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História Divino Maravilhoso - Lord I miss you


Escrita por: missmutante

Notas do Autor


Queridxs, mil desculpas pela demora pra atualizar! Como já disse aqui, minha vida anda uma loucura: tô terminando faculdade, escrevendo TCC, trabalhando horrores, então tá foda de manter o mesmo ritmo de antes. Vou tentar postar o próximo capítulo bem mais rápido, aproveitando aí esse feriado mara.

Pra compensar, esse é o capítulo mais longo até agora. Estamos quase chegando na metade da fic. O próximo cap tem Limantha até não poder mais <3

Obrigada pelos comentários! Espero que gostem.

Capítulo 15 - Lord I miss you


21h27

Finalmente consegui amarrar o avental preto em um nó mais do que preguiçoso ao redor da cintura. A tarefa se estendeu por uns cinco minutos de tentativa e erro — mais erros do que qualquer outra coisa. Nunca ficava bom o suficiente, o tecido macio demais desatava e me obrigava a refazer tudo de novo. Enquanto isso, Valdemar me observava sem muita paciência.

“Menina, precisa de faculdade pra botar avental? Dá uma apressada nisso aí, ó a quantidade de salgadinho pra levar nas mesas!”

“Ai, não tô me sentindo bem. Sou muito doente, Deus tenha dó de mim,” tentei justificar, presa entre a vergonha e a cara-de-pau. O deboche, no fim das contas, venceu. Aquele gim ainda fazia minha cabeça girar, um pouco, só um pouco. “Agora vai.”

Fui me esgueirando em meio a gente nenhuma — havia só eu e Valdemar para servir toda a comida que a matriarca Romano tinha deixado pronta na cozinha — até alcançar o balcão, onde se acumulavam formas e formas de coxinhas ainda não distribuídas em pratos bonitinhos. Valdemar disse que ele, o feio da jogada, iria montar as arrumações, enquanto eu, a mulher propaganda, entregaria tudo de mão beijada no Galpão, onde rolava a festa. Mais um combinado que esqueci.

“Tá fazendo o quê aí, menina? É do outro lado, do outro lado.”

Do outro lado. Peguei no prato entupido de bolinhas de queijo empilhadas umas sobre as outras numa composição quase-cubista. Minha mão tremeu.

“Melhor não.” Valdemar segurou meu braço e, em seguida, retirou o prato de meu alcance. “Já tô vendo a cena desses salgadinhos caindo no colo dos convidados. Ave Maria.” Ele me encarou com tanta força que senti uma pressão concreta no corpo. Alucinação? “Não mente pra mim: bebesse antes do serviço, foi?”

Assenti.

“E foi o quê?”

A voz craquelou. “Gim.”

“Ave Maria,” repetiu. Quando dei por mim, ele voltava com um garrafão d’água em uma mão e um balde na outra. “Põe pra fora o que tiver de por, menina.” O plástico do balde encontrou o chão num barulho que perturbou todos os líquidos do organismo. “Mas vomita rápido, a gente não tem a noite toda.”

Sentei numa cadeira igualmente de plástico — essas já viravam moda em 1980, adeus madeira! — enquanto Valdemar corria de um lado para o outro, desorganizando agora uma bandeja mais dadaísta — fazia algum sentido? — de salgadinhos. Caiu no chão uma bolinha, que ele sorrateiramente estendeu para mim. “Quer?”

Dei de ombros. O gosto mastigado da massa não mudou nada pelo restinho de bactérias do piso. “Delícia.”

Ele saiu correndo e eu fiquei ali sentada, calculando se deveria forçar o vômito ou esperar tranquilamente sua chegada.

 

21h51

Ele não veio, claro, e logo percebi que aquele balde passaria a noite inteira vazio. Não era uma questão de estômago em greve, mas só eu mesma, Samantha, numa guerrilha pra não dar as caras na festa, pra me esconder, algo que minha mãe chamaria de “falta de vergonha na cara” se ainda tivesse alguma noção da minha vida. Dei um tapa bem dado em cada bochecha e levantei ligeira depois de Valdemar entrar e sair umas trocentas vezes, fazendo questão de pressionar.

“E aí, já tá melhor, menina? Já tá pronta?”.

“Passa logo a bandeja,” pedi de mal-humor, meio rosnando. Ele não reclamou. Em uma fração infinitesimal de segundo, eu já carregava mini-empadas um pouco despedaçadas até a porta da cozinha.

