"Seria certo se parássemos com essa luta? Seria certo se parássemos hoje à noite? Tudo o que eu quero é você por perto."
— Fortitude - HAEVN
Sangue.
Era tudo que Harlow conseguia ver naquele pequeno calabouço na manhã de terça-feira. O teto estava salpicado de vermelho escuro, as paredes pintadas em padrões grotescos. O líquido viscoso sob seus pés. O cheiro de ferro oxidado e vários corpos ao chão, despedaçados e irreconhecíveis, como marionetes quebradas com seus olhos vítreos refletindo o inferno.
Victor estava possesso. Tinham deixado seu repositório escapar e, ainda por cima, com Ranrok vindo para buscá-la. As cordas em seu pescoço eram sufocantes. Alguém precisava pagar. E ele não teve piedade.
Todos os cinzais que trabalhavam naquela noite foram mortos da maneira mais sanguinária que o bruxo conhecia. Todos fazendo companhia a Henry e seu corpo despedaçado no chão. Theophilus, mesmo acostumado à violência, sentiu o estômago revirar. Ele evitava até mesmo se mexer, controlando a respiração para que não provocasse a ira de seu chefe. Não queria ser o próximo. Ser seu braço direito ainda não lhe isentava dos rompantes.
Victor lançou uma cadeira na parede, a despedaçando. Sua testa suava, o sangue manchava sua roupa. A varinha pingava como uma adaga, pendida ao lado de seu corpo.
— Diga a Ranrok que o preço pela garota aumentou. — rosnou. — E eu quero TODOS os bruxos que estão ao meu comando atrás dela. AGORA!
Harlow apressou-se para sair daquele lugar fechado o mais rápido possível. O cheiro de morte se impregnava em sua pele, o pavor de ser o próximo rastejando em sua espinha.
A ordem foi dada com clareza.
Ele olhava o céu ser tomado pelos bruxos em suas vassouras. Todos com os olhos vidrados em qualquer pessoa que passasse por debaixo deles. Nos bolsos, os rostos de Scarlett Callaghan estavam amassados, marcados de sujeira e sangue seco. O único objetivo era encontrá-la.
E sobreviver à ira de Victor Rookwood.
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— Ominis, você sabe da Sky? — Imelda espalmava as mãos na mesa do Grande Salão, parando em frente ao Ominis, que conversava com Smile, a pessoa com quem ele estava passando grande parte dos dias desde que brigou com Sebastian e Scarlett. — Ela não voltou ontem e já é domingo.
— Boa noite, Imelda. — Ele forçou um sorriso ácido. — Não. Também não estive procurando.
— Oi, Smile.
— Oi... — Seus grandes olhos castanhos singraram entre os dois. A tensão era desconcertante.
Imelda bufou e revirou os olhos, deixando Ominis, sua nova amiguinha e o seu jantar para trás. Correu para as Chamas de Flu e saltou para a Sala Precisa.
Iria matar Scarlett quando a encontrasse. Odiava a sensação de preocupação e todas as vezes que ela sumia por muito tempo e chegava suja como se tivesse lutado pela vida. A realidade é que Imelda nunca ligou muito para o que Scarlett fazia fora do castelo. Elas já tinham conversado sobre Sky se meter uma vez ou outra com duendes quando tentava sair do castelo, mas sempre pareceram encontros despropositais.
Contudo, um sábado inteiro e um domingo inteiro fora não era usual. Em algum momento, ela teria que aparecer para pegar novas mudas de roupa ou qualquer coisa, o que não tinha acontecido. O fato dela estar brigada com Ominis por nenhum motivo aparente era mais do que incômodo. Se sequer ele sabia onde ela e Sebastian estavam, quem saberia?
Checou todos os viveiros, o quarto e a ala onde ela preparava as poções. Nenhum sinal da miss.
— Senhorita Reyes, como vai? — Deek surgiu com o mesmo tom educado de sempre. — Surpresa encontrá-la aqui.
— Oi, Deek... Você viu a Sky? Estou procurando por ela.
— Deek não vê a senhorita Callaghan desde a manhã de sábado. Ela e o senhor Sallow foram para um piquenique.
— Hum... certo. — Imelda respirou fundo. Precisava acalmar os pensamentos acelerados. — Quando ela aparecer, pede pra ela me encontrar, por favor.
O elfo assentiu e Imelda decidiu que iria esperar para vê-la no brunch do dia seguinte. Pelo horário, ela não iria mais sair daquela sala quando voltasse e Imelda não queria problemas com os monitores.
E ela até conseguiu jantar bem e dormir tranquilamente naquele domingo, mas quando não encontrou Scarlett na manhã de segunda, seu coração tornou-se pequeno. Ela voltou a procurar na Sala Precisa, mas não falou com Deek. Se perguntasse de novo, poderia arranjar problemas para Scarlett.
