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História Family Promises - Uma viagem para o inferno - Parte 2


Escrita por: Botatocupcake

Capítulo 6 - Uma viagem para o inferno - Parte 2


Pov. Kyoka

- Kamui? - Chamei pelo seu nome, sem acreditar no que estava vendo.

Por um milésimo de segundo eu desejei que aquilo fosse uma ilusão, mas infelizmente não era.

Kamui parecia tão surpreso quanto eu e a expressão em seu rosto dizia que ele não estava lá muito contente em me ver. Ele se levantou e depois pulou de cima da criatura, caindo a apenas um metro de distância de mim. Institivamente eu dei um passo para trás.

- O que você está fazendo aqui, Kamui?! - Questionei. Minha voz saiu esgancinaça e o meu tom de voz desesperado. Eu dei sorte de não ter gaguejado.

Eu não havia esquecido o que aconteceu da última vez em que nos encontramos. Eu não me esqueci do que ele havia dito.

Ele me encarou, agora com um sorriso, pendendo a cabeça para o lado.

- Sou eu quem lhe pergunto isso, priminha. - Seu tom de voz era cortante e o seu sorriso assustador. Antes que eu pudesse responder ele continuou. - Está querendo morrer? - Ótimo. Eu estava ferrada. - Se esqueceu do que eu lhe disse da última vez? Quer que eu repita?

- Eu não vim atrás de você, Kamui! - Exclamei. - Eu estava atrás da resina de colméia, para usar numa receita.

Meu tom de voz foi um pouco mais sério desta vez. Eu estava mais firme, o encarando de perto com um olhar duro. Na melhor das hipoteses eu conseguiria ter uma conversa com Kamui e na pior, bem... Ele provavelmente tentaria me matar e quem sabe conseguiria.

Seu olhar também era sério. Pela sua expressão eu deduzi que ele entendeu que eu não estava de fato atrás dele. Mas por algum motivo ele parecia irritado com isso.

Não.

Ele não estava irritado com o fato de que eu não estava procurando por ele ou com a minha presença alí. Ele parecia mais irritado era consigo mesmo. Eu arriscaria dizer que ele estava furioso.

E a cara dele tomava cada vez mais proporções assustadoras. Ergui uma sombrancelha confusa. Era quase como se ele estivesse em uma batalha interna.

Ele pareceu ter tomado alguma decisão. Por um breve momento seu olhar pareceu triste, mas aquilo desapareceu tão rápido quanto havia aparecido.

- Sabe de uma coisa, Kyoka? - Ele falou, mas antes que eu pudesse responder ele continuou. - Eu realmente não dou a mínima para isso. - Foram as suas últimas palavras antes dele me nocautear com tudo no estômago. Cuspi uma quantidade considerável de sangue antes de encara-lo completamente surpresa. - Eu não disse que da próxima vez em que nos víssemos eu iria te matar?

Eu estava fodida de tantas maneiras diferentes que eu não conseguia nem contar.

Tentei me afastar de Kamui antes de receber o seu próximo golpe, mas o seu soco foi mais rápido do que eu, me atingindo com tudo no rosto e me arremessando a alguns metros de distância a frente. Eu apenas parei ao me chocar com tudo em uma árvore. Cuspi mais sangue.

Com um certa dificuldade me pus de pé, tentando focar minha visão que parecia embaçada. Me apoiei na árvore, colocando a mão em meu estômago.

Céus, aquilo realmente havia doido.

Kamui tinha me acertado com tudo. Ele realmente estava me acertando pra matar.

O som de folhas velhas sendo pisadas me colocou em alerta. Dei um passo a frente enquanto pegava o meu guarda-chuva.

Olhei ao meu redor, esperando que Kamui aparecesse a qualquer momento, mas os meus sentidos estavam fracos. O sol escaldante, os golpes que eu havia levado, mais o forte cheiro que emanava da gosma verde que saia da abelha morta estavam deixando meus sentidos loucos.

Um vulto ruivo a centímetros de distância de mim me assustou e com ele um soco consideravelmente forte fôra desferido em mim. Graças ao meu reflexo eu consegui me defender do golpe.

Segurar os punhos de Kamui era uma tarefa muito mais difícil do que eu imaginava, a força dele era de fato monstruosa. Eu não me lembrava de ter lutado contra um pessoa tão forte antes. O olhar assassino em seu rosto me falava o que eu era para Kamui. Apenas uma presa estúpida. Uma pedra em seu caminho.

