Guarani - Uma Criação
Iamandu é o Deus do Mundo. O Deus da Criação. Do Espírito de Iamandu o Mundo se fez. De Seu pensamento, a existência.
Iamandu criou o Universo. As estrelas e os planetas, e o espaço entre eles. E tudo o que há no Universo
E também fez a Terra. E o Sol que ela orbita. E a Lua que a orbita. E as estrelas visíveis da Terra
E o mar, as matas, as terras. E os animais, os peixes, os pássaros.
E o Homem.
Iamandu criou Rupave e Sypave - o primeiro homem e a primeira mulher. E essa é a história deles, e sua luta contra os espíritos maus da Terra pela herança da Humanidade.
Rupave e Sypave
Rupave abriu os olhos. Era a primeira vez que ele o fazia, assim como era a primeira vez que sentia e experimentava. Já havia entendimento em seu ser - Iamandu o criou pleno e completo - mas entendimento não é experiência nem aprendizado. E quando abriu seus olhos pela primeira vez, Rupava se encantou com o que viu e sentiu.
A azul infinito do céu, a luz amarela do Sol, o verde das matas infindas, os tons de cinza e marrom das terras e dos morros e montanhas, o cristalino das águas a correr nos rios, a sensação suave do chuvisco que respingou sobre ele.
E tudo isso era belo e arrebatador. Mas o que realmente encantou Rupave foi quando, ao virar-se para o lado, ele pela primeira vez viu Sypave. Sypave era a primeira mulher, criada ao mesmo tempo e ao lado de Rupave. Era alta, esbelta, de pele amendoada, cabelos negros como a noite, olhos esguios levemente puxados, cor de mel, feições suaves ao mesmo tempo profundas e juvenis.
E, no mesmo momento em que a encarou, também Sypave o viu. E, assim como ele, ela também se encantou. Rupave era forte, a pele da mesma cor da de Sypave. Tão alto quanto ela, de cabelos também negros e olhos cor de terra fresca. Suas feições eram cordiais, atraentes e, assim como as de Sypave, também profundas e juvenis
E tão logo se viram, se amaram. Um amor profundo e total. Foram feitos um para o outro, perfeitamente complementares. Estariam juntos para sempre, seriam um tudo e um todo. Sabiam disso, sem necessidade de qualquer palavra.
Rupave estendeu as mãos para Sypave. Sypave retribuiu o gesto.
E nesse instante apareceu Taubymana.
Taubymana
Rupave e Sypave se assustaram e deram alguns passos para trás frente a inesperada aparição de Taubymana. Como que do nada surgindo, aquele ser terrível e estranho, em forma de homem atarracado, corpulento e de expressão malévola, causou-lhes aversão imediata.
Taubymana sorriu sarcasticamente e, com uma voz esganiçada e zombeteira, disparou: - Que beleza essa criatura, disse, apontando para Sypave. Não, não você, emendou logo a seguir, desviando os olhos para Rupave, que já partia para defender sua amada. Você não, continuou, você não me interessa. Mas ela sim!, falou afinal, num grito alto e rouco, e, prontamente, jogou-se na direção de Sypave, agarrando-a pelo braço e desaparecendo como por enquanto, levando a jovem consigo.
Rupave estancou, sem tempo para qualquer reação. A repentina partida de Taubymana deixou para trás um cheiro acre, azedo e nauseabundo. Aquele cheiro e a surpresa causada pela súbita perda de Sypave - tão breve a conhecera, mas já sabia que sem ela a vida perdia a razão - fizeram-no cambalear, e ele caiu no chão, derrotado, num estranho estupor que o fez perder os sentidos.
E, caído ali, ele entrou em um estado de sono e sonho e foi assaltado por uma visão.
O Sonho de Rupave
Rupave estava sentado em uma relva verde macia. O Sol o aquecia com um calor confortável e agradável e o suave som de um riacho próximo induzia a calma e a paz de espírito. Ele sabia que aquilo não era a realidade palpável, mas uma espécie de sonho real no qual ele se sentia desperto e ativo. Ele estava consciente do que acabara de acontecer - da aparição de Taubymana e do rapto de Sypave, mas por alguma razão encontrava-se em tranquila expectativa, como se esperando por uma revelação. E esta não tardou.
Uma voz como a de trombetas se fez ouvir - ela vinha de todos os lugares e de nenhum lugar específico, parecia que começava fora mas ao mesmo tempo reverborava dentro de sua mente - e Rupave soube que o próprio Iamandu falava-lhe diretamente.
E assim se fez a revelação de Iamandu para Rupave: Eu sou Iamandu, e por minha vontade o que há, existe. E assim como tudo há, também você, Rupave, homem e a mulher, Sypave, existem, por mim criados. Mas há no mundo uma vontade que não é a minha. E Taubymana, a criatura que tirou de você Sypave, é uma expressão dessa vontade maligna. Ele é um espírito mau, meio físico, meio espiritual. Seu desejo é propagar-se, tomando tudo que foi criado para si, já que ele mesmo nada pode criar por si próprio. Por isso ele raptou Sypave. Ele quer, através dela, criar descendência. E essa descendência seria monstruosa, criaturas vis e malignas que deturpariam tudo o que há de belo na Criação. Mas para conseguir seu intento, Taubymana tem que primeiro convencer Sypave, de modo que ela se entregue por vontade própria. Ele não pode nem tem meios de possuí-la sem que ela permita. Mas ela não sabe disso e ele é a mais maligna das criaturas. Ele mentirá - mentiras inteiras e meias verdades - para que o coração dela se encha de dúvidas e ela por fim permita que Taubymana realize seu desejo. Assim são seus métodos - a mentira, o engano, a dúvida, a traição.
E continuou: - E isso você deve impedir, Rupave. Mas sua tarefa não será fácil. Antes de Taubymana, você deverá enfrentar sete terríveis criaturas, monstros que Taubymana soltou neste mundo para impedir que você salvasse Sypave. Ele sabe que você irá enfrentá-lo e fará de tudo para destruí-lo. Mas Eu mesmo estarei ao seu lado, instruindo-o e ajudando-o, mostrando-lhe o caminho, dando-lhe as armas e ensinando-lhe os métodos e as maneiras das criaturas que você enfrentará. Em breve você acordará e meus arautos o ajudarão. De você, serão necessárias sua coragem e sua vontade. Se você for firme em seus propósitos e valente em suas ações, você terá sucesso e a humanidade terá sua chance. Esse é o seu destino e essa a sua tarefa. Que seja!
E, assim como veio, a voz se foi, e Rupave, ainda sentado na relva, fechou seus olhos e tudo tornou-se escuridão.
Quando voltou a abrir os olhos, encontrava-se novamente deitado, no mesmo lugar onde caíra quando Taubymana levou sua amada Sypave.
Armas e Caminhos
O terrível odor já se dissipara e Rupave levantou-se de um salto. Ainda permanecia em seu espírito algo da tranquilidade que experimentara em seu sonho, mas essa sensação logo desvaneceu, dando lugar à apreensão e à ansiedade. Pensou então: “Seria ele capaz de cumprir sua missão? Por que Iamandu falara sobre chance para a humanidade? E Sypave! Isso era o mais importante! Salvar Sypave, não importava o custo! Mas como?”
Então algo no chão chamou-lhe a atenção. Alguns objetos dispostos lado a lado, arrumados. De alguma maneira, ele sabia o que eram e para que serviam. No chão, perfeitamente ajeitados, estavam um arco com uma aljava de flechas e um punhal que se encaixava na mão com perfeição. Então ele lembrou-se da promessa de Iamandu - Ele estaria ao seu lado, ajudando-o e dando-lhe o necessário. Mas o que ele quisera dizer sobre arautos?
Nesse instante, aparecendo pela primeira vez, surgiu um macaco de bom comprimento, de pelos que iam do amarelo claro ao laranja forte. Rupave deu um passo para trás, mais pela surpresa do que por qualquer outra razão. O macaco então dirigiu-lhe um sorriso matreiro e disse-lhe, sem qualquer cerimônia: - Venha Rupave, venha comigo. Pegue suas armas e se apresse. Eu vou levá-lo ao seu primeiro destino, e vou ajudá-lo como puder. Venha, venha logo, que não podemos perder tempo! Taubymana, o terrível, nesse exato momento está atormentando a suave Sypave! Temos que detê-lo, o mais depressa possível! Pegue suas coisas e siga-me, que vou lhe explicando tudo pelo caminho.
A assim fez Rupave, pegando as armas do chão e seguindo célere o arauto que se punha rápido no caminho que o levaria ao primeiro de seus desafios.
Taubymana e Sypave - 1
Enquanto Rupave seguia o arauto de Iamandu, Taubymana e Sypave surgiram em um lugar distante, um refúgio do espírito mau. O lugar era lúgubre e sombrio, com pouca luz natural, pequeninas plantas e árvores ressequidas, um chão duro e sem vida. Ao longe, um pântano lamacento produzia um odor desagradável e à frente deles uma caverna com uma luz esmorecida, mórbida, escancarava sua bocarra horrenda numa abertura assombrosa. Taubymana agarrou Sypave pelo braço, que sem reação se deixou levar. Eles entraram na caverna - que era fria, úmida e triste - e Sypave sentiu um arrepio de repulsa.
A bela jovem olhou então para seu horrendo raptor e, mesmo no horror que lhe circundava, começou a recobrar a presença de espírito. Altiva, perguntou com autoridade: - Onde estamos, e porque você me trouxe aqui? O que você quer de mim?
Taubymana caçou os cabelos ralos e respondeu, olhando de soslaio: - Você foi enganada, querida, por aqueles que só a desejam por egoísmo. E então, olhando nos olhos de Sypave, continuou: - Fui eu que a criei, querida, e você pertence a mim. Mas o terrível Iamandu a tomou de mim muito rapidamente e muito cedo, para que você fosse entregue à criação dele, aquele macaco em forma de gente… Mas eu não deixaria que tamanho crime se perpetuasse. Eu tinha que trazê-la de volta, pois você foi criada por mim… e a mim pertence.
Sypave ouviu aquelas palavras e pensou se poderiam ser verdadeiras. Mas seu coração falava fortemente e ela se lembrava do olhar de Rupave - um olhar sem engodo nem mentira, mas puro e amável, inocente e sincero. Tomada por um sentimento de vigor renovado, ela respondeu a Taubymana: - Não acredito em suas palavras, nem por um momento. Eu sei o que senti nos olhos de Rupave e aquilo era a verdade. Como você pode acusar de egoísta o que somente parecia amor?
Taubymana tapou sua boca com a mão, como que segurando seu queixo. Não esperava por essa resposta, tão ousada e contundente. Mas não se daria por vencido. Seu desejo seria satisfeito e ele teria Sypave para si, e mostraria a Iamandu quem realmente mandava neste mundo. Após pensar um pouco, respondeu maliciosamente para Sypave: - Eu sei que você realmente sente isso, minha querida, e entendo plenamente. Você quer ser amada, e Rupave seria perfeito para você. Mas é tudo simulação, e um plano do terrível Iamandu, capaz de tramas complexas e profundas. Mas dê tempo ao tempo, e vou lhe provar a dedicação que dispenso a você…
Os argumentos dúbios e a dissimulação eram armas das mais terríveis de Taubymana. Ele trabalhava pelos flancos, incutindo a dúvida, alimentando o receio, disseminando a rancor.
E acreditava que o tempo estava a seu favor…
Tejo Jagua
Rupave e o macaco - que Rupave descobriu chamar-se Mapinguari - seguiam céleres em seu caminho. Mapinguari sabia a importância de ser rápido, pois conhecia os meios e os embustes de Taubymana e, como arauto de Iamandu, sabia do perigo que corria a ingênua Sypave. O macaco corria muito rápido, com agilidade espetacular, saltando e pulando e correndo com a mesma suavidade, sem perder o ritmo. Rupave, logo atrás, não deixava seu guia escapar: possuía ele também vigor e agilidade espetaculares.
Enquanto corriam, Mapinguari falava, instruindo Rupave: - Prepare-se jovem, pois sete desafios estarão à sua frente, antes que consigamos chegar ao terrível Taubymana e a bela Sypave. O primeiro que você enfrentará será uma criatura demoníaca chamada Tejo Jagua.
Rupave escutava sem interromper, prestando atenção em tudo o que o macaco falava. Este continuou: - O Tejo Jugua é monstruoso. Habita as cavernas e possui o corpo de um grande lagarto com uma cabeçorra de cão, de mandíbulas poderosas e dentes afiado e cortantes como navalhas. É muito forte e ágil, e não será fácil confrontá-lo. No meio de sua testa, há uma pedra preciosa - um rubi cor de sangue. Ali se concentra a força e a energia da fera. E você, Rupave, terá que retirar essa pedra profundamente arraigada na cabeça do Tejo Jagua para realmente derrotá-lo.
Ao ouvir essas últimas palavras de Mapinguari, Rupave segurou forte o punhal que carregava. Sabia que a arma não lhe fora dada à toa e já imaginava sua função. Nesse momento, o dia começou a escurecer e à frente da dupla surgiu um vale estreito, que se esgueirava ao longe, salpicado de entradas negras, pouco convidativas. Eram as terríveis cavernas, lar do monstruoso Tejo Jagua.
Mapinguari parou de súbito e Rupave colocou-se ao seu lado. Apreensivo, o macaco disse: - Eis aí, Rupave, que meu trabalho está feito. Deveria trazer você até aqui, até o lar de Tejo Jagua. Agora, só cabe a você confrontá-lo. Apenas você pode fazê-lo e espero que seja bem sucedido, pelo bem deste mundo. Desejo toda a sorte para você.
Rupave respirou fundo, apertou a aljava contra seu corpo, tomou do arco e do punhal e pôs-se em frente. Quanto antes enfrentasse Tejo Jagua, tanto melhor....
Rupave desceu até o vale que serpenteava entre as diversas cavernas, de diversos tamanhos, todas muito escuras e assustadoras, sinistras de se olhar. Logo percebeu que seria praticamente impossível procurar pelo Tejo Jagua em cada caverna, de profundidade e tamanho desconhecidas. Resolveu, então, chamar a atenção de alguma maneira e esperar que a fera viesse até ele. Escolhendo um local adequado, sacou de seu poderoso arco e procurou na aljava por uma flecha que parecesse suficientemente forte. Com olhar clínico, encontrou um ponto, bem ao alto de uma das maiores cavernas, onde um agrupamento de pedras parecia segurarem-se de maneira mais instável. Mirando então com a precisão com que Iamandu lhe dotara, atirou sua flecha e rezou ao mesmo Iamandu para que esta não falhasse. E nem a sua precisão ou a sua fé falharam: a flecha certeira atingiu o agrupamento de pedras no seu ponto mais instável, provocando um grande desmoronamento que produziu um efeito cascata, causando um estrondo e um estrago muito além do que o próprio Rupave esperava. Até Mapinguari, já muito distante e que a tudo observava do alto, assustou-se. Quando o barulho cessou e a poeira começou a baixar, Rupave questionou-se: seu plano daria certo, ou aquele tiro certeiro não serviria para nada? Estaria o Tejo Jagua, entre aquelas miríades de cavernas, em alguma próxima na qual teria escutado aquele tumulto? E se estivesse, viria conferir o que teria acontecido, ou ficaria escondido, à espreita, esperando pacientemente o que viria a seguir?
Rupave, afinal, não precisou esperar muito. Como em resposta ao estrondo e as suas dúvidas, o som rápido e abafado de poderosas patas correndo se somou ao uivo lancinante de um cão infernal. E, de uma caverna próxima, não mais que a meia centena de metros, surgiu, repentinamente, o monstro meio lagarto, meio cão, enorme, poderoso, forte e assustador. Vindo averiguar o que acontecia em seus domínios, se apresentava o senhor daquelas terras. O terrível demônio conhecido pelo nome de Tejo Jagua.
A monstruosa criatura parou, ali bem no centro do vale, e não precisou procurar muito pelo autor do tumulto que o despertara. Logo seus olhos aguçados encontraram Rupave, que, surpreso com a colossal criatura, sequer tentou correr ou se esconder. Sem perder tempo, Tejo Jagua aprumou seu corpanzil e disparou contra seu inimigo. Frente a esta investida, Rupave rapidamente recuperou sua presença de espírito. Com enorme agilidade, ajeitou outra flecha no arco e disparou, certeiro. A flecha atingiu o flanco do monstro, que deu um urro quando a ponta de metal penetrou sua couraça. Porém, sem sequer interromper seu movimento, arrancou a flecha com a boca e continuou sua investida contra Rupave. Este só teve tempo de atirar-se, como um raio, para o lado, escapando por um triz das afiadas presas do monstro. O Tejo Jagua, então, interrompeu seu movimento para encarar de frente seu oponente. Rupave, levantando-se rapidamente, retribuiu o olhar da criatura, o ódio intenso da fera contra a vontade imperativa do homem.
Rupave livrou-se então do arco e da aljava. Em nada poderiam ajudar-lhe agora. Segurando firme seu poderoso punhal, sabia que a luta dependeria de sua habilidade, e, frente a frente com o Tejo, sentiu um arrepio perpassar sua espinha. Seria possível derrotar, em uma luta aberta, tão monstruosa criatura, toda força e ira? A dúvida logo se dissipou em sua mente. Para ele, havia somente uma opção: vencer. Sypave dependia dele e ele não poderia decepcioná-la.
O tempo pareceu parar enquanto Rupave e o Tejo Jagua se encaravam. O Tejo pareceu sorrir maliciosamente, escancarando suas afiadas presas como um desafio e uma intimidação. Rupave apertou forte o cabo do punhal e se preparou para a luta. Lá no alto, Mapinguari prendeu o fôlego quando o Tejo preparou o bote.
A luta começava.
Sem perda de tempo, Tejo Jagua saltou para frente, as fortes pernas de lagarto impulsionando o corpanzil com força, num ataque brutal. A boca escancarada, com os dentes como dezenas de lâminas, seguiam as patas frontais com as garras como punhais. Rupave deu um poderoso salto para o lado, agarrando-se em uma grande pedra saliente, bem a tempo de escapar das garras e dos dentes, que passaram raspando por suas costas. Enquanto o Tejo voltava-se para um novo ataque, Rupave contra-atacou. Ágil e veloz, saltou contra a criatura, que estava meio de lado, e com um rápido movimento de mão riscou com o punhal o corpo do Tejo, indo cair distante, rolando no chão, o mais longe possível do monstro.