Depois do almoço, Imelda decidiu voar pelo terreno ao redor de Hogwarts. Contudo, diferente dos momentos em que ela estava no céu, aproveitando o vento e o frio na barriga ao tentar aumentar mais e mais sua velocidade na vassoura, ela estava devagar, olhando o chão.
O que era para ser uma simples verificação por Hogwarts acabou por ser uma tarde inteira no céu. O frio estava absurdo e seus dedos doíam, sua boca estava rachada e seu nariz parecia não esquentar nunca, resultando na coriza irritante. Imelda voou do castelo até Irondale, no sul. Já estava anoitecendo quando se obrigou a voltar. Precisava se esquentar ou acabaria doente.
— Reyes! Cadê o Sallow? — Sirius a parou assim que ela entrou no Grande Salão. — Precisamos treinar! O campeonato começa mês que vem.
Ela estava de banho tomado e roupas quentes, mas isso não significava que estava de bom humor.
— Tenho cara de babá dele agora? — disparou.
— Você escolheu ele para ser o capitão. Então, sim!
Ela revirou os olhos.
— E você estava de acordo na votação, então menos. Não se preocupe com os treinos, já estão marcados para depois da nevasca dessa semana.
Sirius não se despediu, apenas seguiu seu caminho para a mesa da Sonserina, fazendo Imelda mudar sua rota para a mesa da Grifinória.
— Garry... — murmurou ao sentar-se ao lado dele no jantar. — Você viu a Sky?
— Oi, Meldy. — respondeu de boca cheia, mastigando seu pãozinho e só então negando com a cabeça. — Eu não a vejo faz uns dias... Por quê? Tá tudo bem?
— Hum... tá. — Apertou os lábios em um sorriso forçado e levantou-se. — Valeu.
A preocupação estava virando uma grande vontade de chorar. Algo gritava dentro de si, alertando que Scarlett não estava nada bem. Mas... ela deveria contar? Não queria que ela tivesse problemas com o pai de novo. Sabia que eles não estavam em bons termos depois do Ano Novo e a última vez que ela interviu, mostrando a carta de Arthur para Sebastian, o resultado não poderia ter sido pior.
Tinha perdido toda a fome do mesmo jeito que perdeu o sono. Sairia do castelo naquela hora para procurar mais, mas não sabia como fazer isso com o tanto de monitores do lado de fora e uma nevasca começando.
Quando deu o horário de levantar pela manhã, ela não hesitou em correr para a aula de Feitiços para chegar antes de todos os outros. Deu duas batidinhas na porta e encontrou o diretor da Sonserina fazendo suas anotações no quadro negro.
— Professor Ronen... podemos conversar?
Abraham soltou o giz branco e bateu as mãos.
— Bom dia, senhorita Reyes! Claro, claro! — Ele uniu as mãos em frente ao corpo e assentiu com um sorriso gentil. — Alguma dúvida em minha matéria? Devo dizer que suas notas precisam de alguma melhora...
— N-não... Eu estou estudando para melhorá-las... — Imelda respirou fundo. Seus olhos fundos e cansados deixaram o professor desconfiado, mas ele deu espaço para que ela falasse. — Por favor, eu não quero criar problemas... mas eu estou muito preocupada.
— Sim...?
— A Scarlett... não a vejo desde sábado. O Sebastian também... Eles... eles saíram juntos pela manhã e não voltaram mais...
Uma sombra passou pelos olhos escuros de Abraham.
— Tem certeza disso?
— Absoluta.
Ronen esforçou-se para não preocupar ainda mais sua aluna. Tocou seus ombros em um afeto quase paternal e sorriu.
— Descanse, criança, irei averiguar a situação. Assista à aula e conversamos depois.
Imelda assentiu, mas não conseguiu prestar atenção em nada. Ronen saiu após aquela conversa e só voltou às oito, quando o horário da aula começava. O relógio se arrastou, duas horas pareceram vinte. Quando Ronen dispensou a turma, Imelda e Ominis foram chamados até a sala dele.
— Professor Ronen... — Ominis adentrou o escritório, sua expressão inalterável. Ele leu o ambiente, percebendo a presença tensa de Imelda a poucos passos de distância.
A professora Weasley chegou logo após, fechando a porta com um leve estalo antes de se posicionar ao lado do professor de Feitiços. Imelda respirou fundo, mas o ar parecia insuficiente. Suas mãos tremiam, e o coração martelava contra as costelas.
— Senhor Gaunt, senhorita Reyes... — Ronen encostou-se na sua mesa, os ombros tensionados e as mãos apoiadas na madeira atrás de seu corpo. — Os chamei aqui porque, essa manhã, a senhorita Reyes trouxe à luz a ausência da senhorita Callaghan e do Senhor Sallow nos últimos dias.
