História Gravity - Mergulhada em tinta

 Lua andava a passos largos e firmes pelo estacionamento, com os olhos fixos a frente, entretanto ainda com a respiração irregular. Estava com a cabeça muito confusa. O que tinha acontecido a poucos minutos tinha sido muito mais intenso do que ela poderia esperar. Quando já estava chegando na entrada do corredor que levava ao ateliê onde teria sua próxima aula, parou no lugar e segurou sua mochila pelo fundo com uma mão, apoiando em si mesma, intensionando tirar seu celular que estava enfiado em um dos compartilmentos. Nesse momento sentiu algo gelado na mão, e levou a outra instintivamente para o mesmo local, virando a mochila em seguida para olhar melhor. Reparou que o fundo da sua mochila estava azul, e percebeu que aquele era o conteúdo de um dos seus frascos de tinta, que provavelmente abriram quando ela jogou a mochila para fora do carro de Noa. Olhou para baixo e viu pingos de tinta pelo caminho, não só de azul, mas de mais umas 5 cores.

- Ai que merda!- disse um pouco irritada, percebendo que a tinta já estava em seu braço e em partes da sua camiseta. 

Apoiou o celular entre o ombro e a orelha, enquanto limpava a mão direita na calça. Depois pegou o mesmo e discou o número de Patrícia.  

-Alô.- disse Patrícia sussurrando, enquanto parecia virar páginas de livros. 

Lua imaginou que ela deveria estar enfiada em algum corredor aleatório na biblioteca. 

-Amiga, sou eu. - disse Lua com a voz trêmula. 

-Eu sei né bonita, se não fosse você eu não correria o risco de ser expulsa da biblioteca pela dona Marta novamente essa semana. - disse Patrícia sussurrando ainda mais baixo. 

Patrícia podia sempre ser achada na biblioteca. Para ela aquele lugar era um portal mágico do saber, e por mais nerd que ela pudesse parecer, ela ficava quase todo o tempo enfurnada lá. Entretanto como uma mulher de negócios que era, ela tinha que atender muitas ligações. Ficar entrando e saindo o tempo todo era muito cansativo, e ela considerava perda do seu precioso tempo. Por esse motivo ela era perseguida pela bibliotecária, que a amava pelo seu gosto literário, mas a odiava por ser baderneira demais, fazendo sempre demasiado barulho ao atender as inúmeras ligações. 

 - Seja rápida, por favor. - disse Patrícia no mesmo tom, enquanto andava até uma fileira de livros mais afastada da entrada. - Eu acho que a dona Marta não me perdoa se ela me ver no telefone novamente. 

- Eu fiz algo agora pouco que eu deveria me arrepender, mas a única coisa que eu sinto é que eu deveria repetir..muitas vezes..- disse Lua com a voz trêmula. - Mas isso é errado! Muito errado! Eu estou tentando ser uma pessoa mais responsável, mas eu só faço besteira... - disse largando a mochila no chão, e  passando a mão esquerda no rosto, e nos cabelos. Percebeu na hora que ela estava cheia de tinta. Bufou. - E eu joguei minha mochila para fora do carro, e minhas tintas abriram, e daí eu fiz um rastro de tinta pela universidade, além de ter me sujado toda. Eu tenho tinta na cara, pelo amor de Deus!!! - Disse rápido, enquanto gesticulava no ar. 

-Calma. O que você fez? Que carro? - Perguntou Patrícia sem entender. 

-Você sabe o quanto essas tintas são caras? É fruto do meu sangue e suor, essa porcaria. E daí eu resolvo desperdiç ar um pouco porque eu não consigo sossegar e saio por aí beijando as pessoas. Qual o meu problema??? E o desgraçado beija muito bem ainda por cima. 

-Pera! Você beijou alguém?!! - Patrícia aumentando o tom, e logo depois voltando a sussurrar.- Conta isso direito!

- Eu me deixei levar pela comida..é foi isso. Seduzir os outros com comida italiana deveria ser um crime. - disse Lua divagando, enquanto soltava os cabelos do rabo de cavalo, acabando por espalhar mais tinta neles no processo.

- Amiga, eu não estou entendendo é nada. Eu preciso desligar. Eu estou vendo os pezinhos da Marta se aproximando. Sério, como ela sempre me acha? Ela tem um ouvido supersônico, só pode. - disse Patrícia baixíssimo, enquanto se abaixava e se encaminhava para outra seção mais afastada. 

- Dorme comigo hoje? Eu preciso te entregar a chave da minha casa para que você me tranque lá, evitando que eu destrua a minha vida que nem começou...- disse Lua dramática. 

Nesse momento Marta se aproximou do corredor que Patrícia estava, e ela rapidamente enfiou o celular no meio dos livros, se levantando, sem conseguir desligá-lo. 

