- Capítulo 15 – A voz melodiosa ecoou pelo salão, fazendo muitos se acomodarem melhor nas cadeiras para ouvir.
Feyre se assustou ao ver a própria ficha cair.
Ela estava lendo! Com tanta maestria... O adjetivo analfabeta parecia já ser algo que sua versão futura desconhecia.
Feyre não sabia se deveria tentar agradecer a Rhys ou corar por isso.
Resolveu adotar a segunda reação.
Acordei quatro horas depois.
Precisei de alguns minutos para me lembrar de onde estava, do que acontecera. E cada tique do pequeno relógio na escrivaninha de jacarandá era como um empurrão mais e mais para trás naquela escuridão profunda. Mas pelo menos eu não estava cansada.
Letárgica, mas não estava mais à beira de me sentir como se pudesse dormir para sempre.
Pensaria no que acontecera na Corte Primaveril depois. Amanhã. Nunca.
Ainda bem que o Círculo Íntimo de Rhysand partiu antes que eu terminasse de me vestir.
Feyre F. sorriu, imperceptivelmente, ao pensar nos amigos.
Rhys esperava à porta da frente, a qual estava aberta para a pequena antecâmara de madeira e mármore, que, por sua vez, dava para a rua além dela. Rhys me observou, desde os sapatos azul-marinho de camurça — práticos e confortáveis — até o sobretudo azul-celeste na altura dos joelhos e a trança que começava de um lado de minha cabeça e dava a volta por trás dela. Sob o casaco, a roupa fina habitual tinha sido substituída por calça marrom mais espessa e mais quente e um suéter creme bonitinho, que era tão macio que eu podia ter dormido nele. Luvas de tricô que combinavam com os sapatos já estavam enfiadas nos bolsos fundos do casaco.
— Aquelas duas gostam mesmo de chamar atenção —
Mor não evitou um sorrisinho, conforme alguns pensamentos se assentavam em sua cabeça. Tinha certeza que não seriam apenas as roupas de Feyre a chamar atenção de Rhysand.
observou Rhysand, embora algo parecesse tenso conforme seguimos para a porta.
Cada passo na direção daquele batente iluminado era tanto uma eternidade quanto um convite.
Por um momento, o peso dentro de mim sumiu quando absorvi os detalhes da cidade que emergia:
Luz do sol amanteigada, que suavizava o dia de inverno já ameno, um pequeno e bem-cuidado jardim na frente, a grama seca quase branca, envolto por uma cerca de ferro retorcido na altura da cintura, e canteiros de flores vazios, tudo isso seguindo até uma rua limpa de paralelepípedos pálidos. Grão-Feéricos em diversos tipos de vestimenta perambulavam: alguns com casacos como o meu para se proteger do ar gelado, alguns usando moda mortal, com camadas e saias bufantes e renda, outros com couro para cavalgar; todos sem pressa conforme inspiravam a brisa de sal, limão e verbena que nem mesmo o inverno conseguia afugentar. Nenhum deles olhou na direção da casa. Como se não soubessem ou não se preocupassem que o próprio Grão-Senhor morava em uma das muitas casas de mármore que ladeavam a rua, cada uma encimada por telhados de cobre verde e chaminés pálidas que sopravam espirais de fumaça no céu frio.
Feyre, do futuro, sorriu brevemente para as expressões petrificadas e as bocas entreabertas dos ouvintes.
Ah, se eles soubessem o que ainda tem para vir!
Ao longe, crianças davam gargalhadas esganiçadas.
Saí cambaleando para o portão principal, abrindo-o com os dedos ansiosos que mal registraram o metal frio como gelo; depois, dei três passos para a rua antes de parar ao ver o outro lado.
A rua se inclinava para baixo, revelando mais casas bonitas e chaminés soprando fumaça, mais pessoas bem-alimentadas e despreocupadas. E bem na base da colina um rio amplo e sinuoso se curvava, brilhando com um tom de safira profundo, serpenteando na direção de uma grande extensão de água adiante.
O mar.
A cidade fora construída como uma casca sobre as colinas íngremes que se estendiam flanqueando o rio, as construções eram feitas de mármore branco ou arenito de tom quente. Navios com velas de formas variadas estavam atracados no rio, e as asas brancas de pássaros brilhavam acima deles ao sol do meio-dia.
Nenhum monstro. Nenhuma escuridão. Nem um pingo de medo, de desespero.
Intocada.
A garganta de Rhys oscilou.
Thesan estava com a atenção vidrada no livro sobre o colo de Feyre, mas as atenções dos demais Grão-senhores estavam sobre Rhysand.
Os lábios entreabertos de Helion, formavam a pergunta que todos gostariam de fazer:
- Como?
Rhys engoliu em seco, Amren levantou os olhos da jóia em seu braço e Cassian olhou para Helion como se o mesmo tivesse acabado de errar um movimento de importância vital no ringue de batalha.
A versão futura de Feyre pigarreou, forçando uma expressão apaguizadora ao dizer:
- Devem ser pacientes, se desejam tanto saber.
O salão se silenciou. Não pelo que ela havia dito, mas pela forma com a qual havia feito. A autoridade com a qual falou...
Beron semicerrou os olhos. Alguém se achava mais do que realmente era...
A cidade não é invadida há cinco mil anos.
- Isso não é possível... – Alguém murmurou.
Rhys manteve a face impassível.
Mesmo durante o auge do domínio de Amarantha sobre Prythian, o que quer que Rhys tivesse feito, o que quer que tivesse vendido ou barganhado...
Os olhos de Tarquin caíram sobre Rhys, enquanto o jovem Grão-senhor relembrava a própria teoria por trás do fato de Rhysand tê-lo poupado.
Ela realmente não tocara naquele lugar.
O restante de Prythian havia sido destruído e, então, deixado sangrando ao longo de cinquenta anos, mas Velaris... Meus dedos se fecharam em punho.
Senti algo pairando acima, e olhei para o outro lado da rua.
Ali, como guardiãs eternas da cidade, erguiam-se, em uma muralha, montanhas de topo plano de pedra vermelha — a mesma pedra que fora usada para construir algumas das estruturas. Elas se curvavam na beira norte de Velaris, onde o rio desviava em sua direção e fluía para dentro de sua sombra. Para o norte, montanhas diferentes cercavam a cidade do outro lado do rio — uma cadeia de picos afiados como dentes de peixe, que separava as alegres colinas da cidade do mar além delas. Mas essas montanhas atrás de mim... Eram gigantes adormecidos. De alguma forma pareciam vivas, despertas.
