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História Dissidentes - 01. Olhos selvagens


Escrita por: police

Notas do Autor


Hi everyone! Antes mais nada eu quero agradecer o imenso carinho que a fic recebeu somente nesse prefácio, vocês são incríveis demais, estou sem palavras.
Antes de ir até o capítulo eu tenho uns avisos importantes pra dar, aqueles que sempre têm em começos de fanfic e detalhes a mais:
➸ Me baseei num livro chamado Delírio para fazer essa fanfic, então vão haver semelhanças com o livro no começo, mas depois a fic toma uma rumo muito diferente.
➸ O Justin tem 19 anos na fic
➸ A fic não é movida a comentários, de jeito nenhum. Embora seja muito, repito, MUITO importante que vocês deixem suas opiniões, façam apenas se quiserem.
➸ Dissidentes não vai ser uma fanfic grande, planejei mais ou menos entre 25 e 30 capítulos (pode ser que aumente ou diminua de acordo com ideias que possam surgir)
➸ Tentem sempre ler as notas do autor e as notas finais, pode haver recados importantes pra vocês.
➸ Eu não consigo escrever capítulos pequenos por causa do meu jeito detalhista, então se você não curte capítulos grandes me desculpe de verdade, mas não sei fazer diferente.
Espero que gostem do capítulo, nos vemos nas notas finais <3

Capítulo 2 - 01. Olhos selvagens


“As ferramentas de uma sociedade saudável são a obediência, o compromisso e a concordância. As responsabilidades estão nas mãos do governo, eles sabem o que é melhor para todos.”

― O Manual de Obediência, Segurança e Felicidade, p. 41

Portland, Maine ― 21 de maio de 2065

Louise Murray

Esta noite, eu tenho o mesmo sonho. Outra vez.

Estou correndo pela selva. O escuro da noite me engole enquanto minhas passadas rápidas e ritmadas ecoam pelo chão. O barulho de folhas secas sendo pisoteadas faz a trilha sonora do momento. Ao longe, enquanto corro alegre sentindo o vento gélido cortando meu rosto como pequenas e afiadas facas, ouço ruídos de vários animais. Todos selvagens, todos incontrolados. Pios de corujas, uivos de lobos, o bater das asas de morcegos... Ao invés de ser assustador é lindo, louvável. É o som da liberdade.

Meus pulmões ardem, protestam e gritam; meus músculos reclamam e queimam toda vez que meus calcanhares entram em contato com o solo. Mas não me atrevo a parar, eu sou livre. Continuo a correr sem destino noite adentro, uma sensação nunca experimentada por mim me inunda como um tsunami. Estou contente. Mais que isso. Se há um sentimento que vai além do contentamento e extasiante felicidade, é exatamente o que estou sentindo.

Mas, de repente, todo chão se torna instável e meus pés se atrapalham e escorregam pela lama espessa que do nada ali se formou. O solo passa a ceder e a se inclinar verticalmente, como uma ponte sendo elevada, e percebo estar à beira de um enorme penhasco. Lá embaixo o espumoso e agitado oceano me encara de volta, as violentas ondas dançando e batendo nas pedras em um ritmo próprio e inconstante. Tento me agarrar a qualquer coisa — árvores, plantas e pedras — para não cair. Meu corpo desliza e se arrasta em direção ao vazio. E quando finalmente tomo coragem para olhar para baixo, eu o vejo.

Meu pai me encara com seus olhos vazios, com braços abertos como se me chamasse para um abraço. Seu rosto numa tonalidade azul, emerso em meio às pedras e à correnteza do mar. É com essa visão que minhas mãos se desprendem do chumaço de grama que seguravam e eu caio para a negritude que é o oceano à noite. Caio para os braços do meu pai.

E então eu acordo. É sempre nesse momento que eu acordo.

Ao voltar à consciência, sinto minhas costas e travesseiros úmidos. O suor gelado escorre por minhas costelas como em uma cachoeira. Minha respiração está irregular e pisco repetidas vezes para que meus olhos se acostumem com a pouca luz. Pela janela, já é possível notar o sol esgueirando-se preguiçosamente pelo horizonte. Neste momento, ele é apenas uma linha fina e alaranjada se levantando ao leste. Encaro o relógio holográfico em cima da mesinha. São seis horas.