-Eu bem que escutei alguém falando no celular mesmo. Só podia ser a senhorita!- Lua escutou a Bibliotecária falar ao fundo. 

- Eu? A senhora está equivocada. Meu celular quebrou, eu nem trouxe ele comigo sabe. - disse Patrícia mostrando as mãos. 

- E o que a senhorita está fazendo aqui então? - disse a bibliotecária nem um pouco convencida. 

- Ora, o que mais...lendo..- disse Patrícia tentando desconversar.

- Eu não sabia que a senhorita se interessava por engenharia elétrica. - disse Marta indicando a seção que ela estava. 

- Expandindo os horizontes.- disse Patrícia se aproximando dela. - Sabe que você pode me ajudar, Martinha querida. Eu queria saber se tem alguns livros. O primeiro se chama " É claro que eu vou dormir na sua casa", e o segundo é "Prevejo babado". A autora eu não consigo me lembrar, mas acho que é um tipo de artista plástica depravada. 

- Que nomes peculiares..vamos lá pesquisar.- disse Marta intrigada, saindo dali com Patrícia logo atrás. 

Lua deu risada da conversa, e desligou o celular, entendendo a mensagem. 

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Depois de pedir muitas desculpas pelo atraso a professora, Lua tinha tido uma tarde muito tranquila no ateliê. Nenhum dos seus colegas questionou seu estado " pintora louca imersa em tinta" , e essa era uma das razões porque ela se sentia tão bem ali. Todo mundo tinha mais o que fazer a ficar reparando nela. Além do mais, muitos dos alunos iam para aula em pior estado, principalmente antes de entregar algum trabalho avaliativo. Todo mundo sabe que inspiração criativa e prazos não combinam muito bem. 

No final da sua última aula da tarde, depois de limpar um pouco a mochila e contabilizar o prejuízo, Lua se preparava para ir para casa quando ouviu a voz de Marcus conversando com sua professora. Lua virou para ele, que arregalou os olhos vendo o seu estado.  

- Você está pegando pesado ultimamente Lucy! - disse Marcus rindo, apontando para Lua. - Parece que ela saiu da tela. 

- Infelizmente isso aí não é obra minha, por mais que eu tenha achado muito poético. - disse Lucy rindo, respondendo Marcus. - Ela já chegou assim. 

Marcus levou a mão aos cabelos, olhando Lua intrigado. 

- Se você descobrir o que aconteceu com ela mais cedo, me conte. Eu quero saber para podermos repetir mais vezes. - disse apoiando a mão no ombro de Marcus. - A produção dela hoje foi excelente! Parecia...apaixonada pela vida!! Fantástico! - disse com os olhos brilhando. 

- Isso aqui foi só um acidente professora, eu já lhe contei. - disse Lua respondendo. 

- Ah claro, claro.- disse fingindo acreditar. - Tchau para vocês. Bom fim de semana. Continue assim Lua. - disse já se afastando. 

Lua voltou para a sua mochila e quando virou Marcus a olhava com os braços cruzados, apertando os olhos, tentando achar pistas do ocorrido nas cores pela roupa e rosto de Lua. 

- Eu não sei o que aconteceu, mas isso me deu ideias ótimas. - disse perdido em pensamentos e ideias. - Fica parada aí, desse jeitinho.- ordenou Marcus, tirando o celular do bolso, e se preparando para tirar umas fotos. 

Lua sorriu, e entrou na brincadeira fazendo umas poses. 

- Maravilhosa! Você deveria ser modelo, eu já te falei. Iria ganhar bem mais dinheiro. - disse Marcus, enquanto tirava as fotos. - Vou revelar e te mando algumas. - disse sorrindo. -Ficaram ótimas!

Marcus tinha um álbum enorme de fotos de Lua, tiradas em momentos engraçados e constrangedores. Ela fingia não gostar, mas no fundo achava muito fofo da parte dele. 

Lua se aproximou dele vendo que ele tinha razão, as fotos ficaram muito espontâneas e divertidas. 

- Obrigada. - disse Lua, enquanto Marcus  erguia seu cabelo, agora azul, e ria. 

- Bom trabalho para você hoje a noite. É melhor você se apressar mesmo, porque vai demorar pra tirar toda essa tinta. - disse rindo, enquanto olhava rapidamente o horário no celular. 

- Você vai lá hoje? - perguntou Lua, enquanto os dois saiam da sala, e se dirigiam ao estacionamento. 

- Hoje não, tenho um jantar importante. Vou amanhã, lá pelas 3 da manhã. - falou enigmático, para uma Lua que o olhava com curiosidade. - Vou só buscar a Justine. 

- Que jantar? - perguntou Lua, porém Marcus só se afastou sem responder, depois de lhe dar um beijo no rosto, no lado sem tinta. 