“Só não inventa de vomitar em cima da comida, ouviu?” foi sua última fala antes de eu empurrar a porta com meu corpo e dar no corredor da escada, que por sua vez dava no Galpão. Luzes vermelhas e roxas abriram meus olhos.

A gente às vezes sente, sofre, dança
Sem querer dançar
Na nossa festa vale tudo
Vale ser alguém como eu, como você

 

Realmente, não veio uma quantidade absurda de gente, mas ô pessoal animado. Keyla dançava levantando os dedinhos para o teto e no seu rastro a seguiam umas tiazonas que deviam fazer parte da família Romano, pois formavam uma rodinha de agito. Dona Marta estava sentada, pegando os lanches com as pontinhas dos dedos como se fossem canapés. Ria de algo que Roney lhe contava, esse claramente meio toma lá dá cá, sendo que a festa mal tinha começado. Gesticulava tanto que até deu um safanão sem querer no Tonico, que bebia compulsivamente uma garrafa de Cola-Cola. Gabriel dançava ainda contido num canto com uns caras que reconheci como amigos do curso de Artes Cênicas, todos bem viados. Anderson e Tina organizavam o equipamento de som enquanto Ellen trabalhava na discotecagem, manejando os discos com uma aura total de concentração, os óculos grandes empertigados tão alto no nariz que afundavam a testa.

Dance bem, dance mal, dance sem parar
Dance bem, dance até sem saber dançar

 

Soltei um gritinho estridente ao reconhecer a música. Caramba! Fui passando de mesa em mesa, equilibrando a bandeja no ar ao oferecer os salgadinhos a alguns convidados desconhecidos. Gabriel mandou uma piscadinha de longe e gritou: “Ui, trabalhadeira ela!”, antes de vir correndo enganchar um braço nos meus ombros.

“Vai acabar rapidinho. Logo o Roney apaga de bêbado, a família vai dormir lá em cima e a gente domina esse lugar.” Jogou o cabelo para trás como uma estrela de cinema.

“Salgadinho?” Levantei a bandeja bem na cara dele. Gargalhou. “No momento sou sua funcionária, senhorito Romano. Preciso te manter bem alimentado.”

“Não, minha dama de honra, a dieta me impede. Sou um homem de hábitos muito corretos.” Foi a vez de fechar dois botões da camisa e empinar o nariz.

“A bicha nem ficou famosa e já tá nojenta.”

Gabriel deu um sorriso amplo, geral e irrestrito, com requintes de malícia. “Põe a bandeja na mesa.” Olhei-o confusa. “Põe!” Obedeci e, muito rápido, fui tomada nos braços dele, que me rodopiou na pista.

“Você tava na primeira fileira, do jeitinho que te pedi.” Gritou no meu ouvido por cima da música. “Obrigado.”

Não respondi, não com palavras. Segurei suas mãos e as puxei até que estivéssemos a pés de distância, conectados apenas por nossos músculos esticados feito chiclete. Podia enxergá-lo melhor que nunca. Ele entendeu exatamente o que quis dizer.

“Melhor parar a cena,” disse depois de me embalar mais uma vez. “Daqui a pouco o Roney vai achar que virei hetero. Não tem ofensa pior que essa.” Baqueamos de rir, colados um ao outro. “Ou a Lica pode achar que você tá me querendo, imagina o estrago.”

Enrijeci dos pés à cabeça só de ouvir o nome derradeiro. “Onde tá a Lica?”

“Acho que encostada na janela dos fundos, nem sei. Ela tá fotografando a festa. Vai lá oferecer o seu corpo, cof cof, a comida pra ela.” Desfiz a dança com um tapinha no braço do abusado. Mas, de fato, lá estava essa mulher, sozinha, fumando, observando, uma baita câmera em mãos. Era tudo que eu queria fazer. Busquei o olhar de Gabriel por um último instante antes de partir decidida, bandeja em mãos. Tracei o caminho em linha reta, sem desviar, o suor se acumulando na nuca a cada passo que eu dava. Vinha a lembrança de quando fui embora por não suportar a razão das olheiras que, agora que eu chegava mais perto, estalavam mesmo em luz de discoteca, embora mais brandas, menos… Ela sacou minha aproximação sem disfarçar. Logo eu estava bem diante de Heloísa.

