“Com seu hálito adocicado e sua língua tão má, ela é o anjo da pequena morte e dos efeitos da codeína. Com seus cabelos bagunçados, seus braços duros e esguios, ela é o anjo da pequena morte e dos efeitos da codeína.”
— Angel of Small Death & Codeine Scene - Hozier
“Cuide das suas amizades. Você vai se surpreender com o quanto pode aprender com elas.” disse Fig antes de Scarlett sair da sala dele após o período de aulas. Muito fácil falar, nada simples de executar. Não é como se ela tivesse grandes experiências em ter amigos, tinha Ominis e só Ominis toda a vida e agora tinha Imelda, Garreth, às vezes Natty e mais às vezes ainda Poppy. Eram muitas novidades para lidar, tinha que perceber as nuances de cada um para saber como tratá-los, não poderia falar com Poppy como falava com Natty e, sem dúvidas, não poderia falar com elas como falava com Imelda. Também não podia tratar Garreth como tratava Ominis ou Sebastian.
Sebastian, essa aí era uma puta novidade. Eles eram amigos?
Talvez amigos seja muito forte dizer, mas seu coração estava mais amolecido depois dele ter levado toda a culpa por invadirem a Seção Reservada. Podia jurar que seria entregue, mas ele foi muito convincente ao dizer estar sozinho. Scribner certamente o entregaria para o tio e não mais para Ronen, o diretor da Sonserina. Quais seriam suas consequências? Queria ter conversado com ele, ter agradecido, quem sabe, mas ele imitou o mesmo comportamento dela e sumiu. Simplesmente sumiu.
Não foi a aula de Aparatação, se é que a fazia, também não foi a de Transfiguração — essa ele fazia. Ominis disse que ouviu a voz do tio dele, quando estava saindo das masmorras naquela manhã e que Sebastian não aparecera mais desde então. Já tinha passado do horário do almoço e Sebastian não costumava pular refeições. Ominis também comentou que ele tinha uma relação conturbada com o tio, mas será que era grave o suficiente para ele ter ouvido algo que o deixou recluso até aquela hora? Logo ele, Sebastian Sallow, o dono do ego intocável?
O sol estava tão bom do lado de fora, a brisa era leve, as folhagens já começavam a alaranjar e aproveitar o tempo que tinham do lado de fora parecia a prioridade de todo mundo, então por que ele não aparecia?
— Viram isso? — Garreth Weasley sentava-se na grama ao lado de Sky, jogando o jornal do dia entre ela, Imelda e Ominis. — Apoiadores daquele duende atacaram um vilarejo muito próximo daqui. Natty disse que eles estão se aglomerando em um castelo ao norte de Hogwarts.
Scarlett pegou o jornal e rolou seus olhos no papel amarelado. A foto da aldeia pegando fogo era o grande destaque, o texto falava sobre outros lugares e que eles já tinham tomado parte do Sul da Escócia. Também falava sobre o avanço das atividades dos bruxos das trevas, das caças ilegais e dos acampamentos por aquelas áreas.
— Já vou esperar a carta da minha mãe me proibindo de voar. — Imelda sofria por antecipação. — É sempre assim, o Profeta Diário não pode falar nada que ela tenta me proibir de sair de Hogwarts.
— Talvez seja melhor considerar o que ela disser… — balbuciou Sky, abraçada às próprias pernas.
— Me poupe, Sky, eu voo muito mais rápido que qualquer feitiço que eles me lançarem. E outra, eles estão no chão, eu estarei nos céus.
— Vocês acham que é verdade ter bruxos e duendes juntos? — Garreth perguntou ao grupo. — Ouvi minha tia comentar algo sobre.
— Seria besteira duvidar de qualquer ruindade que possam fazer. — Ominis respondeu. — A ruindade nunca tem um limite.
Os quatro ficaram teorizando o restante da tarde. Fizeram os deveres de Transfiguração juntos e brincaram de bexigas logo no pôr do sol. Scarlett tentou se fazer presente em cada um das conversas, mas sempre acabava divagando por estar preocupada com Ranrok ou com ele. Já estava quase no jantar e ainda não tinha ouvido nada sobre Sebastian, sentindo-se cada vez mais angustiada pela noite passada. Não deveria ter ido para a Seção Reservada ou deixado ele levar a culpa sozinho.
— Eu vou entrar, tô ficando com frio. — disse ela, abrindo sua bolsa para guardar os livros e notando que ainda estava com o livro de Sebastian.
Maldições Raras e Suas Reversões.
Por que ele queria um livro como aquele? Será que usaria algum desses feitiços no Varinhas Cruzadas?
O guardou com os seus e se levantou. Ominis disse que iria daqui a pouco e Imelda estava preguiçosamente jogada no gramado para levantar naquele momento. Iria sozinha então. Bateu as mãos na saia cinza para tirar a grama e despediu-se deles.