— Sonho ruim? — Uma voz infantil pergunta da cama ao lado. Anne mantém seus grandes olhos verdes em mim, parece curiosa enquanto se senta e os esfrega a fim de espantar o sono.

— Não é nada, Anne. — Digo da forma mais calma que consigo, após esperar alguns segundos para que minha respiração volte ao normal. ― Ainda temos um tempo até a hora de levantar, por que não tenta dormir mais um pouco?

— Estava sonhando com o papai de novo? — Insiste ela, visivelmente curiosa. Todas as crianças de nove anos de idade são. — Você gritou por ele enquanto dormia.

A lembrança do sonho me esmaga como se eu fosse um pequeno inseto — indesejado e nojento — perambulando por uma rodovia movimentada. Pés enormes estão sobre mim, me tirando todo ar e acuando-me. De fato não é a primeira vez que essa cena se repetia em meus sonhos, porém seu significado é algo que me assombra. Tento me convencer, repetindo inúmeras vezes em minha cabeça, de que não sou como meu pai.

Meu pai morreu há cinco anos. Segundo o governo, ele foi infectado pelo vírus da rebeldia e precisava ser removido do contato com a sociedade. A palavra “simpatizante” pisca seguidas vezes em minha mente, dança e se exibe pra mim toda vez em que eu penso nele. Meu pai foi acusado de proteger e acobertar Selvagens, um dos piores crimes que essa sociedade já viu. E então, num dia chuvoso e úmido qualquer de inverno, eles vieram buscá-lo. Reguladores apareceram por toda parte enquanto almoçávamos no domingo. Tinham armas apontadas para nós e seus cães assustadores nos miravam com suas bocas cheias de dentes, prontos para se fincarem em algo.

 “Ronald Murray” gritou um deles, sua voz distorcida em chiados pelo megafone que segurava. “Você está preso, leve as mãos à cabeça e não tente fugir.”

Então tudo passou a girar em câmera lenta. E eu assisti a cena, completamente paralisada. Permaneci imóvel, insondável, inerte enquanto eles o algemavam e o agrediam. Os latidos dos cães eram um som distante. Parecia que eu estava dentro de uma bolha blindada e à prova de som, onde nada podia ser processado de forma correta.

Meu pai estava ajoelhado no chão, tinha suas mãos na frente do corpo e em seu olhar era como se se desculpasse. Antes que pudessem levá-lo embora, sussurrou para mim com a voz falha, num tom baixo para que apenas nós dois escutássemos: “lembre-se Louise, somos livres aqui dentro” tentou apontar para meu coração, mas teve dificuldade por conta das algemas “eles não podem tirar isso de nós.” Então os reguladores o levaram e ele desapareceu pela porta, deixando um perplexo e doloroso silêncio em seu lugar. Aquela foi a última vez que o vi.

— Foi apenas um sonho e mal me lembro dele. — Digo, com uma calma forçada, para minha irmã mais nova que tem seus olhos grudados em mim, à espera de uma resposta. — Agora deite e tente descansar mais um pouco, ainda falta uma hora para às sete.

Anne não diz mais nada, apenas se enrosca novamente em seu cobertor e após mais algumas remexidas, se torna imóvel. Agradeço mentalmente por isso.

Eu entendo que meu pai foi executado pelo governo por ser um simpatizante. Simpatizantes são rebeldes, rebeldes são doentes e doentes precisam ser eliminados. Pode soar cruel, mas é assim que as coisas devem ser para manter a paz. Segundo o Manual de Obediência, Segurança e Felicidade a rebeldia é uma doença sem cura. Seu vírus corre pelas veias dos infectados, comendo suas almas até que nada mais reste, apodrecendo-os aos poucos de dentro para fora. Nunca se deixa um fruto podre perto dos sadios, é preciso eliminar qualquer resquício deles para impedir sua proliferação. Foi o que fizeram matando o meu pai.

Todos aqueles que se recusam a viver numa sociedade saudável como a nossa, são chamados de Selvagens. Esse nome não os é dado à toa, eles realmente vivem nas selvas. Vivem em terras não regulamentadas, terras sem governo, terras sem leis. São rebeldes e, portanto, doentes perigosos que precisam ser caçados até a completa extinção.