“Salgadinho?” Estiquei os braços até que a bandeja e um pouco de atmosfera fosse a única mediação física entre nós. Ela me percorreu de cima a baixo, de baixo a cima enquanto eu lutava contra os tremores sob o avental. Era uma posição frágil essa de ser aceita ou negada através das comidinhas de festa. Um não meio oleoso assim seria de matar, só que ela contraiu os lábios num sorriso sem dentes.

“Garçonete, é?” As pernas cruzadas se abriram sorrateiramente, não pude deixar de perceber.

“Você não sabe da missa a metade, meu bem,” deixei escapar. Não havia melhor maneira de lidar com o nervosismo que o deboche. Ela segurou a risada enquanto pegava uma bolinha de queijo.

“É verdade, não sei.” Piscou muitas vezes, um tique antigo de sua coleção. Quando voltou a falar, ainda tinha a boca cheia. “Uma hora dessas... você pode me contar.”

Cocei o pescoço, tensa com o convite escolhido a dedo. Eu estava decidida a não me recolher a mais joguinhos. Era agora, certo? “Se você quiser ouvir.”

“Sempre.”

Tinha os olhos costurados em mim todinha numa plenitude de jeito que eu nunca tinha visto em nenhum dos nossos vários encontros, ainda que as pequenas manias estivessem lá, pétreas. Nesses tempos de ausência algo tinha virado nela; de repente eu era a coisa instável.

“Moça,” alguém me chamou. Virei-me para um dos amigos de Gabriel: alto, gostoso e irritado “cê não vai passar na nossa mesa não? A gente tá esperando.”

Péssima escolha de amizade. Não deixei por menos. Depositei a bandeja inteira nas mãos do garotinho mimado, pratos de plástico e nenhuma exceção.

“Oh, que descuido o meu. Pode levar tudo, é o mínimo! Aproveita e serve para os seus amigos, coitados, esperando tanto. Quer uma empadinha, Lica?” Ela fez que sim, obrigando o marmanjo a oferecer-lhe a bandeja como um mero garçom.

Dei as costas para o mauricinho ferido em sua masculinidade e, antes de seguir em direção ao corredor, virei-me para captar o divertimento de Lica, que soltou uma baforada final do cigarro antes de balançar a cabeça e largar a bituca no cinzeiro, observando sabe lá o quê do lado de fora da janela, talvez o objeto da próxima fotografia. Atirei-me numa parede, as costas pressionadas duramente contra a alvenaria, um respiro difícil lutando nos pulmões, antes de arrumar as ondas que caíam desgrenhadas sobre os ombros. Retornei à cozinha.

“Tem outra bandeja aí, Valdemar?”

 

22h43

    A medida que eu me tornava a mesma criatura sóbria de sempre, os convidados se entorpeciam com uma habilidade que me faltava palavras para descrever. Quando chegou a primeira rodada de vinhos à mesa das senhoras então, ah!, as matriarcas fizeram a festa. Gritavam e xingavam todos os personagens da novela das oito. Era filho da puta e vadia pra lá e pra cá.

Nessa altura do campeonato, nem Keyla continuava imune. Os dedinhos ao alto foram substituídos por um leve remelexo dos quadris que, se não me engano, começou pouco depois do famoso Tato dar as caras no espaço. Era bonito, tinha presença. Os dois se enlaçaram em um abraço cheio de um tesão tão mal disfarçado que tive até vergonha de presenciar. Mas presenciei, calada, como boa garçonete — ou seria garota propaganda? — da noite, assim como flagrei os dois agarrados na sala do apartamento, quando subi a mando de Valdemar. Beijavam-se enlouquecidos numa cena quase cinematográfica: eram os mocinhos mortos de saudade, escondendo-se para viver um amor proibido.

    Pigarreei. Eles se separaram, constrangidos até o fim.

    “Hã, eu vim pegar uma calça. Caiu cerveja na minha.”

    Era verdade, mas depois do que vi, até preferiria ter continuado com a roupa toda molhada, fedendo a bebida. Foi assim que perdi o sono dos justos, também conhecido a felicidade na ignorância. Quando Tonico me procurou na cozinha, tive vontade de costurar a boca na máquina.

“Samantha, Samantha!” ele correu até mim, batendo a porta atrás de si, aquela voz fina porém com um ou outro traço de crescimento furando o ar. “Agora tudo faz sentido!”

Aquela criança, adolescente, sei lá, sorria de um jeito maníaco que me enchia de medo.

“Do que você tá falando, garoto?”

