Capítulo 8:
Jornada: Primeira parte
Olhei para trás, suspirando pesaroso, despedindo-me silenciosamente daquele lugar no qual vivi por tantos anos. Sentia meu estômago revirar pelo nervosismo e pelo trotar desajeitado daquela égua.
Égua. Não dava mesmo para definir o gênero daquele pangaré, mas Aoi insistia em chamá-la por um nome ridiculamente feminino.
Eu até me recusei a subir naquele animal e ter o caipira como guia, mas ele simplesmente me jogou em cima da égua e começamos a jornada mais entediante da minha vida.
Eu estava acostumado a viajar nas mais finas diligências, com seus bancos macios e cortinas de veludo com um cocheiro devidamente treinado para guiar os cavalos puro-sangue da fazenda de meu pai. Podia até mesmo ler um romance enquanto o veículo seguia pela estrada.
Saudades dignidade.
Suspirei alto e pesaroso encarando minhas unhas cheias de terra e fantasiando um futuro próspero que obviamente não existiria ao lado daquele caipira e sua corja.
Falando em caipira, o peito de Aoi estava grudado as minhas costas e raramente eu me permitia descansar a cabeça em seu ombro. Ele estava tão sério que até aquele momento não havia feito nenhuma das famosas gracinhas. Estava concentrado no caminho, com aquele cigarro pendurado nos lábios e os olhos estreitos atentos a qualquer movimento.
Cantarolei um verso de “Oh! Susanna” enquanto o sol escaldante começava a me ameaçar com uma terrível dor de cabeça. E pensar que eu poderia estar aproveitando a minha vida naquela fazenda no fim do mundo, era um pensamento bem mais tentador do que me arrastar milhas e milhas para um lugar do qual eu só queria esquecer.
Olhei para frente observando a corja de subordinados que ia mais ao longe. Montados em seus devidos pangarés. Eu e o caipira íamos sem nenhuma pressa.
- Estou cansado! – Desabafei, jogando a minha cabeça para trás e tentando encarar o rosto moreno coberto pela sombra do chapéu.
- Cansado de absolutamente nada? – Questionou de forma sarrista, me fazendo estreitar os olhos.
- E esse sol? – Indaguei, remexendo-me em euforia e apontando um dedo terrivelmente fino para o céu. – Está acabando com a minha pele e o meu cabelo! – Não que eles já não estivessem acabados a muito tempo, mas o caipira não precisava saber. - E essa égua está fazendo o meu estômago arruinar.
- Não ligue para ele, Sophie! – Resmungou, alisando o dorso encardido do animal. – O docinho, não tem bom senso.
- Quê? – Praticamente pulei, assustando a égua.
- Calma! – Apertou minha cintura o suficiente para eu querer matá-lo. – Vai acabar caindo com todo esse fogo.
Fogo?
Como eu odiava aquele caipira! Fiz um bico enorme e tipicamente infantil, me freando para não começar a discutir.
- É melhor assim. – Sussurrou ao pé da minha orelha, passando a ponta do nariz em minha nuca. – Obediente.
- Não me provoque, Aoi, não me provoque! – Alertei, cheio de amores pelo caipira. – Estou com fome...
- Vamos adiantar um pouco mais. Depois paramos para descansar. – Bateu as esporas para atiçar o animal e eu tive que me segurar para não gritar feito uma menininha tamanho o meu medo de me estatelar no chão e quebrar alguns dentes, me tornando um verdadeiro bandido meia boca do Oeste.
Quando o sol finalmente se escondeu, encoberto por algumas nuvens, um vento fresco secou minha pele suada e contribuiu para que eu ficasse menos inquieto. Sentia minhas coxas arderem devido a pressão que fazia para me segurar naquele animal. Até o fim daquela viagem, minhas pernas ficariam em carne viva.
- Precisa de ajuda para descer, docinho? – Aquele sorriso canalha, me fez repeli-lo com um tapa.
- Já disse para não me tratar como se eu fosse uma mulher. – Respondi contrariado e fazendo um esforço dos infernos para descer dali de cima.
Meus pés tocaram o chão da forma mais errada possível e eu acabei tropeçando e tinha a certeza de que perderia mesmo os dentes se não fosse o Aoi ter me segurado.
- Isso tudo é nervosismo por ficar tão perto? – Falou provocador e quando fui responder da pior forma possível, acabei me perdendo naquela imensidão negra que se resumia aquele par de olhos.
- Já pode me soltar. – Afastei-me com o coração a palpitar de forma exagerada e me repreendendo por me sentir tão nervoso. Espiei o caipira por debaixo da minha franja e encontrei novamente o sorrisinho sacana.
Disfarcei toda a minha vermelhidão passando as mãos pela bochecha.