— Scarlett, posso falar com você?!
Garreth se levantou e correu até ela antes que pudesse sair do pátio de Transfiguração. Ela apenas concordou, colocando a capa pendurada em sua bolsa.
— Eu vi que você estava mancando mais cedo e trouxe algumas wiggenweld para você. — Ele tirou do bolso quatro frascos verdes e a entregou.
Eram grandes o suficiente para ela segurar com as duas mãos, mas no tamanho certo para conseguir carregá-los na bota, talvez. Ela sorriu para Garreth.
— Eu acabei me machucando esse final de semana. — Justificou-se mesmo que ele não fizesse perguntas — Obrigada pelas poções.
— Se precisar de mais, avise. Faço uma dessa num piscar de olhos.
Ela sorriu mais uma vez, um pouco mais envergonhada pela ação de Garreth, mas agradecida. Guardou os frascos na bolsa e foi para as masmorras pelas Chamas de Flu.
Será que Fig já tinha descoberto algo sobre o livro? Tinha ido à sala dele antes do almoço e ele disse que pesquisaria mais sobre a magia ancestral e veria nos registros escolares se tinha algo sobre Isidora Morganach, a estudante de Hogwarts que era como Scarlett. O problema é que ela tinha vivido quase um milênio antes deles, tinha chance dos Morganach sequer existirem.
E como ela encontraria as páginas que faltavam se não podia falar com ninguém sobre isso? Queria gritar. Subir na torre de Astronomia e gritar com toda a força até ficar sem ar.
Desceu toda aquela escadaria que já estava acostumada e olhou para ver se via Sebastian, mas nem mesmo a sombra ou o perfume dele estavam por ali. Pensou em ir no quarto dele. Não… eles não eram amigos para isso. O melhor a se fazer era deixá-lo quieto.
Foi para o quarto, arrumou suas coisas de banho e o tomou no chuveiro mesmo. A poção de Garreth ajudou com os ferimentos da noite anterior, os curando quase na hora. Queria ter tido a mesma sorte com os outros machucados de sua perna. Será que ele conseguiria alguma poção para curar cicatriz?
Algumas alunas começaram a tumultuar o banheiro e ela se apressou para vestir-se e sair. Odiava tomar banho naquele horário, as garotas mais novas eram sempre bagunceiras demais, muita gritaria e conversas que a fazia querer vomitar, principalmente vinda das terceiranistas. Outro dia as escutou conversarem sobre Sebastian de forma bastante indecente, coisas que meninas da idade delas não deveriam estar falando. O pior foi elas o comparando com outros garotos, como Sirius, os gêmeos Malfoy e Ominis.
Scarlett se sacudiu, nauseada, e jogou-se na cama para agarrar o suéter que tinha resquícios do perfume de Sebastian. Se aquilo caísse nas mãos daquelas garotas, uma guerra certamente aconteceria. Era uma pena já estar perdendo o cheiro, não sabia quando o sentiria de novo.
— Vamos! — Imelda aparecia na porta. Não era um pedido, nunca era. Sky riu e levantou-se para acompanhar a amiga.
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Apollonia Black era tia-avó de Scarlett. Irmã de Alhena Black, sua avó, e tia de Arabella e Fineus. Ela era dona de Trapo antes de morrer e antes dele ser passado para Fineus. Scarlett conhecia o elfo desde sua infância. Sempre sentiu pena por Apollonia ter lhe cortado a orelha e nunca entendia porque seu tio o tratava tão mal. Ainda assim, não esperava que Trapo decidisse ajudá-la a encontrar as páginas perdidas do livro que encontrou na Seção Reservada.
Foram semanas até conseguirem rastrear as pistas de Richard Jackdaw. Outubro já tinha começado e nada das páginas. Scarlett acabou por se envolver na busca pelo anel de sua tia-avó para retribuir a ajuda de Trapo, mas, infelizmente, Jackdaw já tinha se livrado da jóia. Ao menos conseguiu conhecer o fantasma dele e para saber o que ele fez com as páginas do livro.
Richard contou que roubou as páginas do Pirraça e que não sabia do que eram quando o fez, apenas queria agradar Apollonia. Scarlett riu na cara dele. Agradar um Black era difícil demais, e, decerto, páginas de um livro velho não o fariam. Ela disse que ele teve sorte de morrer cedo, poderia ter se casado com Apollonia e viver uma vida triste sendo tio-avô de Scarlett.
Jackdaw sentiu simpatia pela garota de cabelos pretos como de sua amada Apollonia, mas com o rosto gentil que a Black nunca teve. Por essa razão decidiu contar onde estavam as páginas, junto dos restos mortais do seu corpo. O único problema é que, para isso, ela precisaria ir para a Floresta Proibida e isso gelou cada célula de seu ser.