Tejo Jagua soltou um grito de fúria e dor, pois a ferida fora profunda, e um sangue esverdeado e oleoso começou a gotejar de seu flanco. Com os olhos injetados de ódio, ele rapidamente absorveu o golpe e tentou cercar Rupave.
Rupave deu alguns passos para trás, percebendo que os golpes de punhal poderiam ferir Tejo, mas não pareciam causar-lhe um dano maior que o ferisse gravemente. Quantos golpes seriam necessaŕios para derrubar seu inimigo? E até quando ele escaparia das investidas daquele monstro, enquanto tentava desferir seus golpes? Para o Tejo, bastava um golpe bem dado e a luta estaria acabada.
Tejo Jagua pareceu perceber a dúvida que por um instante assombrou Rupave. Ameaçador, sem pressa mas com a certeza da vitória, foi dando patadas firmes na direção de Rupave, tentando forçá-lo em direção às pedras. Sabia que naquela posição o homem teria menos espaço de manobra e então ele poderia desferir seu ataque fatal.
Rupave percebeu a intenção do Tejo, que o tentava encurralar, mas, ainda que se desviasse de um lado para o outro, acabou sendo forçado a ficar contra o paredão de rochas atrás de si.
O Tejo achou então que era a sua hora e Rupave agarrou firme seu punhal e esperou. Sua única chance seria um movimento perfeito no momento exato. Tejo Jagua então ergueu parte do enorme corpanzil, garras à frente, e desferiu seu golpe. Rupave impulsionou seu corpo contra as pedras e, rápido como um raio, jogou-se com um movimento para baixo e para o lado, tentando escapar.
As garras do Tejo nada acharam, mas uma das presas em forma de lâmina de sua boca arranhou a perna de Rupave. O corte, porém, foi superficial, e Rupave conseguiu seu intento, fugindo do raio de ação do Tejo.
Ele, então, não perdeu tempo. Aproveitando o momento, levantou-se rapidamente e com um salto espetacular escalou as costas do monstro. Era o Tejo agora que estava contra as pedras e, com um movimento brusco, tentou livrar-se de Rupave. Mas este havia agarrado firme uma das enormes escamas da criatura e, ainda que o movimento do Tejo o sacudisse conseguiu segurar-se e se firmar.
E então o punhal fez seu trabalho. Com precisão e força, Rupave golpeou e girou a arma na cabeça do Tejo. Este soltou um terrível urro de surpresa e dor, e caiu prostrado ao chão.
Com a queda do monstro, Rapuve rolou para longe, com o punhal em sua mão lambuzado do sangue esverdeado e oleoso do Tejo. A pouca distância, porém, o rubi que adornava a testa do terrível Tejo Jagua - o mesmo rubi cor de sangue que guardava toda a força e energia da criatura - jazia, agora com um brilho opaco, sem vida, a poucos metros de distância. Rupave levantou-se e foi até o rubi, pegando-o na mão. A pedra perdeu totalmente seu brilho, ficando inerte, enquanto o Tejo Jagua, logo ao lado, parava de respirar e de se mover.
Rupave havia vencido seu primeiro desafio.
Exausto de tensão, ele sentou-se, respirou fundo e fechou os olhos. Em sua mente, viu Sypave em toda a sua beleza, e logo percebeu que não poderia perder tempo. Mesmo assim, esperou um pouco mais para enfim se levantar. Ainda bem distante, pode ver Mapinguari, que caminhava rapidamente em sua direção. Quando o macaco chegou, abraçando-o e festejando-o por sua bravura e talento, ele perguntou: - Você não poderia ter me ajudado? Afinal de contas, você é bastante ágil e forte, e nós dois juntos teríamos mais chance contra esse monstro.
Mapinguari coçou a cabeça e, meio consternado, respondeu: - Não que eu não quisesse, Rupave, mas esse não é o meu destino nem o desejo de Iamandu. Cabe somente a você vencer seus desafios, para que a humanidade tenho pleno direito de herdar este mundo. Assim, aumentarão tanto a responsabilidade de sua descendência quanto o valor que eles darão pelo direito que você conquistou. Iamandu é sábio e devemos confiar em seu julgamento.
Rupave não ousou questionar. Nada mais lhe importava, senão resgatar Sypave. Se era para ser assim, se ele tivesse que enfrentar todas essas criaturas, então assim seria. Iamandu não lhe daria uma tarefa que não estivesse ao seu alcance.
Então, e agora?, perguntou enfim ao macaco.
Agora você continua comigo, que ainda cabe a mim guiá-lo. E não percamos tempo, pois esse pode ser favorável ao nosso inimigo.
E, dizendo isto, pôs-se a caminho, saltando, correndo e pulando, com Rupave, armas em punho, logo atrás.
Mbui Tu’i
Rupave, como primeiro homem, possuía força, habilidade e resistência excepcionais. Mas era um homem, com as capacidades e limitações próprias de sua espécie. Ele precisava de pouco descanso e logo já estava plenamente recuperado, mas ainda assim precisava descansar. E também Mapinguari, apesar de toda sua energia, necessitava de descanso.
Sendo assim, após um longo trecho percorrido velozmente, os dois companheiros aproveitaram o anoitecer para recuperar o fôlego e tranquilizar o espírito.
Sentaram-se sob o luar - uma bela Lua cor de prata - e comeram uma rica sopa de raízes, legumes e verduras que Mapinguari - que sabia tudo sobre os frutos da terra - preparara.
O Macaco então falou ao homem: - Meu caro, por um instante pensei que tudo estaria perdido. Quando o Tejo Jagua o encurralou contra a parede e deu seu bote, ali não vi mais saída para você! Mas você se saiu muito bem, afinal… E por falar nisso, como está essa perna?
Rupave olhou para o arranhão que praticamente já cicatrizara e respondeu: - Muito bem, muito bem mesmo. Praticamente não sinto nada, nenhuma dor ou incômodo.
Muito bom. De qualquer maneira, você saiu-se de maneira espetacular! Que luta aquela!
Rupave olhou para o céu, para a Lua prateada que os iluminava e então fechou os olhos por um instante, lembrando-se de sua luta com o Tejo Jagua. Um arrepio correu-lhe a espinha junto a essa lembrança. Abrindo os olhos, voltou a fitar Mapinguari e então perguntou: - E agora, como é esse ser que vou ter que enfrentar?
Mapinguari arregalou um pouco os olhos, franzindo a testa e suspirou: - Ah, o Mboi Tu’i. O demônio dos rios, das cachoeiras e dos cursos d’água. É uma criatura terrível, meu caro Rupave. Também é um monstro enorme, com o corpo de uma serpente e a cabeça de uma pássaro, como de uma grande águia. Seu corpo é puro músculo e ela se move tanto n’água como em terra com agilidade e desenvoltura. Possui um bico de aço, capaz de cortar as maiores árvores sem dificuldade. Ser envolvido em seu abraço é mortal, assim como sofrer um golpe do poderoso bico. Temo dizer-lhe, meu caro, mas é um inimigo ainda mais poderoso que o Tejo…
Rupave olhou por longos instantes para o macaco, seus olhos vidrados mas sua mente distante, pensando no perigo a seguir. Por fim, levantou-se, pegou suas armas e disse: - Pois bem, um perigo ainda maior… Que seja! Não há outra maneira, a não ser enfrentá-lo! Gostaria que não fosse assim, Mapinguari, gostaria de não precisar cruzar com essas criaturas. Mas esse é o caminho entre mim e Sypave, então não há escolha. Levante-se, meu amigo, vamos em frente. Já descansamos bastante e esperar mais só vai servir para aumentar nosso receio. Vamos, vamos lá…
Frente a essas palavras, Mapinguari levantou-se e pôs-se à frente, guiando novamente Rupave para o perigo que o aguardava. Ele sabia que assim era e assim tinha quer ser…
Madrugada adentro os companheiros correram e logo no início da manhã a paisagem começou a mudar. Em lugar do estreito vale e das cavernas que ficavam cada vez mais para trás começaram a surgir cursos d’água que se somavam, cada vez mais, formando riachos, braços de rios e desembocando, por fim, em um grande rio, ladeado por mata que se adensava para os lados, formando um paredão verde. O curso do rio serpenteava, com algumas quedas, mas ía se alargando à medida que se alongava. Rupave e Mapinguari chegaram a um trecho especialmente largo de rio, com grandes margens da cada lado. Ali, Mapinguari parou, fazendo com que Rupave fizesse o mesmo.
Chegamos, meu amigo, falou o macaco. É aqui.
Você tem certeza?, foi a resposta de Rupave. - Como sabe que aqui é o local onde vamos encontrar Mboi Tu’i?
E Mapinguari, apontando para frente, um pouco mais distante, respondeu: - Por aquilo ali.
No chão, disposto lado a lado, descansavam um escudo e uma pequena lança. Rupave reparou os objetos e dirigiu-se para lá. Pegou o escudo e o avaliou: era leve mas parecia muito, muito forte, feito de metal e aparentemente impenetrável. A lanceta, também de metal, possuía um corpo prateado e uma lâmina dourada. Rupave a experimentou e achou seu peso excelente: boa de segurar e fácil de manusear. Parecia também possuir excelente resistência, assim como o escudo. Rupave então colocou no chão seu arco, sua aljava de flechas, mas continuou com o punhal. Empunhou então o escudo e a lança e os avaliou, e gostou de resultado - sentia-se bem com aquelas armas, que pareciam feitas para ele à perfeição. Manuseava-as como se tivesse grande experiência em seu uso.
Nesse momento, um grande estrondo se fez ouvir. Mapinguari deu alguns passos para trás, recuando, e gritou para Rupave: - Boa sorte, meu amigo, pois agora depende somente de você! Que Iamandu o proteja! E dizendo isso, virou-se rapidamente e correu para longe, subindo em uma árvore alta e distante.
Rupave sabia o que viria e se preparou-se. Porém, mesmo assim, não pode deixar de se surpreender. Do centro do grande rio, o estrondo aumentou, enquanto pequenas ondas surgiram na superfície, à medida que algo emergia das profundezas. Então, repentinamente, como que brotando no seio das águas e respondendo ao desafio de Rupave, surgiu uma terrível cabeça de ave, como de uma gigantesca águia, de enormes olhos amarelos ouro e um poderoso bico dourado. Completando o espetáculo, um poderoso corpo serpentíneo passeava sobre as águas, nadando sem dificuldade.
Todo aquele ser era músculos e poder.
Mboi Tu’i olhou para Rupave, um olhar assustador, e guinchou alto, um guincho de gelar o sangue. Rupave tremeu, mas não esmoreceu. Firme, devolveu o olhar da fera e esperou pelo ataque. O monstro, veloz, serpenteou sobre as águas na direção do homem.
O combate começava...
Rupave deu alguns passos para trás, ficando a meio caminho entre a margem do rio e as árvores mais atrás. Mboi Tu’i saiu das aǵuas para o chão sem perder velocidade ou agilidade, se locomovendo tão bem em terra quanto na água. Sem perder tempo, partiu para cima de Rupave, atirando o poderoso bico contra o oponente. Rápido, Rupave pulou para o lado, num salto poderoso, fugindo do ataque.
Não teve muito tempo para aprumar-se. Vindo com tremenda força e velocidade, a cauda de Mboi Tu’i era como uma massa contra o corpo de Rupave. Com enorme agilidade, este rolou para baixo, escapando por um triz do ataque.
Levantando-se, Rupave afastou-se o quanto pode, ajeitando o corpo, colocando o escudo à sua frente, como proteção, e empunhando a lanceta com firmeza. Mboi Tu’i virou-se rapidamente e novamente investiu contra Rupave, o bico aberto pronto para um golpe mortífero.
Desta vez, Rupave não tentou escapar. Com tremenda força, rechaçou o ataque avassalador com o escudo, que suportou bem o impacto e por sua vez, atacou com a lanceta, atingindo o corpo de Mboi Tu’i lateralmente, causando-lhe um corte.
A fera guinchou e gritou, e afastou-se de Rupave, surpresa e aturdida.
Sua presa não parecia tão indefesa quanto pensara.
No entanto, rapidamente Mboi Tu’i se recuperou. Se seu oponente estava a altura do combate, ele deveria ser mais cuidadoso. O corte causado pelo ataque de Rupave o incomodava, mas de forma alguma o debilitava. Estudando melhor a situação, Mboi Tu’i mudou de estratégia. Agora começou a cercar Rupave, procurando entendê-lo e esperando o melhor momento para atacá-lo.
Rupave tentava não permitir que Mboi Tu’i o cercasse, principalmente impedindo que este o empurrasse em direção às águas, onde ficaria em flagrante desvantagem. Aflito, Mapinguari observava ao longe, sem poder interferir, em dúvida sobre o resultado do embate. Mboi Tu’i era um adversário mais astuto do que fora Tejo Jagua.
Após esse momento de estudos, Mboi Tu’i resolveu novamente atacar, de maneira mais cuidadosa, porém. Com enorme elasticidade, projetou sua cauda para frente do corpo e, com movimentos calculados, começou a jogá-la de um lado para o outro, procurando por uma brecha na defesa de Rupave. Este, com o escudo, desviava diversos golpes, enquanto tentava contra atacar com sua lanceta.
Mas o combate permanecia indefinido, com nenhum dos oponentes conseguindo vantagem sobre o outro. Um deslize, porém, mudou o panorama da luta.
Ao desviar-se de um ataque, Rupave lançou sua lanceta a frente, em uma tentativa mais ousada de golpear Mboi Tu’i. A ousadia, porém, teve um preço, e Rupave desequilibrou-se, perdendo por um instante a proteção de seu escudo. Mboi Tu’i logo aproveitou-se da brecha, que estava esperando. Com um movimento extremamente rápido, envolveu o corpo de Rupave, enrolando-o, os poderosos músculos de serpente apertando e apertando cada vez mais.
Com o bico, então, tentou dar um fim à luta, atacando a cabeça de seu oponente. No entanto, Rupave manteve livre o braço do escudo e, mesmo em desvantagem, conseguia se proteger dos golpes mortais de Mboi Tu’i.
Mapinguari, em sua árvore, desesperou-se, achando que aquele seria o fim de Rupave e da promessa da humanidade.
Entrementes, Mboi Tu’i seguia atacando, certo agora da vitória, mas Rupave continuava resistindo. Ele era poderoso e forte, mas o abraço mortal da monstruosa criatura começava a cobrar seu preço.
Rupave sentia a pressão sobre seus músculos, a contrição cada vez maior. Se sua força falhasse - e uma hora ela falharia - ele se tornaria uma presa fácil e tudo estaria acabado.
O mão que ficara presa junto ao corpo ainda segurava a lanceta, mas essa era de pouca utilidade agora. Sem espaço para maiores movimentos, ela não provocaria qualquer dano importante.
Rupave, então, teve uma ideia. Largando de vez a lanceta, procurou, com enorme esforço, afrouxar um pouco o aperto de Mboi Tu’i. Forçando os músculos, alcançou seu intuito, conseguindo um pouco de liberdade de movimentos. Pouco, mas suficiente. Com a mão agora um tanto mais livre, tateou sua roupa e encontrou o que procurava.
Segurando firme o poderoso punhal que enfim alcançara, aproveitou sua única chance e atacou. Cravou o punhal com força no corpo de Mboi Tu’i, que sentiu o golpe profundamente.
A fera, novamente surpreendida, afrouxou de vez seu mortífero aperto, colocando-se indefesa por um instante. Rupave não perdeu a oportunidade. Atacando com fúria, desferiu rápidos, profundos e poderosos golpes com o punhal, perfurando e debilitando Mboi Tu’i, que agora sangrava um sangue também verde, da mesma textura e cor do sangue do Tejo Jegua.
Mboi Tu’i não tinha mais forças nem condições para o combate. Terrivelmente ferido, só procurava afastar-se de Rupave, que o perseguia e desferia um golpe atrás do outro, impiedosamente.
Mboi Tu’i, porém, teve mais sorte que Tejo Jagua, e, ainda que mortalmente ferido, alcançou as águas salvadoras, arrastando-se o mais rapidamente possível para o fundo, esverdeando com seu sangue uma grande porção do rio.
Rupave o seguiu enquanto pode, sem nunca desistir de seus golpes. Mas por fim, teve que deixar seu inimigo escapar para as profundezas escuras do grande rio.
Mas seu intento fora alcançado. Mboi Tu’i não mais representava um perigo e o caminho por suas terras estava livre.
Rupave deixou a tensão se esvair, andou um pouco para longe da margem, sentou-se e suspirou aliviado. Não foi fácil, mas conseguiu vencer mais um desafio. Olhou para os céus, como se procurando uma resposta de Iamandu. Conseguira derrotar duas terríveis criaturas, com tremenda dificuldade, e muitos desafios ainda viriam. Por que deveria ele passar por esses testes, tão aterrorizantes? Como que em resposta as suas dúvidas, Mapinguari apareceu e sentou-se ao seu lado. Colocando o braço no ombro de Rupave, falou assim: - Não pensei que você escaparia dessa, meu caro! Que teste terrível! Mas Iamandu deve ter grandes planos para você e sua descendência, caso contrário não permitiria tamanhos riscos! E, após uma pausa, completou: - Acredito que você e Sypave herdarão este mundo, mas antes, terão que provar seu valor..
Mapinguari então levantou-se e gentilmente ajudou Rupave a se por de pé. - Gostaria de descansar um pouco, meu amigo?, perguntou o macaco. Essa deve ter sido uma luta extenuante.
Um pouco de descanso cairia bem, sim. Mas apenas para recuperar o fôlego. Sypave ainda não foi salva…
É verdade, respondeu Mapinguari. Mas mesmo um grande herói como você precisa descansar. Vamos até ali, mais próximo das árvores, onde a relva verde é macia e confortável. Nos deitamos um pouco e logo seguimos em frente.
