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História Fate Supremacy: Rota Um - Desejo - Desejo, Dia 11: Vazio


Escrita por: Goldfield

Capítulo 12 - Desejo, Dia 11: Vazio


Desejo, Dia 11: Vazio

* * * * * Desejo * * * * * INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

Com a cabeça abaixada entre os joelhos, parede do quarto às costas, ela era incapaz de dormir.

Hipólita apenas remoia cada vez mais a derrota da noite anterior, sua figura inserida na escuridão quebrada apenas pela pálida luz dos astros celestes e postes de rua através da janela semi-aberta. Uma brisa cortante também invadia o cômodo através da mesma, afligindo ainda mais seu já atordoado coração. Derrota e frustração. Aquelas duas palavras dominavam sua mente naquele momento. Duras, difíceis de combater mesmo com toda sua força...

Você pode ficar chorando pelos cantos se quiser. Exige confiança de mim, porém não consegue acreditar em minhas palavras. Ótimo. Se não pode ter um pouco mais de amor próprio, nem comigo deixando claro que não há nada errado, então não posso ajudar. Apenas siga lutando até o final desta guerra, é o que lhe peço.

Isso fora o que seu mestre lhe dissera, áspero. Ele parecia, afinal de contas, não se importar. Era, aliás, um homem. O que poderia ele entender de seu sofrimento, de sua triste jornada até ali? Um homem. Assim como os heróis que no passado a haviam enganado e traído.

Nenhum homem valia algo naquele mundo... E, quem diria, estava novamente preso a um. Algo que, infelizmente, não dependia somente de sua vontade...

Fechou os olhos, por seu rosto moreno escorrendo uma lágrima. Se ao menos pudesse limpar a mente e esquecer aquela guerra, todos aqueles percalços... Ter um pouco de paz. Lutava dia e noite para conter a imensa fúria dentro de si, o ímpeto de brandir sua espada de pedra para retribuir com destruição tudo que já lhe fora causado. Deixar claro, naquela época estranha de hábitos estranhos, qual era o real valor de uma amazona...

Através da janela, a brisa seguia entrando. A corrente de ar, todavia, não mais lhe flagelava o íntimo. Havia subitamente mudado para uma torrente afável, reconfortante. Permaneceu de olhos fechados, sentindo-se envolver pelo sopro noturno que roçava em seus poros como uma carícia... ouvindo o uivo que causava enquanto atravessava a noite. E por algum motivo não se surpreendeu quando tal uivo converteu-se numa leve melodia cantada... e a melodia em voz, feminina e suave.

Venha.

O chamado confundiu-se com o som da água da cachoeira caindo, o córrego na avenida nunca cessando de projetar água pela elevação logo em frente ao prédio. Berserker não pôde determinar de início a direção de que viera a fala, porém achou que era a mesma da água corrente. Ergueu a cabeça e tornou a enxergar, perguntando-se se ouviria de novo o inesperado convite ou se não passara de devaneio de sua mente tão perturbada... Mas foi só quando o mesmo se repetiu que veio realmente a se surpreender:

Venha!

Piscou. Os olhos apressados se voltaram para a janela, porém o corpo ainda tardou um pouco até se erguer do chão de azulejos. Caminhou até a abertura, debruçando-se desajeitada no parapeito. Lançou a visão para a queda d'água e o pequeno lago por ela formado lá embaixo, o mesmo brilhando sob a claridade da noite.

Nada viu além de um ou outro carro passando pela via, faróis acesos e alguns com o som ligado alto – desrespeitando quem repousava. Olhou brevemente para trás: Jorge dormia um sono pesado, por certo ainda com todo o peso do esforço daqueles últimos dias em seus ombros. Não acordara com o barulho dos automóveis e muito menos com o misterioso chamado vindo de fora. E este mais uma vez se repetiu:

Venha.

Hipólita não podia continuar ignorando-o: tinha de averiguar o que era. Ainda que desconhecesse sua origem e soubesse poder se tratar de algo perigoso para si ou seu mestre... a canção no ar a dominava, impelia. O convite era pronunciado de forma tão encantadora que ela simplesmente não se via capaz de resistir. Além do mais era feito, ao que parecia, por uma mulher. Sua semelhante, alguém que poderia entendê-la. Um oásis naquele deserto de angústias que vinha vivendo.

Continuou junto à janela. Ainda não via nada junto à cachoeira, mas já tinha certeza: a voz vinha de lá, assim como a brisa musical. Voltou-se uma última vez para trás: não poderia deixar o apartamento pela porta, só correria o risco de chamar a atenção de Jorge ou seus companheiros. Erguendo uma perna, apoiou-a no parapeito, em seguida movendo a outra. Abaixada em meio à abertura, agora inteiramente sobre o beiral, olhou para baixo. O Apartamento Um, no térreo, possuía um quintal um tanto amplo, com uma garagem e portão voltados para a avenida. O espaço para carros era coberto por telhas de zinco. Material leve e facilmente quebrável – deduziu Berserker – porém poderia servir...

Após tomar ar por um ou dois segundos, saltou para baixo. A queda foi quase instantânea, direcionada para cima do telhado da garagem. Quando seu corpo estava prestes a pousar sobre a frágil cobertura... a guerreira estendeu um dos pés calçados de sandálias e tocou a superfície somente com a ponta do mesmo, impelindo-se para frente. Com a ágil manobra, o teto não cedeu e Hipólita pôde, graças à sua energia mágica, mover-se num novo salto na direção da avenida. Deixou breve rastro luminoso no ar enquanto pousava do outro lado do asfalto, no meio da grama sobre uma das elevações ao lado do córrego que caía. Só teria agora de descer pelo barranco até a beira do pequeno lago. Foi o que fez.

Venha!

O chamado pôde mais uma vez ser escutado, mais intenso, conforme ela se aproximava das águas, a brisa batendo contra seu rosto como se a carícia aos poucos retomasse o aspecto afiado de antes. Os cabelos negros da amazona esvoaçavam quando finalmente se deteve à margem do córrego aos pés da cachoeira de pedra escura. Observou a queda por alguns segundos, imersa no encantamento noturno composto pelas notas da constante melodia ainda entoada... quando uma força semelhante a dedos invisíveis tomou-lhe a face e voltou-a para o lago.

Os olhos se fixaram nas pequenas ondas prateadas que se propagavam pela superfície, a avenida tornando-se de repente ausente por completo de veículos. E, sem causar qualquer ruído, a figura começou a emergir da água, bem diante de Hipólita. A música tornou-se mais alta, enquanto pequenos focos de luz brilhavam tanto na silhueta quanto em seu reflexo resplandecentes. Mesmo se Hipólita quisesse agora desviar o olhar, já era tarde. Não conseguiria.

