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História A Arte da Alma - Verão, Ato Dois: O Vazio


Escrita por: linonmars

Notas do Autor


Links e complementações nas notas finais.

Capítulo 2 - Verão, Ato Dois: O Vazio


VERÃO

Ato Dois: O Vazio

 

As folhas farfalhavam verdes no robusto carvalho que sombreava o casarão, este isento de vida a não ser por seu único e solitário morador. Solitário e por opção, gostava de acrescentar quando o assunto por vezes surgira em rodas de conversa. Nada agradava mais ao médico do que a calmaria de uma casa silenciosa.

O som alto e vivaz dos violinos ecoavam pelos corredores maciços da mansão, lançando uma aura sombria ao lugar. O labirinto de corredores de mármore pareciam nunca ter fim, acabando por parar em lugar nenhum. Até mesmo os poucos criados tinham dificuldades em transitar pela austera construção que poderia sem dificuldades albergar uma comunidade inteira de trabalhadores das ruas menos abastadas de regalias em Londres.

Mantinha para si uma criadagem com menos de uma dúzia: Um mordomo leal e sigiloso, uma empregada silenciosa como a madrugada e que jamais questionava suas ordens, uma dupla de cozinheiros que apesar de nunca ter visto os rostos, mantinham-se consigo desde que ali se instalara. Havia também o cavalariço, o único que sabia com exatidão os lugares que Dr. Do frequentava após entrar em sua carruagem na calada da noite. Também não questionava seu senhor, tampouco o podia fazer: Mudo de nascença, jamais proferira uma palavra sequer em toda a vida.

 

E assim vivia, digno de uma paz quase imerecida à um homem de terras estrangeiras em tempos tão duros. Por ser médico de grandes nomes da alta aristocracia, acabou por tornar-se um deles, partilhando de seu bom vinho mesmo que não desejasse. Jamais tivera interesse em possuir tais contatos, mas o conveniente lhe caíra como uma luva quando deu início à sua empreitada particular em busca da imagem da alma e sua localização. Com uma reputação indiscutível, torna-se inadequado questionar se possuía em si também o perfil de um assassino.

"Assassino" eles o chamavam. Riu em escárnio em frente a lareira da grande sala de estar, tomando um longo trago de vinho. Sentiu a garganta arder em protesto ao líquido agridoce. Não, longe dele estava o perfil de um reles assassino sem propósito. Ele era um amante da alma, mesmo que sua paixão e busca por esta se tornasse a cada alvorecer sua obsessão mais obstinada. Ele era um gênio. Era um artista.

 

A camisa de mangas longas que um dia fora branca jazia tingida em rubro febril por todo o antebraço. Não gostava de se sujar enquanto trabalhava, mas não ousaria usar qualquer outra cor de roupa que tirasse sua atenção das cores à sua frente. Sim, aquelas cores... As cores de um humano vivo lhe eram fascinantes.

Com destreza inseriu a mão mais uma vez dentro das cavidades viscerais da mulher. Seu resfolegar em sangue era intenso enquanto as golfadas escapavam pelo canto dos lábios secos, mas não passavam de um ruído distante aos ouvidos do médico. Não tinha muito tempo, os cortes profundos e a perda de sangue não demorariam para levá-la a morte, e então tudo estaria perdido novamente.

"Pessoas" pensou enquanto suspirava com certo encantamento ao romper com um bisturi o ligamento redondo do útero, o aninhando entre as mãos enquanto o retirava. "Tão únicas, porém tão efêmeras".

O sangue pingava rubro como somente um corpo que emanava vida poderia possuir, de um tom escarlate que o médico vira outrora mas jamais conseguira prendê-lo. Ao fim de sua pintura, o líquido rubro já não era tão diferente de apenas outro vermelho qualquer.

Com cuidado, fez uma pequena incisão na extremidade do órgão retirado, os olhos brilhando ao encontrar o pequeno feto ali alojado. Uma ideia havia se passado por sua cabeça, mas esta já se mostrava falha.

Não havia mais vida ali. Nunca houvera. O filho que carregava com tanta proteção era um natimorto.

"Bom" sussurrou, pegando um de seus pincéis e levando-o até onde um dia estiveram os rins no corpo exposto da mulher, imergindo sua escova no sangue quente. "Espero que ao menos sua mãe seja uma boa modelo, menininho".

 

Enquanto pensava e sentia os acordes do violino preencherem seus ouvidos, sua mente voltava-se para o jovem lorde que conhecera há pouco mais de quatro meses, e como este tornara-se afável e uma companhia agradável desde então. Poucas visitas haviam feito um ao outro, mas partilhavam do gosto comum em visitarem a grande biblioteca ao entardecer, onde passavam longas horas sem nada dizer, apenas desfrutando da companhia alheia. Nestes momentos costumava analisar com mais minúcia o paciente, e não o homem. Qual poderia ser a doença daquela alma?