Como se respondessem, aquele poder ondulante, serpenteante, deslizou por meus ossos, como um gato roçando minhas pernas em busca de atenção.
Amren levantou os olhos na direção de Feyre, observando-a por alguns minutos com as sobrancelhas arqueadas.
Ignorei.
— O pico do meio — falou Rhys, atrás de mim, e me virei, lembrando que ele estava ali. Rhysand apenas apontou na direção do mais alto dos planaltos. Buracos e... janelas pareciam ter sido construídos na parte mais alta. E voando naquela direção, com asas grandes e escuras, seguiam duas figuras. — Aquela é minha outra casa nesta cidade. A Casa do Vento.
Certamente, as figuras voadoras desviaram no que parecia ser uma corrente forte e rápida.
— Vamos jantar lá esta noite — acrescentou Rhysand, e não pude dizer se ele parecia irritado ou resignado com o fato.
Mor sorriu minimante, olhando para o esmalte das unhas compridas e bem feitas.
- Provavelmente os dois.
E não me importava muito. Virei para a cidade de novo e falei:
— Como?
Ele entendeu o que eu quis dizer.
— Sorte.
Olhares contrariados se voltaram para Rhys, que apenas deu de ombros. A verdade - por trás da máscara do Grão-senhor - trazendo receio, medo e dor.
Quase não conseguia deixar que lessem mais daquele livro e que, agora, soubessem tanto sobre seu lar...
— Sorte? Sim, que sorte a sua — argumentei, baixinho, mas não muito — que o restante de Prythian tenha sido devastado enquanto seu povo e sua cidade permaneceram a salvo.
O vento soprou os cabelos escuros de Rhysand; seu rosto era indecifrável.
— Chegou a pensar por um momento — continuei, a voz como cascalho — em estender essa sorte a algum outro lugar? A alguém mais?
A pergunta recaiu sobre o salão como uma grande estaca de gelo.
Todos ali queriam dizer exatamente aquilo à Rhysand. A grande maioria querendo apenas cuspir nos pés de Rhys, com todos os 50 anos do reinado de Amarantha voltando à tona.
— Outras cidades — falou ele, calmamente — são conhecidas pelo mundo. Velaris permaneceu em segredo além das fronteiras destas terras durante milênios. Amarantha não a tocou porque não sabia da existência da cidade. Nenhuma de suas bestas sabia.
Alguns murmúrios foram ouvidos, enquanto outros tentavam entender – formando teorias em suas cabeças – como uma cidade, aparentemente muito bem povoada e grande permanecera cinquenta anos escondida de Amarantha. E ainda mais... cinco mil anos escondida de toda a Prythian?!
Ninguém nas outras cortes sabe da existência de Velaris também.
— Como?
— Feitiços e proteções e meus ancestrais muito cruéis, que estavam dispostos a fazer qualquer coisa para preservar um pedaço de bondade em nosso mundo destruído.
— E quando Amarantha surgiu — falei, quase cuspindo o nome dela —, não pensou em abrir este lugar como refúgio?
Kallias precisou se segurar para não caminhar até Rhys e cuspir em sua face. Jamais o perdoaria pelo que havia sido feito com suas crianças.
Jamais.
— Quando Amarantha surgiu — respondeu Rhys, o temperamento se descontrolando um pouco quando seus olhos brilharam —, precisei fazer escolhas muito difíceis, muito rapidamente.
Revirei os olhos, virando-me para verificar as colinas extensas e íngremes, o mar ao longe.
— Presumo que não vai me contar a respeito disso. — Mas precisava saber... como ele conseguira salvar aquele pedaço de paz e beleza.
— Agora não é hora para essa conversa.
Tudo bem. Eu já ouvira aquele tipo de coisa milhares de vezes antes na Corte Primaveril mesmo.
Rhys precisou se segurar para não balançar a cabeça. Jamais seria como Tamlin, jamais tiraria de Feyre o direito de escolher...
Os olhos de Feyre estavam perdidos no salão e ela não reparou que Rhys a olhava, mas Mor interceptou o olhar do primo dando-lhe um olhar tranquilizador.
Rhys quase podia ouvi-la dizer:
“Ela está digerindo tudo ainda. Não é pessoal, você viu, ela não te considera mais um inimigo”
Rhysand não conseguia parar de pensar em quão estranho e vulnerável fora sentir o laço da parceiria se encaixar para Feyre e ele, sabendo que ela amava Tamlin, que lutara e morrera por amar a ele...
Ele balançou a cabeça para afastar os pensamentos que o dominavam e voltou a prestar atenção no que era lido.
Não valia a pena me esforçar para insistir a esse respeito.
Mas eu não ficaria sentada no quarto, não podia me permitir ficar de luto e deprimida e chorar e dormir. Então, me aventuraria na rua, mesmo que fosse uma agonia, mesmo que o tamanho daquele lugar... Pelo Caldeirão, era enorme. Indiquei com o queixo a cidade que se estendia para baixo, na direção do rio.
— Então, o que há ali que vale a pena salvar às custas de todo mundo?
Quando encarei Rhys, os olhos azuis estavam tão cruéis quanto o mar agitado de inverno ao longe.
— Tudo — respondeu ele.
Feyre F. respirou fundo, indicando uma pausa de tempo.
Ela sorriu para os olhares esperançosos sobre si.
- De fato, Rhys está certo – As sobrancelhas do mencionado se arquearam – Velaris é o melhor lugar para ir se você estiver se sentido vazio, desesperançoso ou quebrado. Ou se estiver no escuro e precisar de luz.
Os olhos da fêmea brilharam, antes que ela voltasse a encarar o livro aberto em seu colo e deixasse muitos com expressões confusa.
[...]
Rhysand não estava exagerando.
Havia tudo para ver em Velaris: casas de chá com mesas e cadeiras delicadas dispostas do lado de fora das fachadas alegres, com certeza aquecidas por um feitiço, cheias de Grão-Feéricos conversando e rindo... e alguns feéricos estranhos e lindos. Havia quatro praças principais de comércio; eram chamadas de Palácios: duas daquele lado — o lado sul — do rio Sidra, e duas do lado norte.
Durante as horas em que caminhamos, só visitei duas delas: grandes praças de pedras brancas, flanqueadas pelas pilastras que sustentavam as construções entalhadas e pintadas, davam para as praças e forneciam um passeio coberto abaixo para as lojas construídas ao nível da rua.
