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História Coroa Inumana - Monstros atrás das sombras


Escrita por: Nmotivos

Notas do Autor


Betado por @Srta__Wu

Capítulo 3 - Monstros atrás das sombras


Fanfic / Fanfiction Coroa Inumana - Monstros atrás das sombras

Levy McGarden gritou intimidada pelos cinco seres vivos seminus dentro do seu laboratório na quarta-feira de manhã. Os ratos nas gaiolas grunhiram ao ouvi-la, extraordinariamente irritados com o novo teste de medicamento que a doutora estava produzindo. 

— O que está acontecendo aqui? — indagou, perplexa.

Natsu também gostaria de saber. Ele não esperava uma pequena ninfa com pantufas com garras dentro de um laboratório abarrotado de tralha médica e potes de macarrão instantâneo. 

— Nos designaram para o doutor McGarden — informou Rogue, com uma postura militar. O silêncio perdurou por um tempo antes dele continuar. — Ele está?

Levy encarou o rapaz com as sobrancelhas levantadas. Sua postura irritada lhe dava um aspecto ainda mais infantil. Ela ajeitou a postura.

— Eu sou a doutora McGarden.

A imagem retornou aos pensamentos de Gajeel: um homem alto e magro, a pele gasta como um pano velho e maltratado; o corpo semelhante a uma vareta seca vestida em um jaleco branco leitoso com um instrumento de pinça cutucando seu interior — seja quem fosse aquela mulher, com certeza não era o doutor McGarden. 

— Eu sou filha dele — disse secamente, explicando o parentesco pela centésima vez em sua vida — Ele não está mais disponível. 

Os olhos clínicos da mulher analisaram a equipe. Em específico, um inumano chamou a atenção dela. Áreas significativas do peito, braços e abdômen se misturavam a uma substância sólida metálica — a mutação dele havia sido acelerada artificialmente. Ela imaginou o trabalho incompleto do pai naquele homem, provavelmente o mais forte entre o grupo. 

Para Levy, o homem de cabelos longos e pretos trançados que pendiam no quadril estreito precisava ser finalizado. Seus olhos dirigentes avaliaram a equipe, suas características, formas, texturas. Gajeel enrijeceu o corpo, consciente do olhar dela. Ela não deixou isso passar.

Arrumou o jaleco, na tentativa fracassada de esconder o pijama ridículo que havia escolhido para usar na manhã. Abriu o prontuário na mesa que não estava ali no dia anterior. A secretária Kelly deveria ter colocado ali quando eles chegaram. A doutora se serviu de licor, precisava limpar a mente o quanto antes.

Levy não era sociável, vivia dentro do próprio laboratório perdida em pesquisas — tampouco estava acostumada com formatos fálicos apresentando-se tão arbitrariamente aos seus olhos. A garota insistia um pouco nas suas saídas de sexta até conseguir alguma coisa para distraí-la do seu trabalho monótono. No entanto, era quarta-feira, ela supostamente não precisava ter que lidar com aquilo.  

A mais recente das pesquisas observava as mudanças físicas de ratos modificados quando expostos à raiva. Nos últimos meses, ela só relaxava a mente com pesquisas idiotas sobre ratos, já que estava cada vez mais embaralhada em seu principal trabalho. 

Pressionada, a importância de uma resposta para a transformação inumana estava em seus ombros. Seus textos acadêmicos, todos os estudos que embasou sua carreira como médica e cientista valiam pouco diante do problema genético.

— O príncipe herdeiro nos enviou para este domínio, doutora McGarden — esclareceu Baldo mais uma vez.

— Eu não pedi nenhuma unidade — respondeu séria. — Esperem um instante, vou falar com minha secretária. 

Gajeel fitou o caminhar torto da cientista até sair do laboratório. Os cabelos marrons presos em uma caneta davam-lhe um ar despojado e indiferente. O inumano de aço não conseguia imaginar que aquela menina poderia ser filha do doutor McGarden. As memórias de Gajeel na sala dos jalecos brancos eram distorcidas, mas ele se lembrava do rosto do homem injetando-lhe substâncias que queimavam o sangue e alteravam seu corpo. As anotações, os cliques incessantes da caneta, os berros e os materiais pulando nos ares; aquilo se repetia sem pausa em sua cabeça quando permanecia sozinho em sua cela. 

Ele cresceu mais do que os outros, voltou para a Colheita uma cabeça maior que qualquer outra da sua idade. Estava mais forte e sua habilidade aprimorada alcançou e iluminou pontos cegos em sua mente inumana que não deveriam ter sido destravadas. Seu corpo pagou o preço da evolução. 

— Ao que parece, serão transferidos para a torre 2 — disse Levy ao retornar para o laboratório. — A partir de agora, estarão sob minha supervisão médica. Se estão doentes, eu tenho que saber. Se estão cansados, eu tenho que saber. Se sentirem comportamento agressivo — Seus olhos eram intimidantes —, então eu tenho que saber. Está claro? 

Levy não esperou as cabeças acenarem para contornar a mesa e puxar uma arara escondida entre duas paredes. 

