Nozomu Itoshiki estava sentado à beira do lago fundo de um parque semiabandonado há quase um quarto de hora, muito compenetrado na tarefa que estava a executar, a de amarrar uma grande pedra no tornozelo.
O porquê de ele se querer matar? Já nem sabia! Mas não importava se lhe falhava a memória, motivos para o suicídio não lhe faltavam. Era o mundo, aquele mundo em que vivia, que o punha em constante desespero. Para onde quer que olhasse só via tristes macabrosidades.
Na água do lago, por exemplo, boiavam migalhas de batata-frita que crianças para lá tinham atirado na intenção de alimentarem aves aquáticas, inocentes do facto de antes as estarem a envenenar. Acolá, ainda melhor exemplo, um grupo de patos machos violava uma pobre fêmea, que obrigada pelo instinto seria a amar os filhos de que engravidaria. Uma abelha que sofria de hemorragias internas, pisada pelo pesado pé de alguém, miseravelmente pela relva se arrastava. E os canaviais melhor não estavam, abraçados a porcos fios de nylon que lentamente os estrangulavam.
“Que mundo, que mundo…” Pensou Nozomu, com a cabeça enterrada nas mãos. Depois, mergulhou os braços no lodo do lago, tão escuro quanto o coração das pessoas que amarram latas às caudas dos cachorros vadios. Tendo-se habituado à temperatura das águas, preparou-se para o ato final do teatro da vida.
- Momoiro Kakarichō! – Ouviu subitamente chamar. Aquela voz, aquela alcunha… aquela pessoa não podia ser outra que não Kafuka, sua aluna. A estudante estava para o professor como o dia está para a noite, como o Céu está para o Inferno, como o chocolate branco está para o chocolate negro. Tão opostos eram que os seus nomes deveriam aparecer no dicionário como antónimos um do outro.
- Momoiro Kakarichō… - Disse ela outra vez, abeirando-se do professor e depositando-lhe uns poucos ienes na palma da mão. É que ela pagava-lhe para o poder chamar pela alcunha ridícula. – Que é que está a fazer?
- Que te parece? – Volveu Nozomu sem paciência, gesticulando na direcção da grande rocha que tinha atada ao tornozelo.
- Vai nadar? – Tentou Kafuka adivinhar.
- Ó menina, isto lá é hora de nadar? Quem viria para aqui nadar de madrugada?
- Então, já sei, veio estudar os peixes. Desta vez acertei! – Afirmou, convicta.
Nozomu apertou a cana do nariz, frustrado pelo optimismo cego da sua aluna.
- Vim suicidar-me! – Desabafou, por fim, tentando que a revelação soasse o mais dramática possível. E ia lançar-se num discurso soturno de fazer chorar as pedras da calçada quando Kafuka o interrompeu:
- Sereias, veio procurar sereias! Mas… achava eu que elas viviam só no mar. – E Kafuka insistia.
- Ouviste sequer o que eu disse ou fazes-te de surda? – Reclamou Nozomu, chateado por aquela menina nunca o levar a sério.
- Ouvi sim, mas sei que o senhor professor está a brincar. Isso de as pessoas se tentarem matar afogando-se em lagos só acontece nos filmes. Ademais, mesmo que não fosse apenas ficção, ninguém iria tentar tirar a vida num dia tão bonito de sol. Ainda mal veio a luz e a terra já está quente.
Uma torrente de maus pensamentos invadiu a cabeça de Nozomu.
- Ah, o sol… este dia tão quente! Em poucas horas estará a matar à sede milhares de crianças em África.
Kafuka não se deixou intimidar e retrucou:
- Não seja por isso, logo vem a chuva.
- Essa e o frio vêm causar o infortúnio de sem-abrigo um pouco por todo o mundo.
E assim continuavam, o docente e a sua aluna, a puxarem cada qual pelo seu lado da corda. Era ver quem tinha as mais teimosas convicções.
Kafuka deixou escorregar para o chão a mochila que tinha às costas e retirou dela um livro que andavam a ler nas aulas de Japonês: “O Pequeno Príncipe”. Como se fosse um pastor a segurar num livro sagrado declamou:
“O que torna belo o deserto, é que ele esconde um poço nalgum lugar...”
Nozomu nada disse, indiferente às palavras.
- Chiri diz que é uma metáfora para a vida… mas eu não concordo! – Quebrou Kafuka o silêncio que se seguiu. – Para mim a vida é como um mar, um mar de felicidade e beleza.
Uma ruga de descontentamento surgiu entre as sobrancelhas do professor. Aquela visão do mundo quase o ofendia. Que a vida fosse um deserto com poços, vá lá, ainda dava para engolir, mas um mar perfeito?
- Não haverá nem umas ilhas nesse teu mar, Kafuka? – Questionou, portanto, com um certo azedume.
Os olhos da menina ganharam um aspecto vítreo quando ela os pousou no horizonte. De facto, ficaram tão assustadores que Nozomu sentiu um arrepio percorrê-lo.
- Algumas… - Acabou por admitir, com um enigmático sorriso.
A cena encarcerou o professor num peculiar desassossego. A intenção de se afogar naquele lago tinha ficado algures esquecida num canto da sua mente.
Para fugir do sorriso de Kafuka, Nozomu baixou os olhos e, ao fazê-lo, percebeu que ainda tinha os ienes que ela lhe tinha dado na palma da mão direita. E, como não se sentia bem a receber dinheiro da sua aluna, cogitou numa maneira discreta de os devolver. Pagar-lhe um gelado pareceu-lhe uma boa ideia, então, após lhe ter feito o convite, tentou levantar-se, esquecendo-se que ainda tinha a pedra amarrada ao tornozelo.
Tropeçou, e o riso de Kafuka pintou-lhe as orelhas de vermelho. Pigarreou para espantar o embaraço, baixou-se para se soltar, guardou a corda (ia, com certeza, ser necessária um outro dia) e conduziu a sua aluna para fora do parque.
Do outro lado da estrada, havia uma afamada banca de gelados para onde os dois se dirigiram. Os gelados não eram os melhores, mas eram vendidos por tuta-e-meia e por esse motivo souberam divinamente bem.
Despediram-se e seguiram cada qual para sua casa, Zetzubou caminhando no seu deserto com poços e Kafuka nadando no seu mar com ilhas.
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