- Vamos levantar acampamento, daqui a pouco vai anoitecer. – Ditou em um tom sério e começou a retirar as tralhas de dentro da mochila, mas em nenhum momento parou de olhar para mim. Irritante! – Procure não se afastar, docinho, existem cobras por aqui.
Instintivamente olhei para os meus pés e para os lados também. Eu tinha pavor de animais rastejantes. Escorei-me em uma árvore grossa que deveria estar ali desde a criação do mundo e me coloquei atento a qualquer mínimo barulho.
Os cavalos comiam sossegadamente o pasto seco enquanto o sol se resumia a um pequeno e alaranjado brilho poente atrás das montanhas. Tudo estava ficando escuro e eu praticamente já estava saindo de meu conforto e indo acender a fogueira eu mesmo. Claro que não foi necessário, já que o caipira sempre fazia isso.
Passei as mãos por meus braços na tentativa de buscar um pouco de calor e foi involuntário um arrepio não surgir quando alguma coisa uivou em certa parte daquela imensidão de árvores. Imediatamente me lembrei das lendas de Homens que viravam Lobos e meu pensamento se tornou um pesadelo quando percebi o caipira olhando em minha direção, concentrado demais.
- Docinho, o que é isto aí atrás de você? – Aoi me perguntou com os olhos arregalados e eu praticamente me joguei no colo dele, acreditando que seria vítima de um ataque mortal de alguma cobra ou coisa bem pior, mas foi só ver a cara de deboche para saber que não passava de uma brincadeira infeliz. – Fácil demais de assustar.
- Desgraçado! – Esbofeteei o braço forte. – Eu poderia ter um ataque do coração! – Sentei-me de maneira comportada e passei a encarar o fogo que dançava em figuras desconexas a minha frente.
- Tens medo de cobra, docinho? – Perguntou-me ao pé do ouvido.
- É claro que tenho! São bichos asquerosos! – Não havia percebido a malícia da pergunta até todos começarem a rir. – Bando de analfabetos pervertidos! – Ditei enquanto cruzava os braços e inflava as bochechas de forma mimada.
- Não fique assim, docinho. Só estou implicando. – Puxou meu queixo o suficiente para me roubar um beijo.
Preciso dizer que esse tipo de demonstração de carinho me rendeu boas gozações por parte daquela corja de malfeitores?
- Perdeu o juízo? – Indaguei entre dentes, pronto a dar um soco na cara do miserável e sendo um retardado por acreditar que ele algum dia tivera juízo.
- Se aquiete docinho. – Sorriu e enrolou uma mecha do meu cabelo na ponta do dedo. – Todos aqui são amigos e não vão espalhar o que andas fazendo com o terrível Aoi. – Zombou de minha condição enquanto eu tentava assimilar o que estava acontecendo. – Deixo você dormir comigo essa noite...
Olhei incrédulo para aquele homem tão arrogante. Aquilo sim era a gota d’água. Acreditar que alguém como eu dormiria com um maldito bandido por que ele me permitiu? Quanta prepotência...
- Devo agradecer pela vossa gentileza, caipira? – Sussurrei e acredito que deveria ser mais ou menos assim que as cobras se sentiam quando sibilavam.
- E como pretende fazer isso? – Indagou de forma sensual, quase tocando minha orelha com os lábios.
- Está brincando com fogo, Aoi... – Devolvi no mesmo tom. Não que eu quisesse seduzi-lo, até porque eu não precisaria de muito para isso, só estava com vontade de provocá-lo da mesma forma que ele me provocava.
- Estou louco para descobrir o quão queimado posso ficar. – O olhar furtivo falava mais do que qualquer gesto ou palavra.
Voltei a realidade quando Akira fez um som irritante com a garganta, buscando atrair nossa atenção. Só assim percebi o papel ridículo que estava fazendo ao lado daquele caipira.
- Vamos comer! – Ruki anunciou, feliz e estabanado como era.
Meu estômago deu pulos de contentamento com aquela notícia. Estava morto de fome.
A ceia ocorreu da forma mais normal possível e quando todos se deleitaram até que as panças estivessem suficientemente grandes para não caberem nas camisas, o desgraçado do Akira inventou de contar histórias de fantasmas. Apenas me levantei e fui para um lugar um pouco mais afastado com toda aquela falta de coragem masculina e prendi meus olhos no grande círculo luminoso o qual a lua se resumia.
Meu momento de paz não deve ter durado mais do que alguns minutos, pois logo Aoi se intrometia em meu campo de visão, roubando o brilho prateado do astro noturno para si.
- Com sono? – Perguntou enrolando um cigarro. – A oferta ainda está de pé.