Era madrugada de quarta-feira quando ela se esgueirou pela Sala Comunal, usando o feitiço de Desilusão para sumir dos olhos desatentos de Sirius que estava deitado no sofá brincando com o fogo da lareira. Que ótimo monitor!
Ela sussurrou para onde ir e a chama verde a cuspiu logo na entrada da Floresta Negra, por onde ela tinha passado com Sebastian quando foram para Hogsmeade. Olhou o caminho iluminado, Hogwarts coberta de luzes atrás de si e o céu salpicado de estrelas. O caminho que ela seguiria era diferente, as árvores densas e altas não deixavam a luz entrar, era obscuro e coberto de neblina.
Ela era louca. Cada vez mais se convencia disso.
Ajeitou o casaco no corpo e checou a varinha no coldre de sua perna. Tinha duas wiggenweld no bolso e uma determinação para pegar aquelas páginas. Jackdaw só a guiou pela metade do caminho, ocupou seus ouvidos e iluminou o redor com a luz opaca de seu corpo fantasmagórico. Ele contou porque era apaixonado por Apollonia e que essa paixão o matou, mas não se arrependia. Era um tolo. Ela nunca seria assim. Contou também que Apollonia culpou uma nascida trouxa, Anne, pela morte dele e ela estava em Azkaban por isso até hoje. Tinha motivos para sua tia-avó fazer isso? Para Richard era ciúmes, um sinal incontestável de que Black o amava. Mas Scarlett sabia como funcionava a família de sua mãe e mandar um nascido trouxa para Azkaban era apenas uma das coisas cruéis que faziam.
Ele ficou parado onde seus amigos construíram um túmulo e colocaram presentes, disse que não seguiria além, mas a caverna estava à frente, logo onde a lua encontrava o lago e os hemeróbios pintavam o escuro com seu brilho.
— Lumos!
A varinha dela se acendeu. Tinha uma mesa velha com coisas velhas e fedidas à esquerda, o grande lago à direita e uma… parede com tijolos em espiral? Ela olhou em volta, mas, além dos cervos do outro lado bebendo água, não havia nada ali. Recuou, com os olhos presos na parede, até que esbarrou num tipo de fonte. Deveria ser o lugar que Richard disse para sussurrar a senha.
Seus dedos finos passaram pela pedra coberta de musgo.
♪
— Intramuros…
O sussurro correu com partículas de brilho da boca dela até as pedras e os tijolos em espiral se moveram até que a passagem fosse revelada. Seu coração disparou em excitação. Estava gostando muito mais de estar ali do que pensou. Aquela luz azulada a chamando e a adrenalina despejada em sua corrente sanguínea. Mordeu o lábio inferior, sorrindo e traçou o primeiro passo quando sentiu um forte vento em seus cabelos. Subitamente foi cercada pela redoma amarela do Protego.
Ousado e jovem, eu vejo o trabalho dos meus parentes
Brincando em algum lugar entre o amor e o abuso
Chamando para se juntar a eles os infelizes e alegres
Balançando as asas de suas juventudes terríveis
Olhou para trás com as duas esmeraldas arregaladas, o coração se descompassando em susto.
Sebastian estava logo atrás dela, a varinha em riste e vários duendes os cercando, mais do que conseguiriam contar naquele momento. Tinha raiva nos olhos de Sebastian, mas um profundo alívio que ela não pôde entender.
Recém renegado em uma devoção congelada
Não poderia mais ser sozinho ou ser eu mesmo
Atraído como um abandonado
Para os braços que estavam abertos
Sem falta de sordidez, sem protesto vindo de mim
— Não estão muito longe de casa? — Um dos duendes disse. — Ranrok sabia que você nos levaria até o que está escondendo.
Scarlett grunhiu, sacou a varinha em um piscar e lançou o primeiro filete vermelho na direção do duende mais próximo. Ele gritou para todos atacarem e uma saraivada de raios rubros correu na direção dos dois.
— Protego!
Os dois disseram juntos e uma redoma púrpura cresceu, maior que o Protego normal, os cercando de todas as primeiras investidas. Eles se olharam e foi como se lessem tudo o que não puderam dizer naquele milésimo de tempo. Scarlett focou nos da esquerda e Sebastian nos da direita. Os feitiços começaram a serpentear de suas varinhas com destreza.
Com seu hálito adocicado
E sua língua tão má
Ela é o anjo da pequena morte
E dos efeitos da codeína
Agora puderam perceber serem dez, cinco para cada. Um sorriso oblíquo pintou a face lívida de Scarlett. Ela ergueu a varinha e parou o avanço de um deles que triplicou de tamanho, escancarando uma face demoníaca com um machado preto em mãos. Eles brilhavam, todos eles, com o mesmo brilho avermelhado de tudo aquilo que envolveu Ranrok até aquele momento. Outro avançou pela direita e ela jogou-se no chão e rolou, erguendo-se no segundo seguinte com um jogar bruto de seus cabelos para trás. Quando elevou o olhar, puderam notar um brilho anilado crescendo em sua íris verde.