O primeiro mercado em que entramos, o Palácio de Linhas e Joias, vendia roupas, sapatos, suprimentos para fazer ambos e joias — incontáveis joalherias reluzentes. Mas nada dentro de mim se agitou diante do reflexo da luz do sol sobre os tecidos, sem dúvida raros, que oscilavam à brisa fria do rio, diante das roupas dispostas nas amplas janelas de vidro, ou do brilho de ouro, rubi e esmeraldas e pérolas aninhados em almofadas de veludo. Não ousei olhar para o dedo, agora vazio, em minha mão esquerda.
Os olhos de Tamlin se encontraram com os de Feyre.
Ela tentou observá-lo de uma forma fria, como se não se importasse com a atenção dele – voltada para ela – mas fracassou.
Queria que Tamlin se desculpasse logo, eles precisavam resolver suas pendências. Mas o orgulho de ambos parecia estar alto demais.
Rhys entrou em algumas das joalherias, procurando um presente para uma amiga, disse ele. Escolhi esperar do lado de fora todas as vezes, me escondendo nas sombras sob as construções do Palácio. Passear naquele dia era o suficiente. Apresentar-me, suportar as bocas escancaradas, as lágrimas e os julgamentos... se precisasse lidar com isso, poderia muito bem deitar na cama e jamais sair.
Mas ninguém nas ruas me olhou duas vezes, mesmo ao lado de Rhysand. Talvez não tivessem ideia de quem eu era; talvez os moradores da cidade não se importassem com quem estava entre eles.
O segundo mercado, o Palácio de Osso e Sal, era uma das Praças Gêmeas: uma do nosso lado do rio, a outra — o Palácio de Casco e Folha — do outro lado, ambas as praças estavam lotadas de comerciantes vendendo carne, vegetais, comida pronta, gado, medicamentos, temperos... Tantos temperos, cheiros familiares e esquecidos daqueles anos preciosos em que conheci o conforto de um pai invencível e uma riqueza sem fim.
Rhysand se manteve a alguns passos de distância, as mãos nos bolsos conforme oferecia alguma informação de vez em quando. Sim, ele me contou, muitas lojas e lares usavam magia para se aquecer, principalmente espaços abertos populares. Eu não perguntei mais a respeito.
Ninguém o evitou; ninguém sussurrou a respeito de Rhysand ou cuspiu nele ou o acariciou como tinham feito Sob a Montanha.
Na verdade, as pessoas que o viam ofereciam largos sorrisos calorosos. Algumas se aproximavam, segurando a mão de Rhys para lhe dar boas-vindas. Rhys conhecia cada uma pelo nome — e as pessoas se dirigiam a ele pelo nome.
Thesan olhou para Rhysand com espanto, enquanto Helion apenas lhe dirigiu um olhar confuso.
Rhys parecia ter... Segredos demais. E todos ali pareciam querer saber tais motivos.
Mas Rhys ficou cada vez mais calado conforme a tarde chegou. Paramos no limite de uma parte da cidade pintada em cores alegres, construída no alto das colinas que se estendiam direto para a beira do rio. Dei uma olhada para a fachada da primeira loja, e meus ossos pareceram quebradiços.
A porta alegre estava entreaberta e revelava arte e pinturas e pincéis e pequenas esculturas.
A boca de Feyre secou, conforme ela se lembrou do episódio anterior – onde Tamlin lhe dera uma bolsa de tintas, pouco antes de explodir e estragar o quite de pintura e o quarto. Antes de quase machuca-la, não fosse pelo seu próprio casulo de ar endurecido, que havia a protegido... dele.
Ele... Que jurara protege-la depois de Amarantha.
Ela parou de encarar Tamlin de forma esperançosa, algo em seu peito murchou e sem perceber o que fazia, ela entrelaçou os próprios dedos com os de Lucien.
Os olhos de Tamlin, antes também sobre ela, se desviaram para os dedos entrelaçados dos dois e ali ficou.
Rhysand falou:
— É por isso que Velaris é conhecida: o quarteirão dos artistas. Você pode encontrar centenas de galerias, lojas de suprimentos, oficinas de cerâmica, jardins de esculturas e qualquer coisa desse tipo. Chamam de o Arco-Íris de Velaris. Os artistas performáticos — músicos, dançarinos, atores — moram naquela colina do outro lado do Sidra. Está vendo o trecho dourado brilhando perto do topo? É um dos principais teatros. Há cinco teatros importantes na cidade, mas aquele é o mais famoso. E há os teatros menores, e o anfiteatro nos penhascos do oceano... — Rhys se interrompeu quando reparou em meu olhar voltando-se para a diversidade de prédios alegres adiante.
Grão-Feéricos e diversos feéricos inferiores que eu jamais vira e cujos nomes não conhecia perambulavam pelas ruas. Os segundos chamavam mais minha atenção que os primeiros: alguns tinham braços e pernas longos, sem cabelos, e brilhavam como se uma lua interior morasse sob a pele escura como a noite, alguns eram cobertos de escamas opalinas, que mudavam de cor a cada passo gracioso dos pés palmados e cheios de garras, alguns pareciam quebra-cabeças elegantes e selvagens de chifres e cascos e pele listrada. Alguns estavam envoltos em sobretudos pesados, echarpes e luvas; outros perambulavam usando nada além das próprias escamas, peles e garras, e não pareciam pensar duas vezes a respeito. Assim como ninguém mais. Todos eles, no entanto, estavam preocupados em observar a paisagem, alguns faziam compras, outros manipulavam argila, areia e... tinta.
Artistas. Eu jamais me chamei de artista, jamais havia conjecturado aquilo ou pensado tão grandiosamente, mas...
Onde toda aquela cor, luz e textura um dia morara, havia apenas uma cela de prisão imunda.
Lucien apertou os dedos de Feyre nos seus, de maneira suave.
— Estou cansada. — Eu consegui dizer.
Conseguia sentir o olhar de Rhys, não me importava se o escudo mental estava erguido ou não para me proteger contra seu acesso a meus pensamentos. Mas ele apenas disse:
— Podemos voltar outro dia. Está quase na hora do jantar mesmo.
De fato, o sol descia na direção em que o rio encontrava o mar além das colinas, manchando a cidade de rosa e dourado.
Não senti vontade de pintar aquilo também. Mesmo enquanto as pessoas paravam para admirar o pôr do sol que se aproximava — como se os residentes daquele lugar, daquela corte, tivessem a liberdade, a segurança de aproveitar a vista sempre que desejassem. E jamais tivessem conhecido outra vida.