Ser um simpatizante é quase tão ruim quanto ser um Selvagem, pois eles os protegem, os encobrem e, em muitas das vezes, até concordam com o único objetivo que têm: destruir o governo. Portanto, são rebeldes do mesmo jeito e para este crime apenas a morte é a solução.

Falar sobre as Terras Selvagens e sobre quem por lá habita é proibido, mas isso não impede que alguns rumores circulem. Eu ouvi histórias de que os selvagens querem voltar a nos submeter aos dias sombrios, restabelecer a democracia e restaurar a liberdade. Restabelecer a sociedade que já passou por três Guerras mundiais, fora todos os conflitos e pessoas morrendo de fome e matando umas às outras diariamente. A ideia faz meu corpo tremer.

Liberdade. Esta é uma palavra engraçada, ao tentar desferi-la o som quase não sai, entala na garganta como se sua simples pronúncia fosse um ultraje; um crime; uma afronta. Seu conceito também é engraçado, para não dizer utópico. Como um simples ser humano poderia viver de acordo com sua própria vontade? Não depender de ninguém? Ser livre? Fazer suas próprias escolhas?

O direito de escolha não nos cabe pelo simples fato de que não sabemos o que é melhor para nós. Não há como tomarmos decisões próprias, pelo menos não sozinhos. É preciso que nos digam como, quando e o que fazer, desse jeito as coisas funcionam. Assim é o certo. Liberdade não serve de nada, é um conceito errôneo, defeituoso e ilusório. Não passa de uma mera palavra que ao menos é usada atualmente. É uma praga na sociedade que precisa ser eliminada, assim como os rebeldes. Pelo menos isso é o que aprendemos desde pequenos e é isso que tento pôr em minha cabeça todos os dias.

Somos melhores quando temos nossos instintos controlados.

O despertador alto e estridente finalmente soa e levanto da cama pronta para mais um dia. Todos os meus movimentos são mecânicos e, enquanto os executo, minha mente está em outro lugar e completamente alheia a tudo. Tomo banho, me visto, me arrumo e penteio sem notar. Durante essa hora que se passou não consegui mais pregar os olhos, com medo de sonhar novamente com meu pai, com a selva e algo relacionado àquela palavra proibida. Liberdade.

Antes mesmo de chegar à cozinha, já é possível ouvir o bater de pratos, copos e talheres. Minha mãe está preparando a mesa para o nosso desjejum. O aroma meio amargo do café, misturado ao cheiro salgado dos ovos inebria meus pensamentos e tudo que consigo pensar é no embrulho que se forma em meu estômago por ter de comer a mesma coisa em todas as refeições há dias.

Quando meu pai foi capturado pelo governo, acusado de fazer parte da Resistência, minha mãe foi demitida de seu emprego numa empresa de médio porte onde era contadora. Desde então passamos a sobreviver vendendo tudo que não nos é essencial. Primeiro o carro, depois todas as joias, vestidos de festa e até mesmo a aliança de minha mãe. Mas hoje, passados cinco anos, o dinheiro está oficialmente se esgotando. Tanto que comemos ovos no café da manhã, almoço e jantar há mais de uma semana.

— Bom dia! — diz minha mãe com um tom exagerado de ânimo ao me ver, mais uma vez tentando transparecer uma falsa felicidade. Sorrio sem vontade em resposta. ― Sua irmã já está de pé?

Antes que eu possa responder, Anne aparece na cozinha com seus cabelos loiros presos num rabo de cavalo perfeito e sua mochila grande demais para seu magro e pequeno corpo, nas costas. Está vestida em seu uniforme perfeitamente passado da Academia Preparatória para Garotas St. Jude — uma escola para meninas de até doze anos.

Anne é mais inteligente do que qualquer criança de sua idade e mais independente também. Com cinco anos já se vestia e se penteava sozinha e, hoje em dia, já não depende de absolutamente ninguém para se levantar pela manhã e aprontar-se para a escola.

— Bom dia mamãe, bom dia Lou. — Diz séria ao sentar-se à mesa, de frente para mim. Às vezes tenho a leve impressão de que ela é a irmã mais velha, não eu.