— Incendio! — Um círculo de fogo a cercou e expandiu-se para cima deles.
Com seu cabelo bagunçado
Seus braços duros e esguios
Ela é o anjo da pequena morte
E dos efeitos da codeína
Sebastian tinha sua atenção dividida entre acertar os duendes, que queriam acabar com a sua vida, e Scarlett. Bobo. Ele ainda achou que ela precisava de cuidado, quando ela se movia como um furacão indomável. Ele sorriu quando viu o brilho nos olhos dela.
— Diffindo!
Seu pulso girou com destreza e a luz vermelha levou uma fração de tempo para cortar o primeiro duende no meio como papel, logo atrás dela. O sangue espirrou nas pedras e o sadismo escorreu dos olhos de Sebastian.
Sentindo-me mais humano e viciado na carne dela
Coloco o meu coração e o resto a seus pés
Fresco dos campos, todo fétido e fértil
Sangrento e cru, mas eu juro que é doce
Ela sorriu para ele. Completamente comprazedora. Queria muito saber lançar aquela magia, mas ainda não sabia e isso não a impediria de buscar formas de fazer o mesmo. O duende atrás de Sebastian tentou atacar-lhe pelas costas, mas ela não deixou. Tirou o machado dele e o enterrou em seu peito com tanta violência que ele se prendeu na pedra atrás.
— Levioso!
Sebastian ergueu um.
— Depulso!
Scarlett o jogou na direção de Sebastian.
— Confringo!
Sebastian o incinerou sem pensar duas vezes.
O gosto adocicado tomou a boca de Scarlett no momento que sua varinha começou a emitir um forte brilho azulado. Seus olhos não eram mais verdes, estavam totalmente irreais e a aura inundou seu âmago novamente.
Com seu hálito adocicado
E sua língua tão má
Ela é o anjo da pequena morte
E dos efeitos da codeína
Sebastian sentiu o cheiro de fogo tomar conta do ambiente com veemência. Sua varinha vibrou e chamou para si a energia da armadura de um dos duendes. Ele não pode associar a ação, pois, no segundo seguinte, ela estava regurgitando a energia em um raio escarlate que explodiu com o duende.
Scarlett sequer viu o que aconteceu. Estava tomada por um puro frenesi, apossada daquele vigor e com sede de mais. Conjurou alguns jarros velhos do local e jogou em dois duendes que tentaram se proteger com suas redomas rubras, mas em vão. O jarro as quebrava e Scarlett os golpeava.
Com seu cabelo bagunçado
Seus braços duros e esguios
Ela é o anjo da pequena morte
E dos efeitos da codeína
Os seis duendes sobreviventes se juntaram em formação. A frente deles, Scarlett e Sebastian tomavam uma postura ofensiva, caminhavam em passos firmes. Os olhares eram frios, apesar do coração forte e pulsante no peito. Quase como se não fossem dois jovens, mas duas máquinas sedentas por sangue. O sangue deles.
Sebastian decapitou outro em um movimento mordaz de sua varinha, tão veloz que quase não se moveu para lançá-lo.
Ficar próximo de Scarlett era como estar caminhando entre o fogo. Sentia-se tomado por aquele calor que o trazia vida. Ela era como uma tempestade de verão. Um tornado feroz. Um avassalador incêndio. Sequer precisava olhá-la para sentir a arrebatadora presença o tomar, sabia exatamente onde ela estava.
Em confusão sem coleira
Vou perambular pelo concreto
Me pergunto se é melhor ter sobrevivido agora
Dissonante de julgamento e razões
Derroto o doce calor do hálito dela
Na minha boca, estou vivo
Scarlett ergueu a mão no alto e tudo se tornou azul demais. A aura dela se expandiu pelo chão e se alastrou pelas pedras. O céu trovejou e uma chuva de raios começou a cair entre eles. Sebastian se encolheu a princípio, assombrado, mas nenhuma o atingiu. Vasos estouraram, o lago reluziu, pedras voavam ao serem atingidas e árvores tombaram.
Ela era uma visão da própria morte para os duendes. Mas era um ser quase celestial para Sebastian. Seus olhos brilhando naquele azul etéreo, a energia dela que o tomava e aquela violenta magia que defluía de sua varinha.
Com seu hálito adocicado
E sua língua tão má
Ela é o anjo da pequena morte
E dos efeitos da codeína
Com seu cabelo bagunçado
Seus braços duros e esguios
Ela é o anjo da pequena morte E dos efeitos da codeína
Os raios cessaram tão rápido quanto vieram.