Comecei a me perguntar em que momento ele tinha se tornado aquela pessoa. Que momento foi esse que passou tão despercebido por mim?

Várias partes do meu corpo estavam completamente desprotegidas. Um prato cheio para o meu oponente. Com um chute ele me atingiu com tudo nas costelas, porém eu me mantive de pé, suportando a dor. Resolvi lhe dar o único golpe que eu era capaz de desferir naquele momento. Eu lhe dei uma cabeçada, o afastando o suficiente para que eu continuasse com o meu segundo golpe. O soco mais violento e forte que eu era capaz de dar.

Kamui foi arremessado para trás. Eu queria sorrir satisfeita, mas a dor em meu estômago não me permitia fazer isto.

Aquela era a minha chance. Dei as costas, pronta para fugir dali. Eu não conseguiria vencer Kamui sozinha nem em sonho e eu estava gostando demais da minha vida para poder desperdiça-la tão facilmente.

A risada psicótica de Kamui me fez parar. Logo a sua voz soou mais perto de mim do que esperava.

- Talvez você não seja assim tão fraca quanto aparente, Kyoka. - Tentei me virar para me proteger, mas infelizmente já era tarde demais.

Seu punho alcançou meu estômago mais uma vez e logo depois um soco em meu rosto. A única coisa que fui capaz de desviar foi de seu chute.

Me coloquei em posição de ataque novamente, descartando o meu plano de fuga. Dei a ele um olhar cansado. Aquela seria uma longa luta.

[...]

Eu já não sabia quanto tempo havia se passado desde que aquilo começou ou a onde exatamente nós estávamos. Tudo o que eu sei é que estamos próximos do palácio de Mosuku, com Kamui me segurando pelo pescoço a um passo de quebra-lo e acabar com a minha vida.

Eu estava jogada na copa de uma árvore com Kamui agachado a minha frente. Minhas roupas estavam manchadas de sangue enquanto vários ferimentos se estendiam pelo meu corpo. Eu sentia que podia desmaiar a qualquer momento, mas insistia em sustentar o olhar dele. Kamui aos poucos apertava meu pescoço, ora me deixando sem ar, ora me deixando respirar.

Não dava para saber o que ele queria. Se queria me torturar ou apenas me matar logo de uma vez. Na verdade eu acho que nem ele mesmo sabia o que queria fazer comigo.

Eu arriscaria dizer que ele parecia um pouco hesitante, mas obviamente aquilo era presunçoso demais para alguém na situação em que eu me encontrava.

- Não vai acabar logo com isso? - Minha voz saiu quase que num sussurro. Eu já não aguentava mais. Ver o seu descaso e crueldade era tão doloroso quanto as feridas em meu corpo. - Ao menos tenha um pouco de consideração comigo e me mate logo. Me dói olhar para você agora... - Meus olhos se encheram de lágrimas.

Eu havia tentando tanto. Dado o meu melhor. O procurei por todos os lugares. Me submeti a situações humilhantes apenas para conseguir algumas informações a respeito dele. Me afastei da única pessoa que ainda me queria por perto. Perdi oito anos da minha vida por causa dele. Não era justo que ele ficasse brincando comigo daquele jeito antes de me matar. Ao menos ele deveria sentir uma gota de consideração por mim depois de tudo.

Quando me dei por mim eu estava chorando. Era patético. Eu queria preservar o pouco de orgulho que eu ainda tinha antes de morrer, mas até isso o Kamui tinha que tirar de mim junto com a minha dignidade.

Por um momento eu vi dor em seu olhar. Seu rosto antes sem expressão agora parecia minimamente triste.

Sua mão, que antes apertava meu pescoço, relaxou, até que se soltou dele, indo até minha face e suavemente enxugando as minhas lágrimas.

O olhei incrédula. Não era possível que Kamui conseguisse mudar tanto da água para o vinho em segundos.

Ele aparentemente também percebeu o que estava fazendo e afastou a mão de meu rosto a fechando em punho. O vi trincar seu maxilar e agora o seu olhar era o de raiva. Mas não era exatamente raiva de mim.

Ele se levantou depressa. Me deixando largada alí, no chão, sem nenhuma explicação.