— Professor Ronen foi ao meu encontro e posso afirmar que não recebemos requerimentos de nenhum dos responsáveis deles para que passassem o final de semana fora. — A professora Weasley tentava esconder o nervosismo no tom de voz, mas Ominis, habituado a detectar nervosismo, percebeu a hesitação subjacente em sua voz.
— Professora, eu gostaria de ajudar, mas faz pouco mais de duas semanas que não nos falamos. — Ominis estava impassível, como se o que tivesse ouvido não fosse nada. — Eu não me preocuparia com eles, devem estar matando aula em alguma caverna por aí. Ou na Sala Precisa.
Matilda olhou para Abraham e ele assentiu.
— Obrigada pela presteza, crianças. Podem ir.
Ominis se apressou para a saída como se estivesse precisando de ar fresco para permitir-se respirar. Imelda também não demorou, mas só conseguiu alcançar Ominis quando eles chegaram ao Anexo da Biblioteca. A fonte das sereias ao lado fazia muito barulho por conta dos primeiranistas, que sempre se divertiam em fazer as sereias cantarem e girarem.
— Qual é, Ominis! — Ela o puxou pelo braço. — Você não está mesmo nenhum pouco preocupado? Faz quatro dias... A Sky nunca sumiu por tanto tempo e a professora Weasley está preocupada...
— Eles não são crianças, Imelda. Sabem se virar. — Ominis disparou.
— Larga de ser orgulhoso! — Ela aumentou o tom de voz, mas conteve-se, não queria que aquilo se espalhasse. — Seus dois melhores amigos sumiram! Precisamos fazer alguma coisa...
— Imelda, eu não quero ser mal-educado, mas...
— Atenção, estudantes! — A voz de Matilda soou no alto da escadaria, reverberando pelas paredes e interrompendo Ominis. — As saídas dos terrenos de Hogwarts estão estritamente proibidas até segunda ordem. Toque de recolher está sendo acertado e as aulas externas só poderão ser acessadas mediante presença dos monitores.
Ronen, Garlick, Fig e Hecat estavam a acompanhando naquele anúncio. Os monitores foram se aproximando ao chamado dos diretores de cada casa para mais instruções enquanto os burburinhos cresciam.
Garreth aproximou-se de Imelda com um olhar nada agradável. Natty estava ao seu lado, também parecia nervosa.
— Meldy... você encontrou a Sky?
— Não... — admitiu, frustrada. Como ela procuraria por sua amiga agora?
— Sebastian estava com ela, não estava? — Natty perguntou. — Ouvimos os professores falarem sobre dois alunos desaparecidos... e sobre...
— Cinzais estão à solta nos céus. Aos montes. — Garreth tomou a frente. — Em todos os lugares. Por isso, estamos proibidos de sair.
Imelda quase sentiu o chão debaixo de si abrir-se para tragá-la quando seu sangue desceu para as pernas. Tinha alguma coisa muito errada. Ela deveria ter acreditado nos seus instintos antes. O olhar que lançou para Ominis foi fumegante. Era sorte a dele não conseguir enxergar toda a ira que transbordava daqueles olhos negros. Ainda assim, Ominis foi consumido pelo arrependimento no mesmo nível que a aflição cresceu o seu peito. Sua expressão carregada virou-se para ela, como se pedisse desculpas, ainda que nada fosse sair da sua boca.
— Precisamos encontrá-los. — Ela arfou.
— Mas como? Não sabemos pra onde eles foram. — Ominis apertava a varinha com força.
— Deek disse que eles foram para um piquenique. — disse Imelda.
— Tá, mas onde? — Perguntou Natty. — Sebastian gosta de se afastar quando saí assim, ou seja, eles podem não estar aqui do lado.
— Podemos tentar alguns lugares. Tenho algumas ideias em mente... — Ominis falou, a cabeça fervilhando todos os lugares que foi com Sebastian nos últimos seis anos. — Mas precisamos sair do castelo, o que não vai ser fácil.
— Na verdade, esse é o menor dos nossos problemas. — disse Garry. — Eu conheço um par de saídas secretas.
— Precisamos da mais afastada. — Ominis fora incisivo, fazendo Imelda estreitar os olhos para ele.
— Hum... Oi, gente... — Poppy se aproximou delicadamente. — Eu não queria interromper, mas acabei ouvido a conversa sem querer... Acho que fui a última que falei com eles... Sebastian estava procurando comigo um ninho de hipogrifos mais ao norte da Floresta Proibida, quando achamos, ele disse que levaria Scarlett lá no sábado...
— Me leve lá, por favor, Poppy. — Ominis quase agarrou o braço dela, a urgência era aguda.