“Eu descobri, agora sei de tudo! A mãe tá traindo o meu pai com o Tato. Eu sabia, sabia!” Valdemar nos encarou com olhos arregalados do tamanho de bolas de baseball, que eu só conhecia de filmes, pois não tinha dinheiro para jogar baseball.

“Shh! Não sai por aí gritando um negócio desses, Tonico!” silenciei, tapando a boca dele. “De onde você tirou essa maluquice?”

“Eu vi. Eu vi com os meus olhos.”

O sorriso maníaco não parava de aumentar. Se eu realmente entendia alguma coisa da vida, em breve se transformaria em rancor aquela alegria passageira de conhecer a verdade que os adultos tanto lhe negaram, esconderam, alienaram. A ficha sempre cai, como dizem. Para mim, pelo menos, caiu.

Meti outro garrafão de refrigerante na mão aquela criança.

“Toma a Coca e não fica pensando nessas besteiras agora. Adulto só faz merda.” Dei-lhe um abraço que ele resistiu a receber. “Depois, a gente vai conversar sobre isso. A gente vai. Entendeu?”

Ele abanou a cabeça, mas levou embora o refrigerante do mesmo jeito. Nada como doses obscenas de açúcar e outras drogas, afinal, esse sim é o verdadeiro band-aid da dor de cotovelo.

 

23h38

Era um garoto que como eu
Amava os Beatles e os Rolling Stones
Girava o mundo sempre a cantar
As coisas lindas da América

 

Algumas velhas já dormiam. Ela não, a Lica — nenhum dos jovens, na verdade, que agora dançavam sem um fio de cabelo no lugar, muito menos os gays, que rebolavam até ao som de rock. Mas ela gritava de peito, eu não sabia explicar. Nunca imaginei ver ela pulando e cantando numa pista como se interpretasse uma canção cafona dos nossos pais, como se revelasse esse lado meio constrangedor de ser gente. Esperava de alguém da minha idade, alguém com menos traumas e coisa e tal. Mas quer saber? Era legal. E eu olhei demais.

No início, ela nem percebeu, estava muito envolvida. A câmera pendurada por uma alça no pescoço pulava sem dó com a dona.

Cantava viva à liberdade
Mas uma carta sem esperar
Da sua guitarra o separo
Fora mandado à América

 

Ellen abandonou a função de DJ ao irmão e foi se remexer loucamente junto à melhor amiga de adolescência. “Stop! com Rolling Stones!” elas berraram em meio a movimentos frenéticos e desconjuntados dos membros. Caramba, era isso que militantes faziam nas horas vagas, celebrar músicas de guerra forçada? Era do seu tempo, era do seu tempo.

Eu entregava os salgadinhos. Metade das tiazonas já dormiam com as bochechas estateladas na mesa. A elegância etílica de dona Marta era de outro mundo, já Roney se atirava ao chão numa performance teatral barata.

“Tira logo o avental,” Gabriel encorajou ao meu ouvido enquanto selecionava mais um copo de cerveja da bandeja que eu carregava. “Já tá todo mundo doido.”

Lica percebeu minha presença e sorriu um sorriso muito bonito antes de abraçar a Ellen com força e pular feito criança. Era bom vê-la feliz, vivendo. Por falar em criança, Tonico me aguardava no corredor. Já tinha virado a garrafa inteirinha.

“Tô com medo de subir de novo, Samantha.”

Suspirei. Se bem conhecia Keyla, ela certamente estava vivendo sua mais recente crise de culpa, típica da dona de casa que chutou o balde mas não soube segurar as pontas.

“Vem, fica aqui na cozinha.” Descansei a mão em seu ombro, guiando-o até onde ele mais precisava estar, para o seu próprio bem. “Valdemar, dá uns brigadeiros pro Tonico.”

No fim das contas, Tonico dormiu sentado na cadeira da cozinha. Acordaria horas depois, no meio da madrugada, cheio de dor de barriga de tanto comer docinhos. Por ora, ajoelhei-me no chão ao lado do menino sofredor, sentadinho no plástico desconfortável. Sua bunda escorregava pelo material e eu tinha de ajudá-lo a retomar posição. Imagino que a tristeza já estivesse batendo, pois lhe faltava força nos músculos.

“Eu não entrego mais comida nenhuma pra esses beberrões, Valdemar,” avisei. O rabo de cavalo foi desfeito em velocidade recorde. “Daqui a uma hora e meia a gente volta, quando o pessoal já estiver enjoado.”