— O pedido é do príncipe herdeiro. Então, espero que nenhum de vocês apareça aqui querendo que eu costure seus membros cortados, não faço remendos. Se comportem enquanto estiverem na torre 2 — Seu tom era claramente insatisfeito com a chegada abrupta das unidades.

Ela, o pequeno experimento do doutor McGarden, vivia em constante guerra com outros cientistas. Olhares de censura e comentários venenosos dos quais ela estava cansada de rebater. Errar com esta equipe era a chance perfeita para que a tirassem do grupo principal de pesquisa. Nada traria mais satisfação à ela do que acertar.

Comprimiu os lábios, a contragosto. Se o príncipe estava tentando forçá-la a mostrar resultados, então ela o faria. Tirou as roupas da arara e puxou um baú debaixo de sua mesa. Ela era estranhamente forte, para uma criatura tão pequena.

— Essas roupas são sua segunda pele. Todas as unidades fora da Colheita as usam — Levy distribuiu entre os inumanos. — Elas monitoram a temperatura, batimentos cardíacos e são bastante resistentes as habilidades inumanas, não é muito diferente das que vocês usavam na contenção, mas essas tem um tecido mais confortável. 

Cana tocou na manga macia e elástica. Sua impressão era que poderia esticar a peça por todo o cômodo que não rasgaria. A cor vermelha escuro, com tiras prateadas se estendiam pelas linhas laterais do corpo era bela como uma ratoeira montada para um rato.

— O PI também deve ser trocado — Ela levantou o olhar para o pescoço de um deles — , chama muita atenção e pode assustar as pessoas. 

— Está falando das coleiras? — Gajeel arqueou as sobrancelhas.

As "Proteções Inumanas" eram controles eficientes ao combate dos selvagens — inumanos que inexplicavelmente perdiam a consciência durante o período de crescimento—, ainda assim, eram usadas para o adestramento de unidades dentro e fora do castelo. Ela pensou como deveria estar soando desprezível para eles.

A doutora limpou a garganta.

— Chame do que quiser. Como estão mais perto da realeza que a maioria das unidades, preciso me certificar da segurança de todos. 

Natsu fitou sua antiga PI, descansando em seu colo enquanto uma fita nova, leve e brilhante aquecia seu pescoço. Ele sentiu vontade de queimá-la, mas o fogo não a atingiria. Sentiu vontade de quebrá-la, mas seus socos não teriam efeito. A única maneira de se livrar de uma corrente da contenção era usando a chave no pescoço da cientista.

Um inumano desavisado atacaria a doutora sem grandes dificuldades e roubaria a chave, então quando tocasse em seu material, o colar transmitiria um sinal para o colã e o corpo entraria em colapso. Logo, assim que Levy se aproximou de cada pescoço e fez a troca silenciosa, não houve um músculo inumano sequer que se moveu.

Uma mulher chamada Jenny se apresentou na porta do laboratório e guiou os inumanos para a Torre 2, assim que Levy os liberou. 

Eles andaram por um labirinto de corredores até entrarem em um elevador luxuoso. Todo revestido de um material felpudo e aveludado, a caixa metálica era climatizada e comportava um pequeno sofá de tom escuro. 

As portas se abriram para uma sala comum ampla, com grandes sofás, uma lareira e tapeçarias e quadros pelas paredes, além de uma televisão minúscula. A moça do tempo comentava com a apresentadora algo sobre os ventos frios que cobririam a Capital na semana. Em um canto da sala, havia uma mesa para várias pessoas, ainda que só houvesse eles ali.

— Esta é a área comum — explicou ela, enquanto cruzava a sala. — Farão suas refeições aqui. Podem passar o tempo neste espaço quando a família real não precisar de vocês. Podem se familiarizar com seus quartos, foram arrumados às pressas devido a natureza repentina da aquisição de novas unidades.

— Outras unidades vivem aqui? — indagou Cana. 

— As unidades do rei, mas duvido que as vejam aqui, estão sempre ocupadas — Sua voz era indiferente. 

Ela os deixou sozinhos no andar depois de explicar sobre as tarefas. Assim que a porta se fechou, Gajeel se jogou em um dos enormes sofás e pegou o controle remoto.

— O que deve ter para assistir? 

— Como consegue pensar nisso agora? — Cana cruzou os braços. 

— Como você não? — Ele fez uma careta cética.

Natsu entrou em um quarto com seu código, desconectando-se da conversa. Uma cama grande presa na parede, uma escrivaninha e um armário abastecido com uniformes compunha o seu novo quarto. Uma pesada cortina cobria uma das paredes, deixando o ambiente frio e agradável. Ele tocou no tecido; do outro lado um feixe de luz iluminou a palma de sua mão. Abriu as cortinas e a luz do sol o atingiu como uma saraivada de balas.

O rosado piscou até se acostumar com a luminosidade. A grande janela de vidro no topo da Torre 2 não dava espaço para a imaginação como o pequeno buraco em seu antigo quarto na colheita. Ele podia ver tudo, desde os jardins do castelo, as casas camponesas, o comércio até a floresta onde a terra parecia não ter fim.