O vulto brilhante logo se mostrou realmente uma mulher, seu aspecto agora visível da cabeça aos joelhos depois da lenta saída do lago. Trajava uma imaculada túnica branca que lhe caía dos ombros até aparentemente os pés, as únicas partes do corpo expostas abaixo do pescoço sendo suas mãos, de pele alva como a neve, unhas compridas e dedos cobertos por jóias de ouro e pedras preciosas de muitas cores. O rosto mostrava-se de contornos delicados, mas rigidamente sérios, como alguém sempre pronto a dar sarcástica repreensão. Os olhos brilhavam num verde vivo tão intenso quanto o das esmeraldas em seus anéis, os cabelos castanhos lisos caindo-lhe até quase a cintura numa beleza difícil de equiparar. Parte da fronte era, por fim, envolvida por uma tiara dourada, ostentando uma grande safira em seu centro. A maravilha daqueles adornos combinava magnificamente com a esplendorosa aparência da jovem.

- Minha Hipólita... – ela saudou-a num sorriso com os lábios ao mesmo tempo simpáticos e traiçoeiros, sem que a amazona pudesse responder. – Venha, querida... Venha!

O íntimo de Berserker era tomado por incrível terror, no entanto seus membros não a obedeciam. Impelidos por uma força sobrenatural a favor da mulher de branco, levaram Hipólita para dentro do lago, as pernas molhando-se e afundando pouco a pouco conforme a conduziam para os braços abertos da feiticeira luminosa, mantendo o sorriso enquanto aguardava a aproximação da guerreira para envolvê-la em amplexo irresistível...

Venha... Venha.

Ela por fim a envolveu, água e tecido a sufocando enquanto, para seu maior desespero, sentia ser tragada para as profundezas do lago... o qual, por algum motivo, tornara-se muito mais fundo do que realmente era. Percebeu-se fraca, a melodia hipnotizante lhe dominando de vez os sentidos... e fechou os olhos, com líquido já cercando-a totalmente... a música de súbito se calando.

* * * * * Desejo * * * * * FIM DO INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

Ainda com os olhos fechados, Jorge rolou para os lados algumas vezes antes de finalmente decidir levantar. Pela janela aberta, a luz do sol entrava mais forte do que gostaria. Confuso, apanhou seu celular junto ao colchão estendendo um braço... com isso sentindo uma dolorosa fisgada nas costas feridas. Fez uma careta tentando ignorar o incômodo, enquanto apanhava o aparelho. Dez horas da manhã. Praguejou baixinho. Programara o telefone para despertá-lo às oito, para praticar com Hipólita, porém por algum motivo obscuro a função fora desativada – embora o jovem jurasse que a havia programado na noite anterior.

Sentou-se no leito, coçando a cabeça. E perturbou-se ao constatar que tanto este quanto a camiseta com que dormira estavam praticamente tingidos inteiros de sangue. O maldito ferimento abrira durante a madrugada, e logo a ardência voltou, afligindo-o com pontadas difíceis de agüentar. Ao menos os veteranos se encontravam na faculdade, o que lhe proporcionaria tempo para limpar aquilo tudo. Acreditou estar zonzo. Seria a excessiva perda de fluído vital, ou o sono que ainda não o abandonara, mais pesado que o de hábito?

Esfregou os olhos e então moveu a cabeça, procurando a imagem de Berserker pelo quarto. Estava arrependido pela maneira como a tratara antes de dormir, e desejava fazer um pedido de desculpas. Seria impraticável permanecerem na guerra com aquele tipo de briga; e, afinal de contas, a serva tinha seus motivos para enxergar o mundo como enxergava. Jorge tinha de ter mais paciência.

Todavia, Hipólita não se encontrava no cômodo.

Já teria ido tomar café, devido ao atraso do rapaz em acordar? Era possível, a julgar pelo modo como ela se alimentava. Descalço, o calouro deixou o quarto e vistoriou com cautela o corredor, em busca de sons que denunciassem a presença dos outros moradores na república. Estavam mesmo fora, felizmente. Rumou então para a cozinha, a ferida fustigando-o – e percebeu que realmente teria de fazer algo mais efetivo quanto a ela, pois era grave. Entrando na sala onde julgara poder encontrar a amazona... nada viu além dos móveis vazios, com resquícios da refeição que Baloo e Marcos deviam ter feito há algumas horas. O mestre começou a se desesperar. Afinal de contas, para onde ela fora?

- Droga...

Passou a examinar todas as partes do apartamento, até mesmo o banheiro da suíte de Baloo, e nenhum sinal da guerreira. Ele podia vê-la quando se ocultava em sua forma espiritual, então não era o caso de se encontrar invisível, mas ali. Ela realmente deixara aquele lugar, por algum motivo!

Foi quando o garoto estremeceu, a culpa invadindo suas veias como veneno e piorando ainda mais a dor e a tontura que sentia devido ao ferimento.

A discussão na noite anterior... A alegação que fizera...

Berserker fora embora por conta de sua raiva. Fora insensível, e agora a perdera...

Naquele angustiante momento, Jorge achou-se, mais que o pior mestre daquela guerra cruel, o mais desprezível ser humano da Terra.

Atirou-se a um dos sofás, não se preocupando se o sujaria de sangue. Com os olhos arregalados, via-se sem saber o que fazer. Por um segundo acreditou que desmaiaria, porém conseguiu se manter consciente. Apesar de tudo, tinha de procurar conservar sua força de vontade. Tendo causado todo o problema, então apenas ele mesmo poderia resolvê-lo.

Decidido, ergueu-se dolorido e apanhou seu celular. Digitou rapidamente o número de Daniela Petruglia. Esperava que dessa vez ela atendesse. Após três toques pela linha, que para o estudante pareceram se arrastar por três séculos, a idosa fez-se ouvir do outro lado:

- Alô, Jorge?

- Professora! – ele exclamou, rogando para que pudesse depender dela naquela aflição. – Minha serva sumiu!

Um instante de silêncio seguiu-se, enquanto a maga assimilava o que seu pupilo afirmara, antes de replicar:

- O quê? Como assim?

- Hipólita desapareceu da república! Não a encontro em lugar algum! Nem sinto sua presença!

- Acalme-se, Jorge. Acalme-se. Primeiramente, verifique se os feitiços de comando ainda estão gravados nas costas de sua mão.

O jovem nunca se sentira tão burro. A marca dos feitiços constituía indicador se Berserker se mantinha naquele plano ou não. Em meio ao desespero, esquecera por completo daquele importante detalhe. Olhou para a mão direita. O símbolo do comando restante ainda estava lá. Hipólita vivia. Mas isso reforçava a tese de ela ter fugido devido à petulância do rapaz, o que o deixou mais aflito.

- OK, ainda tenho a marca – ele respondeu ao telefone.

- Ótimo. Então temos apenas de procurá-la. Aconteceu alguma coisa que possa explicar esse sumiço? O que fizeram nesse fim de semana?