Vamos, respondeu Rupave. Vamos acalmar nossos espíritos.
Assim, eles deitaram-se um pouco e descansaram, mas Rupave logo recuperou sua força e seu ânimo. Pôs-se então novamente de pé e chamou pelo macaco: - Vamos, Mapinguari, que temos mais perigos para enfrentar. Mostre-me o caminho.
E Mapinguari, novamente, liderou Rupave, na direção de seu próximo desafio.
Anhangá
Mapinguari e Rupave seguiam pelo caminho agora livre da ameaça de Mboi Tu’i. Como antes, Mapinguari ía à frente, como guia, com Rupave logo atrás.
Em determinado momento, Rupave repetiu a pergunta que já fizera a seu companheiro: - E agora, que tipo de criatura enfrentarei?
Mapinguari olhou para trás, sem se desviar um instante do caminho, e sorriu: - Isso não cabe a mim dizer-lhe. Dentro em breve, você terá outro guia para ajudá-lo.
Rupave franziu a testa, em dúvida, e replicou: - Como é, outro guia? Você não vai continuar me mostrando o caminho?
Na verdade, não, meu amigo. Minha parte já foi feita. Outros guias o ajudarão. Na verdade, já estamos chegando no ponto onde sua jornada seguirá sem mim. Veja, lá na frente! Lá está ele… Venha, rápido, vou lhe mostrar seu novo companheiro de viagem…
Num local onde os rios começavam a escassear e a planície surgia tomando toda a vista - um campo aberto com gramíneas de todos os tipos e pequenas árvores salpicadas de folhas verde - encontrava-se, a espera, o novo arauto de Iamandu. Mapinguari e Rupave já se aproximavam dele e ele virou-se para recebê-los. Rupave ficou surpreso com a elegância e beleza daquele ser. Era um cervo enorme, de quase dois metros de altura, com chifres que se abriam em harmonia e que pareciam madeira de lei. Seus olhos eram como fogo em brasa, e cintilavam de um amarelo ardente a um vermelho vivo, hipnotizadores. Ele era todo marrom, um marrom único e vibrante, cor de madeira jovem. O único detalhe em toda aquela perfeição marrom era uma cruz branca, bonita e bem delineada, que adornava sua testa. Mapinguri seguiu direto e cumprimentou aquele ser espetacular. Este retribuiu o cumprimento, denotando toda a alegância de seu porte, e então virou-se para Rupave, dizendo com uma voz sonora, firme e profunda: - Bem vindo, primeiro homem. Fico feliz em nos conhecermos. Meu nome é Anhangá, e serei seu novo companheiro no caminho que Iamandu traçou para você.
Rupave curvou-se um pouco, num gesto espontâneo que lhe pareceu adequado, e retribuiu o cumprimento: - O prazer de conhecê-lo é todo meu, disse. Não sabia que teria outro guia…
Ah, continuou Anhangá, falando com uma voz tranquila e profunda. Iamandu faz as coisas à sua maneira, meu caro. Mas nunca à toa, nunca sem razão. Mapinguari cumpriu sua parte, cabe a mim cumprir a minha. E no final, nós todos ganharemos com nosso convívio.
E, assim dizendo, olhou para Mapinguari e falou: - Muito bem, meu amigo, é hora de nos despedirmos. O tempo urge e não é sábio esperarmos…
Mapinguari então cumprimentou novamente Anhangá, numa despedida, e então virou-se para Rupave: - Meu amigo, disse, com voz amigável, nesse pouco tempo juntos aprendi a respeitá-lo muito! Que todos os homens sejam como você!
E então aproximou-se e abraçou com força Rupave. E completou dizendo baixo, num tom de voz íntimo: - Lembre-se. Aqui você tem um amigo! Conte comigo para o que precisar. É só me chamar, e eu o encontrarei. Boa sorte, meu amigo, e que Iamandu esteja sempre com você e o proteja!
Rupave retribuiu o abraço e falou: - Muito obrigado por tudo. E, se um dia você precisar, saiba que em mim você também tem um amigo.
Os dois então se entreolharam por mais um instante, e, sem dizer mais nada, Mapinguari virou-se e partiu, rápido, saltando, pulando e correndo pelos caminhos que tão bem conhecia.
Anhangá e Rupave demoraram-se um pouco observando Mapinguari que ía diminuindo no horizonte e então o cervo aproximou-se do homem e, sem meias palavras, falou: - Vamos, meu caro Rupave, que já é hora. Seu próximo desafio o espera.
Moñai
Venha, continuou o cervo, me acompanhe. Há um bom terreno de campo aberto que temos que cumprir antes de encontrarmos Moñai. Você precisa descansar antes?
Encontrar Moñai?, respondeu Rupave. É a próxima criatura que terei que enfrentar? O que você pode me dizer sobre ele? E, lembrando-se da última pergunta de Anhangá, completou: - E não, não preciso descansar, estou bem, realmente…
Anhangá virou-se para observar Rupave, que seguia célere atrás dele carregando suas armas, sem qualquer sinal de cansaço, e falou, em resposta a dúvida do homem: - Ah, Moñai. Muito bem. Moñai é o espíritos dos campos abertos, das grandes planícies. Já estamos em suas terras e sem mim você facilmente se perderia nesses campos sem fim ou direção. Moñai é uma serpente monstruosa com cara de demônio e grandes e terríveis antenas que lhe dão percepção de tudo o que acontece ao seu redor. Ela desliza pelos campos, assombrando e aterrorizando toda criatura que encontra pelo caminho. É um ser terrível e será outro grande desafio para você.
Rupave pensou por um instante e então falou: - Fico imaginando de onde vieram essas criaturas, que as criou, por que existem. De onde surgem seres tão malignos.
Sem diminuir seu passo, Anhangá respondeu com voz grave: - Ah, essas criaturas são crias de espíritos terríveis e perversos, espíritos que desejam a tudo dominar, a tudo tomar, sem saber compartilhar ou dividir. Elas são o desejo corporificado desses espíritos do ódio contra tudo que é livre, belo e puro. São males encarnados, pura e simplesmente. Não amam nada, além de si próprias, e só desejam submeter ou destruir tudo o que não for elas mesmas.
E, refletindo por um instante, Anhangá continuou: - Você, Rupave, já parou para pensar que Iamandu talvez o tenha criado como uma força exatamente contrária a esses demônios? Como alguém capaz, por mérito próprio, de combater e destruir essas criaturas, alguém capaz de fazê-las temer, fugir, esconder-se? Talvez você tenha sido criado como uma força de equilíbrio para este mundo…
-Talvez, respondeu Rupave, pensativo. Mas não sei, completou, não acho que eu seja sábio o suficiente para fazer isto.
Anhangá novamente se permitiu um olhar trás, e um pequeno sorriso satisfeito brotou em seus lábios. Mas ele soube ser discreto o suficiente para que Rupave não o percebesse.
Os dois companheiros correram ainda por muito tempo, até que, próximo a uma árvore grande e frondosa, Anhangá diminui o passo, parando próximo desta árvore. Rupave largou suas armas no chão, colocou-se ao lado de Anhangá e perguntou: - E então, chegamos? É aqui que encontraremos Moñai?
Não aqui, mas estamos próximos. Paramos para você recuperar um pouco o fôlego antes da batalha - não convém enfrentar uma criatura como Moñai senão em plena forma - mas também para você desfrutar das boas venturas de Iamandu.
E, olhando para cima, para um galho da árvore um tanto mais alto, Anhangá forçou Rupave a olhar para o mesmo lugar. Pendurado no galho havia uma espécie de colete com diversos bolsos e entradas. De um dos bolsos se destacava a cabeça de um machado. E colocado dentro do colete, uma lança pendia, perfeitamente equilibrada.
Veja, comentou Anhangá, esses instrumentos são para você. Não fique aí parado, pegue-os!
E Rupave, com extrema agilidade, subiu até o galho onde estavam pendurados aqueles apetrechos, e rapidamente voltou para o chão com suas novas aquisições em mão. Ele sacou o machado do bolso e sentiu prazer em segurá-lo. O cabo era de madeira, dura e suave ao mesmo tempo, e a cabeça, de metal, afiado e rígido. Sentiu o balanço da arma, e era perfeito. Na outra mão, tomou a lança, de cabo da mesma madeira que o machado e afiadíssima ponta do mesmo metal. Também sentiu enorme facilidade em manuseá-lo. Por fim, ficou olhando para o colete, sem saber direito o que fazer.
Anhangá olhou para ele, divertido, e disse: - Vamos lá Rupave, vista-o! Ele foi feito para isso!
Rupave ainda olhou com alguma dúvida para o objeto, mas por fim entendeu o que tinha que fazer. Colocando os braços nas aberturas corretas, percebeu que o colete se ajustava ao seu corpo com perfeição. Um conjunto de cordas permitiu-lhe fixar a roupa ao corpo, sem incomodá-lo. Rupave gostou da sensação de vestir o colete e olhou para Anhangá, buscando algum tipo de confirmação.
Anhangá olhou para ele, e falou, um tanto irônico: - Vamos, Rupave, isso não é só para você vestir e se achar bonito! Coloque suas armas nos lugares certos e você vai perceber que ficará muito mais fácil tanto carregá-las quanto utilizá-las quando necessário…
E então Rupave percebeu a importância daquela veste. Pegando o punhal, colocou-o numa entrada na qual ele se encaixava com perfeição, sem incomodá-lo enquanto se movimentava e pronto para ser sacado e usado quando necessário. Havia um espaço perfeito para a lanceta ao lado de seu dorso, duas pequenas alças nas costas para o escudo, além do bolso para o machado. Havia ainda outras entradas e reentrâncias, para coisas que viriam, imaginou. A lança iria na mão e a aljava de flechas e o arco, em espaços muito bem colocados junto ao colete. Assim vestido, Rupave podia utilizar todas as armas que possuía sem perder nada em agilidade e movimentação. Juntou as mãos, então, e agradeceu a Iamandu pelo excelente presente. Depois, virou-se para Anhangá com um sorriso de satisfação e perguntou: - E aí, como estou?
Anhangá sorriu levemente e respondeu: - Um tanto pavoneado e tolo, como um verdadeiro guerreiro....
Ora, não seja tão sério, resmungou Rupave. Ficou bem em mim não ficou?
E Anhangá, alargando o sorriso, completou: - Ficou, realmente. Na verdade, ficou perfeito e vai ajudar-lhe muito daqui em diante. Nenhum presente de Iamandu é fora de propósito ou de hora. Mas agora devemos descansar um pouco. Muito em breve chegará a hora de você testar suas novas armas em combate.
Como se chamado de volta à realidade, Rupave colocou a lança no chão e sentou-se. Aquele era um belo presente, mas um presente de guerra, e ele sabia que sua guerra ainda estava longe do fim. Olhou para Anhangá então e falou: - Sim, devemos descansar. Mas não devemos perder tempo. Quanto mais rápido passarmos pelas terras de Moñai, mais próximos de Sypave estaremos.
E ele e Anhangá deitaram-se então, para um breve descanso cheio de apreensão pelo futuro.
Sonhos estranhos cheios de presságios conflitantes assombraram Rupave em seu descanso. Havia prisão, mas havia libertação. Havia aflição, mas também tranquilidade. Rupave acordou repentinamente com a mente ainda confusa por causa dos sonhos. Anhangá já estava de pé, apenas esperando seu companheiros despertar.
Adormeci por muito tempo, perguntou Rupave.
Na verdade não, respondeu Anhangá. O Sol pouco se mexeu no céu, de forma que não descansamos por muito tempo. Sente-se bem, você parece um pouco confuso…
Ah, estou bem, realmente. Mas tive sonhos estranhos e acordei de repente, ainda sob influência deles.
Sonhos, sorriu Anhangá. Nunca sabemos direito o que representam, não é mesmo? Como estamos nos sentindo, coisas que virão? Na verdade, poucos de nós sabem interpretá-los.
Bem, sonho ou pesadelo, não importa. Estou descansado e me sentindo bem. Vamos em frente, meu amigo. Se temos que encarar Moñai, que seja logo.
Muito bem, eu ía sugerir o mesmo. Mas prepara-se! Sinto que Moñai não está longe e ele será um adversário terrível!
Terrível ou não, tenho que enfrentá-lo e derrotá-lo, ou perecer tentando. Sei que não há outro jeito.
Muito bem, vamos então.
E Rupave, já de pé e levando todas as suas armas, partiu seguindo Anhangá, que desbravava o caminho em frente. E como Anhangá dissera, não demoraram muito até encontrar o senhor daquelas plagas. Ainda um tanto distante, um som de um grande corpo se arrastado se fez ouvir e foi ficando cada vez mais alto, cada vez mais alto. Anhangá olhou para Rupave, preocupado, e disse: - Agora é com você, meu caro Rupave. Esse é um desafio que cabe somente a você. E dizendo isso, afastou-se, deixando o homem sozinho no meio da grande planície descampada. Não demorou muito, surgiu Moñai: o gigantesco corpo de serpente e uma cabeça demoníaca, uma boca que babava furiosa, cheia de dentes grandes e afiados, olhos injetados de ira e duas odiosas antenas que pareciam tatear o ar, sentindo tudo ao seu redor. Ao ver Rupave, o monstro urrou um berro aterrador, numa voz imaterial, terrível, e levantou metade do corpo a grande altura, em desafio. Rupave segurou firme sua nova lança e puxou seu escudo para frente.
O combate iria começar.
Moñai não se demorou em atacar. Projetando com força e fúria seu corpo, lançou a bocarra na direção de Rupave, sedento de sangue. Frente a tão rápido e furioso ataque, Rupave só teve tempo de colocar seu escudo à frente. O baque foi tão forte que lançou Rupave longe, de costas ao chão, enquanto Moñai saía para o lado, um tanto atordoado. O escudo resistira e ainda foi capaz de devolver parte do impacto do ataque contra Moñai. Nem a fera, nem Rupave demoraram a se recuperar. O homem, rapidamente de pé, novamente com o escudo à frente, correu na direção da besta com a lança em punho, e Moñai empertigou seu corpo para o próximo ataque. Mas desta vez, Rupave foi mais rápido e, com um poderoso salto, atacou com a lança, procurando a testa de Moñai. Este, porém, esquivou-se com rapidez e balançou seu corpo contra seu oponente que, com agilidade inigualável, conseguiu escapar do contra-ataque.
Novamente, homem e fera encontravam-se frente a frente e Rupave pode perceber que as antenas de Moñai movimentavam-se com insuspeitada harmonia. Ele notou então o quanto o monstro parecia depender delas, e não deixou de lado essa impressão. Não teve muito tempo para pensar nisso, pois Moñai desferiu um novo ataque, novamente com a bocarra procurando sua vítima. Rupave, atento, desvencilhou-se do ataque, mas Moñai foi mais rápido. Atirando com precisão sua cauda, atingiu Rupave em cheio, jogando-o longe e fazendo-o perder seu arco e sua aljava de flechas. O monstro vibrou de excitação, enquanto Rupave, ainda atordoado, levanta-se, o corpo dolorido devido ao poderoso choque.
Moñai, porém, não estava disposto a dar descanso ou chance a seu oponente. Mais uma vez preparou-se e atacou, procurando Rupave com a poderosa mandíbula. Rupave, ainda sentindo o ataque anterior, não tentou enfrentar Moñai diretamente. Virando-se, correu rápido para atrás de uma grande árvore, bem a tempo de fugir dos dentes do monstro. Moñai sorriu zombeteiramente e novamente atacou. Seu oponente parecia perdido e cansado e ele ansiava por derrota e morte. Rupave saltou e rolou para o mais longe possível, novamente escapando de Moñai. O monstro virou-se como um raio para ele, disposto a acabar com o combate. Já se cansara da brincadeira e acabaria rápido com aquele ser insignificante. Rupave se pôs de pé, consciente que de, se continuasse assim, mais cedo ou mais tarde Moñai conseguiria pegá-lo e matá-lo. Ele não podia deixar isso acontecer. Muito estava em jogo para ele cogitar algo que não fosse a vitória. Reunindo toda a sua coragem, esperou pelo novo ataque de Moñai, que não tardou. Novamente rápido como um raio, a besta atacou. Rupave aguardou até o momento certo e então, com um novo salto poderoso, sacou, em pleno ar, seu machado e o atirou contra Moñai.
Sua precisão foi perfeita. Rodopiando, o machado acertou em cheio as antenas de Moñai que, uma após a outra, caíram ao chão, inertes. A fera urrou, furiosa, desesperada, confusa. Agitou seu corpo, sem direção, de um lado para o outro, em uma fúria inconsciente e sem propósito.
Rupave pode percebem então o quanto a sua intuição estivera certa. Sem suas antenas, Moñai ficava indefeso, sem conseguir perceber direito o que acontecia ao redor. Sem as antenas, seus olhos não funcionavam bem, percebendo apenas borrões, seu olfato falhava, sem distinguir os odores e até seu tato piorava, sem perceber por onde passava.
Cautelosamente, Rupave armou-se de lança e escudo e, em silêncio, seguiu por trás da besta, que debatia-se febrilmente. Sem parecer perceber a presença de Rupave, Moñai não procurou se defender, apenas atacando a esmo, sem direção, furiosa e confusa.
Segurando com força sua lança, Rupave então atacou. A ponta da arma penetrou profundamente no corpo de Moñai, que gritou furiosamente e tentou contra-atacar na direção da dor. Mas foi um ataque em vão. Rupave já mudara de posição e novamente atacou. Um novo ferimento profundo foi infligido em Moñai que mais uma vez gritou e procurou se defender, novamente em vão. E assim, por diversas vezes, Rupave atacou e feriu Moñai, que reagiu cada vez menos, cada golpe tirando sua força.
Por fim, um último golpe de Rupave encontrou um Moñai praticamente prostrado, incapaz de se defender. O golpe preciso, fatal, foi desferido contra a cabeça da fera, penetrando profundamente na testa do monstro, que caiu inerte, os olhos apagados, sem vida, o corpanzil imóvel.
A luta acabara, e Rupave pode sentar-se e respirar, aliviado.