'O medo, talvez' cogitou na segunda vez que iam juntos à biblioteca. Medo de envelhecer. O medo da morte, da enfermidade. E com o medo a ansiedade, a fobia de fazer tudo e fazer rápido, como se estivesse prestes a morrer no dia seguinte. Mas havia algo que Kyungsoo era incapaz de compreender: A alegria quase descarada que Jongin parecia possuir. Um homem que tinha suas fronhas atormentadas por medo jamais era capaz de mostrar todos os dentes num sorriso, mas aquele lorde o fazia e com uma frequência quase invejável. Kyungsoo se considerava um entendedor de almas, mas ali estava uma que o intrigava mais que qualquer outra. Uma genuína maldade parecia aflorar no coração de Kim Jongin, e ele apenas perguntava-se quem a teria plantado ali.

"Até os loucos já haviam possuído um pingo de sanidade" seus pensamentos lhe sussurravam. "Um coração só é amargo porque lhe roubaram a doçura."

E então se punha a devanear novamente com o homem, apreciando um dos poucos momentos em que se permitia ver o rapaz como além de um experimento em potencial. O via como homem. Um homem desejável e cheio de segredos.

 

"Senhor" Albert, o mordomo, interrompeu seus devaneios. Sua expressão era consternada, mas polida como somente os longos anos de ofício poderiam lhe ensinar. "Temos um visitante"

Kyungsoo ergueu uma sobrancelha, olhando para o grande relógio de mármore rubro ostentado ao centro da sala.

"Quem viria quase na hora do jantar sem um convite formal?" perguntou em voz baixa, desejando que não fosse Lady Anne. Suas investidas se tornavam cada vez mais constrangedoras e dispensá-las era igualmente cansativo.

Albert pigarreou.

"Disse ser um amigo íntimo do senhor. Creio tê-lo visto visita-lo antes, Lorde Kim, se minha memória ainda me é fiel. Parecia ansioso para que o senhor o recebesse."

Kyungsoo umedeceu os lábios, reprimido um sorriso. Aparentemente seus experimentos iam tão bem quanto podia imaginar.

"Mande-o entrar.  E se for de seu desejo, adicione mais um prato à mesa do jantar"

Com um aceno de cabeça silencioso o mordomo abandonou o cômodo, devolvendo-o à ausência de sons que antes era apenas preenchida pelos violinos que ressoavam no antigo toca-discos. Kyungsoo cruzou as mãos sob o colo, observando com cuidado o último quadro que pintara, à parede, o rio de sangue que cortava o Nilo como nas histórias bíblicas. Sangue. Pecado. Sim, ele chegara bem perto... Ele via o tormento ali. Via o desespero de Lorde Haes. Mas para sua consternação, não via sua alma.

Foi despertado de seus devaneios ao som dos passos de botas ecoando pelo corredor, sem se dar ao trabalho de virar-se para saudá-lo com um sorriso. Permaneceu olhando à sua frente, enquanto os ponteiros do relógio tiquetaqueavam à cada segundo. Um pigarro se fez audível em meio ao silêncio.

"Doutor Do."

O médico virou o rosto em direção à voz, um sorriso formal formando-se em seu rosto. Ele se vestia tão bem como sempre fazia, fazendo honra à sua aparência. Os cabelos escorriam numa cascata lisa e escura até sua nuca, os fios deixando-se cair suavemente numa franja até as sobrancelhas grossas. Os olhos brilhavam como ônix, competindo a atenção de Kyungsoo com seus lábios carnudos. O moreno era um deleite aos olhos, e isso era algo que não se passava despercebido ao médico.

Levantou a mão direita, indicando à poltrona à seu lado. Jongin caminhou silenciosamente e sentou-se, os olhos pregados no rapaz de pele pálida ao seu lado.

"A que devo a honra?" começou, umedecendo os lábios.

Apesar das roupas bem vestidas, Kyungsoo podia ver um pouco da camisa escapando de dentro da calça, evidenciando que se vestira com pressa. Inspirou suavemente o ar à sua volta, tentando capturar os aromas que o moreno trazia. Sândalo, perfume feminino. Sexo; Havia estado em um bordel, talvez. Sim, bordel com certeza, constatou após um segundo. Havia o leve cheiro de ópio também.

"A cidade é tediosa" ele respondeu, observando a mobília à sua volta. A primeira vez que estivera na propriedade do médico não tivera tempo para detalhes, mas agora ele notava que tudo parecia ter um toque de rubro. Os estofados, as cores empregadas nas obras de arte, até mesmo o mogno era de um tom caído ao vinho. Homens estranhos, preferências estranhas, pensou. Era verdade que Do Kyungsoo não era um homem convencional e tampouco se encaixava à classe alta como apenas um membro à mais. Havia uma singularidade em sua personalidade e era isso que despertava no jovem lorde uma curiosidade quase doentia. Os silêncios, a forma como sorria de maneira enigmática ao ouvir uma palavra que para ele não possuía qualquer sentido. A eterna expressão de que sabia algo que todos desconheciam, uma piada sobre o mundo que ninguém a não ser ele era digno de conhecer. E também havia a frieza, tão impenetrável quanto seus segredos. Ele desejava descobrir o que havia atrás das grossas geleiras em que aquele homem se escondia. "Bailes, bailes à fantasia, bailes de verão, e mais bailes... Títulos diferentes, mas sempre os mesmos bailes. Mesmas pessoas, mesmos assuntos, mesmas conversas tediosas... Confesso que Londres me decepcionou. Sempre achei que aqui fosse o meu lugar, mas talvez eu tenha sido vítima de minhas próprias expectativas."