Era mesmo quase impossível enganar aquela mulher. Respirando fundo, Jorge contou a ela, em resumo, o que acontecera desde que deixara sua casa na sexta à noite, passando pela batalha na Cadeia Pública, até a discussão no fim do domingo. Num dado momento, mencionou ter se ferido, e com isso, ao terminar o relato, a primeira coisa que ouviu da maga foi:

- O que fez em relação à flecha que o atingiu?

- Bem... eu limpei a ferida...

- Só? – Jorge podia ver a expressão de surpresa de Petruglia mesmo não estando em sua presença.

- É, só...

- Enlouqueceu? Isso vai infeccionar! Não foi qualquer raladinho, Jorge, foi um machucado profundo! Tem de ser suturado!

- S-suturado? – a palavra incomodava o calouro. – Q-quer dizer costurado?

- Sim, ou então não vai parar de sangrar!

O procedimento agradava ainda menos a ele do que a palavra. Tentou ainda outra saída:

- Não pode usar magia para curar isto? Da mesma forma como fixou minha orelha aquela noite?

- Até poderia... mas precisa aprender a não ser tão irresponsável. Não é uma atitude favorável à sobrevivência de um mestre. Faremos o que você deveria ter feito. Agüente aí. Vou passar de carro para levá-lo ao hospital. Depois podemos procurar Hipólita juntos.

Daniela era mesmo uma raposa quando queria. E seu aluno viu-se obrigado a assentir.

A maga chegou depois de aproximadamente vinte minutos. Jorge usou esse tempo para limpar suas coisas e o sofá, livrando a república de quaisquer vestígios de sangue e assim, também, de eventuais questionamentos. Quando Petruglia buzinou da rua, ele trancou tudo e desceu. Encontrou-a no assento do motorista com uma expressão carrancuda no rosto, como era de se esperar.

- Então quase se matou no sábado? – foi a primeira coisa que ela indagou, enquanto o jovem se sentava ao seu lado e fechava a porta do automóvel.

- Estava apenas cumprindo meu papel nesta guerra... Descobrimos a base de um dos servos e seu mestre. Atacamos.

- Você agiu com autonomia, o que é bom, porém acredito que tenha supervalorizado sua serva e subestimado o inimigo...

Ela acertara em cheio.

- Saiu-se muito bem, ainda assim – Petruglia acrescentou, acelerando pela avenida. – Geralmente perder batalhas na Guerra do Graal significa perder a vida. Você e Hipólita ainda escaparam vivos. Tiveram a oportunidade de se reorganizar e contra-atacar.

- Eu estava tentando mostrar justamente isso a ela, porém Berserker não entende!

- Para você ter perdido a paciência com ela, será que no fundo não aceita bem a derrota também?

Calou-o mais uma vez com sabedoria. Por mais que negasse, era a verdade. Ele também não aceitara bem ter perdido o combate na prisão, e talvez houvesse se exasperado com a serva justamente para descontar nela seu inconformismo. Droga! Julgara-se até então um pouco mais adulto, capaz de lidar com questões como aquela! Agora via que não. Tinha de amadurecer mais.

- Você mencionou outro ponto relevante: aquele servo Saber ficou para trás na prisão – disse Daniela. – Pode ter sido eliminado por Archer. Caso isso tenha acontecido, há um inimigo a menos em seu caminho.

Nisso, Jorge lembrou-se da consternação de Petruglia a respeito de Robin Hood. Teve vontade mais uma vez de perguntar-lhe o motivo, mas julgou a ocasião novamente imprópria – além de ter certeza de que ela não responderia. Ao que aparentava, a maga queria reduzir a tutela que cedia a ele e deixar com que andasse mais com as próprias pernas. Se essa tendência se confirmasse, então o garoto deveria começar a se acostumar a contar cada vez menos com a ajuda de Daniela, mesmo se ela soubesse de informações vitais para seu progresso na guerra.

Não trocaram mais palavras até o hospital.

O Pronto-Socorro de Franca, mais conhecido pelo apelido "Doutor Janjão", estava situado não muito longe da Unesp, quase aos pés da colina que possuía o campus em seu topo. Não estava distante, também, a rotatória em que Petruglia atirara Rolando contra a murada ao frear o carro, na noite em que Jorge fora salvo por ela. Localizado junto à Avenida Hélio Palermo, o prédio era simples e relativamente pequeno para o número de pessoas que deveria atender diariamente. Isso fez o calouro se questionar, ao sair do veículo, quanto tempo teria de aguardar ali até poder ir embora.

O jovem percebeu, ao ser guiado pela professora para dentro do lugar, que o fato de ela estar numa cadeira de rodas fazia com que as demais pessoas pensassem ser ela quem desejava atendimento; porém logo notavam o contrário quando viam o vermelho pela camisa do rapaz, já que a ferida tornava a sangrar. Apesar de alguns ali aguardarem já há considerável tempo, até abriram caminho para o rapaz, constatando ser sua condição mais grave. Nisso, passando por um senhor que lia sentado um exemplar de jornal local do dia anterior, Jorge surpreendeu-se ao ver a manchete: "Rebelião na Cadeia Pública de Franca na madrugada deste domingo danifica estrutura com explosivos". Lembrou-se então de uma das explicações de Petruglia que dizia que, dentre boa parte do comércio, a família Percival também controlava a imprensa francana. Isso explicava a dissimulação dos acontecimentos relativos à Guerra do Cálice Sagrado. A desculpa, naquele caso, era até convincente.

Identificaram-se na recepção, e a funcionária informou que o jovem, devido ao seu estado, seria atendido o quanto antes. Ainda assim esperaram quase uma hora, antes de o garoto finalmente ser chamado. Daniela informou que o aguardaria ali.

O médico examinou-o, sem deixar de perguntar como adquirira aquele machucado. Jorge, mentiroso cada vez mais hábil, respondeu que estava andando de bicicleta pela rua quando, ao subir numa calçada, desequilibrou-se no meio-fio e acabou caindo de costas sobre um pedaço pontiagudo de ferro que estava jogado no asfalto. O doutor não pareceu engolir muito a história, mas tinha mais com o que se preocupar. Encaminhou-o aos cuidados de um casal de enfermeiros, que o medicou e costurou o ferimento. Foi mais tranqüilo do que imaginara, talvez pelo fato de já ter sentido quase toda a dor que havia para sentir com aquilo. Teria de voltar ali para retirar os pontos algum tempo depois, mas a guerra já teria até lá terminado. Não precisaria se preocupar até o final dela.

Retornando até a recepção, o mestre só conseguia pensar em sua serva. Agora que a ferida não era mais problema, tinha de concentrar seus esforços em encontrá-la. Quando conseguisse, faria o que tivesse de ser feito para que ela o perdoasse. Seguiriam juntos até o final daquele conflito e, por ela, ele conquistaria o Graal. Talvez não houvesse dado conta ainda, mas... ele realmente se importava com sua guerreira. Muito.