- Você não leva muito jeito com seduções, não é? – Indaguei de forma mais descontraída, analisando a vontade descarada que ele tinha de me levar para cama ou para o arbusto mais próximo.
- Não tenho muita paciência com essas coisas! – Confessou, assoprando a fumaça para longe. – Quando alguém me interessa, eu vou direto ao ponto, sem frescuras.
Minhas bochechas se aqueceram com aquela declaração desajeitada. Abaixei minha visão e encarei minhas botas gastas e empoeiradas, sentindo um início de euforia me acelerar o coração.
Aoi me jogou uma espécie de poncho nos ombros e se afastou, voltando para a roda de caipiras.
Fiquei encarando meus pés por mais alguns segundos e decidi que deveria ir me deitar em algum lugar perto da fogueira. Joguei o poncho sob as folhas secas e me deitei todo encolhido, agarrado aos meus joelhos, caindo no sono enquanto os outros ainda conversavam.
AoiHa<3
Abri os olhos e me deparei com um céu escuro, nublado. Já via a hora que desabaria uma torrente de água fria sobre a terra seca. Sentei-me esfregando os olhos e espreguiçando demoradamente, reparando no cobertor desbotado que estava sob mim. Na certa eu deveria estar tremendo de frio e Aoi decidiu me cobrir. Confesso que achei o gesto extremamente fofo.
O cheiro de bacon preencheu minhas narinas e eu percebia o quão enjoado já estava daquele tipo de carne. Passei a mão por meu rosto e cabelos, me sentindo finalmente desperto. Levantei-me e olhei ao redor. Não havia ninguém ali, pelo menos não que eu estivesse vendo. Caminhei por entre as árvores e algo como uma conversa sussurrada me chamou atenção.
Espiei pelo tronco de uma das tantas árvores e avistei Aoi e o tal do Kai, que, diga-se de passagem, não era lá muito comunicativo.
- Acha que vai mesmo encontrá-lo? – Kai perguntou, com as mãos nos bolsos.
- Tenho a esperança. – Respondeu o Aoi, fumando como uma caipora logo pela manhã. – Ouvi dizer que foi visto lá pela última vez. – A mão grande foi parar no ombro do companheiro. - Não se preocupe Kai, ele só irá colher o que plantou.
Kai parecia sério e nostálgico ao mesmo tempo enquanto Aoi mantinha o semblante impassível sempre que a conversa possuía uma conotação mais séria.
Não consegui ouvir muito mais do que isso, pois logo aqueles dois se calaram e eu tive de disfarçar e fingir que não estava bisbilhotando nenhuma conversa sigilosa.
Aoi me encarou de forma curiosa dos pés a cabeça espalmando as mãos na árvore que eu usava como amparo, me encurralando feito um animalzinho assustado.
- O que ouviu? – Perguntou entre dentes e parecia realmente assustador daquela forma.
Droga, eu era uma porcaria para disfarçar.
- Nada que comprometa a sua vingança. – Falei encarando os olhos escuros, mostrando uma audácia que não existia.
Ele continuou me encarando e tinha a certeza de que ele iria me ameaçar com uma nova surra, mas para a minha sorte não foi o que aconteceu.
- Vamos comer e seguir com a viagem. – Disse simplesmente, ignorando a minha resposta. – Antes que comece a chover.
Pude finalmente respirar quando ele se afastou. De qualquer forma, eu acabaria descobrindo do que se tratava aquela vingança.
Quando terminei o café, o caipira me obrigou a arrumar a mochila e me fez passar água pelas vasilhas antes de guardá-las. Claro. Ele estava me castigando por ser um péssimo espião.
Vá lá Takashima, seja a empregadinha desses boçais filhos da mãe e acabe de vez com a toda a sua classe.
- Pronto, docinho? – Não que eu precisasse responder já que ele me pegou dolorosamente pelo braço e jogou-me uma vez mais em cima do pangaré.
Aoi Montou logo em seguida e antes que eu pudesse dizer “Caipira”, já estávamos galopando de forma nada confortável debaixo de um céu que começava a me causar medo.
Nada poderia ser pior do que ficar todo molhado em cima de um cavalo e com um caipira grudado em minha cintura.
- Ao menos aproveite para tomar um banho. – Me surpreendi com o tom debochado com o qual ele voltava a falar. Talvez não conseguisse ficar muito tempo de cara amarrada comigo.
- Até que não é má ideia. – Respondi no mesmo tom. Há quanto tempo eu não tomava um banho de chuva?
Procurei me segurar da melhor maneira possível e voltar a idealizar a minha vida perfeita, em uma fazendinha distante, mas repleta de conforto e uma banheira cheia de água quente...
Meu querido Colorado, jamais se esqueça de mim...
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