Rupave ainda estava na nessa mesma posição quando percebeu a presença de Anhangá ao seu lado. O cervo olhou para ele, um olhar admirado, e por fim falou: - Não quis incomodá-lo. Assisti toda a luta e imagino o quanto você deve estar exausto. Foi um combate realmente terrível…
Você entende então. Lutar contra essas criaturas não apenas nos esgota fisicamente, mas parece que perdemos um pouco da gente também nessas batalhas..
Eu entendo, sim. Melhor do que você imagina, acredito. Esse esgotamento é, em sua maior parte, emocional e espiritual. E recuperar-se disso é que não é nada fácil.
Frente a essas palavras, Rupave suspirou e por fim levantou-se. Recolheu em silêncio suas armas, ajeitou-as todas no colete e preparou-se para a partida. Mas antes, falou, como em resposta a afirmação de Anhangá: - É, você realmente entende muito bem o que acontece. É na alma que uma luta assim deixa suas marcas mais profundas.
E completou: - Estou pronto, meu amigo, vamos em frente.
E Anhangá e Rupave partiram, deixando para trás o corpo inerte do terrível Moñai.
Taubymana e Sypave - 2
Sypave abraçava com as mãos seus braços nus, num gesto que servia de aconchego e também para espantar o estranho frio que lhe trazia arrepios. Taubymana, meio escondido em um canto, pensava em como poderia dobrar a vontade de Sypave. Subitamente, saiu das sombras e dirigiu-se para a cativa: - Sente frio, minha querida? Eu posso melhorar isso para você…
E com um gesto, Taubymana fez aparecer uma luz e algum calor brotou na úmida e sombria caverna. Mas Sypave achou fria a luz que surgira, e o aparente calor não aquecia realmente, antes parecia causar calafrios de um espécie diferente. Era uma luz e um calor mortos, oposto do que sentira quando estava com Rupave.
Está melhor agora, minha querida?
Sypave não respondeu, por não achar as palavras certas. Taubymana fez um gesto largo com a mão e resmungou: - Humpf, impossível agradá-la!
Frente a essa reação, Sypave se afastou ainda mais de Taubymana. Ela sentia uma aversão cada vez maior daquele ser bruto e estranho.
Taubymana percebeu e se repreendeu mentalmente por sua indiscrição. Era-lhe difícil, mas ele deveria controlar seu humor mesquinho, pelo menos até conseguir o que desejava. Com um sorriso aberto e falso, virou-se para Sypave e falou com a voz mais doce que conseguiu produzir: - Desculpe, minha querida, esse pobre tolo. É que a traição do terrível Iamandu me faz perder a calma. Entenda, querida, eu apenas quero que se sinta confortável. Eu só penso no seu bem.
Sypave então recuperou a presença de espírito e, com ar sério e decidido, perguntou para Taubymana: - É verdade, você só pensa no meu bem?
Com certeza, querida, respondeu Taubymana, esfregando as mãos de ansiedade, feliz pela brecha que parecia surgir. Só quero que você sinta-se bem e feliz.
Então você faria algo para mim, se eu pedisse?
Basta pedir, e eu o farei!
Então, altiva, Sypave disparou: - Então eu quero que você me devolva para o lugar de onde me tirou, o mais rápido possível!
Taubymana esfregou a mão esquálida na cabeça e abriu a boca numa expressão incrédula. E disse então: - Menos isso, minha querida, menos isso. Não posso arriscar perder você novamente.
Sypave olhou duramente para Taubymana, mas nada respondeu. Virou-se de costas para ele e caminhou na direção da saída da caverna, em busca de uma fuga que não existia.
Taubymana ficou para trás, confuso e furioso, mas tentando se controlar.
Sua tarefa estava sendo muito mais árdua do que esperava.
Jaci Jatarê
Anhangá e Rupave já haviam percorrido um longo trecho até um ponto onde a mata, subitamente, começou a fechar, ficando mais densa e formando uma floresta. Anhangá se locomovia com segurança, mas também com cuidado. “Aqui a mudança é frequente, Rupave, a floresta se transforma rapidamente. Conheço bem o caminho, mas ainda assim temos que ser cautelosos, pois aqui, mesmo eu posso me perder. Mas não tema. O caminho ainda está bem claro para mim.”
Era uma floresta com muitos sons e de um verde muito jovem, belo e vivo. Muitos animais viviam ali, e ali se sentiam protegidos. Apesar de fechada, a floresta transmitia uma sensação de estranha tranquilidade e era agradável caminhar por ela.
Anhangá, por fim, encontrou uma trilha que o agradou e seguiu por ela. Rupave, vindo atrás, perguntou a seu companheiro: - E agora, que tipo de criatura terrível deverei enfrentar?
Anhangá virou-se levemente para trás e olhou para Rupave de uma maneira um tanto misteriosa. Então, respondeu: - Seu próximo desafio atende pelo nome de Jaci Jaterê. Há muito não tenho notícias dele, só rumores. Parece que ela já possuiu diversas formas, mas não se sabe como ele se apresenta hoje. Ele é poderoso, senhor da floresta, e enquanto a floresta for forte, ele também será.
Poderoso como?, tornou Rupave. Que tipo de poder ele tem? E como deverei enfrentá-lo?
Anhangá tornou seu passo mais lento, como se ponderando sua resposta. Enfim, começou: - Na verdade, pouco mais sei sobre Jaci. Ele é um dos seres mais misteriosos que existem. Sabe-se e reconhece-se seu poder, mas nunca ninguém disse exatamente que tipo de poder ele tem. Como eu já lhe disse, sequer sabe-se exatamente que forma ele tem! Mas uma coisa eu posso lhe dizer, com certeza.
O que?
Essa floresta, sem dúvida, era muito mais escura e sombria, antigamente. Muito menos barulhenta e com muito menos vida. E os animais que aqui habitavam, eram mais perigosos, mais estranhos. E a mata era mais rude e as árvores e arbustos tinham mais espinhos. Parece que um novo espírito, jovem e agradável, instalou-se em tudo por aqui!
Rupave já se preparava para falar alguma coisa, quando Anhangá estancou, repentinamente, à sua frente. “Shh”, fez Anhangá, ordenando silêncio. E, numa voz baixa, completou: - Não estamos sozinhos.
Colocando-se ao lado do grande cervo, Rupave olhou para a frente, para uma área onde a trilha se abria em um pequeno descampado, perfeitamente circular, rodeado de grandes e belas árvores. Saindo por entre elas, surgiu um ser pequeno, como um homem diminuto mas belo, de cabelos loiros e olhos azuis, bem proporcionado e com um cajado na mão direita. Anhangá nada disse, mas Rupave segurou firme sua lança e colocou o escudo à frente, em posição de defesa. O pequeno ser, sem demonstrar temor ou hesitação, caminhou em direção a dupla e parou alguns passos distante dos dois. Colocou a base de seu cajado no chão, apoiando-se nele, e, olhando fixamente os intrusos, perguntou: - Você eu conheço, disse, fazendo com a cabeça um sinal na direção de Anhangá. Mas você, não, continuou, virando-se para Rupave. E ainda não sei se gosto de você, com todas essas armas e esse jeito agressivo. O que você quer em minhas terras?
Rupave olhou para Anhangá, que também fazia uma expressão de surpresa, e voltou novamente seu olhar para o ser que calmamente se apoiava em seu cajado.
E então, não vai responder? Não sabe falar?, perguntou novamente o pequenino
Rupave recobrou-se um pouco e enfim falou: - Essas terras são suas? Então, você é Jaci Jaterê?
Um sorriso maroto brotou no rosto do outro, que assim falou: - E quem gostaria de saber?
Meu nome é Rupave, e passo por suas terras, na companhia de meu guia, Anhangá, pois esse é o caminho que nos levará até Sypave, que foi tirada a força de nós.
E quem é Sypave?
A primeira mulher, respondeu Anhangá, criada pelo desejo do próprio Iamandu.
Com uma expressão pensativa, o pequenino levantou seu bastão, que pareceu brilhar. Olhando com olhos argutos para Rupave, respondeu de maneira direta: - Sim, você está certo. Eu sou Jaci Jaterê e essas são as minhas terras.
Então aquele era Jaci Jaterê? O inimigo que iria enfrentar? Um monstro? Mas Rupave não sentiu ameaça em seu coração. Aquele ser não parecia perigoso ou mau, terrível ou cruel. Sentindo a tensão baixar, ele relaxou e baixou seu escudo, colocando a lança em posição oblíqua ao corpo, em uma posição neutra. Jaci Jaterê pareceu gostar daquela atitude e fez o mesmo movimento com seu cajado, que voltara a se tornar opaco. E então, perguntou, mais para Anhangá que para Rupave: - Fala-me mais dessa Sypave e de toda essa história…
E Anhangá - que como arauto de Iamandu tenha ciência de tudo o que acontecera - contou sobre Rupave e Sypave, e os desígnios de Iamandu, e de como Sypave fora levada por Taubymana. Jaci Jaterê a tudo ouvia com interesse, com uma expressão cada vez mais séria no rosto jovial. Ele perguntou sobre como haviam chegado até suas terras e Anhangá respondeu com a verdade, sem nada omitir. Jaci ficou surpreso com o heroísmo e a coragem de Rupave, e por fim perguntou: - E você espera me desafiar também? Quer me enfrentar para poder passar por minhas terras?
Rupave, não sentindo ódio ou desafio nas palavras de Jaci Jaterê, assim respondeu: - Eu devo passar por suas terras, sim, pois é meu dever salvar Sypave, ou perecer tentando. Mas gostaria muito de seguir com sua permissão e preferiria imensamente não enfrentá-lo. E quanto a desafiá-lo, não guardo nenhum desejo desse tipo em meu coração.
E assim falando, recolou seu escudo atrás das costas e largou no chão sua lança.
Jaci Jaterê sorriu, um sorriso aberto e alegre, e assim disse: - Que bom que assim seja! Veja bem, não vejo porque lutar contra você! Você não veio maltratar meus animais ou prejudicar minha floresta. Seu companheiro é prova disso. Conheço Anhangá, continuou, virando-se para o cervo, e sei que ele não se associaria com um ser mau ou violento. Estou aqui para proteger essas terras, que amo, e não lhe desejo mal algum.
E então Anhangá compreendeu. Jaci Jaterê já fora um espírito sombrio, mas passara a se preocupar com suas terras - seus animais, suas plantas, suas árvores - cada vez mais, cuidando e preservando, curando e salvando. Esse cuidado foi sedimentado como um amor profundo, e esse amor foi transformando um espírito bruto e sombrio em um ser prestativo e interessado, cada vez menos egoísta, cada vez mais magnânimo. Por isso a floresta mais alegre e mais verde, os animais mais belos e amistosos, o clima mais saudável. Eram reflexos de um espírito que aprendera amar.
E se até espíritos outrora sombrios podiam aprender a fazê-lo, quem mais não poderia?
Jaci Jaterê foi então ao encontro de Rupave. Seu bastão brilhou em sua mão - um brilho com matizes de verde e marrom - e ele encostou o bastão na altura do peito do homem. Rupave não impediu Jaci Jaterê e, assim que o bastão tocou-lhe o corpo, ele sentiu como se uma consciência profunda tomasse sua mente.
Rupave fechou seus olhos e pode sentir a floresta respirando ao seu redor. Ele sentiu o vento nas folhas e as gramíneas crescendo lentamente. A força das árvores e as raízes em busca de umidade. Os animais que corriam e respiravam, os pássaros cantando, o coaxar dos sapos. E tudo isso ao mesmo tempo e assim mesmo de um jeito singular - cada experiência uma vivência única e completa.
E pode então sentir Jaci Jaterê. Ele e a floresta eram como um, haviam se tornado um. A beleza de um era a alegria do outro. A força deste, o ânimo daquele.
Repentinamente, Rupave voltou a ser ele, tomando consciência de si mesmo novamente.
Jaci Jaterê tornara seu bastão para si, e a sensação passou.
Rupave abriu os olhos, marejados, e maravilhado, curvou-se para Jaci Jaterê e disse, reverente, apenas: - Obrigado.
Jaci Jaterê sorriu e fez com que Rupave se levantasse. Olhou da maneira cúmplice para Anhangá e então falou: - Você me viu, meu caro, mas eu também o vi. E o que vi foi bom. Por isso, eu lhe agradeço.
Dando alguns passos para trás, disse, por fim: - Vocês são bem vindos em minhas terras, e por elas terão passagem livre. Nada os impedirá. Boa sorte a vocês - especialmente para você, Rupave, completou, apontando o bastão para o homem. Seus próximos desafios não serão tão agradáveis. Mas torço por vocês! Boa sorte!
E, assim falando, desapareceu entre as árvores, deixando Rupave e Anhangá no centro do pequeno descampado em forma de círculo.
Fora uma experiência e tanto e Rupave ainda precisou de alguns instantes para se situar. Por fim, pegou a lança do chão, olhou para Anhangá e perguntou: - Vamos?
O cervo fez um sinal e seguiu em frente, com Rupave ao seu lado. Meio que para si mesmo, ele começou a falar: - O amor por sua terra - e tudo o que há nela - o transformou…
Anhangá fez um sinal afirmativo e respondeu: - Também percebi isso. Uma força poderosa, o amor.
Rupave ficou pensativo por um instante, mas enfim falou: - Vim para esse lugar esperando enfrentar um monstro. Ele já foi monstruoso no passado?
Ele já foi um espírito terrível e sombrio, e você certamente o tomaria por um monstro. Mas devo dizer que até a mim surpreendeu tamanha mudança. Nunca imaginaria sua atual aparência, e seus modos são os de alguém altivo, maduro e muito responsável. Surpreendente, realmente.
Mas ele continua sendo um demônio?, tornou a perguntar Rupave.
Suas ações são demoníacas?
Rupave coçou a cabeça e disse: - Certamente não…
Então, como classificá-lo dessa maneira? Um espírito protetor e atencioso não pode de maneira nenhuma ser um demônio. Acho que aqui temos uma bela lição.
Certamente, tornou Rupave.
Os dois seguiram em silêncio por um longo trecho, ponderando sobre seu encontro com Jaci Jaterê. Por fim, Rupave quebrou esse silêncio e perguntou: - E agora, Anhangá. Qual surpresa nos reserva nossa próxima criatura?
O cervo olhou para Rupave e disse, meio sorrindo: - Bem, essa é uma conversa para daqui a pouco. Veja, continuou, mudando de assunto, já vai chegando a noite. Em breve aparecerá a Lua. E essa noite será noite de Lua cheia.
Rupave estranhou a resposta, mas não insistiu. Continuou seguindo Anhangá, que partiu veloz à sua frente. Os caminhos ficavam cada vez mais abertos à medida que a tarde cedia e a noite avançava. Até que por fim um assobio agudo e longo, bonito de se ouvir, fez o cervo diminuir o passo e parar. Rupave parou a seu lado, tentando imaginar em que local tinham chegado. Anhangá olhou para ele e disse: - Agora você poderá ter a resposta a sua pergunta. Você terá um novo companheiro e caberá a ele ajudá-lo daqui em diante, como eu e Mapinguari fizemos antes.
Tão logo Anhangá se calou, por entre as árvores no crepúsculo surgiu um grande e belo pássaro, com um voar poderoso. O pássaro entoou uma canção de encanto, única e envolvente, e tanto Rupave quanto Anhangá fecharam seus olhos ao ouvir aquela música, como se nada mais houvesse no mundo. O pássaro pousou então, na frente dos dois companheiros, terminando sua canção enquanto pousava, e Rupave, abrindo seus olhos, pode ver que ele não era um pássaro comum. Era enorme, como ele já percebera, mas havia algo mais. Seu corpo não era de carne e músculos comuns, assim como suas asas e bico também eram especiais. Na verdade, todo ele era de madeira - mas uma madeira viva, que pulsava a cada respiração e se movimentava com enorme graça e beleza. Ele acenou a cabeça na direção de Anhangá, como em reconhecimento, e então se virou para Rupave, falando numa voz de timbre e altura tão perfeitos como Rupave só ouvira do próprio Iamandu: - Olá Rupave. Cabe a mim agora a honra de guiá-lo. Meu nome é Yorixiamori.
Yorixiamori
Yorixiamori olhou para o céu e disse: - Vejam, a Lua já surge. Devemos seguir, Rupave, pois seu próximo oponente só aparecerá quando a Lua cheia dominar o céu. É quando ele está mais forte. E nós não devemos deixar esse momento passar.
Rupave voltou-se para Anhangá e o cervo deu dois passos em sua direção. Então Rupave instintivamente o abraçou e Anhangá retribuiu encostando o pescoço no peito de Rupave.
Muito obrigado, meu amigo, disse Rupave. Sem você eu sequer saberia por onde começar.
Não precisa agradecer. Era meu dever guiá-lo. Mas devo dizer que foi um privilégio acompanhá-lo. Fico feliz por você me considerar seu amigo. E assim também o considero. Agora, devo ir. Yorixiamori vai guiá-lo daqui em diante, e você não poderia ter melhor guia. Adeus e boa sorte! E que Iamandu o acompanhe e proteja!
Anhangá fez uma reverência para Yorixiamori e olhou para Rupave, em despedida. Virou-se, sem nada mais dizer, e seguiu com rapidez seu caminho.
Yorixiamori não queria perder tempo e, virando-se para Rupave, falou: - Vamos, temos que ir. A distância é longa e não devemos nos demorar.
Rupave rapidamente se aprontou e respondeu: - Vamos então. Mostre-me o caminho…
O pássaro de madeira abriu suas asas e Rupave se surpreendeu com sua majestade e tamanho. Com as asas abertas, ele era uma criatura enorme e inspirava respeito. Ele então levantou voo e disse para Rupave: - Não se preocupe, seguirei em uma velocidade que você poderá acompanhar. Vamos lá.
E voando bem próximo ao chão, Yorixiamori seguia pouco a frente de Rupave, desbravando novos caminhos para o homem.
Os dois já haviam avançado bastante quando Rupave perguntou: - O que você pode me dizer sobre o ser que deverei enfrentar?