Ao adentrar mais uma vez o ambiente repleto de doentes e acidentados – o qual, confessava, não o agradava muito – Jorge logo encontrou o canto em que Petruglia permanecera em sua cadeira. Mas, para seu espanto, ela não estava mais sozinha. Conversava séria com um outro rapaz de cabelo preto curto coberto de gel, vestindo terno marrom fino e com os pés calçando sapatos italianos. Seu ar, seu porte... a irritação que causaram quase de imediato no recém-chegado fizeram-no concluir ser aquele indivíduo inconfundível...

- Régis? – inquiriu, aproximando-se atônito.

O colega de classe apenas sorriu, altivo.

* * * * * Desejo * * * * * INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

O mesmo ambiente repleto de livros e antiga mobília, iluminado por esparsos raios de sol através das janelas seculares. Por uma passarela de madeira suspensa metros acima do chão e interligando os dois lados da biblioteca, um par de silhuetas caminhava. A primeira era alta e forte, emitindo tilintares metálicos conforme se movia – fruto de sua detalhada armadura. A outra era bem mais baixa, feminina, embora a beleza que devia possuir estivesse coberta por algum tipo de traje longo, talvez um hábito de freira. Foi esta quem primeiro falou, numa voz semi-infantil, porém firme:

- Perdi um de meus cavaleiros...

O homem, voltando a cabeça para a pequena, debruçou-se sobre um dos parapeitos da passagem e respondeu:

- A mademoiselle sempre confiou demais em meu sobrinho. Não vejo isso como algo ruim, já que, em seu espírito honrado e valente, Rolando merecia tal sentimento. O que ocorreu foi ele ter encontrado um inimigo mais ardiloso... Alguém traiçoeiro. A bondade de um paladino, apesar de fazê-lo forte, é alvo da perfídia daqueles que se munem da dissimulação e da covardia quando combatem. O pobre infeliz foi alvo do mesmo perigo que o vitimou em vida, antes que eu pudesse salvá-lo...

A figura feminina deu uma breve risadinha antes de perguntar:

- Com isso, presumo que você também tentará vingá-lo neste caso, caçando o responsável por seu fim... certo, meu cavaleiro?

O guerreiro pôs-se de joelhos diante dela enquanto respondia:

- Certamente, mestre.

- Diga-me: o que podes sentir em relação aos nossos inimigos? Quais serão seus próximos passos?

- Há duas noites sinto esta cidade tomada por bruxaria – afirmou o cavaleiro num tom cheio de condenação. – A mais vil magia pagã. Acredito que a serva daquele seu desprezível inimigo tenha passado a agir, após vários dias de aguardo para pensarmos já ter sido eliminada. E no início de hoje, pela madrugada, um dos focos de energia mágica se apagou... para depois voltar a se manifestar com o dobro de força. Como uma fogueira quase a se extinguir para em seguida tornar a queimar tendo ainda mais chamas...

- Compreendo, meu cavaleiro – a jovem abandonou a expressão séria para assumir um timbre brincalhão, entusiasmada com o relatório do servo. – Assim, presumo que não interferiremos por enquanto...

- O burocrata vai agir. Pelo que sabemos de sua personalidade, vai elaborar algum plano para não ter de enfrentar a bruxa e seu trunfo sozinho. Ele possui o servo mais forte. Deixe que lute e se enfraqueça. É nesse momento que o atacaremos. Talvez até mesmo o assassino de Rolando possa ser atraído pelo combate e eu consiga novamente eliminá-lo. O centurião também.

- E quanto ao mestre daquela amazona?

- Sem sua serva ele não é nada. Não pode usar magia. Talvez ainda caia na besteira de tentar resgatá-la, quando entender o que houve. Será praticamente suicídio.

- Só não concordo com uma afirmação: que há um servo mais forte que você nesta guerra, meu cavaleiro. Tenho de discordar: és o mais forte!

- Embora sua confiança me faça sim o mais forte, mademoiselle, é de se temer o poder de Rider. Trata-se de um demônio pagão; porém o burocrata, com o apoio que tem, mostrou-se muito competente ao invocá-lo, e seu poder não há de ser subestimado. Desejo mais do que tudo vencê-lo com o poder da Cruz, no entanto... se me permite dizer, seria prudente evitar outro engano como o que ceifou meu sobrinho.

Seguiu-se um instante de silêncio, o cavaleiro desviando o olhar por ter se referido a uma má decisão de sua mestre – coisa que sempre evitava fazer. Esta, no entanto, apenas tornou a rir, indagando, em sua conhecida personalidade sanguinária:

- Então nós só vamos vê-los se matar?

- Sim, e então atacaremos quem restar – a rima fora involuntária.

A risada da moça se intensificou, enquanto, abrindo os braços, cantava alegre alguns versos que achou caberem bem àquela ocasião:

Ao fado canta-se a vida

Ao fado canta-se a morte

O fado canta a partida, a despedida, a nossa sorte...

* * * * * Desejo * * * * * FIM DO INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

Jorge viu-se sem ação diante de Régis. Poderia até pensar não passar de uma grande coincidência ele estar ali, mas o mais íntimo de seu ser dizia que não. Ele viera àquele pronto-socorro para procurá-lo por algum motivo – tinha essa idéia consigo. Só não sabia ainda a razão.

- O-olá... – saudou-o, sem saber ao certo como agir e trocando olhares desconfiados com Petruglia.

O colega de curso, com seu ar convencido de sempre, voltou a cabeça para o recém-chegado e cumprimentou-o, um sorriso de superioridade aberto em sua face:

- Ora, bom dia, Jorge. Fico aliviado em tê-lo encontrado aqui. Não tem sido fácil contatar os mestres desta guerra.

Mas o quê?

O protegido de Daniela quase caiu para trás. Como assim? Ele sabia da guerra? De que modo? Teria a professora contado algo a ele? Mas não era uma informação sigilosa, que poucos deveriam ter conhecimento? Afinal de contas, quem mais possuía ciência de tudo aquilo? Teria a velha maga o enganado? Perguntas, perguntas e mais perguntas, que deixaram o jovem novamente zonzo. Firmou as pernas e fechou os punhos. Desmaiar naquele momento não contribuiria em nada para entender a situação.

- Guerra? – Jorge repetiu confuso.

- Oh, desculpe abordar isso de maneira abrupta... – riu Régis brevemente. – O velho problema da falta de tempo. Bem, eu também sou um mestre lutando pelo Graal. E represento a Associação Mágica diretamente.

Por um milésimo de segundo, o mestre de Berserker perguntou-se se aquilo não seria uma brincadeira, e de muito mau-gosto. O colega, porém, mantinha um tom sério – apesar de sua postura cheia de si – e Petruglia também conservava ar sincero, além de certa tranqüilidade. Foi desse modo que ela afirmou ao pupilo, após um suspiro:

- Eu não sabia, Jorge. Descobri há pouco. Ele mesmo me contou.