Ele despencou na cama, sentindo a maciez dos lençóis. O cheiro de rosas entupindo suas narinas o assustou. A ideia de servir diretamente a família real tinha finalmente assentado em sua cabeça. Natsu se lembrou do porquê estava ali. Não para ser bem-tratado. Mas para ter uma morte sangrenta, caso alguém da realeza de Fiore se encontrasse em perigo. 

Natsu chutou seus sapatos e se enrolou no cobertor. A cor amarela do teto preencheu sua visão. Talvez Lucy nem se lembrasse mais dele, o pensamento o deixou inquieto. Ele sentiu os olhos dela assistindo-o no anfiteatro, atrás de Michelle e o SugarBoy, e pensou se seria capaz de sacrificar a vida por aquela criatura como esse novo trabalho exigia. O rosado se revirou na cama. 

Preferiria minerar carvão a examinar essa situação hipotética mais uma vez.

(…)

Natsu andou de um lado a outro, frente a uma porta marrom avermelhada. Os outros criados evitam o inumano ao máximo, espremendo-se na parede contrária a ele toda vez que precisam passar. O rapaz não se importou com isso; se queriam iniciar laços afetivos com o papel de parede, então que fossem livres para fazê-lo.

Ele fitou o corredor, a passagem de criados por aquele espaço era relativamente alta. Num lugar tão luxuoso como aquele, chocava Natsu que o quarto da princesa fosse tão próximo da lavanderia e cozinha e tão longe do quarto dos seus irmãos e do rei. Ele poderia não entender nada sobre etiqueta ou modos, mas não cheirava normal esse cenário. 

Uma criada saiu de dentro do quarto, os olhos dela saltaram do rosto quando percebeu o inumano de tocaia na porta. Ela soltou um grito, derrubando a bandeja em suas mãos. Ele cerrou as sobrancelhas. Como uma criatura tão pequena podia alcançar uma nota tão alta?

— O que aconteceu, Vi? — Lucy surgiu na porta, preocupada.

— Uma unidade escapou! — Ela gritou com as mãos no rosto.

— Ele está aqui porque eu pedi. 

Ele a encarou. Na luz, seu cabelo parecia ainda mais claro, como trigo, e as feições mais jovens e relaxadas. Afastou o pensamento. Não podia deixar qualquer sentimento de afeição por ela crescer. Ele precisava odiá-la. Esse ódio o faria avançar.

 As mãos dele estavam inertes ao lado do corpo, observando a camareira se levantar e catar o que ela havia derramado. Não faria mal a Natsu ajudá-la, mas não queria que a pobre moça vinhesse a desmaiar caso se tocassem por acaso.

— Por que não bateu na porta? — perguntou Lucy com o cenho franzido.

Essa era a pergunta que o fez andar pelo corredor nas últimas horas. 

— Eu deveria, alteza? 

A camareira soltou um grunhido chocado. Lucy lhe lançou um olhar de repreensão.

— Venha comigo — disse ela — Está dispensada, Vi. 

A princesa deu-lhe espaço para que ele entrasse em seu quarto. Bem iluminado, o cômodo particular da princesa era relativamente pequeno para uma pessoa da monarquia, ainda assim, era maior do que os quartos convencionais, com uma cama espaçosa, escrivaninha e um grande armário. Ela fechou a porta atrás de si e se virou para Natsu, o rosto cheio de culpa

— Eu deveria ter dito a verdade sobre quem eu era. Sinto muito.

Ele quase esqueceu sobre isso. Quase. Se Lucy sabia um pouco sobre o desprezo inumano da família real, então ela foi esperta ao mentir sobre sua identidade. Salvá-la dos rebeldes não seria sua primeira opção. Pensamentos sombrios povoaram sua mente, ao tempo que seu espírito não mantinha a paz ao pensar em Lucy em apuros. Ele normalmente não teria tolerado esse tipo de comportamento de si mesmo. 

— Isso realmente não importa, princesa — disse, com polidez.

— Ainda pode me chamar de Lucy — disse ela.

Ele a encarou da mesma maneira daquela noite, intrigado. 

Lucy desviou os olhos, andando pelo quarto — que parecia diminuir de tamanho a cada segundo. Ele era desconcertante e bonito. E os olhos pretos. Muito escuros, como uma pantera. Ela mordeu o interior da bochecha. Aquele deveria ser o orçamento mais idiota que já lhe passou pela cabeça. 

— Por que seu quarto é neste andar? — indagou ele. 

— Meu pai preferiu me dar privacidade — disse ela — Ou eu não sou sua filha favorita. Escolha um.

Os lábios dele se mexeram em um pequeno sorriso. 

— Acha isso divertido? 

— Não, alteza.

Ela abriu um sorriso provocativo, aproximando-se. Ele permaneceu parado, enquanto ela ocupava o espaço à sua frente. Sentiu algo raspar pelo seu abdômen até a ponta levantar o seu queixo, até se dar conta do que ela tinha em mãos. Lucy segurava uma adaga afiada, a base de uma madeira macia e vermelha escura, a lâmina de uma cor igualmente escarlate vivo. Os olhos de Natsu brilharam com o desafio.

— Quer pagar isso com a língua? — falou ela. 

— Intrigante. O que pretende fazer com ela? 