— Eu vou também! — Natty disparou. — Sebastian é meu amigo.
— Eu também! Caso precisem de suporte. — Garreth prontamente se ofereceu.
— Não. — Ominis cortou-as. — Não é uma excursão para irmos de bando.
— Ninguém te pediu permissão, Gaunt! — Imelda disparou, impaciente. — Precisamos de toda ajuda que pudermos com a situação lá fora. Além do mais, você vai como? Andando no seu orgulho quilométrico?
— Eu sei me virar. — Ele bufou, as narinas se expandindo.
— Que bom pra você. Pensasse nisso quando eu te pedi ajuda no domingo. — Imelda estufou o peito e virou-se para o grupo. — Se ajeitem, levem bastante roupa de frio e algumas coisas para comermos. Garry, precisaremos de um bom estoque de wiggenweld. Sei onde pode prepará-los.
— Eu ajudo ele. — Natty oferece-se.
— Fechado. Eu vou pegar algumas vassouras no armário da Kogawa. Ominis, você vem comigo. Poppy, prepare o mapa. Nos encontramos... — Seus olhos singraram até Garreth.
— Tem uma passagem da tapeçaria do terceiro andar que nos leva diretamente para o terreno ao lado das Estufas. É o lugar mais vazio e podemos sair daqui voando.
— Temos duas horas. — Imelda finalizou, puxando Ominis sem mais nem menos.
Ela iria achá-los.
Só para depois bater neles por toda aquela preocupação.
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O sangue de Scarlett não demorou para esfriar. Com isso, todos os músculos de seu corpo começaram a doer insuportavelmente. Ela tentou cuidar dos próprios ferimentos, mas nem todo Episkey do mundo seria capaz de ajudá-la. Seus tornozelos estavam em carne viva, inchados e moídos. O tecido de sua meia grudado na pele e o desespero lhe assolando todas as vezes que imaginava como seria terrível tirá-la. As costelas quebradas dificultavam sua respiração. As pontas de seus dedos estavam extremamente embranquecidas, como se o sangue não circulasse por ali. Tinha cortes por seu corpo, e o sangue seco de seu rosto a incomodava.
Pelo menos Sebastian estava vivo.
Ela tentou consertar a casa para que se abrigassem do frio, mas a magia ancestral parecia tão dentro dela que não conseguiu fazer nada e o Reparo não era o suficiente quando a casa era tão antiga que sequer tinha a madeira do telhado por ali. A fresta no teto não era grande, mas com a nevasca que caía, o frio era diabólico. Os vidros da janela também não existiam, e ela queria acreditar que eles estavam bem escondidos, deitados no chão.
Scarlett arrastou e colocou a madeira do que era uma cama na lareira e a acendeu com Incendio. Precisavam se aquecer. Quando o fez, Sebastian gemeu em dor para tirar o casaco dela de debaixo de si, para que ela se agasalhasse.
— Deita... comigo... — Ele pediu.
Parecia choroso, mas não dava para ver se ele chorava. Seus olhos estavam muito inchados, muito roxos e tinha tanto sangue amassado em sua pele que ficava difícil diferenciar onde estavam os ferimentos.
Scarlett fungou e deitou-se. Suas costas se tencionaram. Fazia dias que ela não sabia o que era estar naquela posição. Ela se aproximou o máximo que podia, enterrando-se no peitoral de Sebastian.
Sebastian encostou o queixo na cabeça dela, fechando os olhos. A fome doía tanto quanto a pele gélida. Tanto quanto sua costela exposta, a pele esfolada e o rosto esmurrado. Ele queria desabar. A aflição correndo por suas células em um espasmo assustado quando ouviu o som de vassouras voando sobre suas cabeças.
Ele queria acreditar que não iriam morrer, mas já estavam desaparecidos há dias, sequer sabiam onde estavam ou como pedir ajuda. Estavam fracos e feridos demais para aparatar, tinham medo de mandar sinais com as varinhas e acabarem pegos pelos cinzais ou duendes. Isolados naquela parte das Altas Terras, torcer para serem encontrados por alguém que não os quisesse mortos parecia uma fé boba naquela altura.
— Sky... — Sebastian a chamou com a voz fraca e arrastada.
Ele tinha respirações curtas e parecia sentir muita dor, ainda que tentasse abraçá-la. O fogo não os aquecia o suficiente e eles tremiam abraçados um ao outro. O sangue molhava suas roupas e o lençol velho e rasgado que acharam ali não era o suficiente para aquecê-los. Scarlett ergueu a cabeça com dificuldade, sua respiração estava pesada como se estivesse com toneladas em suas costas, ainda assim, soprou ar quente nas mãos deles, aproximando-se ainda mais.