Yorixiamori, concentrado no caminho, respondeu: - O nome do ser é Kurupi, e direi a você o que sei sobre ele. Kurupi é pequeno, mas robusto e muito forte. Seus olhos são negros como a noite mais escura, enormes e sempre abertos, pois ele não tem pálpebras. Seus dentes são pontiagudos e sua mordida dilacera. Ele é extremamente ágil, e compensa seu tamanho com essa agilidade e grande velocidade. E ele aparecerá quando a Lua cheia estiver plena no céu noturno pois é nesse momento que ele está mais forte. Ele é um espírito noturno, mais para um espírito das trevas que da noite. Não será um adversário fácil, não se engane.
Não deixarei isso acontecer. Já enfrentei terríveis criaturas para chegar até aqui, e não espero menos do próximo desafio. Para falar a verdade, o que me surpreendeu foi conhecer Jaci Jatere. Foi uma experiência completamente diferente do que eu esperava.
Entendo plenamente. E isso mostra como é dado a cada um de nós, não importa quem seja, a escolha de nossos cami
Rupave ponderou sobre as palavras de Yorixiamori, mas nada respondeu. A Lua seguia a frente do caminho, cada vez mais alta. “Em breve, pensou Rupave, mais um desafio para mim, menos um obstáculo até Sypave”. E torceu para que assim fosse.
Rupave seguiu Yorixiamori por bastante tempo em silêncio. Nem ele nem o pássaro falaram nada, limitando-se a cruzar os espaços abertos iluminados pela Lua no céu. Em determinado momento, porém, Yorixiamori, sem esforço aparente, avançou com grande velocidade, deixando Rupave para trás mas nunca sem sumir da visão do homem. Muito à frente, Rupave pode vê-lo pousar, colocando as enormes asas em repouso e esperando a chegada de seu companheiro. Rupave acelerou e seguiu na direção do enorme pássaro de madeira viva. Quando chegou, percebeu um objeto enrolado ao lado de Yorixiamori, e este lhe falou: - Este presente é para você. Talvez lhe seja útil na batalha que se aproxima.
No chão, próximo aos pés de Yorixiamori, estava uma corda forte e bem trançada. Rupave abaixou-se para pegá-la e percebeu que ela terminava em laço. Rupave a manuseou, pensando em como poderia ser-lhe útil. Yorixiamori olhou-o divertido e falou: - Experimente-a, meu caro! Ainda temos algum tempo e, mesmo com sua habilidade inata, seria bom você testá-la, antes de mais nada.
O que você acha que devo fazer?
Ora, sorriu o pássaro, lace alguma coisa! Por exemplo, aquele galho ao seu lado, disse, apontando com o bico para uma galho distante alguns metros de Rupave.
Rupave olhou curioso para a corda, que dormia suave em suas mãos. Era gostosa ao tato e produzia um calor agradável quando ele a segurava. Incentivado por Yorixiamori, sugurou a corda numa ponta, girando-a com rapidez. Quando achou adequado, soltou-a na direção do galho em que mirava. Vumpf! O laço alcançou o galho e Rupave puxou a corda. Como uma tenaz firme e macia ao mesmo tempo, o laço prontamente fechou-se no galho e Rupave sentiu a tensão da corda em suas mãos. Sorriu e olhou para Yorixiamori. O pássaro acenou em aprovação: - Vejo que Iamandu realmente não poupou dotes a você. Muito bem, Rupave. Mas ainda acho que você deveria treinar mais…
E assim Rupave fez, e em todas as vezes acertou seu alvo. Ficou satisfeito consigo mesmo.
Até que, por fim, Yorixiamori falou: - Veja, a Lua cheia ocupa o centro do céu! Prepara-se, Rupave, pois o momento está próximo.
Rupave enrolou sua corda e a colocou pendurada em um espaço próprio em seu colete. Ela encaixou-se perfeitamente.
Que viesse Kurupi. Ele estava preparado.
Kurupi
Yorixiamori voou para o alto de uma árvore próxima, de onde tinha plena visão da parte descampada onde se encontrava Rupave. Ele conduzia o homem, mas sabia que não podia se intrometer em suas batalhas. No chão, Rupave, escudo e lança nas mãos, esperava tenso e firme pela aparição de seu oponente. E exatamente quando a Lua cheia atingiu seu zênite, de um salto através da escuridão surgiu Kurupi.
Pequeno e encorpado, muito musculoso, Kurupi lançava um olhar de ódio por seus olhos sem pálpebras, a boca escancarada em um riso de puro escárnio, a baba escorrendo pelos terríveis dentes afiados. Sem saber explicar exatamente porquê, Rupave sentiu por Kurupi uma repulsa maior que sentira pelos inimigos que enfrentara anteriormente. Talvez porque Kurupi se assemelhasse a ele como uma paródia, uma forma corrompida de homem. Fosse como fosse, a visão da criatura provocou um arrepio de horror em Rupave e ele sentiu que seria terrível enfrentá-la. Mas Kurupi não permitiu a Rupave uma sensação duradoura. Sem perder tempo, atacou o homem à sua frente, dando um poderoso salto com insuspeitada força em sua direção. Rupave colocou o escudo à frente, e Kurupi modificou seu salto em pleno ar, batendo as musculosas pernas contra a madeira, produzindo enorme impacto. Rupave foi jogado para trás, surpreendido pela força do ataque, enquanto Kurupi, com dois rodopios, caiu em pé a pouca distância, a boca retorcida em um sarcástico sorriso, satisfeito pelo efeito que seu ataque provocara.
Rupave levantou-se rapidamente e se preparou para uma nova investida. Aquele não seria um combate fácil.
Kurupi começou a saltar de um lado para o outro, numa tentativa de achar uma brecha para atacar e também para testar seu oponente. Rupave, por seu lado, acompanhava os movimentos da criatura, às vezes atacando com sua lança, mas Kurupi desviava-se facilmente, escapando dos ataques. O combate seguiu assim por um tempo, até que Kurupi tornou-se mais audacioso. Procurando aproximar-se, forçava Rupave a usar a lança para mantê-lo a distância e com enorme agilidade, em uma dessas aproximações desviou-se muito rapidamente para o lado e segurou com enorme força a lança, batendo com a mão livre na extremidade oposta da arma, dessa maneira arrancando-a da mão de Rupave, jogando-a para longe.
Kurupi deu dois saltos de felicidade com a manobra e Rupave, surpreendendo-se com a força e a rapidez do golpe, desconcentrou-se por um instante. A criatura percebeu e não perdeu tempo. Antes que Rupave pudesse recuperar-se, saltou para frente e, segurando com as duas mãos no escudo, arrancou-o com força do braço de Rupave e atirou-o longe. Instintivamente, Rupave sacou sua lanceta e esperou o próximo ataque. Mas, sem seu escudo, encontrava-se em evidente desvantagem frente a um oponente tão ágil, tão forte e tão veloz.
Então Kurupi novamente atacou. Rupave avançou a lanceta em sua direção, mas Kurupi se desviou e, agarrando com força o braço de Rupave, desferiu uma mordida feroz e potente. Os pequenos dentes afiadíssimos rasgaram o braço de Rupave. A dor foi lancinante. Tomado por uma fúria desconhecida, Rupave soltou o braço da mordida feroz e desferiu um potente golpe com o punho livre. O impacto foi tremendo e Kurupi foi arremessado para longe. A criatura levantou-se, ainda tonta, e olhou assustada para Rupave. Pela primeira vez, a dúvida perpassou seu semblante. Rupave, no entanto, não tinha motivos para comemorar. Seu braço sangrava e o sangue escorria, gotejando no chão. Ele testou seus movimentos e, embora muito dolorido, o braço machucado ainda podia ser utilizado. Mas a ferida incomodava e a dor aumentava de intensidade.
Seguiram-se alguns instantes de impasse, pois Kurupi, embora tivesse conseguido uma vantagem com seu ataque, ainda se lembrava do poderoso golpe de Rupave. Mas logo ele começou novamente a agitar-se e a movimentar-se de um lado para o outro, procurando uma nova brecha para atacar. Sua intenção mortal cada vez mais patente nos terríveis olhos sem pálpebras. Rupave havia largado a lanceta depois da mordida em seu braço e pensava em que arma deveria utilizar, tanto para atacar como para se defender. O arco e as flechas não seriam muito úteis a tão pouca distância e contra um oponente tão ágil. O punhal funcionaria a curta distância, mas ele não acreditava que conseguiria encurtar a distância lutando contra Kurupi. Foi então que lembrou-se da corda. Sacando-a rapidamente, começou a girar seu laço com o braço bom, mas também movimentava a outra ponta com o outro braço, ainda útil. Kurupi, saltando de um lado para o outro, observava com curiosidade, cada vez mais ansioso por um ataque definitivo.
Do alto de sua árvore, Yorixiamori observava tenso o combate, preocupado com o ferimento de Rupave.
Kurupi então acreditou ser o momento decisivo. A corda e o laço não pareciam ser armas assim tão terríveis. Ele passaria fácil por elas e destruiria seu oponente com sua força e suas mandíbulas. Decidido, atacou Rupave, confiante em sua vitória.
O ataque, porém, foi interrompido por uma violenta chibatada. Com a ponta da corda, Rupave lançou um ataque certeiro que atingiu em cheio o rosto de Kurupi. A corda estalou contra a criatura, que soltou um horrendo urro de dor. Kurupi caiu desajeitado e logo, claft, outra chibatada, desta vez em seu flanco. Kurupi rolou para o lado, um sangue negro escorrendo de seu lado atingido, a corda como um chicote certeiro e mortal. E então, klaft, klaft, mais dois golpes, mais dois cortes, um no braço, outro na perna. Kurupi tremeu de dor e de ódio, sem saber direito o que fazer. Agindo por puro instinto e babando de ódio, resolveu novamente atacar. Seu ataque, porém, foi atabalhoado e Rupave se esquivou com facilidade e acertou novamente a criatura, desta vez nas costas. Kurupi envergou o corpo e tentou ficar de pé, mas caiu acocorado. Levantou-se por fim, mas lentamente. As chibatadas haviam minado sua força e seus movimentos já não eram tão ágeis. Rupave soube se aproveitar e, com um movimento perfeito, girou o laço e lançou-o contra Kurupi. Com outro movimento poderoso, Rupave puxou o laço que fechou-se, prendendo os braços de Kurupi junto a seu corpo e lançando-o ao chão. Sem hesitar, Rupave foi envolvendo Kurupi com laçadas que apertavam e minavam cada vez mais seus movimentos. Kurupi lutava ferozmente, babando, tentando morder, esforçando-se para se soltar. Todo esse esforço, porém, foi em vão e somente serviu para cansá-lo ainda mais. Rupave, por seu lado, trabalhou habilmente, e em pouco tempo havia conseguido imobilizar completamente Kurupi. A este só restava choramingar e gemer, completamente dominado e amarrado no chão.
Rupave deu alguns passos para trás e sentou-se. Sem tirar os olhos de Kurupi, avaliou o braço machucado. A dor aumentara e um sangue quente escorria continuamente. Aquilo não era bom. Lembrou-se então de Yorixiamori e olhou para o alto, para a árvore onde o pássaro pousara. Não o encontrou. “Para onde ele poderá ter ido”, pensou. “Certamente, ele não me abandonaria. Mas o que poderia estar fazendo?”
A resposta a essas questões não tardaram. O som das potentes asas batendo avisavam que Yorixiamori voltara. Trazia em seu bico uma coleção de frutos e folhas desconhecidas. Ele pousou ao lado de Rupave, olhou para o braço machucado, depois para Kurupi amarrado no chão e disse: - Primeiro, vamos cuidar daquele ali, depois, desse braço.
Yorixiamori pediu que Rupave, apesar do braço machucado, amarrasse Kurupi em uma árvore de tronco firme. Rupave aproveitou as pontas soltas da corda e, ainda que Kurupi dificultasse ao máximo as coisas, Rupave enfim conseguiu prendê-lo. Yorixiamori então falou: - Não se preocupe, Rupave. Um ou dois dias presos não farão mal a essa criatura e talvez ele aproveite o tempo para pensar, embora eu duvide muito disso. Eu mesmo virei e me certificarei de soltá-lo. De qualquer forma, poderemos acabar de atravessar essas terras sem nos preocuparmos. E, parando um instante para pensar, perguntou repentinamente: - Bem, Rupave, imagino que seja isso que você queira. Ou pretende fazer alguma coisa contra aquele ali? Não seria de todo incorreto, pois ele o atacou para matá-lo.
Kurupi tremeu ao ouvir essas palavras. Percebeu seu significado e temeu pela própria vida. Não havia pensado nessa possibilidade, mas agora que ela aparecera, aferrava-se a sua própria existência de uma maneira quase doentia.
Rupave olhou para a triste criatura presa e respondeu: - Não desejo maior mal a este ser. Na verdade, não desejava mal a nenhum dos seres que enfrentei. E os que tive de machucar - e matar - o fiz por não ter outra saída. Liberte-o sim, meu amigo, e não lhe inflinja nenhum mal. Não cabe a nós puni-lo e minha experiência com Jaci Jaterê me ensinou isso, por certo.
Yorixiamori olhou com admiração para Rupave e disse: - Muito bem, meu caro. Compreendo agora a sabedoria de Iamandu, ao fazê-lo passar por essas provações. Você amadureceu. Deixe comigo, e em breve esta criatura estará livre novamente. Talvez aprenda algo de tudo isso. E, mudando de assunto, completou: - Agora, vamos cuidar de seu braço.
Deixando um confuso e furioso Kurupi para trás, Rupave e Yorixiamori seguiram em frente. O pássaro pediu ao homem que pegasse os frutos e folhas que trouxera e então Yorixiamori indicou um lugar para Rupave esperá-lo, descansando próximo a uma frondosa árvore. Ele levantou vôo mas voltou muito breve, trazendo o escudo de Rupave que Kurupi jogara longe. Colocando o escudo aos pés de Rupave, ele disse: - Vamos procurar por uma boa pedra, uma pedra forte que seja boa para amassar. E, olhando ao redor, Rupave falou: - Olhe, aquela parece ser boa. E levantando-se, apanhou a pedra e a conferiu. Era de bom formato e lisa por baixo. Serviria para amassar o que quer que fosse que Yorixiamori pedisse.
O pássaro fez um sinal de concordância e exclamou: - Uma boa pedra, sem dúvida! Vai servir bem. Agora, pegue alguns daqueles frutos ali, por favor, e coloque-os no escudo. Rupave pegou os frutos - eram pequenos, a cor variando entre marrom e terra, e desmanchavam-se em sementes. Virando o escudo para baixo, Rupave juntou várias daquelas semente e olhou para Yorixiamori, esperando que ele lhe dissesse o que fazer. - Amasse-os, ele falou, e Rupave utilizou a pedra para o trabalho.
Das sementes amassadas começou a escorrer um óleo denso e cheiroso. Yorixiamori pediu a Rupave que amasse ao máximo as sementes e dentro em pouco só havia aquele óleo no fundo do escudo. Então, ele ordenou que Rupave pegasse o óleo e passasse na ferida de seu braço. Rupave fez como Yorixiamori ordenara, e logo começou a sentir um calor reconfortante onde o óleo banhava sua ferida.
É bom!, exclamou Rupave. O que é?
Esse é o fruto de uma árvore chamada Andiroba. O óleo desse fruto é cicatrizante. Vai ajudar seu braço a sarar melhor e mais depressa.
E essas cascas e sementes que sobraram?
Bem, para essas, vamos precisar de água. Espere um pouco que já volto. E Yorixiamori levantou voo, sem explicar muito mais. Mas ele não se demorou. Em seu bico ele trazia uma flor de pétalas firmes, cheia de água dentro. - Vai lhe servir para beber, disse para Rupave. Agora, pegue as cascas e as sementes e amasse-as bem.
Assim fez Rupave, e quando ele terminou restou uma boa quantidade de pó de cheiro ótimo. Yorixiamori disse para Rupave jogar o pó dentro da flor e misturar bem com a água. Assim ele fez e a flor se revelou um ótimo recipiente. - Agora, beba tudo de uma vez, falou o pássaro. Rupave sorveu de uma feita aquele preparado, e sentiu-se bem imediatamente.
O que eu tomei?, perguntou para Yorixiamori.
Você misturou casca de barmitão e semente de camuru. O primeiro vai ajudar a conter o sangramento a impedir que ele inflame. O outro vai lhe dar forças renovadas para continuar. Agora, vamos descansar um pouco, comer alguma coisa e deixar a noite passar. Seu próximo desafio será amanhã, mas de dia, e até lá, com remédio, alimento e descanso, você já estará bem recuperado. Vamos!
E assim fizeram. Rupave, sentindo-se melhor e com as forças renovadas, recolheu diversos frutos que Yorixiamori lhe indicou e fizeram uma ótima refeição. Depois disso descansaram, uma noite de sono tranquila e sem sonhos. A manhã já vinha e com ela um novo desafio.
Ao Ao
Ainda não havia amanhecido quando Rupave acordou. Tivera uma boa noite de sono e sentia-se bem. Esticou o braço para ver a ferida. Ela não doía mais e seu aspecto estava bom. Movimentou o braço. Não sentia nenhuma dificuldade ou limitação. Os remédios realmente haviam ajudado. Yorixiamori estava um tanto distante, mas logo veio quando percebeu que Rupave estava desperto. - Não queria incomodar seu sono, disse, e vejo que você se recuperou bem. Muito bom! Aproveitei e peguei as armas que ficaram para trás em sua luta contra Kurupi.
Rupave então notou que a lança e a lanceta estavam arrumadas no chão, próximas ao colete e às outras armas. Yorixiamori continuou: - Ainda temos frutas e acho que deveríamos aproveitar e comer. Devemos partir rápido, antes do amanhecer se pudermos, pois o caminho é distante e convém nos apressarmos. Rupave concordou e, depois da refeição, colocou seu colete, ajeitou suas armas e falou: - Estou pronto. Podemos ir. Yorixiamori acenou, concordando, e levantou voo. Rupave seguiu o pássaro. Os dois saíram quando o Sol começava a indicar que o dia amanhecia.