— Pelos deuses, você é tão problemático. — Ela riu.

— Não sou eu que estou apontando uma adaga para o seu pescoço. 

— Você não precisa de uma adaga para me machucar.

— É verdade. 

— Não quero que ache que estou desarmada. 

— Eu não tenho planos de te machucar — Também era verdade. 

— Você acha que eu sou um alvo fácil? — Ela indagou. 

— Nunca — Ele encarou-a — Quem seria louco de acreditar nisso? 

Lucy abaixou a adaga, prendendo-a em uma fenda escondida no seu vestido. Ele viu as curvas da sua perna antes dela esconder a arma entre os tecidos. 

— Eu sei que vocês não suportam o rei. Não espero que diga que está aqui por que é subserviente a ele. Mas eu não sou o meu pai. Nem meus irmãos.

Natsu sorriu.

— Bem, nenhum deles ainda me colocou em risco, ou se colocou em risco sobre a minha guarda. Não sei aonde quer chegar.

— Prometa que não vai contar a ninguém sobre o que vou mostrar aqui. — disse ela. 

Natsu balançou a cabeça. 

— Eu não devo esperar um terceiro olho ou dedos extras nos pés, certo? — perguntou ele.

— É um pouco mais complicado que isso. — disse ela.

Então ela brilhou. Quer dizer, seus olhos brilharam como o sol — belos, tentadores e perigosos. Ele sentiu suas orbes queimarem, e desviou o rosto por um instante, recuperando a visão.

A situação estava esclarecida. 

Ela era uma deles. Uma criatura das trevas — com o futuro traçado à selvageria e ao abandono moral — e ele se sentiu péssimo. Ela parecia ser boa demais para que seu fim fosse selvagem. No entanto, começou a fazer sentido que ela fosse escondida no castelo e que ele nunca tenha sabido de sua existência. Seu pai deveria desprezá-la.

— Preciso aprender a controlar para levar uma vida tranquila — disse ela, apertando as mãos — Quer dizer, meu olhos… É o que consigo fazer. Mas eu sinto que tem algo a mais.

— Quem sabe essa seja a sua habilidade — disse ele, casualmente, enquanto se apoiava na parede.

— Natsu! — censurou Lucy.

O peito dele vibrou com a sua risada. Profunda e quente, como tudo na sua voz.

— Esqueça. Mudar a tonalidade dos olhos parece ótimo — Seus olhos a encararam intrigados — Está decepcionada?

— É claro que estou! 

Ele estava aliviado. Alguns inumanos simplesmente não conseguiam suportar suas habilidades e entravam em colapso. Ao menos, mudar a cor dos olhos não parecia ser algo que exigia muito do seu corpo. Mas ele não achava que era só isso. 

— Tá, acho que não deve ser só isso que você pode fazer — confessou ele — Isso parece ser o início de uma ativação, mas por algum motivo você não consegue concluir. Eu só conheço uma pessoa como você. Ela precisa usar cartas para manifestar a habilidade.

Lucy franziu o cenho. 

— Então, se eu tentar usar essas cartas...

— Não sei se cartas funcionariam com você — respondeu francamente — Existe um motivo psicológico para que pessoas como você e ela não consigam manusear o poder livremente. Ela tem um lance com as cartas, já você pode estar ligada a outro objeto. Mas não custa tentar.

O olhar dela não suavizou, tornou-se ainda mais determinado.

— Eu gostaria que me ajudasse. 

— Acredito que tenha professores melhores ao seu dispor.

— Não. Não tenho — negou — Meu pai não gosta disso. Ele prefere que eu sufoque o dom. Ter um professor que me ensine sobre isso é inviável. Ele ficaria irritado se soubesse. 

— Quer que eu vá contra as ordens do rei? — Natsu cruzou os braços. 

— Ele não vai descobrir se isso ficar entre nós dois. 

Ele respirou fundo, fechando os olhos. Uma maldição em seus lábios. Por que diabos ele ajudaria-a a aprender a ser um monstro? Preferia que ela fosse uma humana estúpida e não isso — uma criatura das trevas. Natsu a observou, vendo finalmente sua coleira invisível. Poderia não estar tão presa à Colheita quanto ele, mas sem dúvida estava presa ao rei e fadada a ignorar seu próprio potencial. E se por um momento ela fosse atacada outra vez, pelos deuses, ele contava que ela tivesse mais do que uma boa pontaria e sapatos para se defender. E por isso ele aceitou antes mesmo de pensar o quão perigoso era. 

— Vai ser do meu jeito. Não conte para os seus irmãos, não conte para as suas amigas — disse, tão perto dela que suas testas estavam a centímetros de se encontrar — Isso sou eu e você. Neste quarto. Okay? 

Ela engoliu em seco. Os pensamentos de Lucy estavam nublados bem antes dele dizer isso, no entanto, sua mente se desmanchou com suas palavras, apesar delas não quererem dizer o que ela estava pensando. Eu e você. Neste quarto. Pelos deuses, o que a princesa pensava em fazer com ele sozinha era proibido em cada província do reino do seu pai. E ele estava insuportavelmente perto dela. Ela teve vontade de tocá-lo, sentir suas mãos em sua cintura como na noite em que se conheceram. Descobrir a extensão de suas asas e mapeá-las com os dedos. Um sorriso largo no rosto masculino mostrava suas presas escondidas, ele parecia ouvir todos os seus pensamentos indecorosos.

