Há muito tempo, no Japão feudal no período kamakura (1185-1333) a elite guerreira, os vassalos do xogunato, recebia o posto de categoria dominante e importantes encargos e controle de áreas em todo o país como recompensa por seus serviços. O regime era administrado por três integrantes do clã Minamoto junto com o clã Hōjō, cujos membros foram os verdadeiros governantes nomeados pelo Xogum, onde em 1203 Hōjō Tokimasa exerceu o primeiro cargo de Shikken.
Este foi o primeiro governo militar, que conduziu a ascensão dos samurais como classe dominante do país, anteriormente considerada como inferior à aristocracia tradicional. Desses samurais do regime, eram os irmãos Kazumaru e Jun Ubuyashiki e Tayoumaru Tsugikuni. Os três eram grandes amigos e cada um possuía diferentes habilidades e eram respeitados em suas terras.
O período Kamakura foi marcado por várias guerras e conflitos entre clãs e também contra outros povos. Um dos conflitos mais interessantes dessa época foi contra os mongóis. Em 1274, Kublai Khan, rei da Mongólia, decidiu expandir seus domínios conquistando também o Japão, isso porque ele acreditava que o Japão era um país rico em ouro e outros minerais. Então Kublai enviou um exército de 40 mil homens até a baía de Hakata. Apesar de os samurais terem lutado bravamente para proteger seu território, a superioridade numérica dos mongóis era muito grande, mas não perderam a batalha. Durante uma noite de descanso dos mongóis, um poderoso furacão afundou vários barcos e obrigou o exército a recuar, os samurais então aproveitaram a oportunidade para expulsar de vez os mongóis. Mas não desistiram de conquistar o Japão e em 1281 o rei Kublai Khan enviou outro exército, desta vez com mais de 140 mil soldados, que desembarcaram no mesmo lugar, no litoral de Hakata. Durante dois meses os samurais tentaram defender suas terras quando de novo, de forma milagrosa, um tufão varreu o litoral de Kyushu, forçando os navios mongóis recuares novamente.
O Japão então venceu por duas vezes um inimigo muito superior a eles graças aos seus tufões que ficaram conhecidos como Kamikaze, que significa vento divino e passaram a acreditar serem protegidos pelos deuses. Entretanto, hoje muitos estudiosos acreditam que a destruição da frota foi extremamente facilitada por dois fatores adicionais: a maioria das forças de invasão foi composta de botes fluviais chineses e navios leves e frágeis. Tais navios não podiam enfrentar o oceano aberto. Além disso, os navios de oceano verdadeiros na frota de Kublai tinham sido construídos pelos engenheiros chineses, que tinham introduzido deliberadamente falhas fatais em muitos dos navios.
Mas essa é a história que os livros lhe contaram, o que aconteceu, foi sim algo sobrenatural, mas demoníaco.
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Com o avanço dos guerreiros mongóis, os samurais se viam cada vez mais encurralados, não importava suas habilidades com as temidas katanas, o exército inimigo era muito superior em números. Então, numa última tentativa de proteger seu país e suas terras, Kazu, um ambicioso que almejava o poder, seguiu os boatos cada vez mais falados sobre uma bruxa que carregava uma força sobrenatural e que queria passá-la para um poderoso guerreiro. Viajou acreditando que seria capaz de conquistar esse poder, pois não podia mais ver seus homens perdendo a batalha. Depois de dez dias chegou na hoje cidade Sannohe e ao adentrar no interior da floresta, à procurou por três dias, cansado e perdendo as esperanças clamou no escuro do rajar da noite:
- Maldita! Apareça! Sei que mora nessa floresta, filha do demônio! Apareça lhe ofereço minha vida em troca…
Antes que pudesse concluir ouviu uma voz mansa e ranzinza vindo por suas costas.
- Poder… É sempre poder que vocês procuram.
A bruxa admirou a beleza do samurai, sua pele era clara como a neve, cabelos longos trançados e escuros em que uma mecha caía sobre seu rosto. Seus braços eram fortes e malhados e suas sobrancelhas eram finas e imperceptíveis, o traço no olhar oriental era marcante e mal se via seus cílios. Ao se virar assustado, Kazu se deparou com uma figura alta e magra, olhos de gato, dedos pretos e um sorriso intimidador deixando à mostra suas presas.
- É você… Você é a bruxa!?
- Se é assim que me chamam, sou…
- Eu vim por causa - mais uma vez não terminou a frase.
- Quer ganhar poder, para expulsar os invasores não é?
- Como sabe?
A bruxa deu um sorriso intimidador mostrando as presas
- Qual seu nome?
- Kazumaru Ubuyashiki!