Rupave então perguntou: - O que você pode me falar da criatura que irei enfrentar?
Ele é conhecido como Ao Ao, respondeu Yorixiamori com sua voz profunda e sonora. Ele é o espírito que habita os montes e as montanhas. Apresenta-se na forma de um carneiro muito grande, monstruoso. Possui chifres enormes, extremamente duros e poderosos, e presas afiadas que saem dos cantos de sua boca. Sua ferocidade é lendária e será, certamente, um adversário formidável.
Por Iamandu, outra criatura terrível! Não será fácil enfrentá-la!
Por certo que não. O mal transveste-se em terríveis e múltiplas formas. Mas, cedo ou tarde, alguém tem que confrontá-las. Você foi o escolhido de Iamandu, Rupave, e pode ter certeza que a escolha não foi vã.
Rupave pensou nas palavras de Yorixiamori e lhe ocorreu que o pássaro parecia mais místico que os outros arautos que o haviam acompanhado. Bem, se o mal assumia diversas formas, também havia diversas formas do bem se apresentar.
A manhã se firmava com um Sol resplandecente, sem nuvens, e Yorixiamori e Rupave seguiam velozmente pelo caminho. Em determinado ponto, o terreno começou a inclinar, num aclive que tornava-se cada vez mais íngreme à medida em que subiam. Os dois já haviam percorrido um bom trecho em elevação e Rupave começou a divisar montes e montanhas à frente. “Devemos estar próximos”, pensou, mas não perguntou nada a Yorixiamori.
Na verdade, ainda havia uma boa distância a percorrer, mas Rupave sentia-se bem e continuou seguindo na direção das montanhas cada vez mais próximas. Por fim, Yorixiamori acelerou seu voo, pousando um pouco mais à frente. Quando Rupave chegou no mesmo ponto, ele falou: - Viemos rápido e devemos descansar. O confronto está próximo e convém que você esteja com o fôlego plenamente recuperado.
Você viu ou pressentiu a presença de Ao Ao?, perguntou Rupave.
Na verdade não, mas aquilo ali significa que ele está por perto. E, virando a cabeça na direção do galho de uma árvore próxima, fez Rupave notar uma peça que tremulava ao vento. - Isso é para você, meu caro. Pegue-a. E Rupave, aproximando-se da árvore, desamarrou a peça do galho. Era um tecido suave mas espesso, bom de tocar, macio, mas firme e sem marca. Parecia como se uma única peça tivesse sido feita à perfeição, sem malha ou trançado, inteiriça desde sempre. Sua cor era vermelho vivo e Rupave percebeu que era completamente opaco, nenhuma luz parecia atravessá-la.
É belo, mas para que serve isso?, perguntou, olhando para Yorixiamori.
O pássaro sorriu de maneira enigmática e respondeu: - Se é uma dádiva de Iamandu, com certeza possui serventia, e importante. Nada que ele faz ou dá é vazio ou sem sentido. Sua utilidade, porém, caberá a você desvendar.
Rupave olhou para o tecido, pensativo, mas não conseguia imaginar como ele lhe seria útil. Mas ficara atento às palavras de Yorixiamori e guardou a peça em seu colete. Talvez, no momento certo, iria perceber para que servia. Sentou-se então à sombra da mesma árvore na qual o tecido estava amarrado e, seguindo o conselho de Yorixiamori, relaxou e descansou. Era bom aproveitar o momento de calma, pois sabia que em breve a tormenta chegaria.
O tempo de descanso sob a sombra da árvore foi bem aproveitado e Rupave sentia-se plenamente renovado. Levantou-se, enfim, pronto para continuar. Yorixiamori olhou para ele e comentou: - É bom que você esteja descansado. Temos um trecho bem íngreme à frente, subiremos aquela montanha - a apontou com a cabeça para uma montanha alta, cuja subida começava loga a frente.
Será uma subida e tanto, comentou Rupave, assustado com a altura do maciço de pedra.
Bem, não subiremos até o topo, na verdade. Há um platô bem lá no alto, mas ainda assim bem mais baixo que o cume. E é lá que encontraremos Ao Ao. E na verdade, somente atravessando essa montanha conseguiremos passar por suas terras.
Rupave respirou fundo e disse: - Bem, se temos que ir, então é melhor partir logo. Devemos sempre ter em mente o perigo que Sypave corre com Taubymana.
Bem lembrado, meu caro. Vamos então.
E os dois partiram montanha acima. Logicamente, para Yorixiamori a subida pouco representava. Mas para Rupave, era uma subida e tanto. Mas ele era forte e possuía enorme energia e, mesmo gastando um bom tempo nessa subida, cuja trilha às vezes era tortuosa, estreita e perigosa, ele chegou com fôlego intacto e em plena forma no platô. Yorixiamori já o esperava, e, quando Rupave chegou onde estava o pássaro, pode divisar um enorme plano nivelado que cortava uma face da montanha, que parecia ter sido feito sob medida, surpreende como era em uma montanha daquele porte. Yorixiamori esperou que ele se aproximasse e disse-lhe: - Você não terá que esperar muito, acredito. Logo Ao Ao se apresentará. Procure ficar longe das beiradas, pois daqui, é uma queda e tanto. Boa sorte, meu caro! E dizendo isso, levantou voo, indo pousar bem no alto em uma escarpa na grande montanha.
E a previsão de Yorixiamori se concretizou. Rupave não teve praticamente tempo para se preparar. No lado oposto do platô, saindo de uma curva da montanha, surgiu Ao Ao, em toda sua imponência. Rupave já esperava por uma fera enorme, mas ainda assim surpreendeu-se. Mesmo distância, a criatura impressionava. Enorme, musculoso, com um couro que parecia duro como a pedra da montanha, pelos espesso e grossos, presas afiadas saindo do canto da boca e gigantes e poderosos chifres encurvados, Ao Ao personificava tudo que era bruto, forte e bárbaro. E furioso. Com os olhos injetados, o gigantesco carneiro não perdeu tempo. Tão logo avistou Rupave, começou a correr em sua direção, os cascos batendo no chão duro da montanha soando como o ribombar de trovões. Rupave não se intimidou - não podia se dar a esse luxo. Deu alguns passos à frente, escapando da beirada e sacou seu arco. Com rapidez e precisão atirou uma, duas, três flechas. Ao Ao, praticamente sem interromper seu ataque, desviou-se um pouco dos petardos. Mas uma, duas, três flechas atingiram seu flanco. E rechaçaram no couro que o revestia, que não apenas parecia duro como a pedra. Ele realmente o era. Rupave surpreendeu-se com aquilo, mas não podia perder tempo com isso. Com Ao Ao vindo como um bólido em sua direção, sacou seu punhal e correu também na direção do monstro. Mesmo assim, teve tempo para pensar: - Como afinal eu vou derrotar essa criatura?
E do pensamento para a ação. Não havia como enfrentar o furioso ataque de Ao Ao de frente, então Rupave, com enorme agilidade, saltou no momento exato, escapando dos chifres do monstro por pouco. Esticando o braço, empurrou o punhal contra o corpo de Ao Ao. A criatura nada sentiu, no entanto, e o golpe de Rupave sequer arranhou a espessa couraça. Com a arremetida, Ao Ao acabou indo longe, ficando distante de Rupave. Este guardou o punhal e sacou o machado. Com fúria crescente, o gigantesco carneiro novamente atacou. Rupave correu em sua direção e com precisão atirou o machado, que foi rodopiando ao encontro da testa de Ao Ao. Com um movimento de cabeça, porém, ele fez seu chifre chocar-se com a arma, atirando-a longe, sem sequer interromper sua ação. Rupave precisou atirar-se longe para escapar, caindo um tanto atabalhoadamente. Um único golpe daquela fera seria suficiente, pensou para si, e suas armas até agora não haviam surtido nenhum efeito. Ao Ao virou-se mais rápido e próximo dessa vez, e novamente atacou. Por muito pouco Rupave escapou, procurando ficar longe da besta.
Mais cedo ou mais tarde, porém, Ao Ao o acertaria, então continuar daquele jeito apenas atrasaria um desfecho certo e sinistro para Rupave. Sem ainda saber direito o que fazer, tentou então uma estratégia arriscada. Quando Ao Ao novamente atacou, ele consumou um salto espetacular, girando em pleno ar e caindo nas costas do monstro. Com enorme rapidez, sacou a lanceta e tentou cravá-la em Ao Ao. A ponta da arma perfurou um pouco o couro duro, dando um ponto de equilíbrio para Rupave, mas Ao Ao pareceu não sentir qualquer incômodo.
Com Rupave em suas costas, começou a se agitar e contorcer, tentando tanto tirá-lo dali quanto arremessá-lo longe, para enfim poder atingi-lo. Com muito custo, Rupave conseguiu se segurar, mas não conseguiria manter-se muito mais tempo. Essa era uma luta que parecia perdida e ele não sabia mais o que fazer.
Mas Ao Ao, de repente, mudou de estratégia. Deu um salto que quase atirou Rupave para longe e começou a correr na direção do abismo. Rupave imediatamente compreendeu a intenção do monstro. Bastaria para ele parar subitamente para atirar longe Rupave, no fundo abismo à beira do penhasco. E se Rupave tentasse saltar antes, àquela velocidade acabaria caindo desequilibrado e seria então presa fácil para Ao Ao. Rupave se viu então sem saída e seu fim parecia estar próximo. Seria isto, então, todas as criaturas que enfrentara, tudo pelo que passara e tudo o que aprendera, para ser derrotado por uma besta que nada mais sentia além de fúria?
Foi quando Rupave teve uma ideia. Lembrando-se do tecido que guardara, rapidamente o pegou do lugar onde o havia guardado no colete. Não havia muito tempo e ele não podia se demorar. Com um movimento arriscado, jogou seu corpo sobre Ao Ao, deitando-se em seu dorso, as pernas num abraço firme e os braços esticados à frente. Com precisão passou o tecido sobre os olhos da fera e amarrou-o atrás da cabeça de Ao Ao, com um nó firme e apertado.
O tecido ajustou-se perfeitamente e Ao Ao perdeu por completo a visão. Confuso e perdido, aumentou sua fúria e começou a correr e saltar como um louco.
Rupave segurava-se com imensa dificuldade às costas de Ao Ao, mas sabia que teria que esperar até o momento certo e que teria uma e apenas uma oportunidade. Enlouquecido, Ao Ao corria, girava e se debatia, tentando recuperar a visão perdida e tentando de todas as maneiras livrar-se do homem às suas costas.
Então Ao Ao correu, com velocidade e fúria terríveis. Rupave não conseguiria segurar-se muito mais, e o monstro pressentia isso. Se ele fosse ao chão, Ao Ao o esmagaria, com ou sem visão. Rupave, esgotado, agarrou-se às suas últimas forças. Só mais um momento, era tudo ou nada. Então, saltando para trás caiu no chão, desajeitadamente. Ao Ao encheu-se de satisfação. Daria fim aquilo agora.
Mas não teve tempo de fazê-lo. No momento mesmo em que Rupave caía, suas patas dianteiras não encontraram mais sustentação. Em sua fúria louca e ensandecida, esquecera-se de tudo o mais que não fosse se livrar e destruir Rupave. E como a pedra que rola, sem controle, ele correu insanamente para o precipício. Seu bramido de raiva e fúria ainda pode ser ouvido por um tempo, mas por fim restou apenas o baque seco e surdo de uma tremenda massa se chocando contra a pedra bruta.
E então, silêncio.
Rupave sentou-se, exausto de tensão, e então Yorixiamori veio ter com ele: - Por um momento, achei que teria que intervir para salvá-lo! Por Iamandu, não via saída para você, mas por fim você teve uma ideia e tanto!
Rupave, ainda recuperando o fôlego, olhou intrigado para Yorixiamori: - Intervir? Quer dizer que você pode me ajudar? Pensei que não pudesse!
E não posso, nem devo, respondeu o pássaro. Eu sei que, como arauto de Iamandu, cabe a mim apenas conduzi-lo e instruí-lo, ensinando-o no que eu puder, auxiliando-o no caminho. Essa luta é sua e apenas sua. Nós, arautos, não devemos intervir nela.
E por que você falou em agir para me salvar então?
Yorixiamori assumiu uma postura grave, mais que a normal, e respondeu: - Por que somos livres para tomarmos nossas decisões e conviver com suas consequências. Assim Iamandu nos fez e assim devemos ser. Livres. E nem sempre decidimos o que fazer com a razão, apenas…
Rupave olhou com admiração para seu companheiro e começou a se levantar, devagar. Sacudiu a poeira do corpo e respirou fundo. E falou, por fim: - Você me ajuda a recuperar minhas armas? Larguei a lança em algum lugar e nem imagino onde está o machado. Além, é claro, da lanceta, que bem sei onde está, é claro, assim como é claro que não dá para eu ir lá pegar.
Yorixiamori fez então algo inusitado: sorriu. Rupave não pensava que ele fosse capaz de sorrir, mas mesmo assim lá estava: um sorriso iluminava aquele belo rosto de madeira viva! - Fique aí e descanse um pouco mais, meu caro! Deixe que eu pego tudo para você. Nisso, sem dúvida, eu posso ajudar.
Rupave esticou seu braço e encostou no alto da asa de Yorixiamori. A madeira reagiu com suavidade e acalentou o toque de Rupave com o calor e a maciez das coisas vivas. O pássaro levantou vôo e Rupave esperou, de pé. “Mais um, pensou, só mais um. E aí, o pior de todos. Por Iamandu, que não seja tarde demais!”
Jaci
Logo Yorixiamori voltou, trazendo a lança que Rupave havia deixado no chão no começo de seu combate com Ao Ao, a lanceta que estava cravada no couro do monstro e o machado que havia sido atirado para longe. Muito da tensão do combate já havia passado e Rupave não quis perder tempo, então os dois seguiram em frente, descendo a montanha.
Foi uma descida silenciosa e rápida. Quando chegaram no sopé da montanha, Yorixiamori, como de hábito, estava pousado à frente, mas com um ar mais sério e grave que o habitual. Assim que Rupave chegou onde ele estava, ele disse, sua bela voz com um sutil toque de tristeza: - Muito bem, meu caro, aqui deverei me despedir de você. A partir de agora você contará com um novo guia - seu último. Tenho certeza que você irá apreciar muito sua companhia.
Rupave largou a lança que carregava e, sem nada dizer, abraçou Yorixiamori. Havia sentido uma profunda amizade por todos os seus guias, mas por alguma razão sentiu-se muito próximo de seu guia atual. Yorixiamori permitiu o abraço, e gostou do afeto. Olharam um para outro então e Rupave falou: - Muito obrigado por tudo. Não sei dizer muito bem porquê, mas sinto que devamos nos separar.
Também me afeiçoei a você. E acho que posso chamá-lo de amigo. E assim espero que você também me considere. Mas, entenda, cumpri meu dever e a parte que a mim cabia está terminada. Seu caminho deve continuar com outro guia. Assim é a vontade de Iamandu, e ela é sábia.
Rupave olhou com carinho para Yorixiamori e respondeu: - Sou muito grato por poder chamá-lo de amigo e é certo que sou seu amigo também. Aprendi que esse laço, o da amizade, pode fazer-se rapidamente e nunca mais desatar. E os laços que fiz até agora com vocês, meus guias, são fortes suficientes para permanecerem para sempre comigo. Mas, se deve ser assim, que seja. Espero que possamos voltar a nos encontrar no futuro…
Nada impede que isso aconteça.
Então, não é um adeus, mas um até breve. E meu novo guia, imagino que você vai apresentá-lo a mim.
Ah sim, respondeu o pássaro, muito em breve, acredito. Ela deve estar por perto…
Ela, pensou Rupave. Quem seria ela? Não havia imaginado uma guia feminina, e achou graça disso.
Então, como que completando esse pensamento, junto a um raio de sol atravessando as nuvens do início da tarde desceu dos céus uma mulher, bela como uma noite estrelada, resplandecente como a Lua Cheia, elegante como o firmamento. Ela pousou suavemente próximo aos dois companheiros e Rupave percebeu que seus olhos pulsavam como estrelas. Ele foi imediatamente tomado por um sentimento de profundo respeito, e sem perceber, ajoelhou-se, reverente. A bela mulher sorriu e, encostando suavemente no ombro de Rupave, pediu que ele se levantasse. Olhou então para Yorixiamori e falou, com uma voz límpida e cristalina: - Vejo que você está muito bem, meu amigo. Fico feliz por isso. É sempre bom poder encontrá-lo.
Rupave percebeu que o místico pássaro também agia de maneira reverente. Yorixiamori respondeu: - É um privilégio, Minha Senhora, poder estar tão próximo. Hoje é um dia feliz, sem dúvida. Ganhei um grande amigo - e olhou para Rupave - e fui chamado de amigo por Minha Sinhora.
A mulher sorriu, um sorriso prateado, e respondeu: - Ora, não é preciso tanto. Sou amiga de tudo que há de bom neste mundo. E você, grande pássaro, é uma da coisas que há de melhor!
Rupave não achava que isso seria possível, mas a cor da madeira do corpo de Yorixiamori tornou-se mais intensa com essas palavras. Era como se o pássaro houvesse ruborizado.
A mulher olhou então para Rupave, que não dissera nenhuma palavra desde sua chegada. Sorrindo de maneira acolhedora, falou para ele, suavemente: - Quantos perigos você já passou, Rupave, e temo que outros ainda seguirão. A partir de agora, serei sua guia e tentarei ajudá-lo como puder. Chamo-me Jaci e muitos me conhecem como a Deusa da Lua.
E dos amantes, completou Yorixiamori.
E dos amantes, completou Jaci, sorrindo. Mas, para esses, sou mais como um bênção, já que o verdadeiro poder vem do amor que sentem. E, olhando para Rupave, completou: - Você me entende, não é?
Rupave ruborizou, e respondendo, falou pela primeira vez: - Creio que sim, Minha Senhora.
Tenho certeza que sim, completou Jaci. Afinal de contas, qual outra razão para toda essa aventura e essa risco que não o amor?