Certo, aquilo era totalmente inesperado, mas pelo visto não deixava de ser verdade. Régis era então alguém enviado pela própria Associação Mágica para participar da guerra? Apesar das explicações detalhadas que Daniela já havia lhe dado até então, o inexperiente mestre não sabia ao certo o que aquilo significava. Bem, a primeira coisa a se pensar tratava-se de Régis ser um mago, por certo habilidoso – o que talvez explicasse sua prepotência. Segundo era que, mesmo naquela posição, algo o levara a buscar o apoio de Jorge. Este passou uma das mãos nervosamente pela correntinha em seu pescoço enquanto ouvia o outro falar:

- A questão é bem simples. A família Percival ameaça as regras desta conflagração. Além de a atual mestre daquele clã lutar com dois servos, já há tempos a Associação suspeita que eles se utilizem de métodos impróprios, ou se preferirem "magia negra", para alcançarem seus objetivos a cada cinqüenta anos.

- Certo, agora conte alguma novidade, rapaz – ironizou Petruglia num tom ácido. – Caso houvessem averiguado isso antes, eu poderia andar e ter total capacidade de visão ainda hoje!

- Pois deveria ter denunciando os Percival a nós mais cedo, professora – Régis rebateu mordaz, mas sem perder a polidez. – É sabido que trapaças ou métodos proibidos na disputa pelo Cálice Sagrado devem ser denunciados à Associação Mágica. Os preceitos estabelecidos em Fuyuki são válidos para todos os demais campos de batalha.

- Desculpe, mas você disse que a mestre dos Percival tem dois servos? – interferiu Jorge, atento à parte que mais lhe interessara.

- Eu estaria interferindo no curso da guerra detalhando essa informação, mas como estamos lidando com uma família de violadores de regras, acredito não haver problema nisso... – ponderou o representante da Associação antes de respirar fundo e continuar: – Há cinqüenta anos, Isabel Percival invocou um servo da classe Saber, Carlos Magno, para lutar na guerra pelo Graal. Como é sabido, ela venceu. Seu real desejo à peça mágica é desconhecido, mas como a senhorita Petruglia aqui pôde testemunhar, o servo bebeu do Cálice durante sua invocação. De acordo com as regras do confronto, um espírito heróico que realiza tal ato é capaz de permanecer neste plano mesmo sem a energia do Graal para garantir sua existência. Ou seja, durante os últimos cinqüenta anos, a manifestação do imperador franco Carlos Magno invocada por Isabel permaneceu nesta cidade, escondida presumivelmente na residência de sua família, até a guerra presente. Como os Percival são magos bastante competentes e a nova disputa permitiu a invocação de novamente sete servos, Isabel usou-se dessa vantagem para invocar outro servo também da classe Saber, usando o próprio Carlos Magno como catalisador. Foi então que colocou sob seu comando o paladino Rolando, sobrinho de Carlos nas canções medievais.

Um plano muito astuto – Jorge era obrigado a reconhecer. Trocou um olhar com Daniela, constatando que a maga ficara repentinamente pálida. Pelo visto, mais aquela referência ao seu trágico passado a perturbara. No entanto logo recobrou o foco e, coçando o queixo, constatou:

- Isso deve explicar os desmaios e comas coletivos que vêm ocorrendo aqui em Franca. É necessária uma quantidade absurda de prana para manter dois espíritos heróicos nesta realidade com a capacidade de um só mago, ainda que um desses servos tenha bebido do próprio Graal. Isabel está se utilizando da força vital dos moradores da cidade para conservar sua vantagem. Um método totalmente sem escrúpulos, como esperado de uma Percival.

Verdade, Jorge se lembrava das notícias. Incrível como aos poucos tudo se encaixava. Era como se qualquer aspecto da vida em Franca, ao menos naquelas últimas semanas, estivesse relacionado à guerra secreta pelo Cálice Sagrado.

- Suspeitando dessas irregularidades, ainda mais realizadas pela própria família que trouxe a disputa para esta terra, fui enviado pela Associação e me infiltrei na Unesp como aluno – explicou Régis. – Felizmente, consegui também invocar um servo para o confronto e desde então venho mantendo por igual esse disfarce, o qual permite que eu monitore os acontecimentos envolvendo a guerra mais de perto.

Intrigado, o mestre de Berserker teve vontade de perguntar ao colega de que classe era seu espírito heróico – além de ansiar por desvendar a identidade do mesmo, imaginando se ele se encontraria ali, oculto – mas preferiu deixar a questão para outro momento. Havia outra contribuição mais importante a ser feita naquele momento, no contexto da conversa:

- Acho que a mestre Percival já não tem mais dois servos...

- Como assim? – o enviado da Associação franziu as sobrancelhas.

- Na madrugada de domingo, participei de um confronto na Cadeia Pública, reduto de Archer e seu mestre. O Saber Rolando chegou no meio da luta e tenho razões para acreditar ter sido eliminado por Archer. A aparição inclusive distraiu-o e permitiu que minha serva fugisse comigo, já que eu estava ferido e quase desmaiando.

- É possível, mas ainda assim Isabel tem um dos servos mais poderosos passíveis de invocação... Carlos Magno é um dos maiores cavaleiros que já existiram, dentre todas as lendas. Mesmo lutando sozinho, é quase impossível derrotá-lo. E creio que os Percival tenham feito uso de métodos condenáveis para manter um herói de índole tão honrada fiel a eles, já que praticam ações tão torpes a cada guerra.

- Também acredito nisso... – concordou Daniela, sua voz determinada. – Tem certeza de que é mesmo Isabel a mestre daquela família na guerra atual?

- Quase absoluta. Só ainda não pude vê-la pessoalmente, mas todas as evidências apontam para isso. Os Percival sabem guardar seus segredos. Em cinqüenta anos, não deixaram escapar qualquer referência à sua preciosa maga, nem mesmo uma visão nas ruas ou tampouco uma fotografia. A última aparição pública de Isabel foi naquele colégio de freiras em que a senhorita a enfrentou.

Bem, tudo estava muito interessante e esclarecedor, mas... afinal, por que Régis procurara Jorge, devendo saber ser ele um mestre inexperiente que caíra naquela guerra praticamente de pára-quedas? No que poderia auxiliar contra os Percival, se nem mesmo era um mago?

A resposta veio logo, sem que ele precisasse indagar:

- Estou ciente de que sua serva está desaparecida desde a noite passada. Eu sei qual é o paradeiro dela.

- Sabe? – o mestre de Hipólita estremeceu. – Pois então diga!

Berserker foi capturada por outro servo. Ou melhor, serva. Não pude, em minhas investigações, determinar ainda qual é a identidade dela, porém descobri a classe. Caster. Usuária de magia antiga.

- Então a serva Caster raptou Hipólita? Mas quando, como?