"Ou talvez só esteja frequentando os bailes errados" Kyungsoo respondeu, complacente.

Jongin sorriu com malícia, como se lembrasse de algo.

"Talvez tenha razão." murmurou, os olhos de ônix brilhando à luz fraca da iluminação tardia. Deixou os orbes passearem pelo cômodo, encontrando o quadro que retratava a passagem bíblica. "É um homem religioso, Kyungsoo?" perguntou após longo silêncio, surpreendendo o médico. Este abanou a cabeça, um vestígio de sorriso em seus lábios.

"Jamais fui adepto. Há limites demais para uma pessoa que segue os caminhos da fé" respondeu, lembrando-se ironicamente de Katherine Gray, sua primeira paciente. Apesar de uma vida toda de pecados e mentiras, tornara-se crente quando se deparou com seu fim: Todos pareciam apelar para Deus quando finalmente encaravam a morte. Se Deus os ouvia, contudo, jamais deu qualquer evidência de última misericórdia. E era essa a razão pela qual Kyungsoo jamais depositara sua fé em divindades: Quando se morre, se morre sozinho. Vira a vida abandonar os olhos de mais pessoas do que poderia contar e em nenhum deles viu a compreensão, o sinal divino. Não havia nada. Apenas o vazio que esperava por todos.

Jongin se levantou, caminhando até as pinturas à esquerda da sala. Observou os quadros, os olhos hipnotizados pelo vermelho que estes possuíam. Ao canto, um pequeno "D.K." assinavam a obra.

"Como consegue esse tom de vermelho?" perguntou, levantando um dedo para tocar a pintura, mas em seguida o deixando cair, os lábios entreabertos em admiração. Os olhos agora passavam pelo busto desnudo da Meretriz, a primeira obra que pintara. "Parece tão... Vivo."

Kyungsoo suspirou, lembrando-se de Elizabeth. Sim, ela era muito vivaz, pensou com tristeza. Fizera tantos planos sobre uma vida melhor para o filho... Mas dela só restaram a impressão num quadro. Nada mais. Estava tão morta quanto os outros.

E suas almas, perdidas com eles.

"Um artista jamais revela suas técnicas" respondeu com um sorriso irônico, observando a silhueta do jovem lorde. Era esguio, belo, lhe lembrava muito a jovem Kate. Mas havia algo nele... Algo que não havia nela. Katherine era oca por dentro. Jongin já não parecia lhe reservar tal decepção.

Só temia o que poderia encontrar dentro dele.

"É capaz de pintar pessoas" ele sussurrou, virando-se para o médico ainda sentado em sua poltrona, a lhe observar. "Seria capaz de me pintar um dia? De usar cores tão vivas?"

Kyungsoo engoliu em seco, por um momento deixando que o silêncio se assentasse à sala. Mantinha-se preso ao olhar do moreno, incapaz de desviar o rosto. Por fim sorriu minimamente, apoiando o queixo em uma das mãos.

"Seria um prazer, milorde."

Jongin deu alguns passos em sua direção, até que estivessem frente à frente. Seus olhos ardiam em brasa.

"E se houvessem mais coisas mórbidas a serem pintadas em minha caricatura do que vivas?"

Kyungsoo meneou a cabeça, notando os punhos do mais alto fecharem-se em volta da poltrona, o rosto à poucos centímetros de distância do seu. Podia sentir sua respiração fraca e o cheiro da droga ainda em seus lábios.

"Então caberia à mim escolher as cores corretas" sussurrou, observando os lábios do moreno entreabirem-se lentamente, como se o chamasse gentilmente para unirem-se. Um pigarrear baixo cortou a sala.

Jongin afastou-se, endireitando a postura. O mordomo estava a porta, a expressão imutável.

"O jantar está servido, Senhores."

Kyungsoo se levantou, endireitando as próprias roupas. Virou-se para o moreno, que sorria enquanto caminhavam lado a lado em direção à sala de jantar.

"Terminaremos esse assunto mais tarde" ele lhe sussurrou ao ouvido, mordendo o lábio inferior.

Sim, Kyungsoo pensou, um sorriso se formando em seus lábios. Terminaremos.

 

continua


Notas Finais


summer: https://www.youtube.com/watch?v=KY1p-FmjT1M

Atualizarei a cada duas semanas. Algumas mudanças vem sendo feitas durante os dias e por isso um período mais longo entre os capítulos.
Em seguida vem o Outono. Será o calor que emana de Jongin capaz de aplacar a frieza de Kyungsoo?


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