- Olha “Kazu” - desdenhou do seu apelido, mas o samurai não se intimidou - nem todos que vem aqui saem vivos com o que pedem, pois nenhum é capaz de suportar.
- Eu sou! Sou um samurai!
- Muitos também eram. Alguns logo morreram, outros não aceitaram as consequências, alguns se arrependeram e outros desapareceram - ditava a frase circulando Kazu com o mesmo sorriso no rosto.
- E quais são as consequências?
- Se eu falar, desistirá. Estou cansada de oferecer meu serviço e ninguém ser capaz de suportar - o tom da resposta era mentira.
Kazu percebeu e respirou fundo.
- Me diga as consequências! Nada para mim é mais terrível do que morrer sem poder defender minha terra.
- A bruxa parou de andar em volta do samurai e tirando o sorriso do rosto disse:
- Maldição. Sua vida será amaldiçoada por uma sede incontrolável e você viverá por anos, mas não poderá sair ao sol. Sua família será amaldiçoada por sua carne podre enquanto você viver nas sombras. Essa maldição se acabará quando uma gota de sol penetrar seu sangue.
- Então eu só não preciso sair ao sol? - Perguntou sem ter certeza se entendo as consequências.
- Você não tem medo não é? Seu irmão teria?
- Como sabe que tenho irmão?
- Eu sei de tudo… Bom, terás que aceitar essa maldição para ter o que deseja.
- Me explique primeiro! O que é “viver em carne podre”?
- Vou lhe contar uma breve história. Eu era esposa de um belo samurai, mas perdi ele pelos abusos desse Xogum. Sozinha, com dois filhos e com medo de perdê-los pelo regime, decidi fugir e me esconder nessa floresta, mas sem recursos não poderia protegê-los, então fiz a pior escolha que poderia.
Como fui criada por mulheres muito religiosas, conhecia os métodos para fazer um pacto com o Diabo. Pedi força à ele para proteger meus filhos. Pedi poder, vida. Pedi que qualquer homem que me tocasse morresse afogado em seu próprio sangue. Mas é claro, ele pediu algo em troca.
- O que ele pediu?
Depois de uma pausa.
- Minha alma é claro. Ganhei o que pedi, mas também uma sede insaciável por sangue, e melhor, sangue dos homens a quem eu tanto desprezava. Mas ele disse que assim que eu provasse qualquer sangue, estaria destinada a viver nas sombras para sempre e minha família carregaria na pele a minha carne morta enquanto eu vivesse. No primeiro momento não encontrei nenhum homem para poder matá-lo com minhas próprias mãos, então fui para casa.
Encontrei meus filhos e admito, senti uma vontade absurda de sugar o sangue deles. Chorei arrasada, queria meus filhos fortes e felizes, pois eles eram a única coisa boa que ganhei servindo o regime. Desisti.
Não provei sangue de nenhum homem, mas a força me sobrecarregou, então usei disso para cuidar das minhas crianças. Foi nessa floresta que começou toda essa história que você veio buscar.
Um velho bateu em minha porta certa noite, disse que seguiu meu filho mais velho na beira do rio e que o queria levá-lo para servir ao Xogum. “Era um desperdício, braços fortes viverem dentro da floresta, braços que o Xogum precisava” - imitou uma voz velha debochada.
Kazu ouvia tudo com muita atenção, a Bruxa parecia emocionada quando começou a citar os filhos.
- Ele achou que estava em vantagem por perceber que as crianças não tinham pai em casa, mas eu fui forte para o impedir de entrar com aquela espada. Ele conseguiu me cortar. Mas esse corte foi o suficiente para ele morrer. Ele provou meu sangue sem querer, pois respingou em seu rosto… Ele morreu ali mesmo - deu de ombros - Afogado não no dele, mas no meu sangue.
- Como? - perguntou ríspido.
- Porque ele não era forte. Só assim entendi o que meu sangue poderia fazer, por isso que todos que vem me pedir poder, não suportam carregá-lo. E eu sei que quem suportar e provar de uma vida humana, estarei me libertando porque a maldição não estará mais dentro da minha família.
- Sabe?
- O diabo contou é claro - sorriu debochada - antes de me conceder, me certificou que se eu não comesse a carne humana só estaria livre da sede se um nobre provasse meu sangue contaminado, era o desejo dele amaldiçoar o Xogum. Disse que admirava os humanos ambiciosos e que carregavam cargos de liderança, quando chamei ele, se sentiu lisonjeado em me fornecer esse poder em terras japonesas, terras que ele estava obcecado em amaldiçoar.
Bom, eu não provei nenhuma carne de homem e como disse, viveria por anos nas sombras. Eu ainda saio ao sol. Mas só como carne de porco ensanguentada. Se eu tivesse feito o que ele disse, meus filhos talvez estariam mortos por mim ou pela maldição. A pele deles iria se decompor até eles morrerem, entendeu?