— Está esperando mais do que um treinamento, princesa? 

Definitivamente, o rosto dela se manchou de um vermelho vergonhoso. Ela limpou a garganta.

—Temos que subir. Hora da prova do vestido de casamento de Michelle. — E se esquivou para a porta. 

 

~|~

A sala de costura era ampla, clara e decorada com grandes espelhos e manequins enrolados em tecidos. Uma mulher fazia um ajuste na cintura da noiva no meio do cômodo, enquanto sua mãe girava em torno dela como um pássaro em volta da comida. Cana estava sentada em um dos vários pufes espalhados no chão, cutucando a unha com um alfinete.

— Ahh! Lucy, finalmente chegou! — disse Michelle, olhando-se no espelho.

— Pensamos que não viria mais — observou a mãe, Trida — Aperte mais a costura.

A costureira tirou um alfinete da boca e o espetou no tecido.

— Owt!

— Preste atenção onde enfia esses alfinetes! — gralhou Trida — Pronto, assim está bom.

A costureira se manteve calada durante o trabalho. Parecia ser mais fácil fazer o trabalho calada.    

— Estive pensando, que tal a criada trazer alguns doces e chá para cá? — sugeriu Michelle, estalou os dedos por cima da luva em direção à Cana. — Você, vá para a cozinha e peça uma bandeja de quitutes. Ah! Será divertido! — Ela bateu palmas.

— Não esqueça dos drinks!

— Mamãe! — censurou Michelle, lançando um olhar rápido para Lucy.

— Ora, minha filha, logo tudo isso também será seu. Não darão falta de uma ou duas garrafas para celebração — disse, com uma alegria superficial. 

— Por favor, sirvam-se do que quiserem. — consentiu Lucy.

Era exatamente isso que a mamãe Vermilion faria.

— Mais alguma coisa? — perguntou Cana.

— Não, vá rápido antes que eu perca a vontade — disse Trida. 

Seus olhos seguiram a inumana deixar o salão com mau gosto.  

— Criaturinha mal-humorada — continuou ela, torcendo os lábios finos. — Deveríamos arrumar alguns vestidos para ela, nada muito caro. Essa roupa colada ao corpo pode chamar uma atenção indesejada.

Michelle não prestava atenção nos resmungos da sua mãe. Seus olhos analisavam a princesa enquanto ela fazia a prova do seu vestido. A noiva estava linda, mas o mar azul plissado que Lucy vestia era magnífico. Não era nem de longe tão grande ou volumoso como da futura rainha, tampouco tão chamativo à primeira vista, mas nela se tornava sublime.

— Gostou? — indagou Lucy, virando-se para ele.

— Deslumbrante.

O rosto de Trida se virou, focando-os nas curvas da roupa. Seus lábios se apertaram em um biquinho insatisfeito. Ela se aproximou, tocando na organza azul, por um momento como se estivesse prestes a arruiná-lo.

— É grande demais, não acha, minha querida? — disse ela docemente. 

Lucy fitou a costureira.

— É um vestido de tamanho padrão. É o que está na moda — explicou a moça.

— Veja bem, tem muito volume — insistiu —, está aumentando o seu traseiro. Se tirarmos um pouco dessa costura…

— O vestido vai desmanchar se eu desfazer a costura — disse a costureira — Lady Vermilion, o próprio vestido de sua filha tem o volume ainda maior. 

O rosto de Trida ficou rosa como um leitão irritado. Natsu prendeu uma risada.

— Ora, eu estava dando uma sugestão à princesa. Não tinha nada que se meter.

— Vou manter o vestido assim. — concluiu Lucy. 

— O que eu perdi? — cochichou Cana no ouvido de Natsu.

— A discussão mais banal que já presenciei em minha existência. 

— Elas estão assim há horas — disse Cana, referindo-se às Vermilions. — E o assunto sempre parece muito longe de acabar.

Uma criada surgiu com um carrinho abarrotado de docinhos e salgadinhos, um bule de chá e uma garrafa de alguma bebida cara. Ela entregou uma cesta para os dois inumanos e o resto foi disposto e servido às mulheres do salão. Natsu levou à boca um quiche de queijo, o sabor derreteu em sua língua, despertando-o.

Cana gemeu. 

— Deus, como tudo se tornou mais suportável — ela disse. 

Ele entendeu o que ela quis dizer, parecia mais suportável conviver entre aquelas pessoas, com Lucy, com toda aquela comida, água quente e janelas amplas. Só não sabia por quanto tempo isso ia durar.

~|~

— Durante as lutas da Sangria é o momento perfeito para escaparmos — sussurrou Gajeel na sala comum da Torre 2. 

— Eu não sei, Gajeel — disse Natsu.

Gajeel se apoiou na cadeira, parecia vagamente ansioso. Natsu não pode deixar de pensar que enquanto estava com Lucy, ele estava sob os cuidados de SugarBoy.