- Acredito que enquanto você dormia, atraindo-a para fora de seu quarto. Agora Berserker pode estar sob o comando dela, sujeita às suas ordens. Entenda, Jorge: a magia de um Caster não deve ser subestimada. Muitos dos espíritos invocados nessa classe conviveram com os antigos deuses, e os encantamentos que podem realizar estão acima de qualquer habilidade empregada pelos magos dos dias de hoje. Eles são de uma época em que a magia era praticamente tangível até para as pessoas normais, algo comum ao mundo. Não apenas um mito no qual poucos crêem.

Se Jorge nem mesmo um mago atual era, então tinha sinceros motivos para se preocupar. Mas não podia ser tomado pelo medo, não naquele momento. Berserker precisava de sua ajuda e titubear significaria não conseguir salvá-la.

- Quem é o mestre dessa Caster? Pode me dizer?

- Aí que está: é um inimigo da família Percival. No entanto, não pertence a nenhuma das outras duas famílias.

- Pode me contar logo? – insistiu, impaciente com os enigmas de Régis e pelo fato de ele parecer ainda mais convencido por possuir informações que ainda não havia compartilhado.

- O nome dele é Lucas Cândido, popularmente conhecido como "Luca" aqui em Franca. Um empresário em ascensão dono de vários estabelecimentos e que, ao descobrir sobre a guerra, resolveu entrar nela por motivos puramente comerciais. Está lutando para, ao vencer os Percival, acabar com a hegemonia econômica que eles ainda conservam na cidade. Tem a esperança de assim poder consolidar seu domínio financeiro, tomando controle dos mercados que ainda não possui. Nem mesmo o Graal o interessa. Só quer mesmo cumprir seu objetivo.

- Mas, ele não é um comerciante? Se descobriu recentemente sobre a guerra, então nem mesmo é um mago, correto?

- Mais ou menos. Não sei qual fonte Luca consultou, mas foi alguma competente. Todas as características e regras da disputa pelo Cálice foram explicadas a ele aos mínimos detalhes. Sabendo que ela é empreendida por magos, apressou-se nos últimos meses em aprender e se aperfeiçoar nessas artes. Parece que teve como professor um mago europeu ex-membro da Associação, embora não tenhamos conseguido chegar ao seu nome. Também desconhecemos o quão competente Luca se tornou em seu intento; mas, para ter conseguido invocar Caster, creio estarmos lidando com um adversário no mínimo perigoso.

Principalmente para quem não consegue nem fazer um feitiço dos mais simples... – pensou um aturdido Jorge.

- Até o momento estávamos preocupados com os Percival – ponderou Petruglia. – Por que a mudança de foco para seu inimigo?

- Trata-se de uma escalada, meus caros. Os Percival romperam as barreiras do que é permitido pela Associação para acumularem vasto poder na Guerra do Cálice Sagrado. Com isso, seus oponentes vêem-se diante da necessidade de obterem uma vantagem maior ainda. Acredito que a Caster de Lucas Cândido seja uma serva tão formidável quanto o Carlos Magno de Isabel. Sendo assim... proponho que eu, a senhorita Petruglia e você, Jorge, unamos forças para eliminar Caster e resgatar sua serva. Depois, poderemos nos organizar contra Isabel Percival.

- Eliminar um mal maior para então combater o mal original, é isso? – inquiriu Daniela.

Régis assentiu com a cabeça. Era aquilo mesmo.

A Jorge não agradava muito a idéia de servir como uma espécie de "polícia" a serviço da Associação Mágica, principalmente pelo fato – martelando mais uma vez em sua mente – de que não possuía quaisquer habilidades básicas para entrar numa disputa mais específica entre conjuradores, e estava sem sua serva! Por outro lado, o que o fazia vencer tais dúvidas era o ímpeto em libertar Hipólita, ainda mais pelo fato de sentir-se responsável pelo que lhe acontecera. Baixou o semblante por um momento... para então responder, o mais firme que conseguiu:

- Estou nessa.

Petruglia, por sua vez, deu um demorado suspiro, relutante em voltar a se envolver diretamente num assunto que já lhe rendera tantas dores e privações. Porém sabia que seu auxílio era necessário, e não deixava de ser uma oportunidade de se vingar da maldita família Percival – que, personificada na figura de Isabel, destruíra seus sonhos de uma vida inteira. Foi com isso em mente que ela acabou por replicar:

- Contem comigo.

Régis sorriu, do modo altivo como só ele parecia ser capaz de fazer. Pôs-se a se dirigir para fora do pronto-socorro, seguido por Jorge, que passou a empurrar a cadeira de Daniela. Já do lado de fora, na calçada, o mestre de Berserker indagou ao colega:

- Se vamos cooperar, seria bom que revelasse a identidade de seu servo, correto?

Dando uma risadinha, o representante da Associação voltou a cabeça para o outro rapaz e respondeu:

- Sem querer assustá-lo, mas... meu servo é um deus. E, muito em breve, terão a oportunidade de conhecê-lo.

* * * * * Desejo * * * * * INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

A casa era bastante arejada e luminosa, sua arquitetura moderna – quase toda em vidro – afastando qualquer sombra que pudesse ser projetada entre os móveis ou paredes. Seu proprietário aparentava por conta disso ser alguém que nada tinha a esconder: um empresário de sucesso, executivo de futuro promissor que desejava mostrar a todos sua bonança. Por trás das aparências, porém, estranhos eventos vinham ocorrendo no interior daquela residência, já há algumas semanas. Caso algum olho leigo pudesse testemunhá-los, por certo se assustaria e não os compreenderia; mas, alguém inserido no mundo da magia logo deduziria que práticas e defesas arcanas vinham sendo conjuradas naquele local. Talvez até mais: que o morador daquela bela construção era mais um mestre lutando na Guerra do Cálice Sagrado.

- Onde está você, meu mestre? – a voz feminina, tão suave e quase cantada como uma melodia, sibilou pelo ambiente.

Seguiram-se alguns instantes de silêncio, antes de um homem responder:

- Estou aqui embaixo. Estava lendo o grimório...

Passos sobre os degraus de uma escada de madeira ecoaram. O mestre subia ao segundo andar. Assim que terminaram, uma risada da mulher foi ouvida. Algo parecia diverti-la.

- E como está nossa convidada? – o improvável mago inquiriu.

- No porão, ainda sob encantamento – replicou a serva. – A mente dela se mostra mais forte do que pensei, ainda mais para alguém de sua classe. O cinturão que ela usa não oferece proteção contra esse tipo de magia, então creio que tal resistência se dê devido ao sangue em parte divino que corre em suas veias. Ainda esta noite, porém, já a terei totalmente sob meu controle.

- Não que eu queira questionar sua habilidade, Viviane, mas... Acredita mesmo que poderá manter Berserker sob seu comando, ainda mais depois de armá-la? Pense... não é poder demais?

