_Por que sorri? - Questionou Fenrir, asperamente, como a censurar meu pequeno momento de contentamento (e de fato, obliterando-o).
_Por ter me divertido com os gracejos do bardo. - Respondi, em tom de quem se defende.
_Que motivo simples para sorrir. - Debochou ele, conhecedor das complexidades de minhas mágoas.
_Então tua existência é complexa o suficiente para perceber que a alegria vem da simplicidade absoluta? - Revidei, ciente das idéias intuitivas de Fenrir.
_Mas é claro! - Disse ele, mas o desgosto era refletido em suas feições. - Afinal, há nesse mundo coisa mais simples do que o rasgar da carne e o arranhar dos ossos? Para ti, homem de tamanha clareza, meus desejos e pensamentos são de certo tão óbvios quanto a cor de teu cavalo.
Me calei diante do maldoso sorriso que se seguiu a tais palavras. Avisei mentalmente a mim mesmo que não devo esquecer-me do único desejo de Fenrir, que é eu baixar minha guarda e o livrar das grades que o cercam.
_Se achas tão simples o jorrar do sangue, não estarás de acordo quando eu me irritar e lhe ferroar o peito? - Comentei, finalmente.
_Se isso lhe trouxer paz. - Concordou ele, com uma reverência. A mim fazia-se claro que para Fenrir a morte é apenas mais uma saída de sua jaula. Talvez por isso ele não se importasse com as vidas que tiraria.
_Vê a camponesa ali adiante? - Apontou ele. - Não há dúvidas de que é uma infeliz. Crava tua espada naquele coração, e livra-a de seu tormento.
_Cala-te.
_Qual o problema? Não é ela a mesma camponesa que roubou tua preciosa adaga de ouro?
_Eu disse "Cala-te".
_E quanto àquela marquesa, que cavalga próxima ao mercante? Não foi ela quem cuspiu em teu rosto, quando ofereceste, tão gentilmente, teu cavalo para que ela cruzasse o lamaçal? Por que não as odeia? Será que as ama? Deseja-as? Por que não te consumas homem, e faz delas tua posse?
Tomado pela ira, ergui a mão, tocando o cabo de minha espada, e encarei o encarcerado. A diversão era evidente em seus olhos, que brilhavam intensamente na escuridão de sua cela, mais vermelhos do que o sangue que tanto desejavam. Em um profundo suspiro, busquei acalmar-me, me sentei junto às grades e respondi com serenidade:
_Não importa o tamanho do meu carinho pela camponesa, tampouco a minha admiração pela marquesa, pois meu coração já tem posse e pela mesma ja é possuído.
_Quão curioso! - Admirou-se Fenrir. - Diz, jovem soldado, por que aprisionas teu próprio coração, quando ele pulsa furiosamente desejando rasgar-lhe o peito para se libertar?
E dizendo isso, Fenrir esticou o braço para fora da jaula e, agarrando meu tórax com a mão, forçou-me contra as grades, com tamanha força que mal me permitia respirar. Sem me intimidar, proferi minha resposta:
_Para que eu mesmo não termine enjaulado.
Reduzindo a pressão com que me apertava, ele se calou. Respirando melhor, prossegui:
_Deixando meu coração à solta, minha própria vida acabaria por me encarcerar na solidão.
Soltando-me, Fenrir se aproximou e disse baixo em meu ouvido, antes de se recolher às sombras e ao silêncio de sua prisão:
_Então temes o cárcere? Pois diga-me quem é mais livre: tu...ou eu?
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