— Eu concordo com Gajeel — disse Rogue, analisando o plano. — A Sangria vai sobrecarregar a atenção dos agentes. E mais a nova leva de unidades que chegará de Lity. Com o rei.

Cana fez uma careta.

— Não é à toa que SugarBoy está se cagando de medo — Ela cruzou os braços por cima do peito. — God Serena em um barco cheio de inumanos vindo para Fiore não pode ser nada bom. 

— Você o conhece — disse Baldo, lendo as emoções da mulher.

Ela assentiu.

— Preferiria não ter conhecido.

— Isso não me cheira bem — disse Gajeel. 

Os olhos de Cana brilharam com carvão em brasa. 

— Não. Está morto, dentro de um buraco. Jogado na sarjeta. Óbvio que não cheira bem. O rei de Lity é podre, guardem minhas palavras. Ele não vem a troco de nada. 

Estar tão próximo da liberdade. Estar tão longe dela. Ele pensava nisso há dez anos. Não pode medir a sensação com palavras. Mil socos no estômago não seriam suficientes para igualar sua dor ou sua angústia.

— A princesa é inumana — expeliu, simplesmente porque guardar aquilo para si incomodava-o.

Houve silêncio. Ele os encarou com inquietação, enquanto a notícia se acomodava em suas mentes. Cana piscou. 

— O que ela faz? — perguntou.

— Eu não sei. Ela não consegue controlar. Eu tenho o palpite que ela é como você. Depende de algo externo para manifestar.

Ela o encarou, elevando o queixo, e então seus parceiros e ergueu as sobrancelhas, ao vê-los desconfortáveis.

— Diga. Ela é defeituosa assim como eu. 

— Isso é ridículo. Você não é defeituosa, Cana — contrariou Baldo.

— Eu não quis dizer dessa maneira. — disse Natsu com a voz atenuante.

— Não, mas é o que todo mundo pensa. Como se todos fossem rosquinhas com cobertura e granulado, mas a minha cobertura é de uma cor diferente, mas adivinhem! Como se não bastasse, eu também não tenho granulado!

— A gente não se importa que você não tenha granulado — declarou Rogue.

— É. Eu sou alérgico a açúcar — continuou Baldo. 

Cana desabou no sofá.

— Acho que estou com fome. Deve ser isso.

— Querem rosquinhas? — indagou Gajeel. 

Vários olhos fuzilaram-o. 

— O quê? Eu peço uma versão sem açúcar para Baldo — Gajeel resmungou

— Como descobriu sobre a princesa, Natsu? — perguntou Rogue, retornando ao assunto. — Não deve ser aberto ao público essa espécie de informação.

— Ela me contou. Pediu que eu a ajudasse.  

— Quem sabe ela se torne uma aliada — sugeriu Baldo. 

Cana balançou a cabeça.

— Eu duvido. Não vai trair a família com facilidade.

— Bem, temos duas semanas. Quem sabe ela muda de ideia — comentou Gajeel. — Mas se não…

— Se não o quê? — Levantou as sobrancelhas em desafio.

— Ela é um deles. — rosnou Gajeel.

— Ela é uma de nós.

— Isso é o que o tempo dirá — concluiu Baldo. — Temos questões maiores a resolver agora. O que faremos com as coleiras?

— A doutora Levy tem a chave.

— Não podemos tocar na chave. — replicou Baldo.

— Se eu puder observá-la com cuidado, talvez eu consiga recriá-la. — sugeriu o inumano de aço.

— Aquilo não é feito de aço, Gajeel. É magnético. — replicou Cana.

Gajeel abriu um sorriso cheio de dentes — não parecia um sorriso feliz.

— Eu nunca disse que só podia manusear aço. Não mais, não depois do doutor McGarden.

Os ombros de Natsu encolheram com a menção ao cientista. Gajeel não falava seu nome, geralmente acompanhado com "babaca" ou "desgraçado". Ele parecia sério sobre o que estava dizendo. E Gajeel não costumava ser sério sobre nada. 

— Isso pode dar certo. Nós fugimos e depois pensamos no resto — disse Rogue. — Enquanto isso, esperamos. 

~|~

No dia seguinte, a princesa o dispensou para suas aulas matinais de etiqueta. Natsu vagou pela sala comum da Torre 2 até seus pés doerem, pensava sobre a Sangria, o plano e a família real. Não estendeu seus pensamentos para um futuro mais longe, não se deu esse privilégio. Em um momento do dia, ele decidiu sair e se exercitar na sala de treinamento da torre 2. 

Ali, entre os milhares de equipamentos, os dois príncipes treinavam com seus instrutores. Guardas circulavam pelo salão, enquanto os inumanos estavam prostrados na parede. Sting ouvia as instruções de seu treinador, puxando grandes pesos numa máquina sofisticada, enquanto SugarBoy estava vestido num traje branco para uma aula de esgrima.

Era o que faziam durante o dia. Eles treinavam para guerra, não para a diplomacia. Ou, ao menos, uma diplomacia polida. Eles aprenderam a manipular os criados, sinais e os senhores de terras. É o que eles respeitavam — a manipulação. 