- Foi por isso que eu mandei ficar longe de mim. Desapareça da minha vida. Esqueça que existo. Pode ter certeza de que isto é o melhor pra você. - Sua voz era tão fria e cortante que um arrepio passou pela minha espinha.

Segui suas costas com o olhar enquanto piscava ainda perplexa, sem acreditar no que tinha acabado de acontecer. Por que Kamui decidiu poupar a minha vida de repente? Eu pensei que ele estivesse decidido a me matar. Bom, pelo menos ele estava até a alguns minutos atrás.

[...]

Eu andava tão devagar quanto uma tartaruga. Já era quase noite e apenas a uma hora atrás eu tive forças o suficiente para me levantar.

O peso em minha bolsa me impedia de me mover de maneira mais livre, mas um mínimo sorriso de satisfação preenchia meu rosto. No fim das contas eu havia conseguido a maldita resina de colméia.

Talvez fosse idiotice da minha parte voltar para pegar a resina, mas o meu espírito de cozinheira não desistiu. E além do mais eu não tinha feito aquela viagem completamente atoa. O que me garantiria que ainda teria resina quando eu voltasse no outro dia?

Depois de completar a maldita trilha, eu me via finalmente fora da área de perigo da floresta. Agora eu deveria novamente passar pelo palácio e depois estaria na cidade. Era ainda um caminho longo, porém bem menos complicado.

As feridas em meu corpo latejavam a cada passo que eu dava. Kamui tinha conseguido me quebrar toda e não era do jeito que eu queria.

Quando olhei para o caminho que levava até a cidade, me surpreendi ao encontrar uma tremenda baderna. Pessoas corriam desesperadas na direção contrária ao Palácio. Resolvi dar uma olhada melhor no castelo e quase tive um ataque de pânico ao ver o lugar pegando fogo.

Andei rapidamente até o caminho, parando um homem que corria com uma criança no colo.

- O que está acontecendo?

- Foi uma invasão no palácio! Tem um louco lutando contra o rei! - O homem exclamou exasperado e eu dei uma risadinha nervosa.

- E por acaso esse louco seria um ruivo com roupas chinesas?

- Esse mesmo, senhorita! Você o viu? - O homem me questionou surpreso e eu dei um tapa em minha própria testa.

Não era possível que o Kamui conseguisse ficar ao menos uma hora sem brigar com ninguém?

[...]

O fato de que boa parte do palácio estava em chamas era realmente um grande problema. Para onde quer que eu olhasse haviam corpos ensaguentados e eu sabia bem quem era o responsável.

O meu desespero era mais do que notável, enquanto meus passos ficavam cada vez mais rápidos. Por mais que eu não devesse, por mais que eu não quisesse, eu estava preocupada com Kamui.

Quando ele foi embora ele não estava com o corpo em cem porcento. Eu poderia ser fraca em comparação a ele, mas não era completamente inútil. Eu era capaz de causar um bom dano a qualquer um e com Kamui não foi diferente. Ele estava debilitado e lutar contra o imperador de uma nação não era a ideia mais sensata a se fazer naquele momento. Ainda mais quando o imperador era Mosuku. 

Os boatos a respeito daquele homem eram grandes. Ele não era fraco. Sem mencionar o seu gigantesco exército. Eles não ficariam parados ao verem o seu líder sendo massacrado.

Tinha tanta fumaça nos corredores que eu já estava começando a me sentir mal. Eu já tossia descontroladamente enquanto meu pulmão procurava por ar fresco. Mas nem por isto eu parei de correr. Eu nem sequer sabia de onde eu tinha tirado tanta força.

Minha visão estava começando a ficar turva enquanto que minha garganta e pulmão queimavam. Meu coração batia tão forte que chegava a doer. 

Aos poucos meu corpo foi parando de me obedecer, me obrigando a parar. Me apoiei na parede enquanto tentava fugir da fumaça. Eu estava prestes a sair em um corredor maior que parecia estar livre, por enquanto, da fumaça assassina.

Eu estava prestes a chegar até a ponta do corredor quando meus olhos avistaram um rosto conhecido. Me forcei a andar mais rápido, tentando recuperar o ar que eu tinha perdido. Não era uma tarefa simples.