Quatro duendes não conseguiram se proteger e foram reduzidos a nada. Nem mesmo rastros de seu sangue ficaram para trás. Os outros dois remanescentes se defenderam dos feitiços rubros que romperam da varinha de Sebastian, mas desistiram de lutar uma batalha falida e aparataram dali antes que morressem na mão dela.
Eles estavam sozinhos.
O fulgor de Scarlett foi minguando para dentro dela, sumindo de sua varinha e devolvendo o verde de seus olhos. Ela ficou ofegante, o vigor a abandonou, mas suas pernas não fraquejaram daquela vez. Piscou algumas vezes para se acostumar com a escuridão que voltava os cercar e virou-se para Sebastian.
Seus olhos castanhos iluminados pela distante luz da caverna e suas feições contraídas na seriedade de quem estudava cada mínimo movimento dela. Ele se preparou para segurá-la, pensou que a veria oscilar em sua consciência, mas ela apenas sorriu, abertamente. As maçãs rubras acentuadas, as duas covinhas marcadas e os olhos brilhantes presos nele.
Ele sorriu de volta, primeiro incrédulo, depois relaxou e riu. Gargalhou e foi acompanhado por ela até que o ar os faltasse e ele se curvasse para recuperar o fôlego.
— O que… você tá… fazendo… aqui? — perguntou ela, puxando o ar de volta para os pulmões.
— Salvando sua vida. — Ele inspirou e expirou de uma vez, recostando-se nos restos da mesa de pedra atrás de si.
Pensou que ela protestaria, faria mais perguntas ou rebateria suas palavras, mas ela escondeu o sorriso com o morder de seu lábio inferior e rumou para a caverna, parando logo na entrada e virando-se para Sebastian.
— Vamos?
Não foi exatamente um convite, estava mais para um questionamento de porque ele estava demorando para segui-la. Sebastian se empertigou e a acompanhou.
Inicialmente, o silêncio era tudo o que tinha entre eles. Não era incomodo, apenas estavam focados em entender o ambiente ao redor antes de falarem qualquer coisa. A entrada da caverna era uma descida íngreme e escorregadia até uma clareira iluminada por demais para aquela hora da madrugada. Eles giraram em seus calcanhares e esquadrinharam todo o lugar.
— O que você veio fazer aqui? — Foi a vez dele perguntar.
Ela pensou se responderia. Pensou em desculpas, em mentiras e em simplesmente se negar a dizer.
— Lembra do livro que fomos atrás na Seção Reservada? — Ele assentiu — Ele está faltando algumas páginas importantes e elas estão daqui.
— Jackdaw te disse que estão aqui? Aquele covarde que ficou lá para trás?
— Você estava me seguindo, não estava? — O riso enfeitava sua voz.
— É muito mal-educado responder perguntas com outras perguntas, miss Callaghan.
— É muito mais mal-educado seguir as pessoas por aí. E estranho.
— Fiquei curioso para saber porque estava vindo a Floresta Proibida logo de madrugada em sua primeira vez aqui.
— Se não fosse agora, seria que horas? Não é como se tivéssemos autorização de qualquer forma.
— Uma noite comigo e é isso que você se torna? Hum… — Balançou a cabeça em negação.
— Cala a boca, Sallow. — Ela ainda brincava, dando um leve empurrão nele com o próprio corpo.
Os dois continuaram a caminhar, ouviram o barulho de aranhas, e não descansaram a varinha em momento algum. Ao final daquele único caminho, a caverna se apresentou maior do que imaginavam quando entraram. Tinha um rio subterrâneo enorme e eles estavam no alto de um precipício. Cachoeiras despencavam e ouviam distante o canto de algumas aves, muito distantes para identificarem.
— Miss? — Sebastian a chamou. — Era um livro sobre o que mesmo?
Ele encarava uma porta muito parecida com a que ela viu na Seção Reservada, em ouro e uma pedra polida azul. Sky olhou para ele, depois para a porta.
— Ainda não sei dizer. Não li. — Deu de ombros. — Por que você só me chama de miss?
— Você é uma miss, não é? — Perguntou como se fosse óbvio.
— Mania de devolver perguntas com perguntas! — revirou os olhos.
— Mas é sério! — Riu. — Se sua família possui títulos reais, eu devo usá-los.
— Não deve não. — Seu tom subiu e se tornou agudo. — É irritante. Eu gosto de ser senhorita, como todas na escola.
— É, mas você está a um passo de ser uma lady, diferente de todas as outras da escola, miss Callaghan!
— Você é insuportável, senhor Sallow! — Deu-se por vencida. — Precisamos ir para lá, mas precisamos das páginas. Não acho que Richard tenha ido longe…
Ela apontou uma porta maior muito distante, entre ela e o caminho que seguiam um grande precipício se abria.