Sugarboy atingiu o peito do instrutor pela centésima vez e bufou insatisfeito. Ele encarou o professor com aqueles olhos imprevisíveis e inquietos.

— Isso já está irritante! — Tirou o capacete. Seu topete fora esmagado na sua cabeça — Vocês dois, quem sabe jogar?

O príncipe estava enfastiado, o que deixava o instrutor ansioso Recuou e decidiu manter-se em silêncio, acontecesse o que acontecesse. Quando o humor do príncipe herdeiro enevoada, qualquer palavra à toa poderia disparar uma das suas iras.

— A Colheita nos preparou em todas as práticas esportivas básicas, majestade, incluindo esgrima — disse Rogue, com a cabeça abaixada.

Sobreviver aos treinos da Colheita eram trabalhos de Hércules. As aulas eram das mais variadas: estudo de venenos, anatomia, primeiros socorros, tática de batalha e luta, estilos de lutas dos mais agressivos até funções suporte de atirador. 

Sugarboy encarou a nuca de Rogue, com os olhos semicerrados. Natsu estremeceu, ele parecia querer arrancar a sua cabeça. No entanto, também havia medo em seus olhos. Medo das sombras e do poder obscuro de Rogue. Ele vestia preto por cima da segunda pele vermelha, suas sombras ondulavam através do seu corpo, seus olhos vermelhos tão mortais quando duas taças de sangue. Seus olhos passaram pela máquina de ferro, Gajeel. Fora a vez de SugarBoy recuar os ombros.

— Venha você — Ele apontou para Baldo. 

Ele trocou um olhar rápido com Rogue. O instrutor entregou o florete para Baldo. Ele se posicionou à frente do príncipe herdeiro. 

SugarBoy avançou num pulo. A espada do príncipe tilintou contra o florete. Natsu observou a batalha, atento. Baldo esquivou para a direita, mas o príncipe não deixou brechas em seus movimentos estranhamente retardados. Baldo mal acompanhava os golpes. Parecia forçado, pensou Natsu, ele era mais rápido e ágil do que estava sendo.

— Lute comigo! — insistiu o príncipe, empunhando a espada com mais força.

O inumano contra-atacou. A espada de SugarBoy quase cedeu de sua mão, mas ele bloqueou bem o ataque. A mudança foi branda, até se tornar evidente. SugarBoy ficou mais lento, vacilante à medida que a luta se estendia e seus músculos fatigavam. Ele encheu-se de raiva e desferiu um golpe sujo com sua espada, a lâmina raspou a malha da roupa, cortando a coxa do inumano — ele caiu no chão, sentindo o choque da lâmina percorrer seu corpo. SugarBoy se aproximou para o golpe final, ofegante, suspendendo a arma em cima do peito do inumano com um grito de guerra. Natsu abriu a boca em um grito sem som. Rogue olhou para a cena em choque. Gajeel levantou os dedos minimamente, torcendo o metal da espada antes dela encontrar a caixa torácica do amigo.

"Ele não vai matá-lo, vai?", pensou o inumano das sombras. 

A lâmina fez o curso ao seu peito com o peso dos braços do príncipe louco. Baldo levantou a mão, em sua última esperança. SugarBoy caiu de joelhos, agonizando de dor. A coleira de Baldo apitou alto.

Rogue estremeceu.

Ele foi eletrocutado. A pele cheirava a queimado e ele estremecia no chão. Rogue se ajoelhou, pronto para fazer a massagem cardíaca.

— Não toque nele! — ordenou o príncipe herdeiro, tentando se levantar do chão com aquela armadura ridícula. Os olho embebidos de cólera enquanto se erguia.

Rogue o olhou, suplicante. A coleira do inumano das sombras começava a aquecer — suas sombras saíram de controle aos poucos.

Vermelho de raiva, SugarBoy levantou com ajuda de Sting, que, em algum momento, começou a observar a luta. Baldo trapaceou e viriam as consequências.  

— Deveriam ensinar algumas maneiras a esses animais — cuspiu SugarBoy com a espada na mão. — Maneiras que eu vou ensinar. 

— Ele já aprendeu a lição, irmão — apaziguou Sting, olhando para o inumano apagado no chão. — Está praticamente morto no chão.

Natsu fitou Baldo, debruçado no piso. A ferida na perna já havia sido curada, mas seu sangue manchava o chão. Natsu fechou as mãos em punhos.

— Você viu o que ele fez, não viu? — disse como uma criança para a mãe, com a respiração descontrolada.

— Ele está caído no chão. Veja. Veja. — Sting tocou no inumano com a ponta do sapato, enquanto suas mãos deslizavam para a bainha da espada do príncipe herdeiro.

Sugarboy olhou em volta — os olhares frios direcionados à ele. O príncipe limpou a boca úmida de suor e pigarreou, permitindo que Sting apanhasse sua espada com ponta cega.

— Hmm, eu..eu vou — O príncipe limpou as mãos nas calças — Vamos subir, Sting, este lugar está infectado. 

Sting deu uma última olhada em Gajeel antes de guiar seu irmão para seus aposentos e jogou a espada aos seus pés.

— Conserte isso.