Kamui estava cercado por todos os lados por membros do exército. Seu corpo estava num estado que me fazia pensar em como ele ainda estava vivo. O sangue escorria livre de suas vestes, o seu rosto mostrava os golpes que havia levado alí. Mas o que mais se destacava nele era o sorriso. O sorriso psicótico que mostrava para qualquer um o quanto ele estava adorando aquela situação.

Ele estava praticamente de cara com a morte e ainda estava sorrindo de uma maneira tão insana. Aquele Kamui era assustador.

Um homem avançou em meu primo, assim como a maioria dos outros que estavam alí. Aquilo me obrigou a agir logo.

Dei um pulo alto o suficiente para alcançar o teto do palácio e lá de cima disparei um tiro que acertou em cheio o aparente líder deles. Me impulsonei, mandando toda a minha força para o meu pé e caindo na cara de um daqueles infelizes. Eu diria que nem todas as plásticas do mundo eram capazes de reverter o que o meu chute foi capaz de fazer com o pobre coitado.

Me coloquei em frente à Kamui, num ato protetivo.

Aqueles homens me encaravam surpresos e com um pingo de medo no olhar. Ao contrário de Kamui eu ainda tinha um pouco de energia para socar a cara de alguns idiotas.

- O que diabos você está fazendo aqui? - A voz de Kamui saiu mais como um rosnado.

O olhei por cima do ombro. Kamui parecia prestes a cair a qualquer momento.

Voltei minha atenção aos meus novos  oponentes. Lutar com aqueles homens poderia ser prejudicial para mim mais tarde. Eles estavam num número considerável. Eu não tinha tanta energia para acabar com todos eles.

Então eu tive a ideia mais idiota que eu poderia ter tido. Fazer algo que eu tinha quase cem porcento de certeza de que não iria dar certo.

- Ei, vocês! - Consegui focar a atenção de todos eles em mim. - Acho melhor se preocuparem com o que está lá fora, e não com o que está aqui dentro.

- Lá fora? O que raios está lá fora?

- Um exército inteiro de Yatos. Yatos sanguinários prontos para acabar com com qualquer um que se meta em seu caminho. Eu acho melhor vocês pararem a eles e não a nós.

O desespero em seus rostos era notável. Eles estavam mal conseguindo dar conta de um Yato, imagine de um exército deles. Parabéns Kyoka, ótima ideia. Uma meia dúzia deles saiu correndo como garotinhas para o outro lado. Os que restaram felizmente resolveram seguir os meus conselhos e foram como loucos para os portões do palácio.

Imediatamente me virei para Kamui que ainda me encarava surpreso. Fui até ele o obrigando a se apoiar em mim.

- O que pensa que está fazendo?! - Ele tentou se afastar de mim mas eu segurei seu braço.

- Sou eu quem lhe pergunto. Vir para um lugar como esse lutar sozinho, ainda mais depois de ter saído de uma outra luta. Você realmente não sabe quando parar, não é Kamui? - Questionei irritada. Francamente, mesmo depois de adulto, Kamui insiste em se meter em confusão. - Vamos logo. Quando eles perceberem que não há Yato nenhum lá fora vão vir atrás de nós como loucos.

Kamui me encarou mais surpreso ainda, provavelmente se perguntando o quão idiota eu era. Por fim ele deu uma risadinha e finalmente me deixou ajudá-lo.

- Você é realmente louca, mulher. - Murmurou enquanto nos dirigimos para fora do castelo em chamas.

[..]

Se esconder em uma cidade conturbada e cheia de guardas prontos para cortarem o nosso pescoço não era uma tarefa tão fácil. Não era seguro voltar para a estalagem e provavelmente o terminal estava interditado. Eu tive sorte em encontrar um lugar para ficarmos.

Era uma casa velha, quase aos pedaços, fria e cheia de buracos no telhado. Os móveis ainda estavam alí, indicando que os antigos moradores deveriam provavelmente ter morrido.

Não era um hotel cinco estrelas porém na situação em que nos encontrávamos era melhor do que nada. Eu ainda tive mais sorte ao encontrar algumas gazes e faixas velhas e mais alguns remédios e faixas novas em minha bolsa.

- Tire estas roupas, eu vou cuidar de você. - Com uma bacia velha com água quente nas mãos.

Kamui ergueu sua cabeça me olhando como se eu fosse uma tola. Um sorrisinho de deboche preenchia o seu rosto.