Ele assentiu. “Se quiser dar uma saidinha, eu tomo conta.”

Tonico deslizou mais um centímetro. A dor, como alguma lembrança faltante que agora me empurrava, pipocou. Crianças, adultos, no caso tudo a mesma merda.

“Só daqui a pouco.”

 

23h51

 

    “Cê vai sair dessa cozinha agora, mulher. A festa é minha e eu tô mandando, saca?”

    Foi assim que Gabriel me intimou. Não pude negar; no fundo, nem queria. Quando ele me puxou pelo ombro, obrigando que eu me levantasse, já estava decidido. Era o caminho, não? Tirar o avental, desamassar as roupas, desgrenhar o cabelo, passar um batom vermelho. Cuida do Tonico por mim, Valdemar. Ei, meu bem, vai passar, tá ouvindo? Vai valer à pena um dia.

Gabriel tropeçava nos próprios pés, rebolando no excesso que aquele corpinho miúdo não aguentava. Pelo menos contagiava, logo me peguei dançando até com aquela gay nojenta de antes. Inimigos? Nenhum.

“Eu nem acredito que isso tudo tá acontecendo, Sam. Eu não acreditooo!” Ele gritou, o corpo grudado ao meu girando em piruetas. Entrei na jogada e terminei tontinha, não sem captar a música que Ellen, de volta à aparelhagem, botava pra rodar.

I’ve been holding out so long
I’ve been sleeping all alone
Lord I miss you

 

    Ah, porra. Eu sabia bem de quem a letra me lembrava. Ela, onde estava ela? Ali, num canto, de olhos fechados, balançando lentamente como que sorvesse a última gota da canção, esquecendo o cigarro que queimava solto em uma mão — talvez nem soubesse mais qual. Eu sim, porque não conseguia parar de olhá-la. Também fechei os olhos, deslizando na batida, um quê de disco não fazia mal a uma mulher — deslizava e no vazio da visão a gente chegava junto, bem perto, quase coladas, meu hálito minguando no dela e tudo era vermelho ao redor, vermelhíssimo, cor de sangue, de farol e de tudo que fazia mal ou bem demais, enfim, vivíamos numa ditadura de merda mas a imaginação continuava democrática.

    Voltei a enxergar e ela me fitava de volta, me comendo com os olhos. Não sei se fiquei encharcada ou se aquele arrepio na espinha foi um grito de medo. Também, foda-se, eu já tava até a testa naquela água de mar.

    Deu alguma coisa em mim. O farol tava aceso, a maré enchendo. Um pouco mais ou um pouco menos, tanto faz. Dei as costas, lançando um último olhar, antes de andar lentamente até o banheiro, cada movimento dos quadris muito bem calculados.

I’ve been hanging on the phone
I’ve been sleeping all alone
I want to kiss you

 

Retoquei as bordas do batom diante do espelho sujo, montando toda uma ceninha de casualidade, como se eu não quisesse que Lica me seguisse até esse banheiro, como se eu não estivesse louca pra acabar logo com a falta que ela me fazia. Minhas coxas esfregavam uma na outra. Quanto tempo mais essa história ia render?

Até que, pelo mesmo espelho, avistei o corpo dela na beirada da porta. Lica entrou com cuidado, seus passos como sussurros. Virei-me, encostando a bunda na pia molhada. Nada mais me incomodava.

A gente se procurava e se sacava sem pudor. Ela se aproximou, um copo de sei lá qual bebida destilada na mão. Peguei-o para beber, mais por charme que por sede. Lica observou vidrada minha boca.

“O que você quer, Sam?” ela me perguntou, tirando uma mecha de cabelo do meu rosto.

Sem hesitar, respondi. “Você. Fica comigo.”

Ela abriu um sorriso malicioso. “Se você colocar de novo aquele uniforme de garçonete...”

“Tsc, tsc. Safada.” Joguei os braços ao redor de sua nuca. “É só pedir de novo, sabe, com jeitinho. Aí eu penso no seu caso.”

Lica escondeu o rosto no meu pescoço, sentindo o cheiro de suor e álcool e perfume vencido que tinha impregnado em mim. Ela se demorou ali. Eu tinha pressa, mas, por um instante, esperei.

Esperei na corda bamba.


Notas Finais


Músicas do capítulo:
- "Dancing Days", Frenéticas
- "Era um Garoto que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones", Os Incríveis
- "Miss You", Rolling Stones


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