— Você me ama? — Sua voz quase não saíra. Ele estava cada vez mais pálido e o cachecol dela amarrado em seu tronco estava incapaz de segurar mais sangue. — Eu sei... que você sente o mesmo. Eu... eu espero que... você sinta.
A pergunta pareceu estranha para ela no primeiro momento, até que se tocou de que nunca tinha dito isso para ele, mesmo ouvindo dele mais de uma vez. Ele sempre foi transparente com o que sentia, dizia o que pensava dela o tempo todo, que não conseguia ficar sem ela, que a amava. Sempre disse que sabia que ela sentia o mesmo, brincava e a provocava com isso, mas Scarlett nunca retribuía aquelas declarações com palavras, mesmo que as sentisse. Talvez por medo, talvez por não saber o que dizer. Ele sempre foi tão bom em declarações que ela se sentia ínfima ao pensar em fazê-las.
— Eu te amo, Sebastian. — Falar era difícil, mas ela se esforçou. Os olhos ardendo com as lágrimas que acumulavam ali. — Desculpa te dizer isso quando estamos morrendo... mas eu te amo, com todo o meu corpo cansado, com toda a minha alma, até o último pedaço do que eu sou.
Ele tentou sorrir, tremendo de frio, agarrado a ela. Soltou sua mão e deslizou os dedos ásperos por sua pele suja, mas ainda dela. Tocou as bochechas gélidas e se esforçou para beijá-la. As bocas secas e rachadas, quase tão frias quanto a morte.
— Nós... não... vamos... morrer. — Sua voz falhava cada vez mais.
— Mas, se morrermos, promete... não me deixar sozinha do outro lado? — As lágrimas escorriam de seus olhos sem que ela pudesse controlar.
Ele não tentou secar as lágrimas dela, como geralmente fazia, pois também chorava. Sebastian nunca achou que temeria a morte, porém a morte também estava querendo levar a garota que ele amava e isso o aterrorizou.
— Pro-meto...
Unindo suas frontes, tornou a segurar as mãos dela entre as suas na tentativa de mantê-las quentes. Um vento forte soprou e apagou a fraca chama da lareira atrás deles.
— Scarlett Lean Callaghan... — Fitando o profundo do âmago dela através dos olhos verdes que ele jurou ser devoto para sempre, tomou fôlego mesmo que isso doesse todas as suas costelas. — Quer se casar comigo... quando estivermos do outro lado?
— Quero... — Ela sorriu, mesmo sem humor, mesmo sem vida. O choro rasgando sua garganta.
Encostaram suas frontes. Os corpos mais unidos que conseguiam. A respiração quente e falha chocando em suas faces chorosas. Sebastian entrelaçou sua mão à de Scarlett, querendo apertar, mas sem força para isso. Ela soluçou, gemendo de dor por isso.
Scarlett estava com medo.
Muito medo.
Sentia-se paralisada. Ainda que cansada, não queria dormir pelo medo de nunca mais acordar. Sabia que, se seus olhos se fechassem de verdade, ela não teria forças para voltar e... ir com Sebastian daquele jeito, por culpa dela, era demais.
Era demais morrer.
Já não sabia dizer se os calafrios de seu corpo eram do frio cortante ou do pavor avassalador. A morte era tudo o que ela imaginou. Horrenda, gelada, cruel. Ela não queria morrer. Não queria, não queria. Arabella não a levaria. Ela estaria lá? Não. Não queria pensar nisso. Ainda conseguia sentir a textura da mão gélida e branca de sua mãe quando tentou tirá-la do alto.
Esse era um pesadelo que ela enterrou tão profundo dentro de si que gostava de fingir que havia esquecido, mas não conseguia, não quando estava indo para o mesmo caminho tenebroso da morte.
Scarlett não queria morrer.
Por que Arabella quis? Por que ela a deixou? Por que ela não a protegeu? Tudo poderia ter sido diferente... Se não fosse por sua mãe. Se não fosse por aquela maldita magia ancestral. Queria apenas voltar. Voltar para sua cama quente. Para o Grande Salão, cheirando a bacon, ovos e o perfume cítrico de Ominis. Voltar para o sorriso aconchegante de Sebastian. Para o abraço de seu pai. Para a voz doce de sua mãe. Para os instantes de paz que Scarlett se agarrava para que não odiasse viver.
— Encontrei eles! — Uma voz soou distante, gelando todo o corpo.
Sebastian não se moveu, fazendo Scarlett levantar seus olhos para ele. Os olhos estavam fechados, a respiração tão fraca que passava quase despercebida. Ele não estava dormindo.
— S-Se-Sebastian... — lamuriou.
Ouviu a porta ser empurrada com força. Tinha muitos passos por ali. Ela agarrou o casaco de Sebastian com força, não queria soltá-lo.
— Não, não! Por favor... — resfolegou — Por favor... não!