— Bom, podemos explorar tudo, ver os segredos que se escondem e matar aula amanhã para dormir.
Ela riu.
— Acha que os professores não vão atrás da gente?
— Ominis nos dá cobertura. — Sebastian fez pouco caso — Nada do que uma intoxicação alimentar por comer demais os doces da Dedosdemel não nos ajude.
— E se nos mandarem para a enfermaria? — Estreitou os olhos.
— A gente finge.
Claro que não era o melhor dos planos. Na verdade, era o pior de todos. Blainey saberia na hora que estavam mentindo e eles iriam para a detenção. Mas seria tão ruim assim ir para a detenção com Sebastian?
Ela concordou e os dois seguiram. Scarlett ensinou os truques para abrir as portas e ele a ensinou como matar acromântulas de forma mais rápida, sem se aproximar delas.
Será que era isso que ele fazia nas horas livres ou ele estava com medo?
Estavam agitados pela adrenalina, mas também pela ocitocina despejada aos montes sem que sequer se dessem conta. Exploraram cada canto daquela caverna, encontraram baús com ouro e alguns espólios divertidos que iam guardando no bolso enfeitiçado de Scarlett. Tomaram as duas wiggenweld que ela tinha guardada após o último confronto no ninho das acromântulas e riram juntos por cada um dos becos que entravam até acertarem o caminho correto.
Sebastian a enchia de perguntas sobre como ela conhecia os segredos daquele local e ela não se esquivou de responder, apenas falando que tinha passado por um daqueles duas vezes, e uma delas foi na Seção Reservada. Fizera questão de agradecer o que ele fez por ela, e perguntou do tio dele, mas Sebastian apenas deu de ombros e não deixou que ela seguisse por aquele caminho da conversa.
Sem relógio, eles não faziam ideia que horas eram quando alcançam a última porta grande. Puderam perceber que todas as portas menores que abriram, uma parte da ponte era construída. Quando Scarlett colocou o pé nela, a magia ancestral correu e transmutou as pedras velhas em uma ponte belíssima de ouro e mármore azul. Sebastian só queria entender que magia era aquela, mas não queria fazer essa pergunta, queria descobrir por si só.
Scarlett já estava decepcionada por não terem encontrado uma página sequer, praguejou contra Jackdaw mais de uma vez até se deparar com os restos mortais do antigo aluno na entrada de uma grande sala. Ela correu e pegou as páginas que estavam no bolso de seu casaco carcomido. Eram instruções para acessar um lugar chamado “Câmara do Mapa”. Suspirou e as colocou no bolso antes que Sebastian pudesse tecer mais perguntas.
Foi nesse momento que ela ouviu o baque familiar das estátuas que cercavam a sala. Fechou seus olhos e crispou os lábios.
— Sebastian… Prepare a varinha.
O rapaz agarrou o cabo da sua e respirou longamente. Não entendia o que estava acontecendo, mas o senso de urgência com que ela se moveu para empurrá-lo para o lado alardou seu ser. Uma estátua estava pousando brutalmente onde eles estavam, enterrando sua espada no solo. Ele arregalou os olhos e buscou Scarlett, que estava mais a frente combatendo outras duas estátuas ao mesmo tempo.
Ele gastou todos os feitiços de ataque que conhecia naquela noite. Sentia-se exausto, como se tivesse corrido de Feldcroft até Hogwarts. Ela não estava diferente, mas ainda se movia como uma felina. A visão dele estava perdendo o foco e os feitiços já não saiam com a mesma destreza de antes, mesmo que empenhasse mais força e foco no que fazia.
Seu pulso girou e um filete rubro explodiu mais uma estátua.
Sebastian estava exaurido.
A última estátua de pé entre os milhares de pedaços lançou nele sua espada afiada. Ela singrou o ar em um assobio, correndo em um giro mortal. Scarlett arregalou os olhos, quis gritar para ele agir, mas Sebastian estava lento e cansado.
Num instante ela foi apossada por um ímpeto avassalador. Ergueu a varinha e interceptou a espada lançada. A ponta de seu fio cortou superficialmente o rosto de Sebastian quando ela devolveu a arma para o guardião ao enterrá-la em seu peito de pedra, de forma que seus pedaços foram jogados para todos os cantos.
Eles ficaram estáticos, esperaram por mais. Olharam para cima e para todos os lados ao redor, com medo de outro ataque, mas havia acabado. Foi quando Scarlett correu até ele e segurou seu rosto com ambas as mãos.
Sua respiração estava pesada, a garganta seca e ele completamente suado, mesmo que não estivesse muito diferente. Estava mais preocupada com ele do que consigo. O corte em seu maxilar sangrava, junto a outros pequenos por sua face e mãos.