Eu queria gritar com eles, queria pegar um pedaço solto de paralelepípedo e quebrar a janela mais próxima, queria libertar aquele poder que mais uma vez fervilhava sob minha pele e dizer às pessoas, mostrar a elas, o que fora feito comigo, com o resto do mundo, enquanto elas admiravam o pôr do sol e pintavam e bebiam à beira do rio.
Viviane olhou tristemente para Kallias, sabendo que os sentimentos e a vontade que consumiam seu parceiro eram idênticas às de Feyre, no livro.
Ele estava tão perdido em seus próprios pensamentos gélidos, que sequer notou ela olhando em sua direção.
— Calma — murmurou Rhys.
Virei a cabeça para ele, minha respiração estava um pouco irregular.
O rosto de Rhysand, de novo, se tornou indecifrável.
— Meu povo não tem culpa.
Com facilidade, meu ódio sumiu, como se tivesse escorregado em um degrau da escada que galgava constantemente dentro de mim e tivesse se estatelado na rua de pedras pálidas.
O ódio de Kallias, no entanto, permaneceu explicito em sua cara.
Sim; sim, é claro que não tinham culpa. Mas eu não tinha mais vontade de pensar naquilo. Em nada. De novo, falei:
— Estou cansada.
A garganta de Rhys oscilou, mas ele assentiu, virando as costas para o Arco-Íris.
— Amanhã à noite, sairemos para caminhar. Velaris é linda durante o dia, mas foi construída para ser vista depois do anoitecer.
Eu não esperava menos da Cidade de Luz Estelar, mas as palavras tinham ficado, mais uma vez, difíceis de pronunciar.
Mas... jantar. Com ele. Naquela Casa do Vento. Reuni concentração o suficiente para dizer:
— Quem, exatamente, estará nesse jantar?
Rhys nos guiou por uma rua íngreme, e minhas coxas pareciam queimar com o movimento. Será que eu estava tão fora de forma, tão fraca?
Feyre do futuro quase riu enquanto lia.
Provavelmente – Ela se viu respondendo a si mesma.
— Meu Círculo Íntimo — disse ele. — Quero que os conheça antes de decidir se este é um lugar no qual gostaria de ficar. Se gostaria de trabalhar comigo e, portanto, com eles. Mor você já conheceu, mas os outros três...
— Aqueles que vieram essa tarde.
Cassian ergueou a cabeça com ar de superioridade e Feyre do futuro engasgou ao notar, assim que ergueu a cabeça do livro.
Então a versão futura do guerreiro a cutucou nas costas e ela engoliu a risada.
Ela quase podia ouvi-lo falar, como se estivessem em um treino diário “Não perca o foco. Não coloque o peso de seu corpo todo nesse pé...”
Ela fez uma careta para ele, enquanto sibilava:
- Não estamos no ringue de treino, pare já com esse olhar!
Um sorriso arrogante apareceu no rosto de Cassian F. em resposta como se ele dissesse que logo estariam e Feyre revirou os olhos, enquanto resmungava:
- Era de se esperar que Azriel fosse mesmo o mais educado...
As sobrancelhas do encantador de sombras se ergueram, enquanto Amren lançava um olhar descrente na direção da Archeron.
Um aceno de cabeça.
— Cassian, Azriel e Amren.
— Quem são? — Rhysand dissera algo sobre illyrianos, mas Amren, a voz feminina que eu ouvira, não tinha asas. Pelo menos não asas que eu pudesse ver pelo vidro embaçado.
— Há hierarquias — falou Rhysand, com voz neutra — dentro de nosso círculo. Amren é minha imediata.
Olhos se voltaram para a “imediata”, medindo-a dos pés à cabeça.
O olhar que Amren lhes deu em resposta foi o suficiente para fazer com que os olhares se desviassem rapidamente.
Uma fêmea? A surpresa devia estar estampada em meu rosto, pois Rhys falou:
— Sim. E Mor é a terceira na hierarquia.
Olhos se voltaram para a loira, que deu um sorrisinho como se dissesse “surpresa!”
Cresseida e Viviane sorriram, como se indicassem não esperar menos da amiga.
Apenas um tolo pensaria que meus guerreiros illyrianos são os predadores no topo de nosso círculo.
- Também nos importamos com você, bastardo – Disse Cassian, de forma sarcástica, enquanto levava a mão ao peito, de forma dramática e Azriel ria.
Um sorrisinho dançou nos lábios de Rhys, enquanto Amren respondia:
- O Grão-senhor não pode fazer nada se vocês dois, machos illyrianos, só sabem pensar com as cabeças de baixo.
Cassian adquiriu um sorriso arrogante.
- Nossas cabeças de baixo costumam pensar melhor que...
Mor praguejou:
- Mãe santa, por favor alguém continue a ler!
Feyre do futuro deu uma boa risada, em resposta.
— A irreverente e alegre Mor era terceira na sucessão do Grão-Senhor da Corte Noturna. Rhys continuou: — Verá o que quero dizer quando conhecer Amren. Ela parece Grã-Feérica, mas algo diferente habita sua pele.
Ninguém precisou olhar duas vezes na direção da fêmea para ter certeza de que o que Rhys dizia era sério.
— Rhys assentiu para um casal que passava, o qual fez uma reverência com a cabeça em um cumprimento alegre. — Ela pode ser mais velha que esta cidade, mas é vaidosa e gosta de acumular penduricalhos e pertences tal qual um dragão cuspidor de fogo em uma caverna.
A imediata levantou os olhos do rubi, de forma vagarosa, como se comprovasse o que Rhysand havia dito.
Então... fique atenta. Vocês duas têm temperamentos fortes quando provocadas, e não quero que tenha nenhuma surpresa à noite.
Parte de mim não queria exatamente saber que tipo de criatura ela era.
— Então, se entrarmos numa briga e eu lhe arrancar o cordão, Amren vai me assar e me devorar?
Mor engasgou. Os dois Cassians e Az não contiveram as risadas.
Os demais olhavam de forma assustada para os íntimos de Rhys, únicos que haviam se dado a cortesia de rir. Amren semicerrou os olhos para Feyre, que havia paralisado – junto a Lucien – sob o olhar desbravador da feérica.
O ruivo engoliu em seco, segurando a mão de Feyre fortemente, até que os dedos de ambos estivessem brancos. Ele se recusou a respirar até que os olhos da dragoa voltassem a examinar o próprio pulso, como se estivesse diante de uma miniatura do paraíso.