— Hoje será um dia bom, eu sinto isso! — minha mãe diz alegre juntando-se a nós. Não respondo.

Durante a refeição, mal conversamos. O clima ficou pesado, denso, como se de repente um nevoeiro úmido e gelado estivesse sobre nós dificultando nossa respiração. Minha mãe sairá novamente à procura de um emprego, mas todas nós já sabemos que ela não vai conseguir. Até Anne sabe. Porém, como sempre, ela está sorridente e esperançosa de que hoje será diferente, todos os dias ela diz isso. Mas sabemos que não será.

Ninguém quer a esposa de um simpatizante trabalhando em sua empresa.

 

Está quente hoje, muito quente. Principalmente se considerarmos que não são nem oito e meia da manhã. Não sinto realmente a temperatura até que desço o primeiro degrau do ônibus escolar, dando adeus ao seu fresquinho e maravilhoso ar condicionado de última geração. É o verão batendo à porta, dando oi. Ele parece gritar a cada brisa ardente que sopra em meu rosto “ei, serei ainda mais quente esse ano”.

Várias fisionomias parcialmente conhecidas passam por mim enquanto caminho rápido para o pátio interno e refrigerado da St. Mary. Algumas meninas me cumprimentam, outras fingem que eu não existo. Quando finalmente estou livre do sol árido e escaldante de pré-verão, giro meu corpo trezentos e sessenta graus à procura de Megan, minha melhor amiga desde a terceira série, para que possamos ir juntas até os corredores de armários como fazemos todos os dias.

Logo avisto sua figura loira e esguia andando pelo corredor como se o mesmo fosse, na verdade, uma passarela de um renomado desfile de moda. Seu sorriso murcha assim que ela dá uma boa olhada em mim, que tenho plena consciência de não ter me arrumado tanto quanto de costume esta manhã. Estava ocupada demais tentando não pensar nas Terras Selvagens e sobre aquele maldito sonho que sempre me persegue.

Eu realmente não fazia o estilo extremamente vaidosa, mas essa foi apenas uma das centenas de coisas que eu tive que mudar em minha vida após a morte do meu pai; quando eu peguei para mim a responsabilidade de trazer um bom futuro para minha família. Tinha que usar minha beleza ao meu favor e por isso eu precisava sempre andar impecável, transmitindo confiança, moralidade e inteligência. Coisas que, segundo minha mãe, mais se prezam numa boa moça.

Mesmo que fosse o governo a escolher seu futuro marido como manda a constituição, se uma garota tivesse a sorte de chamar atenção dos pais de um bom rapaz, ricos e portadores de altos cargos e influência no governo, poderia acontecer de eles moverem seus preciosos pauzinhos para que seja emparelhada com seu herdeiro. Isso acontece algumas vezes, pois nossa sociedade pode ser rigorosa no cumprimento das leis, mas também é movida por interesses das classes mais altas e pessoas mais poderosas. Todos sabem disso.

— Lou, pelo amor de Deus, me diz o que você fez com seu cabelo? ― A voz aguda e brava de Megan soa em meus ouvidos. — Ou melhor, me diga o que você não fez, que, obviamente, foi arrumá-lo. Está uma completa bagunça! — ela revira os olhos, visivelmente descontente e eu já sabia que iria fazer seu show de drama. — Se um cientista importante passasse aqui agora, uh? Acha que ele faria o possível para emparelhar seu lindo filho com uma menina que mal arruma o cabelo?

— Bom dia pra você também, senhorita Bom Humor. — Ironizo e ela me olha feio, quase fazendo com que eu gargalhasse no mesmo instante.

— Ha-Ha! Minha melhor amiga é uma comediante, não? — Revira os olhos, mas logo depois se rende e começa a rir junto comigo.

Como de costume, caminhamos pelos corredores labirintais da escola até chegar a nossos armários. Meg fala furtivamente sobre o escândalo da vez: Tracy Martin foi pega se esgueirando pelos corredores da Kingdom Prep, uma escola para rapazes que fica na área Sul da cidade.