Tocaram em seu ombro e tentaram afastá-la de Sebastian. Sua visão estava tão embaçada que não via os rostos, não reconhecia as vozes e o pânico tomou seu corpo. Ela se debateu, mesmo que mal conseguisse se mexer. Precisava fugir. Se conseguisse tocar em Sebastian, tentaria Aparatar ou eles a matariam.
Precisava...
Ficar acordada. Contudo, seu corpo fraco e debilitado acabou apagando e Scarlett foi engolida pela escuridão intensa.
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Quando os primeiros raios de sol tocaram o rosto de Scarlett, ela acordou. Piscou longamente e suspirou. Esticou os braços para o alto da cabeça e espreguiçou até a pontinha dos pés antes de sentar-se. Percebeu que tinha acordado na transversal, completamente esparramada na cama, o que a fez rir. Pelo menos o sol a acordou, como tinha planejado, ao deixar aquela janela aberta.
O sol tinha a acordado.
Scarlett arregalou os olhos e saltou da cama. Arrancou os algodões do ouvido, calçou suas botas quentes e fechou-se em seu roupão de pelo. O castelo era frio no inverno.
Abriu a porta em um puxão, correndo até o quarto de seus pais antes de diminuir a velocidade e colocar todo o seu peso na pontinha dos pés. Abriu a porta com cuidado, espreitando para ver se Arabella estava na cama, mas não viu seus cabelos negros caírem da cama, como sempre acontecia. Seu pai ainda estava apagado e ela não iria acordá-lo. Scarlett estava o evitando depois da última briga que ouviu entre ele e Arabella. Sua mãe chorava muito e isso a assustou.
Ela não iria abrir os presentes sem Scarlett.
A menina correu até a cozinha. Os elfos já começavam a acender os fogos para preparar o café da manhã e Dottie estava curvada em uma das lareiras.
— Dottie! — Scarlett gritou, afobada. — Cadê a mamãe?
— Bom dia, senhorita! — Dottie havia se assustado, cambaleando e tentando se recompor. — Dottie viu a milady ir para o Corujal mais cedo.
— Ah, tá. Não esquece os biscoitos de gengibre com chocolate! — Scarlett disparou para lá, mas voltou, sorrindo sapeca. — Feliz Natal!
— Feliz Natal! — Os elfos responderam juntos e Scarlett riu, disparando para o lado externo do Castelo.
A neve estava fofa, o que era péssimo quando se estava com pressa. Sabia que seu pijama ficaria todo molhado, mas pouco se importava. Queria encontrar Arabella para cumprirem a tradição de abrirem os presentes juntas, comendo biscoitos molhados no chocolate quente. Não é só porque eles desistiram de fazer uma ceia e de montar uma árvore que não teria presentes. Aquela era a melhor parte do Natal. A melhor de todas. Elas riam, brincavam e, às vezes, até trocavam presentes quando uma gostava mais do presente da outra. Geralmente acontecia com joias.
Suspirou. O ar seco era péssimo para respirar. Bateu as botas no chão de pedra e subiu as escadarias com menos pressa, estava sem ar. Aquele ano não estava sendo bom, mas o Natal sempre melhorava tudo. Tinha certeza de que, quando as duas se sentassem ao lado da lareira, nada ia passar de um pesadelo. E Scarlett iria se acostumar um dia em ser alguém sem magia. Arabella iria ajudá-la a entender o que precisa entender e, talvez, Scarlett poderia se tornar escritora. Imagine ela poder viver contando histórias? Pelo menos... ela teria a magia em algum lugar... Não era tão ruim, né?
— Mamãe! — Scarlett disparou, ofegante. — A senhora não poderia ter vindo depois? Temos que...
As palavras escaparam de sua boca.
Viu primeiro os pés descalços balançando lentamente. Subiu o olhar devagar. A chemise longa e branca em perfeito estado. Seu corpo começou a tremer dos pés à cabeça. As mãos de Arabella estavam tão brancas quanto o tecido que a cobria. Finalmente encontrou os olhos de sua mãe. Os olhos dourados assustadoramente arregalados e... inertes. Sua boca estava tão roxa quanto o casaco de sua filha e seu rosto estava azulado como o gelo do lago.
— M-mãe... — Scarlett engasgou. — Mãe!
Sky apressou-se, puxando o vestido de Arabella. Precisava tirá-la dali. Olhou em volta e encontrou a varinha dela ao chão. Queria usá-la, mas... Scarlett não era uma bruxa. Teria que usar as mãos. As lágrimas passaram a molhar seu rosto com muita facilidade. Sua respiração estava descompassada e ofegante, as mãos tão tremulas que pareciam de papel. Ela subiu no parapeito. O chão tão longe era assustador. Virou-se devagar para que não caísse e agarrou a mão de Arabella que estava tão gelada quanto a neve que caía. Com a destra, ela tentava arrancar a corda amarrada no pescoço.