— Você não deveria ter vindo…
Um riso nasalado lhe escapou. Tinha os olhos fechados, mas abriu para encará-la.
— Eu salvei sua vida mais cedo, se esqueceu?
— E eu salvei a sua agora.
Seus lábios se curvaram para sorrir, mas ela se segurou.
— Obrigado. — O murmúrio que saiu dele foi quase inaudível, mas ela estava atenta aos lábios dele para entender o que disse.
— De nada, Sallow. — respondeu no mesmo tom.
— Você viu o que eu fiz? Agradeci o seu gesto?
As mãos dela penderam e ela recuou um passo.
— Eu disse de nada, oras!
— Você é tão irritante, miss Callaghan. — Ele bufou.
— Não me isento, mas você está no mesmo barco que eu.
Outro riso lhe escapou, ainda estava cansado, mas sentia-se um pouco melhor para andar o passo que ela recuou e tocar o canto de seus lábios, onde havia sangue.
— Você só se mete em confusão, não é?
A voz grave dele ricocheteou nas bochechas dela e ecoou por seus ouvidos. Odiava aquela proximidade dele e como ele sempre estava a tocando de alguma forma. Então, por que não conseguia se afastar?
A destra de Sebastian se apoiou no pescoço dela, os dedos roçando em sua nuca e o polegar deslizou por seu lábio inferior.
— Temos que sair daqui logo. Certeza que Ranrok deve estar a caminho. — Ela segurou a mão dele e a tirou de seu rosto antes de se afastar. — Está melhor?
Sebastian pigarreou e assentiu. Poderiam voltar o caminho que vieram agora que tinham as páginas, mas tinha outra porta, a porta que as estátuas defendiam. Quais seriam as consequências de levar Sebastian consigo? Ele não poderia voltar sozinho e acabar encontrando Ranrok.
Scarlett caminhou adiante, olhou para Sebastian de soslaio para saber se ele a acompanhava. Mesmo mais lento, ele mantinha sua postura inquebrável, sua respiração voltava ao normal e seus olhos esquadrinharam todo o local com extrema curiosidade.
A porta brilhou quando se aproximaram. Bastou um toque e ela se abriu para uma pequena ponte cercada por duas quedas de água e outra porta.
— Sabe para onde está indo?
Ela negou. Não tinha como saber, nunca tinha. Mas ela sempre seguia adiante. A porta atrás deles se fechou em um estrondo.
— Pelo menos Ranrok não vai nos achar. — brincou ela, tendo o riso desfeito no segundo que percebeu ter água sobre seus pés, subindo em grande velocidade.
— Scarlett…
— Eu tô vendo!
A porta estava há quinhentos metros na frente e eles já estavam com a água batendo nas coxas. Ela sacou a varinha, tentando pensar em algo, mas não fora necessário, ela se iluminou e uma redoma os cercou no tempo exato da água os cobrir por completo em segundos. Agarrou a mão de Sebastian e o colocou o mais próximo possível de seu corpo. Seus dedos se entrelaçaram involuntariamente, um encaixe perfeito que fez o coração de Sky disparar.
Quando se aproximaram da porta, ela não se abriu, mas se desmaterializou e os dois passaram enxutos. Subiram as escadas com Scarlett um passo à frente. As mãos tensas e unidas em um aperto que estranhamente os dava a sensação de segurança.
Uma enorme sala de abriu diante deles quando alcançaram o último degrau. Tinha as mesmas características de todas as outras salas que estiveram agora. Muito ouro e muito mármore azulado. O teto abobadado emitia uma luz que não parecia natural e toda a sala era Circular. Havia escadas atrás deles, acima de onde vieram, e outra porta. O chão no centro era tão polido que parecia água, em um azul negro como a noite. Tudo era silencioso demais, até ouvirem passos.
Soltaram as mãos ao entrarem em postura defensiva. Prepararam as varinhas, mas o que surgiu fora um homem de idade, barba longa e roupas roxas, estava pintado em um grande quadro diante deles. Scarlett já tinha visto aquele rosto antes.
— Pelas barbas de Merlim! Dois? — O homem exprimiu incrédulo.
— Professor Rackham? É o senhor nas memórias da penseira! — exclamou Sky.
— Isso mesmo. Devo confessar que estou um pouco surpreso de ver duas pessoas tão jovem diante de mim.
Sebastian estava visivelmente confuso, os ombros contraídos, intercalando o olhar entre ela e o homem no quadro.
— Creio que tenho a mesma idade que o senhor e Isidora Morganach quando começaram em Hogwarts.
— Você prestou atenção. E presumo que compartilhe nossa… habilidade? — Ele ergueu uma das sobrancelhas bagunçadas.
— Sim, senhor. — Ela sorriu e aquilo serviu para deixar Sallow ainda mais confuso. Habilidade?