Rhys riu.
— Não... Amren faria coisas muito, muito piores que isso. Da última vez em que Amren e Mor se desentenderam, deixaram meu retiro preferido nas montanhas em cinzas. — Ele ergueu uma sobrancelha. — Para você ter uma ideia, sou o Grão-Senhor mais poderoso da história de Prythian, e simplesmente interromper Amren é algo que eu só fiz uma vez no último século.
Amren suspirou, impaciente.
- Já está na hora de procurarem outro assunto para meter seus narizes enxeridos.
O mais poderoso Grão-Senhor da história.
Ao longo dos incontáveis milênios em que existiram aqui em Prythian, Rhys — Rhys, com os risinhos debochados e o sarcasmo e o olhar sensual...
Cresseida se aproximou novamente de Lucien:
- Está vendo? Esse é o inicio do meu casal favorito. Separe as 45 moedas de ouro que eu apostei.
Lucien franziu a testa para ela. Ele não tinha apostado nada.
E Amren era pior. E mais velha que cinco mil anos.
Esperei que o medo me atingisse; esperei que meu corpo se desesperasse para encontrar uma forma de me livrar do jantar, mas... nada. Talvez fosse uma benção ser morta...
A mão larga de Rhys segurou meu rosto... com suavidade bastante para não doer, mas com força suficiente para me fazer encará-lo.
— Nem pense nisso — sibilou Rhysand, o olhar lívido. — Nem por um maldito segundo.
Cresseida suspirou.
Aquela ligação entre nós ficou tensa, meus escudos mentais restantes desabaram. E, por um segundo, exatamente como aconteceu Sob a Montanha
80 % dos ouvintes se voltaram na direção de Feyre, buscando explicações sobre o que exatamente havia acontecido Sob a Montanha.
Feyre apenas olhou para Rhys, de forma rápida, antes de ignorar os demais.
, passei de meu corpo para o dele... dos meus olhos para os de Rhys.
Não tinha percebido... minha aparência...
Meu rosto estava macilento, as maçãs do rosto, protuberantes, os olhos azul acinzentados, esmaecidos e manchados de roxo embaixo. Os lábios carnudos — a boca de meu pai — estavam finos, e as clavículas despontavam acima do decote espesso de lã do suéter. Eu parecia... Parecia que o ódio, o luto e o desespero tinham me devorado viva, como se eu estivesse, de novo, faminta. Não por comida, mas... mas por alegria e vida...
Lucien rodeou o braço ao redor dos ombros de Feyre, tirando a atenção da versão futura dela, que antes estava sobre o livro.
Olhares se voltaram para Feyre F.
- Por que parou? – A princesa parecia pensar que fazê-lo era uma perda de tempo, mas dava créditos à Feyre por ela ser sua futura grande amiga.
A Archeron pareceu se tocar que havia paralisado a leitura de forma abrupta.
Ela apontou para sua versão “passada” .
- A gente podia conversar depois?
Feyre deu de ombros.
- Claro.
Seu eu futuro voltou a olhar pro livro, então. Como se estivesse resolvido qualquer que fosse o problema que a fizera divagar de repente.
Então, voltei para meu corpo, olhando para Rhys com raiva.
— Isso foi um truque?
A voz de Rhys estava áspera quando ele tirou a mão de meu rosto.
— Não. — Rhys inclinou a cabeça para o lado. — Como passou por ele? Por meu escudo.
Eu não sabia do que ele estava falando. Não tinha feito nada. Apenas... deslizado.
Rhys estreitou os olhos. Seu escudo havia deixado ela passar?
E não queria falar sobre aquilo, não ali, não com ele. Saí batendo os pés, e minhas pernas — tão finas, tão inúteis — queimavam a cada passo acima da íngreme colina.
Rhysand segurou meu cotovelo, de novo com aquela suavidade cautelosa, mas forte o bastante para me fazer parar.
— Para dentro de quantas outras mentes deslizou acidentalmente?
Lucien...
— Lucien? — Uma risada curta. — Que lugar miserável para estar.
Lucien não impediu o olhar carregado de chegar até Rhysand.
Rhys apenas sorriu, friamente, em resposta.
Um grunhido baixo saiu de dentro de mim.
— Não entre em minha mente.
— Seu escudo está abaixado. — Eu o ergui às pressas. — Poderia muito bem ter gritado o nome para mim. — De novo, aquela inclinação contemplativa da cabeça. — Talvez ter meu poder... — Rhys mordeu o lábio inferior e, depois, riu com escárnio. — Faria sentido, é claro, se o poder veio de mim, se meu escudo às vezes confundisse você comigo e a deixasse passar. Fascinante.
Amren observou Rhys.
- De fato.
Pensei em cuspir em suas botas.
— Pegue seu poder de volta. Não quero.
Um sorriso malicioso.
— Não funciona assim. O poder está preso a sua vida. A única forma de tomá-lo de volta seria matá-la. E, como eu gosto de sua companhia, vou dispensar a oferta.
Foi a vez de Viv e Cresseida sorrirem de forma maliciosa.
Feyre suspirou, enquanto implorava para sua versão futura:
- Por favor, continue, antes que elas comecem a me irritar.
Feyre, do futuro, riu. Viv e Cress cruzaram os braços, de forma indignada.
— Demos alguns passos antes de Rhys dizer: — Você precisa ficar vigilante com relação aos escudos mentais. Principalmente agora que viu Velaris. Se algum dia for a outro lugar, além destas terras, e alguém deslizar para dentro de sua mente e vir este lugar...
O músculo em seu maxilar se contraiu. — Somos chamados de daemati, aqueles de nós que podem entrar na mente de outra pessoa como se passássemos de um quarto para outro. Somos raros, e o traço aparece conforme a Mãe deseja, mas há o suficiente de nós pelo mundo para que muitos, principalmente aqueles em posições de influência, treinem exaustivamente contra nossas habilidades. Se você algum dia encontrasse um daemati sem os escudos erguidos, Feyre, ele tomaria o que quisesse. Um mais poderoso poderia torná-la escrava sem que você soubesse, obrigá-la a fazer o que quisesse, e você jamais se daria conta.
Os Grão-senhores e feéricos verificaram seus escudos mentais. Não podiam se dar o luxo de relaxar, Rhysand era um daemati. Talvez muitos ali sequer descobrissem, se ele resolvesse tentar alguma coisa.