Rupave sorriu com suavidade, pensou em Sypave, e concordou com Jaci. Yorixiamori, ao seu lado. permaneceu impassível. Por fim, o pássaro disse: - Agora devo despedir-me de vocês. Rupave tem que seguir em frente e não devo atrasá-lo. Olhou mais uma vez para Jaci, e completou, reverente: - Mas parto tranquilo. Veja Rupave, você agora segue com o melhor de todos os guias.
Jaci sorriu suavemente e falou: - Sim, é hora. Que a paz lhe acompanhe, sempre.
E Yorixiamori, virando-se para Rupave, disse, em despedida: - Boa sorte, Rupave. Ainda são grandes os seus desafios, mas estou certo de que você saberá enfrentá-los. Até!
E Yorixiamori partiu, voando para o alto e desaparecendo num instante.
Jaci e Rupave olharam até o pássaro sumir, e então a Deusa de Lua falou: - Vamos então, meu caro? Ainda há um bom caminho pela frente…
Luison
Rupave logo percebeu que Jaci não andava, exatamente. Ela mexia seus pés, mas era como se flutuasse sobre o chão, com tal leveza e elegância que era impossível não se encantar. Durante um bom tempo, ele apenas apreciou o espetáculo que era Jaci - sua beleza, elegância, suavidade, simplicidade… “Ela é Perfeição”, pensou.
Jaci percebeu esse enlevo e decidiu quebrar um pouco o encanto. Virou-se para Rupave e disse: - Posso imaginar as dificuldades que você enfrentou até aqui. Nada fácil sua tarefa…
Como se despertando de um sonho, Rupave foi trazido de volta à realidade pelas palavras de Jaci. Recompondo-se, respondeu: - Realmente, é verdade. Ainda não se sentia completamente à vontade com Jaci, e não por culpa dela, mas devido a admiração que ela evocava. Mas Jaci sorriu de maneira tão cordial para ele, que o encorajou a seguir falando: - Uma tarefa tremenda, mesmo. Mas penso que Iamandu não me colocaria uma prova destas se eu não pudesse levá-la a cabo.
E você está correto. Este é o desafio que marcará você e sua descendência. Seu sucesso pode trazer como prêmio todo este mundo.
Como assim?
Cada ser deste mundo possui um lugar, um jeito, um espaço. Você, Rupave, e aqueles como você, são diferentes. Vocês não pertencerão a nenhum lugar específico, mas ocuparão todos os lugares. Não terão jeitos ou espaços próprios, mas todos os jeitos e espaços, e nenhum também, ao mesmo tempo. Vocês serão mistério e solução, dúvidas e certezas. Iamandu guarda grandes esperanças em vocês…
Rupave não soube dizer se compreendia bem o que Jaci queria dizer. Sentia que suas palavras eram sábias, mas não as compreendia totalmente. Como não sabia como continuar a conversa, mudou de assunto para algo mais próximo e mais prático: - Gostaria de perguntar-lhe algo. Posso?
Jaci sorriu um sorriso enigmático e falou, com sua suavidade única: - Claro que sim. Tentarei responder-lhe o melhor que puder.
Bem, gostaria de saber mais sobre a criatura que irei enfrentar.
Pareceu que uma sombra de tristeza perpassou a face de Jaci quando ela respondeu: - É uma criatura que conheço bem. É na noite que ela aparece mais forte e com a Lua se apresenta em todo seu poderio. É um espírito das trevas, maligno, cheio de violência e horror. É enorme, poderoso e cruel. Seu nome é Luison, e ele se apresenta principalmente como um enorme lobo, porém ereto, firme sob suas duas patas traseiras. Seus olhos são vermelho sangue e suas garras são enormes e cortantes como facas afiadas. Suas presas são enormes e sua mordida fatal. Ele é praticamente invulnerável, além de extremamente forte, ágil e rápido.
Rupave ouviu aquela discrição e preocupou-se. - Parece um adversário terrível, disse. E se ele é praticamente invulnerável, minhas armas poderão feri-lo?
Temo que não. Das armas que você carrega, apenas seu escudo pode lhe ser útil, e mesmo assim não por muito tempo. Mais cedo ou mais tarde Luison o faria em pedaços, tamanha sua força. E isso apesar da enorme resistência de seu escudo.
O ar de preocupação no semblante de Rupave aumentou e ele exclamou: - Por Iamandu, como poderei enfrentar essa criatura então?
Com um sorriso misterioso, Jaci respondeu: - Bem, não fui convocada para ser sua guia à toa, meu caro. E, surgindo como do nada em sua mão direita, apareceu uma lança, bela e prateada, que reluzia à incidência da mínima luz. Seu cabo era perfeito, sem mácula, e sua ponta, afiada à perfeição, brilhava com o brilho das estrelas.
Jaci passou para Rupave a arma e completou: - Eu mesma a fiz para você. Ela é sob encomenda para enfrentar Luison. Como eu disse, ele é praticamente invulnerável. Mas não completamente. Ele se ressente da prata, e esse metal pode machucá-lo e até matá-lo. E essa lança, Rupave, é toda feita de prata, e da mais pura que há. Ela equilibra a balança na luta.
Rupave sentiu a lança em sua mão. Era perfeita. Seu peso, seu balanço. Era como uma extensão de seu braço. Sentiu-se mais confiante.
Jaci percebeu essa sensação e falou: - A lança vai ajudá-lo, sem dúvida, mas não é correto sentir-se confiante demais. Isso pode tirar seu foco, o que nunca é bom em um combate. Contra Luison, toda sua atenção será necessária.
Rupave fez um movimento com a cabeça, concordando com Jaci. Ele não era orgulhoso, e não cairia na armadilha da soberba. E então um pensamento lhe ocorreu e virou-se para Jaci e falou: - Minha Senhora, parece que conhece bem essa criatura!
O ar de tristeza novamente apareceu em seu rosto, e Jaci respondeu: - Realmente conheço. E conheço seu íntimo, mesmo. Veja bem, eu sou a Deusa da Lua e dos seres que preferem a noite. E Luison é um espírito da noite e da Lua. É à noite que ele se apresenta e da Lua que retira sua força. Eu o sinto como uma afronta, como alguém que suga minha energia, utilizando-a para o mal. Ele me fere, alimentando seu ódio, sua raiva e sua fúria dos meus elementos. De diversas maneiras, ele é o meu oposto. Ele retira sua força de mim e eu não tenho como impedi-lo.
Por isso seu rosto fica triste…
Sim, Rupave. Entristece-me que um ser como Luison, tão poderoso e cruel, tenha sua fonte em mim. Sua crueldade me machuca, me fere. Seu mal é como um açoite para mim.
Mas, Minha Senhora, a Senhora não pode fazer nada contra isso? Destruí-lo, eliminá-lo? A Senhora parece tão poderosa.
Jaci sorriu, mas era um sorriso indecifrável, imemorial. - Ah, Rupave, você é tão jovem. Tanto ainda para aprender. Como Deusa, eu sou fonte, e meu poder provém da minha existência. Não construo ou destruo com pragmatismo, mas de mim emana a inspiração, e energia, a vontade. E disso, os seres se utilizam de acordo com suas inclinações, com seus amores. Se amam o bem, sou fonte de poesias magníficas. Mas se amam o mal, de pesadelos inomináveis. Mas, no fundo, meu desejo é de harmonia. Então, aqueles que se inspiram em mim, são mais fortes quando agem com intenção pura e objetivos bons. É o essencial de mim. E isso me conforta.
Não era fácil conversar com Jaci, pensou Rupave, mas ele se esforçava para compreender o que ela dizia. Não que conseguisse entender tudo. Depois disso, porém, ele nada mais perguntou e Jaci pareceu satisfeita com isso. Caminharam um bom tempo de silêncio, até que a Deusa parou e, com a mão, fez sinal para que Rupave também parasse. Já era noite e a Lua começava a despertar no horizonte. Ela disse, então: - Prepare-se! Em breve Luison irá se apresentar. Minha presença o atrai. Fique com seu colete e seu escudo, além da lança, claro. Livre-se do resto. Não lhe será útil contra ele.
Rupave obedeceu a Jaci e, escudo em punho, preparou-se para luta.
E, como previra Jaci, Luison se apresentou.
Subitamente, a Lua surgiu por completo no céu, uma Lua Cheia brilhante e magnífica, enchendo a noite de um brilho prateado. Os raios de luar que banhavam Jaci operaram nela uma mudança que deixou Rupave encantado e sem fala. Sob a luz da Lua, a pele de Jaci ganhara um tom prateado e a Deusa parecia feita de luar.
Rupave, porém, não teve muito tempo para apreciar aquela mudança. Junto com a Lua também surgiu Luison e era impossível não notar sua presença.
A enorme criatura emergiu da mata, assustadora e sombria. Tinha no mínimo 2 metros e meio, um corpo musculoso coberto de pelos pretos como a noite mais escura. Seus pés eram patas enormes com garras curvadas e afiadas como navalhas. Seus braços terminavam em manoplas mistas de lobo e homem, com dedos longos e garras também terríveis. Seu rosto era uma mistura grotesca de humano e lupino, com orelhas pontiagudas peludas e um focinho longo. Sua boca, enorme, era uma assustadora fileira de presas tenebrosas. Mas o pior eram seus olhos: vermelhos cor de sangue, puro ódio e maldade.
Assim que apareceu, a fera rugiu, um rugido inumano de raiva e desafio. Luison percebeu Rupave mas seus olhos estavam fixos em Jaci. E a Deusa sentiu todo o ódio e fúria do monstro como um golpe. Sua simples presença parecia feri-la.
Jaci virou-se para Rupave, sua pele prateada resplandecente, e falou: - Devo me afastar, pois minha presença apenas alimenta a fúria desta criatura. Mas meu pensamento estará com você todo o tempo. Tenha confiança! Boa sorte e que Iamandu lhe conduza e ilumine.
E então Jaci partiu, flutuando com suavidade, como uma nuvem ao vento. Luison urrou ao vê-la distanciar-se. Ele a desejava e a odiava ao mesmo tempo, mas era sempre por ela atraído. E então, direcionou toda a sua atenção para Rupave. Aprumando seu corpanzil enorme, assumiu posição de ataque. Aquele pequeno ser sentiria toda a sua fúria e ódio.
E Rupave, escudo à frente e lança à mão, se preparou para o combate.
O espaço onde os combatentes se encontravam era amplo e a Lua Cheia propiciava toda a iluminação necessária. Luison começou a cercar Rupave, diminuindo o espaço entre eles e tentando encurralá-lo. Rupave percebeu a estratégia e procurava girar, garantindo espaço para manobras. Esse impasse durou pouco e logo Luison atacou. E que ataque! Com inacreditável velocidade e fúria, o monstro partiu como um gigantesco lobo, utilizando as patas dianteiras como impulso. Rupave escapou por pouco, jogando-se para o lado e usando o escudo como proteção. Luison conseguiu bater com sua pata no escudo, riscando-o profundamente com as garras. Rupave, mesmo escapando do impacto direto, percebeu a enorme força da criatura. Se um ataque daqueles o pegasse em cheio, seria o fim.
Luison ergueu-se novamente sobre as patas traseiras e inflou o peito, num gesto intimidador. Rupave não esmoreceu, totalmente atento e focado na luta. Como um lobo, Luison tentou novo ataque. Novamente Rupave esquivou-se, com mais sucesso desta vez, e deixou a lâmina de sua lança esticada, numa tentativa de ferroar seu adversário. Mas Luison escapou do golpe, girando o corpo com muita agilidade.
Desta vez, porém, ele não se ergueu com a mesma segurança. Subitamente, percebeu que seu inimigo oferecia perigo. Uma sombra de dúvida surgiu em seus olhos, que diminuíram um pouco em intensidade e brilho. Seu ódio e sua fúria, porém, eram maiores que qualquer medo. Ele era um ser bestial, muito mais instinto insano que lógica e razão. Para Luison, não havia meio termo ou ponderação. Ele atacava com tudo, destruía completamente e só contentava-se com a ruína e a desolação.
Assim sendo, com renovada fúria no olhar, ele novamente atacou. Rupave tentou o mesmo movimento, escapando e deixando a lança em estuque, mas o resultado foi igual. Tento ele como Luison escaparam intactos.
Mas um novo ataque produziu um resultado diferente. Agindo com mais rapidez dessa vez, Luison atacou com menos cuidado, mas com igual violência. Rupave não estava preparado e teve que usar o escudo para proteger-se. O gigantesco lobo desferiu um golpe de extrema violência contra Rupave e o escudo recebeu todo o impacto. Como resultado, Rupave foi jogado longe, bem para trás, e seu escudo partiu-se em dois, completamente inutilizado. Luison urrou alto, num grito de satisfação. Ele sentia sua presa desamparada e a sensação lhe dava prazer.
Como uma fera enlouquecida ele atacou, com o gosto de sangue já na boca.
Seu ataque, porém, foi descuidado, apenas brutalidade e violência. Rupave, apoiando-se no chão, esticou na hora exata sua lança. A base da arma estava bem apoiada contra o solo e a ponta, na altura exata, entrou firme e profundamente no peito da besta.
Luison urrou, um urro que sacudiu toda a floresta e que para sempre iria reverberar nos ouvidos que o escutaram. Foi um grito de ódio e dor, de frustração e raiva, de uma animalesca vontade de viver e da incompreensão completa da morte.
Rupave sustentou o corpo atravessado de Luison um pouco mais e por fim jogou-o para o lado, a lança de prata ainda transpassada em seu peito. O lobo gemeu e ganiu por mais alguns instantes, uma baba espessa saindo de sua boca. Mas por fim seus olhos se apagaram, perdendo todo o brilho e o corpo, num último espasmo, quedou quieto.
Rupave suspirou, meio pelo alívio, meio pelo horror.
Ele havia conseguido. Vencera uma terrível batalha.
Rupave ainda estava sentado, tendo somente se afastado do corpo inerte de Luison, quando Jaci reapareceu, como uma visão de alívio e ânimo. De alguma forma, sua presença melhorou o estado de espírito de Rupave. A Deusa pousou a mão com suavidade no ombro de Rupave, e uma onda de bem estar e tranquilidade inundou seu espírito. Também ela parecia estar mais leve, com um semblante menos preocupado. Rupave pensou em dizer algo, mas foi Jaci quem falou, olhando para o monstro quedado: - Luison era um espírito terrível. Sua presença sempre se direcionava a mim, e eu a sentia como um peso, como um fardo. Esse peso se foi, embora resquícios de seu espírito ainda permaneçam. Ainda assim, não me sinto feliz com sua morte. Gostaria que, graças a minha ascendência, ele tivesse encontrado paz e felicidade neste mundo. Mas certos espíritos prendem-se de forma indelével à escuridão, e nenhuma bondade ou brandura pode fazê-los escapar. Vivem para sempre numa armadilha de horror e ódio.
Rupave aquiesceu e falou: - Acho que entendo. Não me sinto feliz por tê-lo matado. Não via razão sequer para enfrentá-lo. Teria preferido que ele vivesse em paz, em suas terras, e sequer se preocupasse comigo. Mas, às vezes, somos forçados a lutar, se queremos que algo bom prevaleça.
É verdade, Rupave, e saber quando lutar e o que fazer com a vitória exige sabedoria. Mas vejo que você está aprendendo rápido a respeito disso.
E sorriu para Rupave, um sorriso tranquilizador, radiante.
Rupave levantou-se então, sentindo-se mais recuperado. Foi em direção a Luison e arrancou a lança de seu peito. Com isto, o corpo do monstro sofreu uma transformação. Ele adquiriu dimensões mais naturais, cada vez mais lobo e menos humano, até se estabilizar com o corpo de um grande lobo. Havia uma espécie de paz nessa transformação.
Sem dizer qualquer palavra, Rupave esperou que aquele fenômeno terminasse e foi até onde deixara seu colete e suas armas. Vestiu a roupa e pegou suas lanças. Olhou para Jaci, que esperava no mesmo lugar, e falou: - Podemos ir então, Minha Senhora? Pois acredito que a pior batalha ainda está por vir.
Jaci olhou-o com ternura e respondeu: - Sim, podemos. E devemos, na verdade. E realmente você terá um terrível embate. E, após uma pequena pausa, completou: - Mas também acredito que você já está bem preparado para essa luta...
Taubimana e Sypave - 3
O tempo passava, e Taubymana não conseguia conquistar Sypave. Sem a anuência dela, não conseguiria seu intento. Tinha que mudar de estratégia. Pensou no que fazer e por fim seguiu para fora da caverna, onde Sypave, desolada, se encontrava sentada, as mãos envolvendo as pernas.
Venha querida, venha comigo. Vamos entrar.
Sypave continuou como estava e respondeu numa voz melancólica: - Deixe-me em paz, por favor. Não tenho vontade para nada, a não ser ficar aqui sentada, quieta e sozinha.
Taubymana fez uma careta aborrecida, mas não permitiu que Sypave o visse. Procurou demonstrar uma paciência que nunca possuíra e, agindo pelo prazer da persuasão e do engodo, retrucou da maneira mais polida que conseguiu: - Muito bem, venha comigo e não lhe pedirei mais nada. E garanto a você uma surpresa realmente agradável.
Frente as palavras de Taubymana, Sypave ponderou, em dúvida: “Será que ele realmente não me pedirá mais nada, me deixará em paz? Talvez, até me deixe ir? Vale a pena ceder nesse pedido?” E, concluindo que não tinha muito a perder, decidiu fazer o que Taubymana pedira.
Levantando-se, colocou-se a uma distância segura e falou: - Vamos então. Mostre-me o que você quer me mostrar.
Muito bom, muito bem, exclamou Taubymana, esfregando as mãos de satisfação. Venha, venha comigo, e você irá se surpreender.
Sypave acompanhou então Taubymana e novamente entraram na caverna. E no exato momento em que seu pé ultrapassou a entrada, ocorreu uma incrível transformação: a caverna úmida e sombria havia desaparecido, dando lugar a uma caverna de amplo e iluminado salão. Suas paredes eram claras, luzidias, e seu chão uniforme e liso. Nada havia aparente que provocasse aversão, e isso realmente surpreendeu Sypave.