— A diretora Quinsley ficou furiosa quando soube. — Afirma, terminando de contar a história. — Sorte de Tracy não ter sido pega em flagrante com um garoto, todos nós sabemos que ela iria se encontrar com uma pessoa do sexo oposto lá. Se não fosse pelos pais cientistas, ela já teria sido expulsa. Mas ao invés disso pegou apenas suspensão e foi obrigada a “prestar serviços à comunidade.” — Disse fazendo aspas com os dedos.

Eu não deixo de ficar espantada. Tracy sempre me pareceu quieta demais, até desengonçada demais. Lembro-me de Megan e eu zombando silenciosamente dela no vestiário feminino pelas pernas compridas e extremamente finas que tinha. Costumávamos dizer que pareciam dois palitos quase se partindo. Tracy Martin era apenas um exemplo de como a indisciplina pode afetar a todos, inclusive aqueles que parecem mais inofensivos.

Em geral, o contato entre pessoas do mesmo sexo antes do casamento é restrito a relações comerciais e profissionais. O Manual de OSF afirma que isso é porque antes de nos casarmos, nosso caráter ainda não está totalmente formado e consequentemente somos mais suscetíveis a cometer falhas, como nos envolver emocionalmente e acabar desenvolvendo os sinais de alguma das doenças sociais.

As doenças sociais foram descobertas assim que o Estado de Proteção Nacional passou a vigorar, em 2023. Estas são tudo que nos atrapalha a viver uma vida pacífica e estável como sociedade. São consideradas doenças, por exemplo, a indisciplina; a luxúria — que era qualquer relacionamento com uma pessoa além do par que o governo lhe apontará depois do término do ensino médio; a desobediência e a pior de todas: a rebeldia.

O resto do dia na escola corre normalmente. O sonho que tive pela manhã não passa de uma lembrança distante, quase inalcançável. Essa é a coisa boa de ser amiga de uma pessoa como Megan Tiddle: é praticamente impossível ficar deprimida ou chateada por muito tempo quando se está perto dela.

• • •

Depois da escola, vou até a casa de Megan estudar para a prova final de Cálculos que teríamos na semana que vem. Logo, em oito semanas, estaremos formadas e já poderemos fazer nossas avaliações de emparelhamento e carreira.

 Nesse procedimento, os avaliadores nos farão perguntas — que obviamente não sabemos quais são — sobre nós mesmos, coisas das mais variadas e detalhadas. Eles avaliarão também nossa aparência e saúde. No final disto, nos é dada uma nota de 0 a 10 e de acordo com as notas, receberemos uma lista de 5 pares aprovados que têm características e pontuação mais parecidas com as nossas. Dentre esses cinco, escolhemos aquele com quem passaremos o resto de nossas vidas.

Se eu conseguir pontuação suficiente nos testes, poderei fazer uma faculdade que incumbirem para mim, de acordo com o resultado das minhas avaliações finais escolares e só depois da formatura da mesma me casarei. Meninas que não conseguem pontos o bastante, se casam logo depois de terminarem o ensino médio e passam a ser donas de casa e cuidar dos maridos e filhos, sem profissão e, obviamente, sem um bom futuro.

Estou atravessando o West End agora, bairro onde a família Tiddle mora. Faz pouco menos de dez minutos que saí da casa de Megan e tento buscar por uma sombra enquanto caminho de volta até Land Eaton, bairro de classe média onde eu vivo desde sempre.

O sol parece estar em minha frente, não a milhões de quilômetros como os cientistas afirmam. Está tudo calmo em Portland, embora excessivamente quente. As pessoas caminham normalmente, algumas se abanam, outras dobram as mangas das blusas. Carros modernos atravessam as ruas, seus vidros fechados provavelmente mantendo o frescor e umidade do ar condicionado. Sinto que estou prestes a derreter, como um grande e desajeitado picolé humano de um metro e sessenta e cinco.

Falta pouco para que eu chegue em casa, mal posso esperar para sair dos alcances dos raios solares. Sinto toda minha pele grudenta e estou suando em todos os lugares. Passo em frente ao Centro de Regulação 6 de Portland e por um instante tudo permanece quieto e normal, como sempre.

Apenas por um instante.