— Mãe... Mãe! Mamãe! Me ajuda, por favor, tá machucando! — Scarlett suplicava entre os soluços — Mamãe!
Ela tentou agarrar nas pernas de Arabella para empurrá-la para cima, mas não tinha força, afinal, era só uma criança de onze anos.
— PAPAI! — berrou com toda a força. O grito agudo rasgando a garganta e exigindo demais de seu pulmão cansado. — PAI!
Ela gritou, duas, quatro vezes, até Arthur aparatar com os olhos assustados de quem foi arrancado da cama. Ele vasculhou o lugar antes de deparar-se com o pior de seus pesadelos. Sua esposa enforcada e sua filha pendurada à mãe enquanto era engolida pelo desespero. Ele cambaleou, apoiando no portal atrás de si. Tinha certeza de que seu coração tinha parado de bater.
— P-papai... me ajuda... mamãe tá machucada.... me ajuda... — Sky mal conseguia falar entre a força que tentava fazer para segurar a mãe e o choro que não lhe largava.
Arthur parecia desnorteado. Quase não conseguiu romper o primeiro passo para tirar Scarlett do parapeito. Ele agarrou a criança e a tirou da mãe como alguém tira um curativo, rápido e com força. Scarlett gritou e tentou voltar.
— DOTTIE! — Ele gritou e a elfa apareceu logo após. — Tire Scarlett daqui. AGORA!
— NÃO! — Scarlett se agarrou ao pescoço do pai. — MAMÃE! ACORDA, MAMÃE! NÃO ME DEIXA, NÃO ME DEIXA!
Arthur forçou Scarlett a ir para o chão, ao par que Dottie tocou nela e a desaparatou. Quando o mundo tomou forma, Arabella estava sentada em sua poltrona de leitura, calma e pacífica. Ela olhou para Scarlett e sorriu, abaixando o livro.
— Você chegou!
A voz dela era a mesma exata melodia que Scarlett tinha certeza que tinha esquecido.
— Não... — a garota titubeou. — Eu quero ir embora.
Arabella franziu as finas sobrancelhas pretas, parecia confusa; chateada com a resposta de sua filha.
— Mas, querida... Você acabou de chegar...
— Eu. Quero. Ir. Embora. — Scarlett murmurou entredentes, se afastando o máximo que pode, até suas costas se chocarem contra a porta atrás de si que não tinha fechadura.
— Meu bem, por que está tão assustada? — Arabella deixou o livro de lado. — Aqui não é um lugar ruim. Podemos contar as estrelas juntas de novo.
Scarlett negou, engolindo o nó sufocante de sua garganta.
— Você me deixou para viver aqui sozinha, então é isso que vai acontecer; você vai viver aqui sozinha.
Arabella suspirou, colocando uma mecha de seu cabelo negro atrás da orelha. Era como se Scarlett estivesse vendo o seu próprio reflexo alguns anos mais velha e isso era perturbador.
— É isso que pensa?
— Eu sei. Agora me deixa ir. ME DEIXA IR!
— Sky... — Arabella lhe estendeu a mão, mas Scarlett se encolheu, balançando a cabeça exasperadamente.
— Você me deixou. — murmurou. — Eu quero voltar.
— Eu não queria...
— Eu NÃO ligo! — disparou, raivosa. — Você me deixou! VOCÊ ME DEIXOU!
Quando seus olhos abriram, ela não via Arabella, mas sim Ominis. Seus olhos cinzas, preocupados e amáveis sobre ela.
— O-Ominis? — Sua voz se arrastou. Sentiu-se estranha ao falar e mal ouviu o que disse.
— Você estava tendo um pesadelo... está tudo bem... — Ele sussurrou. — Você está bem.
Scarlett piscou algumas vezes, aturdida. Percebeu os lençóis macios tocarem sua tez sensível. A quentura acariciar seus ferimentos e o frio parecer distante. Todos os seus músculos doíam; ela conseguia sentir as faixas em seus tornozelos e a fita em pontos de seu rosto. Eles estavam na Enfermaria de Hogwarts, reconhecia aquelas janelas de qualquer lugar, mas...
— E o Sebastian? — Sua voz estava muito fraca e sua boca ficou seca.
Ominis apontou com a cabeça para a cama do lado.
— Ele ainda está dormindo, mas a Madame Blainey disse que é a poção. Vocês ficaram três dias apagados... — Ominis fungou.
Scarlett, então, fitou bem o amigo, percebendo o nariz avermelhado e o redor de seus olhos no mesmo tom.
— Você estava chorando?
— Não... — Ominis afastou-se.
— Estava, sim. — A voz de Imelda soou ao lado de Scarlett. — Dá pra ver, Ominis, quando alguém chora.