Caster tornou a rir, o som oscilando entre algo gracioso e uma expressão de deboche. Respondeu em seguida, um tanto presunçosa:

- Ora, ora, um aspirante a mago, um aprendiz das artes arcanas de hoje, subestimando a magia antiga... Não sabe do que ela já foi capaz nos mitos, tolo? Na Era dos Deuses, aqueles que a dominavam eram capazes de manipular este mundo como bem entendessem. Reis subiram e caíram, pragas surgiram ou foram erradicadas, montanhas se formaram ou foram pulverizadas graças aos intentos dos magos e feiticeiros de outrora. Uma época em que os mortais temiam a magia, diferente destes tristes dias em que engenhos defeituosos substituem os encantamentos, e os conjuradores restantes se matam por uma mera imitação do caldeirão de Cerridwen...

O mestre sorriu. Era curiosa a interpretação que sua serva dava ao prêmio destinado ao vencedor daquela guerra – ainda que não se importasse com ele. Embarcara naquela jornada para poder humilhar a família que era sua inimiga, a pedra no sapato que ainda impossibilitava o pleno domínio dos negócios daquela cidade. Caso obtivesse algo mais pelo caminho, seria lucro – mas não necessidade. Logo teria em mãos uma das servas mais poderosas que se poderia imaginar, com a arma mágica mais temida de toda a mitologia. Caso não pudesse destruir os Percival daquele modo, então ninguém mais no mundo conseguiria...

- Vamos então nos preparar para a noite... – ele murmurou, retornando às escadas. – Ela promete ser longa.

- Uma noite pode durar até infinitamente, contanto que seja vitoriosa – afirmou Caster enquanto o mestre se retirava.

* * * * * Desejo * * * * * FIM DO INTERLÚDIO * * * * * Desejo * * * * *

- Entrem... Só não liguem para a simplicidade...

A residência de Régis em Franca era uma pequena kitnet num prédio no centro da cidade, perto da catedral, com aluguel bancado pela Associação Mágica. Exceto o banheiro, tudo se resumia a um só cômodo com cama, fogão, geladeira, mesa de estudos, uma ou duas cadeiras... Apesar do aperto, o local estava extremamente organizado, refletindo a burocrática personalidade de seu morador, típica de alguém a serviço da Associação. Jorge só não conseguia entender como o ego dele poderia caber ali...

- Deve se sentir um tanto sozinho... – observou Daniela, entrando com sua cadeira de rodas.

- Não, os estudos me fazem companhia – afirmou o anfitrião. – Tanto os de História quanto os de magia.

Eles haviam acabado de almoçar, Jorge estando com vontade de se sentar no primeiro encosto que encontrasse para um cochilo. Sabia não haver tempo para isso, porém, e assim o evitou. Tinham de pensar em como atacar Caster e seu mestre. E além do mais, Régis prometeu que lhes mostraria seu servo. O pupilo de Petruglia não podia negar estar deveras curioso.

- Nós poderíamos atacar a casa desse Luca, não? – cogitou o calouro. – Todo mundo em Franca deve saber onde ele mora!

- Óbvio demais – discordou a maga. – Além do que, ele deve ter enchido sua residência de barreiras anti-magia e outros tipos de proteção. Tem conhecimento de que está lidando com outros conjuradores.

- Ele possui um trunfo enorme em mãos agora, Jorge – falou Régis. – Sua serva, Hipólita. Talvez a melhor opção seja agirmos com naturalidade para fazê-lo sair da toca e mostrar as garras. Então poderemos apará-las.

- Se estiver mesmo controlando Berserker, acha realmente que poderíamos resistir a um ataque direto? – preocupou-se Daniela.

- Com meu servo? Sim, eu acho.

Muito papo e poucas evidências. Afinal de contas, onde estava o tal servo? Se é que existia mesmo?

- Não pude deixar de perceber uma forte presença mágica nos acompanhando desde o hospital, Régis – revelou Petruglia, ajeitando seus óculos. – Talvez já seja o momento de nos mostrar qual é seu espírito heróico invocado.

Naquele instante, Jorge quis abrir mão de tudo para possuir aquela habilidade. Como ela facilitaria seu progresso naquela guerra! Era algo, porém, que por certo aprenderia com o tempo. Ou ao menos assim esperava...

- Desculpem-me por ter atrasado essa revelação – falou o mago. – Agora que já expliquei quem sou e qual meu objetivo aqui... Sei que posso confiar em vocês.

Não sabia se era por mera implicância, mas Jorge ainda não se achava capaz de dizer o mesmo...

Rider, apareça! – ordenou Régis, o selo de comando nas costas de sua mão esquerda, só então percebido pelos presentes, brilhando num rápido clarão.

Uma breve e intensa explosão de luz, na verdade, envolveu não só o membro do mestre como tomou todo o pequeno apartamento, ofuscando a visão de Jorge e Daniela como se um raio houvesse caído dentro do local. Não puderam ouvir um trovão, mas algo similar a um estrondo metálico fez-se ouvir, como o clamor de algo que impunha a eles sua existência. Seus olhos tornaram a enxergar com clareza, e viram uma figura humana alta e forte, talvez passando um pouco dos dois metros de estatura – as paredes e teto da kitnet mal parecendo poder contê-la. Era um homem, seus músculos – expostos nos braços – maiores e melhor definidos do que os de qualquer halterofilista que já tivessem contemplado. O tórax e parte das pernas eram cobertos por uma reluzente armadura de ouro e prata, esculpida aos mínimos detalhes com cenas de batalha e motivos mitológicos. A cabeça era coberta por uma coroa que lembrava também um capacete, cravejada de jóias das mais diversas cores e com duas longas asas douradas erguendo-se para o alto, uma de cada lado. As feições eram as de um idoso, com compridos cabelos e barba grisalhos; porém demonstravam rara imponência, o férreo olhar claro do personagem na única pupila que tinha exposta – a outra coberta por um tapa-olho negro – revelando a força de alguém acima de qualquer mortal. As pernas também rijas e hercúleas terminavam em pés calçando sandálias de couro, presas por tiras que se espiralavam até quase os joelhos. Possuía, pousados em seus largos ombros, dois corvos tão escuros quanto a noite, que grasnaram ao voltar seus bicos para os demais na sala – Jorge de imediato reconhecendo-os. Segurava, por fim, na mão direita, uma lança de extensa haste talhada aparentemente em ouro, a mesma possuindo uma série de inscrições que podiam ser identificadas como runas nórdicas... terminando numa ponta prateada tão afiada e brilhante que parecia ser capaz até de penetrar o próprio núcleo da Terra, se atirada ao solo.