Minhas terras permanecem tão misteriosas para forasteiros que alguns achariam você, entre outras coisas, uma fonte altamente valiosa de informações.
Daemati; será que agora eu era uma se também podia fazer tais coisas? Mais um maldito título para que as pessoas sussurrassem conforme eu passava.
— Imagino que em uma potencial guerra contra Hybern, os exércitos do rei nem mesmo saberiam que este é um lugar para atacar? — Indiquei com a mão a cidade ao nosso redor. — Então, o que, seu povo mimado... aqueles que não podem proteger a mente recebem sua proteção e não precisam lutar enquanto o restante de nós sangra?
- Ai...
Mor murmurou.
Um silêncio pesado reinou sobre o lugar.
Não deixei que ele respondesse, e apenas apressei o passo. Um golpe baixo e infantil, mas... Por dentro, por dentro eu tinha me tornado como aquele mar distante, incessantemente revolta, atirada de um lado para outro por rajadas de vento que destruíam qualquer noção de onde pudesse estar a superfície.
Rhys se manteve um passo atrás durante o restante da caminhada até a casa.
- Ah não! – Lucien suspirou ao ouvir a princesa de Adriata murmurar – Ela afastou ele. Droga.
Ele se aproximou.
- Agora é você que me deve 45 moedas de ouro.
Cresseida semicerrou os olhos e cruzou os braços.
- Ainda tem muito para acontecer, é só olhar para o tamanho do livro. E, escreve o que eu te digo, meu casal ainda se tornará real.
O Vanserra revirou os olhos, voltando a se encostar na cadeira.
Alguma pequena parte de mim sussurrou que eu podia sobreviver a Amarantha; podia sobreviver a deixar Tamlin; podia sobreviver à transição para aquele novo e estranho corpo... Mas àquele buraco vazio e frio em meu peito... Não tinha certeza se podia sobreviver a ele.
Mesmo durante os anos em que estivera a uma semana ruim de morrer de fome, aquela parte de mim estivera cheia de cor, de luz. Talvez me tornar feérica a tivesse destruído. Talvez Amarantha a tivesse destruído.
Feyre do futuro pausou a leitura para suspirar, de forma tediosa.
- Não aguento mais ler o nome dessa vadia.
Alguém engasgou e tossiu. O resto do salão permaneceu em um silêncio incrédulo, apesar de ninguém discordar do que havia sido dito.
Feyre F. deu um pequeno sorriso frio para a pequena multidão. Então, voltou a olhar para o livro:
Ou talvez eu a tivesse destruído quando afundei aquela adaga nos corações de dois feéricos inocentes e o sangue aqueceu minhas mãos.
Lucien lançou um olhar cauteloso à Feyre ao notar que ela não esboçara reação. Talvez ela estivesse apenas cansada de mostrar que se importava com seu próprio bem estar.
O amigo comprimiu os lábios, sem saber o que dizer.
Feyre, do futuro, suspirou.
- Quebra de tempo.
[...]
— De jeito algum — falei, no pequeno jardim do telhado da casa, as mãos enfiadas nos bolsos do sobretudo para que se aquecessem contra o ar gelado da noite. Havia espaço suficiente para alguns arbustos quadrados e uma mesa de ferro redonda com duas cadeiras, e eu e Rhysand.
Ao nosso redor, a cidade brilhava, as próprias estrelas pareciam mais baixas, pulsando com rubi, ametista e pérolas. Acima, a lua cheia fazia com que o mármore de prédios e pontes reluzisse, como se as construções fossem todas iluminadas de dentro para fora. Música tocava, cordas e tambores suaves, e, de cada lado do rio Sidra, luzes douradas oscilavam sobre passeios à margem, pontuados por cafés e lojas, todos abertos à noite, já lotados.
Vida... tão cheio de vida. Eu quase sentia aquele gosto estalando na língua.
Usando preto ressaltado por linha prateada, Rhysand cruzou os braços. E farfalhou as imensas asas quando falei:
— Não.
Cassian do futuro deu um risinho, fazendo Feyre F. pausar o que estava lendo.
- Sempre quis saber, como foi para você, voar com Rhys pela primeira vez.
Feyre mostrou a língua para ele.
— A Casa do Vento é protegida para que pessoas não atravessem para dentro dela... Exatamente como esta casa. Mesmo contra Grão-Senhores. Não me pergunte por que ou quem fez isso. Mas a opção é subir os dez mil degraus andando, o que eu realmente não quero fazer, Feyre, ou voar até lá. — O luar se refletiu na garra na ponta de cada asa. Rhys me lançou um lento sorriso que eu não vira a tarde toda. — Prometo que não a deixo cair.
Morrigan, Viviane e Cresseida trocaram sorrisos radiantes.
A princesa cutucou Lucien, de uma maneira que o irritou, se inclinando para frente, com a empolgação a consumindo.
Franzi a testa para o vestido azul como a meia-noite que tinha escolhido; mesmo com as mangas compridas e o tecido pesado e exuberante, o decote acentuado não ajudava em nada contra o frio. Tinha pensado em usar o suéter com calça mais grossa, mas preferi o luxo ao conforto. Já estava arrependida, mesmo com o casaco. Mas... se o Círculo Íntimo de Rhys fosse como a corte de Tamlin... era melhor usar o traje mais formal. Pisquei para o trecho de noite entre o telhado e a residência na montanha.
— O vento vai levar meu vestido embora.
O sorriso de Rhys se tornou felino.
Tamlin grunhiu, ao notar o mesmo sorriso sobre os lábios de Rhys.
— Vou de escada — declarei, fervilhando, e o ódio era bem-vindo depois das últimas horas de entorpecimento conforme segui para a porta na ponta do telhado.
- Por favor – pediu Cresseida – não seja tão teimosa... Eu preciso que meu casal se torne real, Feyre.
Rhys estendeu uma das asas e bloqueou meu caminho.
Membrana lisa; salpicada com leve iridescência. Eu me afastei.
— Nuala passou uma hora fazendo meu cabelo.
- Gente – Viv se inclinou, assim como Cresseida – Quanta resistência!
A princesa de Adriata concordou com ela.
Um exagero, mas ela trabalhara enquanto eu me sentava, em silêncio vazio, deixando que torcesse as pontas para formar leves cachos e prendesse uma parte no alto da cabeça com lindas presilhas de ouro. Mas talvez ficar em casa naquela noite, sozinha e em silêncio... talvez fosse melhor que enfrentar aquelas pessoas. Do que interagir.