- Não sei se você se lembra, mas eu tentei te matar a algumas horas atrás. Não é muito comum tratar tão bem um pessoa que tentou tirar sua vida.

Dei um sorriso enquanto me aproximava de Kamui.

- Quanto a isso... - Soquei com força o seu abdômen ferido, o fazendo cuspir sangue. - Eu já me esqueci. Não sou do tipo que guarda rancor. - Minha expressão voltou ao normal enquanto ele se recuperava do meu golpe. - Eu mandei tirar essa roupa, ficou surdo?

Mesmo com uma cara de dor ele sorriu.

- Eu não sabia que queria tanto assim me ver nú, Kyoka. - Uma veia pulou da minha testa. Imediatamente chutei seu estômago no mesmo lugar de antes, o que resultou nele cuspindo mais sangue.

- Você não está em condições de ficar brincando assim, idiota! Faça logo o que eu mandei antes que eu trasnforme a sua cara num saco de pancadas! - Disparei furiosa o fazendo rir.

Mesmo rindo, Kamui me obedeceu. Tirou o parte de cima de sua roupa revelando feridas que ultrapassavam o conceito da palavra grave. Eu sinceramente me perguntava como ele ainda estava vivo. Mas então eu me lembrei que ele era uma besta. Uma besta assustadora.

De repente ele começou a desabotoar os botões da calça, me assustando e desesperando ao mesmo tempo.

- O que raios você pensa que está fazendo?! - Me afastei enquanto cobria os olhos.

- Ora, você não me mandou tirar a roupa? Eu estou tirando. - Sua voz inocente o fez parecer uma criança idiota que não sabia o quão errado e imoral era aquilo.

- Eu não queria que você tirasse a calça, imbecil! Eu só quero que tire a parte de cima!

- Mas a calça também é uma roupa. E você me mandou tirar toda a roupa.

- Não mandei não! - Arremessei a sua própria capa em sua cara.

Com as bochechas vermelhas me sentei a alguns centímetros de distância de Kamui. Ele tirou a capa de seu rosto me encarando com aquele seu típico sorriso falso de boneca. Resolvi ignorar e fazer logo o meu trabalho.

As feridas eram muitas e enormes. Eu deveria limpa-las e depois enfaixar. E o pior é que ainda corria o risco de inflamar. Bom, por hora aquilo era o máximo que eu conseguia fazer.

Eu dei uma olhada melhor em Kamui. Nos últimos anos ele havia mudado muito. Ele não era mais o garoto magrelo, que mais parecia uma lombriga, de antes. Seu corpo estava desenvolvido e seus músculos eram notáveis.

Quando notei que estava encarando demais o abdômen de Kamui, envergonhada tentei alcançar as faixas que eu havia separado para ele, mas antes que minhas mãos pudessem alcança-las ele pegou meu pulso, me parando.

- Você não acha que deveria cuidar de si mesma primeiro? - Ele perguntou com uma sombrancelha erguida e eu dei um sorriso cansado, soltando meu pulso de seu aperto.

- Eu não consigo, você sabe. Além do mais, você está bem pior do que eu. - Eu não estava mentindo.

Ele coçou a cabeça enquanto suspirava cansado.

- Maldição... Você sempre foi assim. Se preocupando mais com os outros do que consigo mesma. - Murmurou me fazendo rir.

Ele estava certo. Sempre foi assim.

Me peguei um pouco mais animada para falar. Kamui parecia menos nocivo agora.

- Você se lembra? Quando éramos crianças e fomos brincar no lago? Fomos estúpidos o suficiente para escorregar e descer correnteza a baixo. Mesmo sendo eu quem bateu a cabeça, insisti para a tia que foi você quem se machucou mais e precisava ser tratado primeiro. - Falei num tom mais animado enquanto Kamui me escutava seriamente.

Por fim ele deu um sorrisinho de canto enquanto eu me ocupava em enfaixar seu abdômen.

- No fim das contas minha mãe não acreditou. Acho que ela percebeu o quão grave era o sangue que descia pela sua testa em comparação ao meu braço ralado. - Soltei uma risada, me lembrando do ocorrido.

Por um momento pensei que Kamui quisesse rir também, mas a sua expressão costumeira permaneceu em seu rosto. Como sempre.