 Eu sinto todo ar ser retirado de meus pulmões e meu coração dar um salto acrobático em meu peito quando o primeiro estrondo soa. Gritos começam a ecoar em minha mente, fazendo meus ouvidos latejarem em protesto. E então o caos se inicia.

 No começo eu fico completamente desorientada, sem saber o que está acontecendo ou de onde está vindo e aí o segundo estrondo explode, tão perto que sinto seu calor. E então, finalmente obedeço aos meus instintos e corro.

Pessoas não passam de borrões, rostos indistintos e apavorados quando passam por mim. Eu percebo agora que as explosões vieram do Centro de Regulação, que é o lugar onde os Reguladores trabalham e se reúnem para se organizar e cuidar da nossa segurança; há vários como este por todo país.

Outro estrondo.

Cada um parece mais alto, estridente e destrutivo que o último. Os gritos ficam mais intensos agora. Enquanto continuo correndo à procura de abrigo, vejo os próprios reguladores correrem sem rumo parecendo assustados. O que está acontecendo?

Um dos Centros de Regulação de Portland está em chamas. Bum! Mais um estouro. E então a coisa mais impressionante acontece. Pessoas, várias delas, saem de todos os cantos urrando, gritando e balbuciando coisas sem nexo — um grito de guerra, talvez — como um enxame de vespas atacando. Eu paro minha corrida para olhar, e eles continuam avançando encapuzados, mascarados, todos de preto. São assustadores.

Eles começam a pichar o muro de casas, de agências bancárias e qualquer coisa que esteja no caminho. Não preciso de mais nenhum segundo para saber o que são. Selvagens. Eles estão aqui. Eles ao menos deveriam existir, então como conseguiram passar pelas fronteiras? Um pânico crescente faz com que minha garganta se feche e só tenho um pensamento, que martela e martela em minha cabeça: preciso sair daqui.

E então, mais uma vez, eu corro.

Tiros começam a ser disparados, os reguladores parecem finalmente acordar do transe. As chamas que consomem o Centro de Regulação dançam de uma forma sinistra, como grandes braços fumegantes, alastrando-se cada vez mais. Ao meu redor, consigo ver pessoas tossindo, crianças chorando e cães latindo. Eu não consigo gritar, estou assustada demais para isso. A única coisa que consigo fazer é continuar correndo. As palavras ainda estão lá, repetindo-se como um mantra: preciso sair daqui, preciso sair daqui, preciso sair daqui.

Eu finalmente consigo achar um lugar para me abrigar, uma viela com duas saídas laterais nos fundos da cozinha de um restaurante ao fim da esplanada. Escondo-me atrás de uma enorme lata de lixo de metal e sinto meus olhos queimarem, em minha garganta um bolo se forma e eu sei que estou prestes a chorar.

A sensação de parcial segurança não dura muito, pois atrás de mim algo se agita. Não algo, mas sim alguém. Todo meu corpo se retesa imediatamente.

Ele ainda não me viu, está de costas para mim no meio da viela, mas nem preciso que o faça para que eu saiba que se trata de um Selvagem. Não está encapuzado e todo de preto como os que estão pichando os muros, e aparentemente não usa nenhum tipo de máscara, mas sei o que ele é. É como se irradiasse algo dele, uma espécie de aura negra, evidenciando isso.

Nunca senti tanto medo em toda minha vida. Meu queixo treme e não percebo que estou chorando silenciosamente até que minha blusa já está quase encharcada com minhas lágrimas de puro horror. O homem Selvagem ainda não me notou minha presença, continua imóvel e de costas, parecendo inteiramente concentrado. Com cautela, tento contorná-lo para que possa chegar à saída lateral mais próxima e sair daquele lugar. É preferível que eu fique no meio do fogo cruzado a ficar tão perto de uma pessoa não regulamentada, doente e completamente nociva.

Movo-me como um gato, o contato de meus pés com o solo não emite som algum. Um passo lento e leve de cada vez, como se estivesse atravessando um campo minado onde qualquer movimento em falso resultaria em violentas e seguidas explosões sobre meu corpo. A situação não era tão diferente desta, afinal.

