguma. No fundo, já estava meio que enfastiada dela. Não dela Helô, mas dela Gabriela. Tinha dias que nem se suportava. Por que suportar aquela menina loira ? Só por que era o amor da sua vida ?

Era um quinze de novembro, fazia um tempo frio, mas claro. Gabriela estava quase que irreconhecível, com uma blusa listrada em cinza e preto. Estava com muito frio, mas segundo a mãe ela tinha de fazer esse tipo de coisa, fazia bem pra ela. Ela tinha saído da clínica de reabilitação a cerca de dois meses, aprendeu que não se mistura vodca com lexotan. 
Ela passeava tranquilamente ali pelo gramado do Jardim Botânico. Parando para pensar, também era envidraçado, até mais que o apartamento. Eram oito e quarenta da manhã, o lugar estava quase que deserto, a não ser pelos seguranças que lá estavam. Ela ainda balbuciava de sono, mas mesmo assim quis ficar ali. era bom sentir aquele vento frio, cortava-lhe a cara. Era bom, sentia cada músculo de seu corpo se movimentar. Ouviu doze badaladas, doze pancadas. Tinha alguma igreja por ali ? Provável. Em algum momento, não sabia ao certo, sentia o corpo andar por si só, como um sentimento e não um corpo. Quando deu por si novamente, olhava fixamente Heloísa. 
Loiríssima Heloísa, com os olhos cheios de perdão e a boca sem cor e rachada. De nariz longo e proporcional, de blusa branca tipo regata. Ela achou-a bonita, mas negou. Ta na moda, hoje se nega tudo. A menina loira mexia na terra totalmente certa daquilo que estava fazendo. Teve medo e pudor de ir ate a garota, o que haveria de dizer ? Não se falaram, mas quando viu que a garota estava saindo, Gabriela agarrou o braço dela. Olharam-se por um longo tempo, os olhos de ambas eram líquidos e perigosos, era quase que mercúrio. Foram pra cama logo depois disso, sem nenhum amor, afeto ou açúcar, aquilo tudo era sem açúcar. Logo depois das tórridas horas a fio, Gabs se encontrava nos braços úmidos de Heloísa, mas ainda estava com as mãos nas ancas morenas e grossas da menina. Pensava friamente, aquele apartamento a assustava, parecia um labirinto. Um labirinto de labirintos dentro do apartamento. Era tudo frio ali, era diferente do que Helô conhecia, ela que gostava de plantinhas e de natureza, que fez curso de botânica e faz estágio no Jardim Botânico, que ia a bares e beijava garotas e garotos na boca. Era tudo muito clean, muito calmo pra ela. Aquilo parecia muito cinismo, era estranho tudo aquilo. Precisava tomar água, levantou, vestiu uma camiseta muito mas muito velha cinza que estava jogada no chão.
Meio morta estava Gabs, absorta nos lençóis brancos da cama enorme. Olhou-se no espelho do guarda-roupa não tinha se achado, ninguém sabia o que era, nem ela mesma sabia. Songes et mensonges, ela sabia de longe. 

Terminaram num dia de chuva. Gabs tinha tomado cinco doses de vodca e fumado três carteiras de cigarro barato. Ela estava vestida de preto, com os cabelos pela cara e óculos redondos.

Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.

Não tinha coragem de olha-la na cara. A verdade é que estava cansada daquilo tudo que representava, aquelas tais cobranças. Nunca tinha vivido aquelas coisas de ter de dar satisfação, de ter de dizer que amava, de não poder ter um momento só seu. Poxa vida, será que todo namorado era assim ? Essa coisa de ter de sair sempre junto, de não poder ter a sua individualidade, de ter de se preocupar e se policiar naquilo que falava. Era pelo fato de ser uma garota ? Esperou que não, porque não pretendia deixar de gostar de meninas.
Helô chegou ensopada, friamente a hospedeira mandou ir até o banheiro pegar uma toalha. A visita sentiu o mundo desabar. Aquele disco da Bethânia riscava o apartamento. Era o ''Rosa dos Ventos'', de 1971. Reconheceu pelo fato de terem comprado recentemente num sebo. A dona flertou descaradamente com Gabs. E pior, ela retribuiu! Heloísa queria morrer, queria arrastar o bico do seio da dona do sebo no chapisco do muro! Ela fechou-se em copas o resto do programa, e a outra sequer perguntou o que estava acontecendo. Era indiferente, era como se ela não fosse nada para a morena. 
Ela se secou, e quando voltou, encontrou-a sentada meio que ilhada naquele apartamento. Ela pediu pra outra um cigarro, mas Gabs disse que não tinha. As sete janelas estavam abertas, chovia e ensopava o piso de mármore. Ela estava pálida, quase transparentes, com o cabelo preto pela cara.

Ambas estavam cansadas, queriam sair pela porta, mas apenas a visitante saiu. Bethânia ainda reverberava (insistentemente, assim como enquanto escrevo) no ambiente


Desculpe a paz que eu lhe roubei
E o futuro esperado que eu não dei
É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais

 

Gabs sente uma lágrima escorrer, acende um cigarro, tira os óculos e caminha até o espelho de moldura dorada, em algum canto da sala. permitiu-se ver-se chorar. Desesperada pega uma pedra de ágata e com uma força tremenda joga no espelho. Calmamente volta ao sofá e posiciona retrato para baixo, pra modo de não vê-lo

era só uma aquariana fria, levemente cínica e principalmente, indecisa



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