- E se lembra da vez em que fugimos da bruxa velha da loja de conveniência? - Continuei falando, enquanto tentava segurar o riso. - Você começou a falar do quão gorda e feia ela era com aquele tanto de rugas espalhadas na cara e aquelas unhas pretas gigantes. De acordo com você ela parecia uma mistura de baiacu com baleia. Então naquele dia você começou a imitar o jeito que ela andava enquanto falava mal dela, mas ela escutava a tudo escondida atrás do balcão. - Falei me lembrando da cara da mulher.

Acho que eu nunca havia visto uma mulher tão assustadora quanto ela na vida. Com os seus dois saltos vermelho sangue que faziam um barulho horrível quando batiam no chão da loja, ela nos perseguiu.

- Ela saiu correndo atras de nós furiosa com uma vassoura na mão, mas no meio do caminho ela tropeçou em uma pedra e caiu em cima de três crianças. - Ele completou com um meio sorriso maldoso. - Depois você jogou água de peixe nela dizendo que uma baleia deveria voltar para o mar. Você era cruel, Kyoka. - Eu já estava rindo quando ele terminou de falar. Ao menos eu não era a única, já que daquela vez ele também estava rindo.

Quando me dei por mim novamente, minha cabeça estava apoiada no ombro de Kamui enquanto eu ria. Minha bochechas coraram na hora enquanto meu coração falhou uma batida. Era a primeira vez em anos que eu estive tão próxima dele assim. O cheiro dele ainda era tão familiar.

Quando as risadas dele foram cessando me afastei, com o rosto ainda corado.

Ele parou de rir num rompante, olhando para nenhum lugar em específico, com a expressão vazia. Eu tentei abrir a boca para falar algo, porém ele foi bem mais rápido do que eu.

- Já chega, não faz mais diferença. Isto está no passado. Deveria parar de se prender a ele, Kyoka. - Minha expressão se fechou enquanto um sentimento de raiva se apossava de mim.

Eu abri a boca para retrucar, mas a fechei novamente. Eu não estava com forças o suficientes para discutir com ele. Eu estava cansada.

Resolvi continuar a enfaixar os ferimentos, mas ele arrancou as faixas da minha mão com uma certa brutalidade. Irritada, olhei para o seu rosto e me decepcionei. Aquele maldito sorriso estava estmapado na face dele. Aquele sorriso que eu tanto odiava.

- Eu cuido disso sozinho. - Ele falou antes de começar a enfaixar o braço. 

Murmurei um "tudo bem" antes de me levantar cabisbaixa. Resolvi tratar meus próprios ferimentos. Seria estúpido da minha parte deixar que eles piorassem.

Enquanto eu me tratava, a dor e queimação nas feridas abertas latejavam, porém eu não reclamava. Nada alí doía tanto quanto o meu coração.

[...]

Foi difícil, porém eu consegui convencer Kamui a passar a noite na cabana. Mesmo para ele seria perigoso sair no estado em que ele se encontrava.

- Afinal de contas, o que diabos você veio fazer aqui, Kamui? - Perguntei depois de muito tempo em silêncio.

Kamui que até agora estava com os olhos fechados e com a cabeça apoiada na parede não fez um movimento sequer.

- Não acho que isso seja da sua conta, Kyoka. - Eu tive vontade de soca-lo, mas me mantive calma em meu canto.

- É assim que você retribui uma pessoa que salvou sua vida? - O silêncio pairou no lugar por muito tempo antes de eu resolver continuar minha provocação. - Então está certo, se você não vai me dizer eu vou descobrir sozinha.

Me levantei, andando em direção a porta, pronta para sair. Kamui finalmente abriu os olhos, me encarando cansado.

- A onde você pensa que vai?

- Procurar Abuto. Tenho certeza de que ele pode me dar uma resposta bem mais gentil. - Falei com um sorriso que muito se assemelhava ao dele.

Pela primeira vez no dia ele pareceu ficar realmente irritado comigo.

- E desde quando você e meu subordinado são tão amigos? - Questionou com uma expressão irritadiça me fazendo rir.

- Desde o dia em que ele salvou a minha vida. Ele é um cara legal, sabia? Chega até a ser bonito. - Falei num tom brincalhão, mas a expressão de Kamui estava assustadora.