- Até amanhã. - disse Marcus se virando e só levantando o braço direito em um aceno. 

Mas que desaforado... nem deve ser nada importante, só quis me deixar curiosa....pensou Lua. 

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Já eram 3 horas da manhã, porém por mais cansada que Lua estivesse ela ainda sentia que poderia dançar por dias sem parar. A adrenalina do beijo no carro com Noa ainda estava correndo nas suas veias. No fundo Lua esperava que ele fosse na boate aquela noite, mesmo sabendo que ela deveria desejar justamente o contrário. 

Laila bateu em sua perna, e fez um gesto com as mãos, indicando que seria o intervalo de Lua, e que ela iria lhe substituir na barra de pole que ela estava dançando. 

Lua desceu, e agradeceu Laila, antes de ir em direção aos camarins. A música eletrônica alta foi abafada quando ela fechou a porta. Abriu seu armário e pegou umas bolachas que tinha comprado no caminho para casa, e uma lata de suco de uva. 

 Depois de alguns minutos, Lua virou o rosto para a porta por cima do ombro, quando ouviu a música ficar mais alta novamente. 

- Acho que vamos poder terminar o expediente mais cedo, eu e você. O movimento está bem fraco hoje, e eu estou muito curiosa para o que você tem para me contar. - disse Patrícia sentando ao lado de Lua. - Só que amanhã vamos ter que ficar até as 5, e ajudar na limpeza. - completou Patrícia roubando uma bolacha, para uma Lua que de animada fez uma cara de derrotada. 

- Eu já ia dizer como eu sou sortuda de ser melhor amiga da minha chefe, mas se duvidar você me faz trabalhar mais que os outros. 

- Eu sei separar as coisas, meu bem. Além do mais você está reclamando de boca cheia. Eu sou uma ótima chefe, sempre te dou folga quando você está com prazo apertado pra entregar alguma atividade avaliativa. - disse Patrícia checando o esmalte vermelho impecável das suas unhas.

Lua lembrou de como aquilo já tinha lhe ajudado em alguns momentos críticos de total esgotamento mental, e falta de inspiração, e resolveu bajular um pouco a amiga, para que ela continuasse lhe ajudando. 

- O que eu estou falando?! Mas é claro que você é uma chefe maravilhosa! O que seria de mim sem você? Você é a melhor chefe de todas! - disse Lua enquanto passava os braços envolta de Patrícia, e lhe dava beijinhos no rosto. 

- Para, sua louca. - disse Patrícia rindo.- Nem adianta vir com esse papo furado, que eu não vou te dar mais folgas ou um aumento. - disse Patrícia enquanto balançava a cabeça. - Se você quer me retribuir, eu bem que queria uma massagem..- disse sorrindo. 

- Mas é claro! - disse Lua já pensando na próxima folga que iria pedir a amiga .- Pode deixar que eu vou te fazer uma massagem completa lá em casa, depois que a gente tomar banho. 

Enquanto Lua falava, Ruby, uma menina nova que tinha entrado aquela semana, e estava trabalhando no bar, abriu a porta do camarim. Ela arregalou os olhos, e encarou Patrícia. Logo ela baixou os olhos e viu Lua abraçada nela. Juntou com o pedaço da frase que escutou, e corou fortemente. 

Lua sentiu Patrícia endurecer, e ficou olhando de uma para a outra, achando o clima ali muito estranho. 

- Ahh...é..desculpe. Eu não queria atrapalhar. Eu volto depois. - disse Ruby, já virando e saindo. 

- Não, Ruby, espera! - disse Patrícia se levantando. - Ai que bosta, ela entendeu errado. 

Lua cruzou os braços e ficou olhando a amiga andar agitada de um lado para o outro. 

- Olha só, eu não sou a única que tem algo de interessante pra contar hoje a noite, pelo visto. - disse Lua se divertindo com a situação. 

- Você até estaria certa, se minhas chances não tivessem ido pelo ralo alguns minutos atrás. Agora ela acha que eu tenho algo com você. Ter uma amiga tão bonita quanto você dá nisso. Você assusta qualquer uma das minhas futuras pretendentes. 

Lua abriu a boca impactada.

- Eu estava brincando. É sério isso mesmo? Nem pra me falar nada? E desde quando você gosta de ruivas? - Perguntou Lua de forma atropelada. - Eu retiro a massagem que eu ia te fazer, você não está merecendo. - falou Lua séria. 

-É claro que eu gosto de ruivas, por favor...quem não gosta de ruivas? - disse Patrícia como se tivesse ficado ofendida. 

Daí as duas se olharam, e começaram a rir sem parar. 

- Pegue as suas coisas, chega por hoje. Estou nos dispensando do trabalho. A gente tem muito o que conversar. - disse Patrícia sorrindo, e já se dirigindo a porta.