— Meldy... — Scarlett sorriu, fraca, mas com coração tão quente que parecia queimar.
— Eu te odeio. — Ela disparou, brava. — Eu fiquei uma semana sofrendo por você, sua idiota! Estúpida!
Imelda também estava com as feições chorosas, mas, diferente de Ominis, ela não tentou esconder e abraçou Scarlett da forma que conseguiu, deixando as lágrimas molharem os cabelos de Scarlett que ela tinha penteado tantas vezes naqueles três dias.
— Nunca mais faça isso...
— Nunca. Prometo. — Sky encostou sua cabeça na dela, fechando os olhos.
Ominis logo se aproximou, também abraçando Scarlett e Imelda, de quebra. Narizes fungando, respirações entrecortadas e aquele abraço quente atrapalhando Scarlett de respirar, pelo menos era de uma forma boa.
— Como viemos parar aqui?
Os dois se afastaram e Imelda fora aquela a tomar a frente.
— Saímos à procura de vocês na terça. Os professores estavam demorando demais e... eu queria a minha amiga de volta. Eu, Ominis, Natty, Garry e Poppy voamos horas até que a Natty encontrou vocês na Floresta Proibida.
— Ominis voou? — Scarlett arqueou uma sobrancelha.
— Eu não ia deixar os meus dois melhores amigos por aí... — respondeu ele com um sorriso hesitante.
Scarlett comprimiu os lábios em um sorriso fino, apertando a mão de Ominis. Depois de tudo o que aconteceu, ele ainda se arriscou em ir atrás dela e de Sebastian.
— Eu levei um soco seu quando tentei falar com você. — Imelda revirou os olhos. — Você estava quase delirando ou sei lá. Aí você desmaiou e tivemos que chamar os professores...
— Blainey disse que, se Sebastian esperasse mais um pouco por resgate... — Ominis engasgou, a voz sumindo.
— Vocês quase morreram... Estavam cogitando levá-los para o St. Mungos, mas Blainey conseguiu estabilizá-los. — Imelda murmurou.
— Muita gente passou por aqui... — disse Ominis.
O espaço ao redor do leito de Sebastian transbordava com flores, doces e cartas. Scarlett também tinha recebido presentes, mas em quantidade menor.
— O que aconteceu, Sky? — Meldy finalmente perguntou.
— Victor Rookwood... mas eu não quero falar sobre isso agora. — Scarlett sussurrou, desviando o olhar.
— Eu vou avisar o seu tio e ao professor Ronen que você acordou... — Ominis retrocedeu dois passos. — Seu pai não veio, mas parece que estava mandando cartas...
— E eu vou avisar Natty, Garry e Poppy. Eles estavam revezando com a gente para que vocês não ficassem sozinhos. Você estava tendo muitos pesadelos esses dias...
— Pesadelos? — Scarlett questionou.
— Depois que Blainey cuidou de você e o efeito da poção para dormir passou, estávamos todos esperando você acordar, mas você continuou dormindo, se debatendo às vezes e, em outras, começava a falar... — Ominis explicou.
— Falar o quê?
— Não importa! O importante é que você está bem. — Imelda beijou a bochecha de sua amiga e os dois se afastaram.
Os passos no chão de pedra se tornando distantes até que não fossem mais ouvidos.
Silêncio.
Não aquele silêncio desesperador do calabouço, mas um silêncio calmo. Não apenas a ausência de som, mas um lembrete de que estavam seguros, vivos. Ela fechou os olhos, levando a mão ao coração que batia pesado. Focou em sentir o colchão sob si e o lençol macio. O travesseiro de penas abaixo de sua cabeça e o cheiro de flores que os cercavam, misturado ao aroma do açúcar de todos aqueles doces.
O relógio de Hogwarts trabalhava não muito longe, a água corria na fonte de Unicórnio e ela estava viva. Por Merlin... Sequer conseguia acreditar que estava mesmo viva. E que Sebastian estava ali. Sentiu um alívio profundo invadi-la, como uma onda quente do mar na praia de areias brancas; a espuma borbulhando nos dedos e a água puxando de volta para si todo o cansaço e a dor. Ela o fitou.
Seu rosto estava bem menos inchado, ainda tinha alguns hematomas, mas já conseguia ver as voltas quase naturais de seus contornos, o nariz perfeito, o maxilar anguloso e os lábios desenhados. As sardas podiam ser vistas e não tinha sangue em sua pele. Notou que ele estava com bastantes faixas. Seu braço, ombro, tronco e sua cabeça, mas sua respiração era regular e ele parecia em paz.
— Nós sobrevivemos... — murmurou, como se precisasse ouvir as palavras para que se tornassem reais. — Nós sobrevivemos.
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