Mais uma vez lhe dei as costas, pronta para abrir a porta que dava para o lado de fora da cabana, mas tomei um susto ao ver uma mão batendo na porta e a segurando, impedindo que se abrisse. Franzi a sombrancelha, dando um olhar cansado a Kamui.

- Se você ousar passar por esta porta, eu te mato. - Nem sorrindo ele estava.

Dei um sorriso ladino, me virando para ele.

- É mesmo? Você vai me dizer ou eu vou ter que testar a sua ameaça? - Questionei com os braços cruzados e uma sombrancelha erguida.

Sustentamos o olhar um do outro por algum tempo até que Kamui pareceu finalmente se cansar daquilo.

- Você é in-su-por-tá-vel. - Sibilou bem próximo de meu rosto antes de se afastar e me dar as costas. - É melhor se sentar, afinal, não é uma história curta.

Sorri vitoriosa, indo atrás dele e sentando ao seu lado.

- Mosuku era um aliado da Harusame, em todos os sentidos. Contribuía com mercadorias, informações e força militar. - Ele começou com uma expressão de tédio. - Mas a alguns meses descobrimos que ele estava envolvido com uma outra organização.

- E só agora resolveram acabar com ele? - Questionei.

- Sim, afinal de contas ele era útil para nos fornercer informações deles, mesmo que inconscientemente. Porém, nas últimas semanas ele se tornou completamente inútil além de incômodo. O desgraçado passou informações nossas para esta organização, o que resultou num eventual confronto e mais tarde em uma baixa bem grande nos nossos números. - Um flashback passou pela minha cabeça.

A conversa entre aqueles dois homens. Então era realmente verdade que a Harusame havia perdido várias batalhas recentemente.

- Vocês são idiotas? Como são capazes de dar informações a ele sabendo que ele era um traidor?

- Este é o problema. Nós não demos a ele nenhuma informação deste tipo.

- Em outras palavras, há outro traídor? - Questionei um pouco confusa.

- Exato. Mosuku não passa de um intermediador entre o informante e a outra organização. Decidimos acabar com esse laço que os unia e nos livrar de uma vez dele, afinal não poderíamos fazer mais alarde para que não descobrissem que sabemos da existência de mais um traidor, então eu vim eu mesmo acabar com tudo isto de uma vez.

- Então você veio aqui para eliminar Mosuku? Sozinho?

- Não. Eu trouxe alguns de meus homens comigo.

- Então porque você era o único lutando no palácio? Não me lembro de ter visto o corpo de nenhum Yato por onde passei.

- É porque eu ataquei o palácio sozinho. - Ele falou como se fosse a coisa mais natural do mundo, me fazendo ter vontade de dar um tapa em minha própria testa.

- E por que diabos você fez isto seu idiota?! Você tinha acabado de sair de uma briga comigo e logo partiu para outra sem nenhum reforço?! O quão imbecil Abuto é a ponto de te deixar fazer o que bem entende?!

- Você não cansa de falar do Abuto não? - Ele parecia irritado. - Eu fui sozinho porque não imaginava que todos os homens de Mokufu estariam no palácio, e de qualquer  maneira eu consegui dar um jeito nele.

- E a onde mais eles estariam, seu imbecil?! Dançando valsa em um bar?! É lógico que estariam no palácio!

- Já chega, Kyoka. Eu não preciso de você me dando sermão. Abuto já faz isso muito bem sozinho.

- Agora eu entendo o que ele quis dizer com comandante idiota... Você estava praticamente pedindo para morrer!

- Ha, olha só quem fala! É além do mais, o que raios você estava fazendo aqui?

- Eu disse, não? Eu estava atrás da resina de colméia.

- O que raios é resina de colméia?

- Um tipo diferente de mel produzido por aquele criatura gigante que você matou mais cedo. Aliás, obrigada por ter acabado com a única fonte da resina, se eu gostar da receita infelizmente não poderei fazer de novo, nunca mais. - Resmunguei num tom acusatório, mas Kamui apenas deu de ombros.

Depois daquilo acabou. Nem eu e nem ele dissemos uma palavra sequer. As horas foram passando e a noite chegando. Em pouco tempo eu peguei no sono. Quando acordei na manhã seguinte, ele já havia ido embora sem sequer se despedir. Não que estivesse esperando algo assim dele.



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