Jorge e Petruglia recuaram assustados, seus queixos caídos. Régis, por sua vez, mantinha uma expressão respeitosa diante do servo, embora sem perder seu ar de superioridade. O espírito heróico, por sua vez, observou cada um dos dois visitantes com o cenho franzido, analisando-os friamente, antes de por fim falar, sua grossa e retumbante voz ecoando pelo ambiente:

- Sou Odin, Senhor de Asgard.

X - X - X

A tarde avançava. Após o estranhamento inicial, os quatro sentaram-se pelo lugar para discutir seus próximos passos. No entanto, o clima ainda era de certa insegurança. Se, dentro do contexto da Guerra do Cálice Sagrado, já era pitoresco estar na companhia de guerreiros mitológicos de centenas de anos antes, conversar informalmente com um antigo deus nórdico mostrava-se ainda mais inusitado.

- Confesso não entender – afirmou Daniela em dado momento. – Até onde eu saiba, apenas espíritos heróicos mortais podem ser invocados na guerra. Aqueles que um dia foram humanos. Como um deus pode estar lutando aqui?

- Toda regra tem suas exceções, professora – respondeu Régis, demonstrando um pouco de serenidade. – E, no caso da Guerra do Cálice Sagrado, algumas vezes a exceção se torna a regra. Diga-me... qual é a religião predominante hoje no mundo?

- Cristianismo – Jorge replicou sem pestanejar, parte da catedral da cidade podendo ser visualizada através de uma janela.

- Exato. Sendo assim, hoje pouquíssimas pessoas ainda adoram os deuses de outrora, como os da Grécia ou Escandinávia antigas. São tidos como entidades pagãs, sem poder ou inexistentes, não passando em muitos casos de mero mito. Aí está a resposta para eles poderem ser invocados como servos.

- Quer dizer que... – oscilou Petruglia, compreendendo.

- Sim. O poder de qualquer divindade baseia-se num parâmetro de crença. Quanto mais seguidores um deus tiver, maior seu poder. Quanto menos, mais fraco ele será. A ponto de perder seu status de divindade, ao menos como era antes. Ele não se tornará propriamente humano, mas estará no mesmo patamar dos espíritos heróicos normais: humanos que se destacaram em vida e fizeram pactos com o mundo, saindo do ciclo de reencarnação e sendo passíveis de invocação na luta pelo Graal. Deuses desacreditados estão nesse patamar. O ritual de invocação torna-se mais dispendioso e complexo, além de exigirem maior quantidade de prana para manterem sua forma física; mas sim, nesse caso eles podem sim ser invocados.

- A Associação sabe disso? – desconfiou a maga.

- Sim. Foram eles que me forneceram a relíquia que usei como catalisador na invocação. Entendo suas dúvidas: acredito que jamais algum deus tenha sido invocado numa das guerras. Especulo, porém, que simplesmente ninguém tenha tentado. Por descrença ou medo...

Talvez os dois – pensou Jorge consigo. Era um sistema no mínimo intrigante. Daniela havia lhe explicado que o poder de um servo vinha do quanto sua lenda era conhecida. Rei Arthur e Hércules, assim, heróis mundialmente conhecidos, seriam bem mais poderosos, se invocados, do que personagens famosos apenas em determinada região ou cultura, como chegava até a ser o caso de Rolando. No caso dos deuses, então, aqueles que não fossem mais cultuados, devido a uma baixa crença, caíam para a condição dos espíritos heróicos humanos – embora, como denunciavam as palavras de Régis e a aparência de Odin, conservassem ainda assim imenso poder. Segundo aquela lógica, servos, então, não seriam páreos para os deuses cultuados atualmente, ainda que parecesse muito estranha a idéia de Hipólita lutando com Jesus Cristo ou Carlos Magno investindo contra Alá...

- Então você esteve me espionando? – inquiriu o mestre de Berserker, apontando com o queixo para os corvos do deus, que encontrava várias vezes aqueles dias.

- Eu precisava realizar um reconhecimento do território – justificou-se Régis. – Espionei todos os mestres e seus servos, embora não tenha conseguido encontrar alguns. Quando tive certeza de que você e a senhorita Petruglia seriam bons aliados, procurei-os.

Jorge se esforçava para acreditar nas supostas boas intenções do colega, porém não conseguia. Já ouvira falar, no entanto, sobre aqueles dois pássaros em questão. Munin e Hugin, os corvos de Odin. Segundo os mitos, viajavam por todo o mundo e ao final do dia sussurravam junto aos ouvidos do deus o que tinham visto. Um recurso perfeito para se espreitar outros servos, havia de se convir.

Odin em si, por sua vez, permanecia calado, sentado numa cadeira pequena para seu tamanho enquanto fitava todos com olhos sem expressão. Passou pela cabeça de Jorge a rápida hipótese de ele não se comunicar por não saber falar português, porém logo se lembrou de que o Graal garantia tal domínio. Mesmo assim, não ousava iniciar uma conversa. Não era fácil imaginar o que seria conveniente dizer a um antigo deus nórdico. Daniela também não parecia ainda muito confortável com a idéia. O conceito de uma divindade lutando naquela guerra era tão novo para ela quanto para seu protegido.

- A classe de Odin é Rider, não? – Jorge resolveu perguntar, tentando quebrar o gelo. – Ele teria com isso de ter uma montaria, certo? Não a vi ainda...

De fato, até então o garoto só vira o deus empunhar sua mítica lança, Gungnir, sem qualquer indício de montaria. Isso o levara até a cogitar se a classe do servo não seria Lancer – o que combinaria – mas tinha certeza de ter ouvido Régis falando Rider...De todo modo, Petruglia arregalou os olhos como se o calouro houvesse dito uma grande besteira. Coube ao mestre de Odin esclarecer:

Rider conjura sua montaria apenas quando vai utilizá-la... Acredite, não é uma visão que possa correr o risco de ser apreciada por qualquer mortal...

Antes que Jorge conseguisse assimilar por completo a informação, o mago acrescentou:

- Devemos aguardar até a meia-noite. Será o momento perfeito para sairmos em patrulha e assim atrair a atenção de Luca e sua serva.

- Sei que os servos costumam batalhar após o entardecer, mas... – oscilou o mestre de Hipólita. – Há algum motivo específico para agirmos exatamente nessa hora?

Súbito, Odin colocou-se de pé, o mero movimento bastando para fazer o coração de Jorge disparar. Era como se ele pudesse pulverizar o mundo todo com um só gesto de suas mãos – por mais que o jovem tentasse se convencer de que aquela entidade já não era tão poderosa. O deus ergueu então a cabeça e, olhando para o vazio, afirmou, com sua voz de rocha:

- A hora que simboliza o sol da meia-noite na Noruega, lar daqueles mortais que mais nos honraram em Midgard, é a que mais me fornece forças neste tempo ingrato! Nós os atacaremos com luz sob o véu da escuridão!

Jorge e Daniela visivelmente estremeceram, enquanto Régis mantinha seu sorriso arrogante, parecendo ao colega ainda esconder algo perigoso...



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