A asa de Rhys se curvou ao meu redor, me levando mais para perto, onde eu quase conseguia sentir o calor do corpo poderoso.
— Prometo que não vou deixar que o vento destrua seu cabelo. — Rhysand ergueu a mão, como se pudesse puxar um daqueles cachos soltos, e depois a abaixou.
Cresseida deu um gritinho, deixando o rosto de Feyre corado de vergonha.
— Se preciso decidir se quero trabalhar contra Hybern com você... com seu Círculo Íntimo, não podemos simplesmente... nos encontrar aqui?
— Já estão todos lá. E, além disso, a Casa do Vento tem espaço bastante para que eu não tenha vontade de atirar todos da montanha.
Engoli em seco. De fato, curvando-se no topo da montanha central atrás de nós, andares iluminados brilhavam, como se a montanha tivesse sido coroada em ouro. E entre mim e aquela coroa de luz havia uma longa extensão de céu aberto.
— Quer dizer — falei, porque podia ser a única arma em meu arsenal — que esta casa é pequena demais e as personalidades deles, grandes demais, e você está preocupado que eu perca a cabeça de novo.
As sombras de Azriel se afastaram de seu rosto para mostrar o sorriso em seu rosto.
- Ela está tentando enrolar.
Feyre, do futuro, riu enquanto olhava para o Illyriano com carinho.
- De fato, Az, eu estava.
Cassian, do futuro, riu.
- E olha que ela ainda vai voar com todos nós um montão de vezes.
Feyre F. arqueou as sobrancelhas para ele.
- Chega de spoilers, Cassian. Vou voltar a ler.
Ele deu de ombros e fingiu uma reverencia para ela.
As asas de Rhys me empurraram para mais perto, como um sussurro de calor em meu ombro.
— E se estiver?
— Não sou uma boneca quebrada. — Mesmo que naquela tarde a conversa que tivemos, o que eu vi pelos olhos de Rhysand, dissesse o contrário. Mas cedi mais um passo.
— Eu sei que não é. Mas isso não significa que vou atirá-la aos lobos. Se falou sério sobre querer trabalhar comigo para manter Hybern longe destas terras, manter a muralha intacta, quero que conheça meus amigos primeiro. Decida por conta própria se é algo de que pode dar conta. E quero que esse encontro aconteça de acordo com meus termos, não quando eles decidirem fazer uma emboscada nesta casa de novo.
— Eu não sabia que você sequer tinha amigos. — Sim, ódio, língua afiada... A sensação era boa. Melhor que nenhuma sensação.
Um sorriso frio.
— Você não perguntou.
Rhysand estava tão perto agora que passou a mão por minha cintura e me envolveu com as duas asas. Minha coluna travou. Uma gaiola...
As asas recuaram.
A Senhora da Outonal sorriu suavemente.
Mas ele segurou mais forte. Me preparando para a decolagem. Que a Mãe me salvasse.
Azriel e os dois Cassians se inclinaram, engasgando de tanto rir.
Rhys balançou a cabeça, de uma forma divertida, para eles. Mas não impediu os amigos, deixando que gargalhassem até que seus risos chegassem ao fim.
Estava com saudade de suas risadas.
Feyre, do futuro, sorriu. Imaginando, exatamente, o que Rhys pensava naquele instante tão importante e descontraído.
— É só dizer uma palavra esta noite, e voltamos para cá, sem perguntas. E, se não aguentar trabalhar comigo, com eles, então não farei perguntas quanto a isso também. Podemos encontrar alguma outra forma de você morar aqui, de se sentir realizada, independentemente do que eu precise. A escolha é sua, Feyre.
- Mãe santa! – Cresseida sacudiu Feyre, de forma frenética – Se você não se casar com ele, eu caso!
Muitos riram.
Tamlin grunhiu e Feyre se soltou das mãos da princesa, fazendo uma careta para a mesma.
Pensei em provocar mais Rhys... em insistir para que eu ficasse. Mas ficar por quê? Para dormir? Para evitar um encontro que eu muito provavelmente deveria ter antes de decidir o que queria fazer comigo mesma? E para voar...
Verifiquei as asas, o braço em volta de minha cintura.
— Por favor, não me deixe cair. E por favor, não...
Disparamos para o céu, rápidos como uma estrela cadente.
Antes que meu grito terminasse de ecoar, a cidade tinha se aberto sob nós. Uma das mãos de Rhys deslizou sob meus joelhos enquanto a outra envolveu minhas costas e as costelas, e voamos mais e mais para cima, até a noite estrelada, para a escuridão líquida e para o vento melódico.
As luzes da cidade se afastaram até que Velaris se tornasse um cobertor de veludo ondulante coberto de joias, até que a música não mais alcançasse nossas orelhas pontiagudas. O ar estava frio, mas nenhum vento além de uma leve brisa roçou meu rosto — mesmo conforme disparamos com precisão magnífica em direção à Casa do Vento.
O corpo de Rhys parecia firme e quente contra o meu; era uma força sólida da natureza, criada e aprimorada para aquilo. Mesmo o cheiro me lembrava do vento: chuva e sal e algo cítrico que eu não conseguia nomear.
Desviamos para uma corrente ascendente, subindo tão rápido que foi instintivo me agarrar à túnica preta de Rhysand quando meu estômago se apertou. Fiz uma careta para a risada baixa que fez cócegas em minha orelha.
— Esperava mais gritos de você. Não devo estar tentando com muito afinco.
Cassian, do futuro, cruzou os braços.
- Eu teria feito melhor que isso.
Feyre, a versão futura, fez uma careta.
- Pior, você quer dizer.
Cassian sorriu de forma arrogante.
- Impossível. Sou o melhor Illyriano de Velaris.
Feyre F. sorriu e seus olhos brilharam.
- Você e Az ficam em segundo.
Eles olharam para Rhys por um pequeno segundo, Feyre F. pigarreou em seguida, buscando onde havia parado.
As sobrancelhas de Rhys estavam erguidas, enquanto as engrenagens de sua mente trabalhavam com suas teorias malucas e... reconfortantes. Seriam ele e Feyre tão íntimos no futuro?
— Não — sussurrei, me concentrando na faixa de luzes que se aproximava, na parede eterna da montanha.
Com o céu girando acima e as luzes disparando abaixo, o lado de cima e o de baixo se tornaram espelhos; até que velejamos por um mar de estrelas. Algo apertado em meu peito se aliviou infimamente.