O homem continua parado na mesma posição, como um soldado em batalha, observando a tudo. E eu tinha certeza de que havia uma escuta em seu ouvido esquerdo, pois hora ou outra ele o pressionava, como se para ouvir melhor. Tal concentração de sua parte com certeza contribui para que ainda não tenha notado uma garota magra, ruiva e assustada se esgueirando por sua retaguarda como um rato de esgoto foge das pessoas da superfície. Neste momento, estou atravessando suas costas, tão perto que se esticar bastante o braço as pontas de meus dedos roçariam em suas vestimentas negras. Estou quase lá, repito seguidas vezes em meu pensamento: por favor, Deus, deixe-me passar, estou quase lá.

 E então tudo acontece muito rápido. Enquanto estou quase completando meu percurso para fora da viela, não vejo uma lata amassada que está no chão e sem querer a chuto. Como consequência, disso o Selvagem se vira e me encara. Merda, mil vezes merda.

Eu fico paralisada, como se cordas realmente apertadas estivessem sobre todo meu corpo, impedindo o mais simples movimento.  Ao me ver, o homem ― que imediatamente percebo não ser muito mais velho que eu ― esboça surpresa, noto seu corpo se enrijecendo.

Ele tem algo nas mãos, um pequeno apetrecho com um botão no meio e meu cérebro ainda está entorpecido, porém processa que aquilo é provavelmente um detonador de bombas. Ele definitivamente é um Selvagem e está participando do ataque. Minhas mãos passaram a tremer mais ainda agora, meu coração está batendo tão rápido e forte que qualquer pessoa num raio de um quilômetro poderia ouvi-lo. Penso em correr, fugir para qualquer lugar o mais longe possível daqui, porém, por conta do medo que estou sentindo, minhas pernas não obedecem e permaneço congelada no mesmo lugar.

Não ficamos nos encarando em silêncio por tanto tempo assim, uns 10 segundos no máximo, e ele finalmente esboça uma reação. O choque se dissipa de sua expressão, ele parece mais relaxado agora, mais divertido, como se percebesse que não represento nenhum tipo de ameaça. Logo vejo algo reluzir em seus olhos. Estamos mais perto do que eu imaginava. De minha posição, consigo nitidamente ver todos os detalhes de sua íris. São intensas e quentes, como se se um pote de mel inteiro houvesse sido derramado dentro de seus olhos. Mesmo parecendo jovem, seu olhar demonstrava experiência. Não posso deixar de notar o quanto seus olhos são selvagens, é como se coubessem o planeta e todos os seus derivados dentro deles; como se já tivessem visto tudo que há no mundo de perto.

Tudo parece rodar num ritmo desacelerado, onde os segundos parecem horas, como se eu estivesse capturando cada movimento dele com as lentes de uma câmera fotográfica. Estou apavorada apenas pelo breve e superficial contato que estamos tendo, mas ao mesmo tempo em que minhas entranhas gritam paralisadas pelo medo, há algo em meu sangue que se esquenta. Algo queima dentro de mim, numa linha tênue e gasta entre o completo horror e a admiração. Nunca vi alguém não regulamentado pelo governo antes.

Eu penso que ele está apenas esperando o momento certo para dar o bote, que talvez eu morra hoje afinal. Anne surge em minha mente, depois minha mãe. O pouco que eu sei sobre Selvagens é que eles são cruéis e não civilizados, como verdadeiros animais. Os olhos selvagens do garoto à minha frente parecem me queimar, sinto várias bolhas pinicarem em minha pele. Eu espero por tudo, que ele grite, me ataque, me sequestre e até mesmo me mate. Mas ele faz o impensável.

Ele pisca pra mim.


Notas Finais


Esse capítulo tem informações demais, sei disso, mas já expliquei que sendo o enredo do jeito que é acaba se tornando muita coisa pra explicar. E mesmo com o prefácio, que ajudou vocês a terem uma noção de como é a atual sociedade na história, ainda há detalhes demais pra explicar, então me desculpem se ficou confuso. Qualquer dúvida perguntem nos comentários ou na ask, que deixarei aqui embaixo pra vocês.
Bem, é isso. Começos de fanfics são sempre chatinhos, mas espero que tenham gostado. Deixem suas opiniões nos comentários e até a próxima <3
Ask: http://ask.fm/biebercitty


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