O inumano das sombras iniciou a massagem cardíaca imediatamente depois de deixarem o salão. Uma equipe médica se dispôs com rapidez no campo. E Baldo foi levado para a área médica. 

Natsu fitou Rogue, o olhar pesando no ambiente. A promessa franca de que nada disso passaria em branco. 

— O que eles esperavam? — indagou Gajeel, levantando a espada — Que ficássemos aqui olhando?

Natsu observou seu reflexo distorcido na lâmina. Aos poucos retornando à sua forma original. Ele encarou seus olhos, como pedras vulcânicas, e se deparou com o reflexo do demônio que empurrava para dentro de si.

 

~|~

Natsu fez o caminho para o quarto da princesa. Ele bateu na porta, ouviu uma rápida resposta e entrou. Ela lia um livro na cama, com os cabelos espalhados por sua costa, mas não parecia realmente concentrada nas palavras. Ele fechou a porta atrás de si, sentindo os olhos quentes e achocolatados em sua pele. 

Lucy se levantou, fechando o livro e deixando-o esquecido na cama. 

— Natsu. — A voz alerta e apreensiva.

O inumano levantou a mão.

— Não diga nada. 

Ele não saberia se conseguia se recompor caso tudo viesse à superfície mais uma vez. Sentia-se pior que um verme, uma criatura insignificante. Olhou nos olhos da princesa, estranhamente aparado nas margens esverdeadas de seus olhos marrons chocolate.   

— Eu sinto muito pelo seu amigo — ela disse com a voz suave. 

O inumano deu de ombros, tentando manter uma postura indiferente, ainda que suspeitasse que isso não a enganaria. 

— Seu irmão ia matá-lo. 

— Sim — afirmou, os lábios se abriram levemente. — Desculpa.

Lábios rosas e marcados, feitos para uma princesa. Ele apertou os dedos, com vontade de colocar uma mecha solta do seu cabelo atrás da orelha e depois, fazer mais do que apenas isso. No seu interior, ele sabia que não poderia nunca se permitir desejá-la. Ele estava acostumado a uma vida de provações, todavia aquilo o irritou. Por Deus, ele planejava matar sua família, agora mais do que nunca.

 — E nada seria feito a respeito — continuou ele, duro.

— Não — concordou.

— Acha que poder e justiça andam juntas, Lucy? — disse Natsu, com os olhos escuros observadores.

— Não aqui, nesse país. Ou em qualquer outro. O poder é dividido em porções diferentes para cada um de nós.

— Quando digo que sou um inumano — Ele acendeu uma chama em sua mão. As labaredas fomentaram sombras no rosto da princesa. — Quando digo que sou mais rápido, mais forte, mais habilidoso que qualquer outro homem na Câmara do rei e nesse castelo. Quanto poder acha que eu exerço aqui dentro?

— Nenhum — Ela estremeceu. 

Ele fechou os dedos lentamente, extinguindo o fogo.

— Por quê? 

— Porque é submisso ao nosso sistema. O sistema é forte. 

— E o que acontece quando alguém como eu rompe o sistema?

— Colapso. Morte, fome, praga. 

Ele riu, amargo, aproximando-se dela.

— Isso é o que você pensa. E entendo seu ponto de vista. É o que está enfiado na cabeça das crianças desde sempre. Mas para as pessoas, digo, unidades como nós — ele se corrigiu com tom de ironia, levantando a mão e tocando na linha do seu maxilar — Esse colapso significa esperança. Nós cresceríamos e metade de nós não morreria antes dos 16, a outra metade não morreria de fome ou de cansaço extremo. Você pensa em morte e em fome, porque está olhando pelos olhos dos meus senhores. Porque o destino que veem para si após a libertação de suas unidades não é repleta de flores e chocolates trufados.

Seu hálito era quente e doce como mel. Suas linhas eram desenhadas por pincel, masculinas e angulosas e sobrancelhas cheias de uma cor rosa. Ela imaginou como ele seria com cabelo longo, talvez parecesse mais jovem que agora com aquele lenço contornando sua cabeça. Ela imaginou tocá-lo e sentir a textura dos fios. E desejou que não fosse estritamente proibido.

A princesa encarou-o profundamente; seus olhos brilhavam em um tom claro de uísque, havia um milhão de perguntas ali. Já seu rosto queimava num tom carmesim. Animosidade esta que provavelmente ela não tinha o menor direito de sentir, mas que ainda assim era uma realidade. Ele não falaria mais nada a respeito, embora estivesse cheio de veneno a destilar, para lhe poupar os sentimentos.

Mas ela era forte e, mesmo com o evidente descontrole emocional de um inumano tão perigoso, não parecia tremer com o mínimo sinal de ameaça. Como se ainda carregasse aquele adaga em sua coxa e tivesse outros milhares de segredos guardados com ela.

— O que eu vou te ensinar aqui não vai te deixar mais justa, ou mais influente. Vou te ensinar a usar seu poder e somente você pode fazer a escolha de como usá-lo.

Então, sem nem mesmo respirar, ela disse:

— Eu não poderia pedir mais. 

Ela só poderia ter perdido a sanidade. 

— Isso vai ser interessante. 




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