— E você, rapaz? — Rackham quis saber.
— E-eu? Hum… — Sebastian não soube o que dizer, gesticulou e procurou palavras, mas nada fazia sentido.
— Sebastian acabou… me acompanhando, mas ele não… não… você sabe.
Sebastian fitou Scarlett com o cenho franzido em completa confusão. Que diabos estava acontecendo ali?
— Curioso…
Rackham encarou os dois por um período. Foi desconfortável. Ele passava a mão na longa barba e exprimia sons enquanto pensava. Sebastian beliscou o braço de Scarlett, seus olhos suplicavam por uma explicação, mas ela apenas se sacudiu e bateu na mão dele para que ele parasse.
— Como já deve ter percebido, senhorita, nossa habilidade nos permite ter uma relação especial com todos os tipos de magia. Os desafios que os trouxeram aqui são para pôr essas habilidades em teste e impedir que os diferentes de nós tenham acesso a esse conhecimento.
— Senhor, as coisas saíram do controle, eu… eu não sabia… — Subitamente, a postura de Scarlett mudou, ela se encolheu, parecia nervosa demais.
— Eu a segui. — Sebastian tomou a frente. — Estava apenas preocupado com a segurança dela.
— Compreendo… — O professor pareceu ponderar algo mais. — Você terá oportunidades de aprimorar esse talento raro. Não as desperdice.
— Não irei, professor. Agradeço… — murmurou, ainda nervosa.
— Temos muito o que conversar, mas antes, coloque o livro no pedestal ali. — Rackham apontou pata um lugar escada acima.
— Não estou com o livro agora, senhor. — Ela abraçava a si.
Scarlett não parecia lidar muito bem com figuras de autoridade. Sebastian tinha percebido isso nitidamente.
— Não? Hum, que pena. Nossa conversa terá que esperar até que traga o livro.
— Onde estamos? — Sebastian interrompeu os dois, sua voz carregada de urgência.
— Tragam o livro e tudo será respondido. Até lá, a saída que interessam vocês é aquela ali.
As portas no alto da escadaria se abriram. Sebastian olhou para a saída e para os dois. Por que ele começou a tratar aquilo no plural?
Scarlett agradeceu novamente e apressou-se para a saída. Mesmo relutante, Sebastian a acompanhou. Quando saíram, estavam em outro lugar, não mais na caverna. As portas se fecharam e tudo o que puderam fazer foi subir as escadas em espiral até, surpreendentemente, estarem em Hogwarts. Próximo às masmorras, talvez? Conhecia aquela porta velha de madeira e via as Chamas de Flu com o brasão do colégio.
— Miss Callaghan. — Sebastian a chamou.
Scarlett não queria parar, queria escrever para Fig o mais rápido possível.
— Scarlett! — gritou, fazendo seu corpo tremer e seus pés fincarem no chão úmido de pedra.
— Eu sei o que você vai dizer.
— Então me responde!
Ela não se virou, o que fez com que ele segurasse em seu braço e a girasse. Fitou seus olhos com exigência e intensidade. O maxilar travado, os dentes rangiam e ela soube que não poderia mais esconder dele, não conseguia mais. Não era justo e não queria mais.
— Eu preciso de um tempo para ajeitar tudo e te contarei tudo o que quiser saber.
— Scarlett… — pediu.
— Eu prometo, Sebastian. Eu só preciso de um tempo.
Ele suspirou, derrotado e soltou o braço dela. Mesmo que soubesse a magia que lhe traria as respostas, seria incapaz de fazer isso com ela, então teria que dar o tempo que ela pedia. Apenas torcia para ser verdade que daquela vez ela contaria. Scarlett ia se mover, mas hesitou, suas pernas tremeram, suas mãos suaram e seu corpo a traiu mais uma vez ao quebrar a distância entre eles em um abraço apertado.
Os abraços finos passaram por cima de seus ombros e seu rosto recostou-se na curvatura de seu pescoço. Suado, molhado, sujo, mas ainda quente, ainda agradável e ainda tomado pelo cheiro que a abraçava todas as noites.
— Obrigada… por… Obrigada.
Ele não soube o que fazer no primeiro momento. Ela quase o soltou, desconcertada, quando ele passou os braços fortes por sua cintura e uniu seus corpos novamente. Aspirou a lavanda de seus cabelos, controlando-se para não se afundar no pescoço dela como queria fazer. Sabia sobre o que estava agradecendo, não precisaria especificar após o que passaram.
Mesmo sentindo o sopro da morte, ele não se arrependeu de ter ficado deitado naquele sofá depois do horário, muito menos de ter a seguido até a Floresta Negra. Não sabia o que tinha acontecido naquela madrugada nada trivial de quarta-feira, mas a certeza de que não queria a soltar foi firme em despontar em seu peito.
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