- E quer que eu aceite essa maldição?
- Você que me procurou, então sim.
- Mas não sou nobre. Não sou um Xogum.
- O diabo também não explicou quem seria o nobre. Por isso qualquer um acha que é capaz de suportar.
O samurai cruzou os braços e caminhou em círculos, não sabia dessa parte da história, os boatos eram apenas que uma Bruxa lhe concederia força se fosse capaz de suportar.
Começou a pensar na única família que tinha para receber aquela maldição, Jun. Seu irmão mais novo não parecia nada consigo era uma cópia cuspida da falecida mãe, com rosto oval e lábios pálidos, usava um rabo de cavalo para suportar os longos cabelos pretos. Lembrou da última vez que o viu, meses atrás, onde só disse um breve “olá” e levou sementes emprestadas para a suas terras. Também pensou na única ponte que o ligava com o irmão, seu amigo Tayoumaru, outro que também não via há muito tempo, os três foram criados juntos. Jun embora bravo guerreiro, ácido e autoritário era um homem religioso como a família e respeitado por ser um líder com compaixão, se compadecia até mesmo com a vida de um mero animal. Orava a Deus por cada vida perdida em campo.
- Deve ter puxado a mamãe mesmo - pensou.
A possibilidade da morte era iminente, não sabia o que encontraria “do outro lado”, nunca acreditou nisso, mesmo sendo criado em meio a orações e oferendas. Pensou se o irmão iria orar por sua alma.
- É claro que sim - desdenhou.
A questão da nobreza o deixava aflito, ele era apenas um samurai escolhido pelo Xogum. Não sabia qual era o tamanho da força ou se morreria tomando o sangue da bruxa, sabia que ela não responderia mais nenhuma pergunta a não ser se a resposta cabia um “sim” ou “não”, então continuou quieto pensando nas inúmeras possibilidades. Lembrou que quando criança seu pai maltratava sua mãe, mesmo ela grávida de Jun. Se lembrava dela chorando e as marcas de espancamento em seu corpo, isso o fez se empenhar em ser um samurai para protegê-la dos ataques do pai, mas antes de entrar na adolescência seu pai morreu em mais uma batalha do então Xogum para conquista de terras pela Ásia.
Lembrou das últimas palavras de Mahina, sua mãe, já quando era um guerreiro: “não tenha raiva do seu pai, ele lhe honrou como filho, perdoe a alma dele”. Seus olhos se encheram de lágrimas, sentia falta da mãe, era a única na família que o amava, Teru seu pai, era ausente e só aparecia em casa ou no campo para maltratar a família, mas também lembrava de quando Jun nascera, o comportamento do pai mudara, embora convivesse pouco com o recém nascido, lhe dava mais atenção. Então pensou se o irmão sentiria a sua falta.
- É claro que não - se irritou.
- E eu me tornarei assim como você se beber seu sangue? - perguntou olhando os olhos e dentes da Bruxa.
- Talvez - sorriu.
- Me de!
- Tem certeza? E seu irmão?
- O que tiver que acontecer, não sentirei falta dele, ele é um fraco.
A bruxa não insistiu, gostava de cada homem que pedia uma gota de seu sangue, e como não tinha nenhuma esperança de acabar com aquela sede, estendeu o braço para que Kazu provasse já na intenção de admirar ele se contorcer até a morte.
E ele sim se contorceu, mas não morreu. Gritava e sangrava pelos olhos, suplicava para que a Bruxa o matasse com a própria espada, mas ela ficou paralisada e espantada, esperava por segundos o samurai morrer, mas continuava apenas a se contorcer. Viu sua mão formigar e a cor dos dedos se sobressair, não entendeu porque Kazu estava suportando, mas estava gostando de voltar à face de uma simples mulher novamente. Não pensou duas vezes, ele era um nobre ou tinha sangue de um. Então ajoelhou aos ouvidos do samurai e disse:
- Mate-os!
Um calor incontrolável invadiu o corpo do samurai, sua visão ficou nitidamente clara no breu da floresta e seus dentes aumentaram de tamanho, uma ventania tomou conta de onde eles estavam e como um piscar de olhos ele correu seguindo a ordem da bruxa. Correu como um soprar dos ventos mais fortes do inverno, correu que não se ouvia seus pés, correu como um poderoso furacão e chegou à baía de Hakata em minutos, com sede, não de água, mas sangue. Invadiu os barcos mongóis e assassinou cada guerreiro neles, se escondeu da luz do sol e repetiu o processo mais uma vez fazendo os japoneses acreditarem que aqueles ventos eram algo divino.
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