— Quando eu era menino — disse Rhys ao meu ouvido. — Saía escondido da Casa do Vento, saltando da minha janela, e voava e voava a noite toda, apenas dando cambalhotas pela cidade, pelo rio, pelo mar. Às vezes ainda faço isso.
Os quatro Illyrianos e até mesmo Mor, sorriram.
— Seus pais deviam ficar felicíssimos.
— Meu pai jamais soube, e minha mãe... — Uma pausa. — Ela era illyriana. Em algumas noites, quando me pegava no momento em que eu saltava da janela, brigava comigo... depois, saltava também para voarmos juntos até o alvorecer.
— Ela parece encantadora — admiti.
Tamlin encarou o chão, se sentindo imensamente culpado.
— Ela era — confessou Rhysand. E essas duas palavras me disseram o bastante sobre seu passado para que eu não me intrometesse.
Uma manobra nos fez subir mais, até que estivéssemos diretamente alinhados com uma varanda ampla, emoldurada pela luz de lanternas douradas. Na ponta, embutidas na própria montanha vermelha, duas portas de vidro já estavam abertas, revelando uma sala de jantar grande, mas casual, entalhada na pedra e acentuada pela madeira luxuosa. Cada cadeira tinha sido feita, reparei, para acomodar asas.
A aterrissagem de Rhys foi tão suave quanto a decolagem, embora tivesse mantido um braço sob meus ombros enquanto meus joelhos falhavam ao se acomodarem. Eu me desvencilhei do toque de Rhys e olhei para a cidade atrás de nós.
Tinha passado tanto tempo agachada em galhos de árvores que já não sentia pela altura um terror primitivo havia muito tempo. Mas a extensão da cidade... pior, a vasta extensão de escuridão além — o mar... Talvez eu ainda fosse uma tola humana por me sentir daquele jeito, mas não tinha percebido o tamanho do mundo. O tamanho de
Prythian, se uma cidade grande como aquela podia permanecer escondida de Amarantha, das outras cortes.
Rhys deixou um sorriso sonhador escapar, pensando em Velaris, seu amado lar.
Rhysand estava em silêncio ao meu lado. Mas, depois de um momento, ele disse:
— Fale.
Ergui uma sobrancelha.
— Você revela o que está na sua cabeça, uma coisa só. E digo uma também.
Sacudi a cabeça e me voltei para a cidade.
Mas Rhys continuou:
— Estou pensando que passei cinquenta anos trancafiado Sob a Montanha, e, às vezes, eu me deixava sonhar com este lugar, mas jamais esperava vê-lo de novo. Estou pensando que desejava ter sido eu a matá-la. Estou pensando que, se a guerra vier, pode demorar muito até que tenha uma noite como esta.
Alguns olhares questionadores recaíram sobre o Grão-senhor.
Cresseida apontou para Rhysand.
- Algo me diz, que para alguém revelar tantos detalhes acerca dos próprios sentimentos para outra pessoa... é porque deve confiar muito nela.
Feyre cansou de se importar com o que a “amiga” dizia.
Um sorriso sedutor adornou os lábios de Rhys e as fêmeas ao lado de Feyre, se inclinaram para tentar entender o que exatamente aquele gesto poderia significar.
O Grão-senhor deu de ombros para as expressões questionadoras e dobrou a perna por cima do joelho.
Rhys desviou o olhar para mim, ansioso.
Não me dei o trabalho de perguntar de novo como ele mantivera aquele lugar escondido, não quando provavelmente Rhys se recusaria a responder. Então, perguntei:
— Acha que a guerra virá tão cedo assim?
— Esse foi um convite sem perguntas. Eu contei... três coisas. Me conte uma.
Encarei o mundo aberto, a cidade e o mar revolto e a noite seca de inverno.
Talvez fosse algum pingo de coragem, ou inconsequência, ou eu estivesse tão acima de tudo que ninguém, exceto Rhys ou o vento, podia ouvir, mas confessei:
— Estou pensando que devia ser uma tola apaixonada para permitir que me fosse mostrado tão pouco da Corte Primaveril.
Os olhos de Tamlin se ergueram do chão.
Ele buscou pelos olhos de Feyre, mas a mesma estava com o olhar perdido, tentando – em sua mente – imaginar o tamanho e esplendor de Velaris.
Estou pensando que há muito daquele território que jamais me foi permitido ver ou saber que existia, e talvez eu tivesse vivido em ignorância para sempre, como algum bicho de estimação. Estou pensando... — Engasguei com as palavras. Sacudi a cabeça, como se pudesse afastar aquelas que restavam. Mas mesmo assim as falei: — Estou pensando que era uma pessoa solitária e sem esperanças, e talvez tivesse me apaixonado pela primeira coisa que me mostrou um pingo de bondade e segurança.
Lucien engoliu em seco. Sentindo – percebeu ele – pena de Tamlin...
E estou pensando que talvez ele soubesse disso... talvez não conscientemente, mas talvez ele quisesse ser aquela pessoa para alguém. E talvez isso desse certo para quem eu era antes. Talvez não dê certo para quem... o que sou agora.
Cresseida sorriu.
- E, finalmente, o relacionamento tóxico está fora de jogada!
Tamlin suspirou, apenas arqueando a sobrancelha em sua direção.
Mor e Viv concordaram, suavemente, balançando as cabeças.
Feyre, perdida em seus pensamentos, nada disse.
Pronto.
As palavras, cheias de ódio, egoístas e ingratas. Apesar de tudo que Tamlin tinha feito...
O pensamento desse nome ressoou dentro de mim. Na tarde do dia anterior, eu estava lá. Não... não, não pensaria nisso. Ainda não.
Rhysand comentou:
— Foram cinco. Parece que devo dois pensamentos a você. — Ele olhou para trás de nós. — Depois.
Porque os dois machos alados de mais cedo estavam de pé à porta.
Sorrindo.
Dois sorrisos de fato estavam estampados nos rostos dos dois guerreiros Illyrianos.
Feyre, do futuro, levantou os olhos do livro – rindo, ao olhar para eles:
- Vocês não prestam mesmo, não é? – Ela lançou um pequeno sorriso à quase todos no salão. Mas um sorriso especial, sem limite e sincero, adornou seu rosto quando os olhos pousaram em Rhys. Cassian F. pigarreou, para indicar que alguns feéricos haviam notado o clima e Feyre desviou a atenção do parceiro para olhar na direção de Thesan. – Acabou esse capítulo. Eu continuo lendo?
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