Mas não fora apenas isso que mudara. A seu lado, ainda estava Taubymana, ela sabia, mas que transformação! O ser grotesco e primitivo dera lugar a um homem alto e belo, de cabelos de mechas loiras, pele branca e olhos azuis.
Sypave agora não estava apenas surpresa, mas realmente espantada.
Sim, sou eu mesmo, disse Taubymana para Sypave. Essa é a minha forma verdadeira. Assim eu sou. Antes, não podia me apresentar como sou, por causa dos feitiços de terrível Iamandu. Mas sua presença quebrou o horrível encanto! E veja! Graças a você voltei a ser belo e vigoroso, e minha casa voltou a ser agradável. Veja! Veja! É isso que eu desejo para você! Fique comigo, e tudo isso - a estendeu o braço num gesto amplo, abrangendo o salão - será seu! O que me diz?
Sypave olhou para tudo aquilo - a nova aparência da caverna, a nova forma de Taubymana - refletindo sobre o que acabara de ouvir, sobre a explicação de Taubymana. Em seu íntimo, sentia que algo estava errado. A aparência da caverna realmente havia mudado, mas seu sentimento de estar ali não - o lugar ainda a incomodava, ainda lhe dava estranhos arrepios e ainda lhe trazia desconforto. E quanto ao novo Taubymana… parecia um belo ser, mas nada nele soava verdadeiro. Sem saber explicar direito o porquê, sua aversão a criatura aumentou - e muito! Não podia mais ficar ali a seu lado!
Cobrindo os olhos com as mãos, Sypave começou a chorar, sem controle. Correu então para fora da caverna, gritando: - Deixe-me, deixe-me em paz! Por favor! Deixe-me ir, eu só quero sair daqui!
Fora da caverna, tudo continuava como antes, o pântano lamacento e fétido, as sombras escuras e sinistras, o frio sem vida.
E dentro da caverna, tudo voltou a ser como antes. Taubymana precisara de enorme esforço para fingir aquela aparência - da caverna também, mas principalmente a sua - mas, como seu novo engodo não funcionara, perdeu o controle sobre o encanto. Tentara de tudo e dera sua última cartada. Não funcionou. Sypave agora corria para longe, com mais medo de voltar que enfrentar o pântano desconhecido. Mas a frustração de Taubymana virou ira, e a ira, ódio. Ele não a deixaria ir-se assim, sem mais nem menos. Ah, não! Ele iria atrás dela e ela lhe pertenceria, fosse como fosse! Por bem ou por mal!
E Taubymana saiu decidido a conseguir o que queria. Ou ele teria Sypave, ou ninguém mais a teria.
Rupave, Sypave e Jaci
Jaci e Rupave já haviam avançado muito desde a luta com Luison. Repentinamente, a floresta aberta banhada pela Lua Cheia desembocou em uma terra fria, sem som nem vida, lúgubre. Rupave parou antes de se aventurar nesse novo terreno, receoso, e pode notar que Jaci, à sua frente, empalidecera, sua pele prateada perdeu o brilho reluzente a assumiu um tom mais frio. O semblante da Deusa também ficou mais sério e ela disse: - Aqui começa as terras e o reino de Taubymana. Quanto mais entrarmos em suas terras, menor será meu poder. Mas devemos reunir nossa coragem, e prosseguir nessa terra sem vida, se quisermos resgatar Sypave.
Mas, Minha Senhora, percebo que prosseguir será um fardo para você. Não deverei eu seguir sozinho?
Jaci sorriu, e nenhuma terra desolada tiraria a ternura daquele sorriso, e respondeu: - Ora, Rupave, obrigada por sua preocupação. Mas eu não sou tão frágil quanto você possa imaginar. Muito pelo contrário! Não fui escolhida à toa como sua última guia. Irei com você até seu destino e estarei ao seu lado quando você ficar frente a frente com Taubymana.
E, dizendo isso, adentrou os domínios de Taubymana e foi logo seguida por Rupave.
E quanto mais entravam, mais fria, lúgubre, lamacenta e triste se apresentava aquelas terras. Logo um cheiro fétido empesteava tudo, vindo de todos os lugares e um pântano doentio e mórbido apareceu. Foi nesse momento que Jaci estancou, e, após um instante, disse a Rupave, num tom urgente: - Devemos nos apressar! Sypave corre um perigo terrível! Ela foge e devemos encontrá-la antes que Taubymana a alcance!
Essas palavras acenderam um sentido de urgência em Rupave, que, sem sequer esperar por Jaci, saiu correndo à frente, vencendo o cheiro fétido e o pântano lamacento com incrível velocidade. Em poucos instantes, a Deusa apareceu ao seu lado e logo tomou a dianteira, célere.
Haviam percorrido um bom trecho de terreno dessa maneira quando ouviram o som de passos abafados pela lama se aproximando. Nem Jaci nem Rupave pararam, apenas seguiram em frente. Fosse o que fosse, enfrentariam o que viesse. Não tinham tempo a perder.
Do lado oposto, porém, surgiu a figura esbelta, ainda que assustada, de uma jovem e bela mulher. Ao desvendar a dupla que se aproximava, Sypave reconheceu Rupave e, mesmo atordoada pela fuga e pelo horror daquele lugar, não pode deixar de se encantar com a visão majestosa de Jaci. Sem pestanejar, atirou-se aos braços do jovem e suspirou com alívio: - É você mesmo, Rupave? Não é uma visão ou um engodo de Taubymana? É você mesmo que veio para me salvar?
E Rupave, largando suas lanças e confortando a jovem, respondeu: - Sim, sou eu mesmo! Vim por você, seguindo o desejo de Iamandu! Está tudo bem agora, você está salva.
E Jaci pôs sua mão sobre Sypave, e uma sensação de grande paz e alívio tomou conta da jovem. E, olhando com seus olhos belos e profundos, falou: - Meu nome é Jaci e estou aqui para ajudá-la.
Foi ela que me guiou até aqui, Sypave, completou Rupave. Ela e meus outros guias, a quem deve tanto.
É verdade, continuou Jaci, mas não convém nos demorarmos. Esse é o reino de Taubymana e aqui ele se sente forte e confiante. E, sendo como é, não vai permitir que Sypave parta simplesmente, sem mais nem menos. É sábio nos apressarmos em sair daqui.
Rupave e Sypave acenaram em concordância e se preparam para partir.
Mas o alerta de Jaci se mostrou tardio.
Do mesmo caminho por que viera Sypave, surgiu uma figura atarracada e bruta, correndo bestialmente. Quando a figura divisou Sypave nos braços de Rupave com Jaci ao lado, estancou, furiosa. E essa fúria o fez crescer de tamanho, tornando-o ainda mais bruto e atarracado, uma criatura disforme e caricata.
Na lado oposto do caminho, Taubyama então gritou, um grito que era um rugido: - Você não vai tomá-la de mim, criatura maldita. Ela será minha, ou não será de ninguém. E você, continuou, apontando um dedo encurvado para Jaci, fique fora disso! Este é o meu reino e aqui mando eu! Seu poder não vai me impedir aqui!
E dessa maneira, Taubymana lançou seu desafio. E a batalha definitiva começava.
Taubymana, Rupave, Sypave e Jaci
Rupave não sabia o que esperar. Como seria o combate contra Taubymana? A exceção de Jaci Jaterê, fora atacado por todas as criaturas que enfrentou e possuía as armas para derrotá-las. Mas, o que faria Taubymana? Ele era bruto, sem dúvida, mas também possuía uma terrível inteligência e grande malícia.
Então, sem saber exatamente o que fazer, Rupave tomou a frente de Sypave, protegendo-a, segurou a lança de prata em uma das mãos e o machado na outra, e esperou pelo ataque de Taubymana.
Este, porém, apenas riu, um riso de escárnio e desdém: - Ha, ha, é assim que você pretende me enfrentar? Com essas coisas ridículas? Você deveria ter sido melhor preparado! Essas coisas são nada contra mim!
E, dando passos para frente e aumentando de tamanho e proporção em cada passo, Taubymana partiu lenta mas implacavelmente na direção do trio. Dele passou a emanar uma onda de estranha energia, carregada de um horror e desânimo tais, que Rupave e Sypave caíram ao chão, em desespero e terror.
Pois esse era o verdadeiro poder de Taubymana. Produzir o desespero, a desesperança. o ódio, a frustração. De seu ser emanava todo o tipo de horror: bastava sua presença para que o medo aumentasse, para que a segurança se tornasse desespero, para que a força se esvaísse, para que a esperança fosse perdida.
Rupave e Sypave, porém, não estavam sozinhos. Iamandu sabia que apenas eles, sós, não poderiam enfrentar o poder de Taubymana. E, pela primeira vez desde que começara sua jornada, Rupave recebeu mais que orientações de seu guia.
Partindo de Jaci, uma onda de calor e ternura, de conforto e felicidade, invadiram Rupave e Sypave. A Deusa da Lua, assim como Taubymana, parecia ter crescido em estatura, e sua presença acalentava, cuidava.
Lentamente, Rupave e Sypave pararam de se contorcer e se levantaram. Taubymana não mais avançava. Parecia haver um confronto invisível de forças ali, entre ele e a Deusa, e os dois encontravam-se no meio daquela titânica batalha. Haviam, porém, recuperado sua presença de espírito, e agora suas vontades valiam.
E eram vontades fortes. Sypave, transformando o temor de ser possuída por Taubymana em enorme coragem, somou sua vontade à de Jaci. E, Rupave, da mesma forma, deixou de lado qualquer resquício de temor e hesitação e seu pensamento concentrou-se totalmente na batalha. Eles deviam, tinham que derrotar Taubymana. Não havia outra saída. A alternativa era por demais terrível para sequer ser cogitada.
Taubymana então pareceu sentir o golpe das vontades somadas de Jaci, Rupave e Sypave. Aos olhos destes, pareceu diminuir de tamanho e volume, e seu poder diminuiu em intensidade.
Ainda assim, era terrível. Uma onda negativa de todo horror possível. E ali era seu reino, suas terras, onde se sentia mais forte, mais poderoso. Quanto tempo mais eles poderiam resistir? E, de repente, o poder de Taubymana aumentou, novamente. E o que sentiam agora era ódio, puro e simples. E total. Partindo de Taubymana, não havia mais desejo de conquista, de triunfo sobre Iamandu, de domínio sobre os homens. Havia apenas o desejo de destruição. Ele percebeu que não havia mais como conquistar Sypave. Ela o vira como ele realmente era, e o rejeitara completamente. Então, não havia mais esperança de descendência para ele. O que lhe restava, então, era apenas a destruição. Se ele não conseguia o que queira, se seu desejo não era satisfeito, então não haveria esperanças para ninguém mais.
Taubymana, agora, lutava pelo nada. Lutava pelo vazio. Ele era Desolação.
E desta vez, foi Jaci quem pareceu sentir o golpe. Ela era vida, esperança, beleza, felicidade. O desalento total que vinha de Taubymana era horrível demais. Apenas o pensamento de tal possibilidade - a desolação do vazio - era insuportável.
Taubymana sentiu isso e sorriu. Um sorriso de puro terror. Eles não podiam com ele. Ele venceria.
E foi nesse momento de maior desesperança e desalento que uma voz interior se fez ouvir. Simultaneamente, Rupave e Sypave ouviram em suas mentes as mesmas palavras: - Acreditem! Eu estou com vocês. Todo Meu poder é seu. Não temam! Enfrentem-no! Vão até ele! Não caiam em suas armadilhas! Eu sou sua Esperança! Comigo, vocês são mais fortes! E nunca, nunca, estarão sozinhos!
Rupave e Sypave sabiam que haviam ouvido a voz de Iamandu. E aquela voz interior os encheu de uma esperança que nenhum mal seria capaz de eliminar.
Confiando em Iamandu - uma confiança inabalável - Rupave e Sypave deram-se as mãos e começaram a caminhar em direção a Taubymana. Os primeiros passos foram terrivelmente difíceis - o ódio de Taubymana era tremendo e seguir contra esse ódio demandava um esforço sobrehumano. Eles, porém, sabiam que Iamandu estava presente em seus espíritos e assim conseguiram forças para continuar. E cada passo seguinte tornava-se mais fácil. Quanto mais próximo, mais Taubymana parecia diminuir em poder e tamanho e menos resistência eles enfrentavam. Taubymana, por seu lado, tentava resistir. Não podia acreditar que aqueles seres o enfrentavam. Quem eram eles, que não temiam seu poder e sua força? Mas eles se curvariam no final! Ninguém poderia resistir ao horror que ele era capaz de impingir.
Mas, a despeito dessa arrogância, Rupave e Sypave seguiam, com Jaci cada vez mais forte por trás e com Iamandu em seus corações. E a cada passo, mais seguros se sentiam e menor e menos poderoso Taubymana lhes parecia.
Os últimos passos foram os menos difíceis. E, sem que Taubymana percebesse, ali estavam os dois - Rupave e Sypave, os primeiros homens, filhos de Iamandu - à sua frente. Para eles, agora, Taubymana parecia diminuto: um homúnculo desengonçado e disforme, bruto e triste, um arremedo de ser. Instintivamente, Rupave e Sypave esticaram suas mãos dadas e encostaram em Taubymana.
O resultado foi incrível. Com um grito incrédulo, de surpresa e estupefação, Taubymana quedou, seu poder sumindo completamente. Caído ao chão, com muito custo conseguiu levantar sua cabeça disforme e contemplou com olhos terríveis e vazios o casal que o derrotara. Num último suspiro mórbido, seu corpo foi diminuindo até desaparecer de vista, transformando-se num espectro de ódio e rancor, uma sombra pálida do terrível ser que fora.
Rupave e Sypave entreolharam-se, maravilhados. Abraçaram-se e Sypave, soluçando de felicidade, disse para Rupave: - Acabou! Você veio por mim! Nunca perdi a esperança! Foi ela que me manteve viva, e que me deu forças!
Nunca perdi a esperança também. No fundo de minha alma, sabia que você estava me esperando! Iamandu cuidava de nós!
Eles então se beijaram, demoradamente, um beijo de amor e carinho.
E então foram ter com Jaci, que voltara à sua forma anterior e esperava, paciente. Rupave ajoelhou-se frente à Deusa e Sypave o acompanhou. Jaci colocou as mãos sobre ambos e pediu que levantassem. Sorrindo, abraçou-os.
Rupave olhou para a Deusa e disse: - Obrigado! Não teríamos conseguido sem você e sem Iamandu. Ele falou conosco e esteve junto a nós, quando confrontamos Taubymana. Sem Vocês, não teríamos conseguido!
Ah, meu caro Rupave! Mas Iamandu nunca esteve longe, ele sempre esteve com vocês, em seus espíritos, em seus corações. Lógico que Ele estava com vocês - sempre esteve - mas o que vocês conquistaram, sua vitória sobre Taubymana, realizou-se graças a força e vontade próprias de vocês.
Mas Ele falou conosco, replicou Sypave. Ouvimos Sua voz em nossas mentes.
Ele disse o que precisavam ouvir. Mas a força para a vitória sempre esteve em vocês mesmos. Faltavam apenas que acreditassem.
Rupave e Sypave olharam para Jaci, sem entender completamente o que ela queira dizer. Mas agora, isso não importava. Tinha acabado. Estavam juntos! E nada mais os separaria…
Se Jaci pensou que agora é que realmente tudo começava para os dois e para os seus descendentes, foi um pensamento que guardou para si.
Os três, então, começaram o caminho de volta. Jaci seguiu com eles e a volta seria leve e agradável.
O Sol surgiu, e o pântano lamacento começou a secar. Não se sentia mais o odor fétido e nauseabundo de antes e, aos poucos, sem a terrível presença de Taubymana, o calor da vida voltaria àquelas terras.
Reunião
Rupave, Sypave e Jaci seguiam sem a tensão de outrora. Os caminhos agora eram abertos e cada vez mais agradáveis. Rupave não tinha mais que carregar o peso da missão de salvar Sypave e ela não precisava temer a prisão ao lado de Taubymana.
Sentiam-se tão bem que todo o horror que há pouco haviam passado parecia pertencer a um tempo pretérito, longínquo.
E esse caminhar sem preocupação levou-os longe e logo deixaram para trás as terras que constituíam os domínios de Taubymana.
E uma ótima surpresa aguardava Rupave. Ao sair de uma curva, ele pode divisar um grupo que se encontrava parado no caminho, parecendo esperar por eles. Não pode conter-se de felicidade quando percebeu que esse grupo era formado por todos os seus guias anteriores. Ali estavam, juntos e tranquilos, Mapinguari, Anhangá e Yorixiamori. Jaci foi ter com eles, chegando à frente de Rupave e Sypave, e houve grande felicidade nesse encontro. Rupave segurou a mão de Sypave e falou: - Venha, vamos logo! Preciso apresentá-la aos meus amigos! Eles que me guiaram até você!
E dizendo isso, puxou Sypave e ambos correram na direção dos guias.
E foi um grande encontro: Sypave adorou o jeito alegre do macaco e se encantou com a altivez do cervo e com a imponência do pássaro de madeira. E todos foram gentis e cordiais com ela, como se há conhecessem desde muito tempo.
E para Rupave, foi um encontro ainda mais emocionante: seus guias eram seus amigos, e estar com eles eram um enorme prazer. O o mesmo sentimento eles demonstravam em estar com ele e Sypave. Um conjunto de almas boas, puras, elevadas, uma reunião de muita felicidade.
E assim, todos juntos, perfizeram o caminho de volta. Os guias contavam para Sypave as aventuras de Rupave, e como ele vencera cada desafio. Yorixiamori contou como havia voltado e soltado Kurupi, e como fez uma careta de desdém e fugiu pelo mato. E deu de presente para Rupave a corda com que este amarrara Kurupi.
Cada lugar em que passavam - cada domínio onde Rupave lutara e derrotara terríveis criaturas - parecia mais belo e agradável.
Demoraram-se mais nas terras de Jaci Jaterê, pois este fora ao encontro da comitiva. Rupave apresentou-o a Sypave, e Jaci Jaterê acolheu a jovem com gentileza e elegância. E durante um bom tempo conversaram, todos, e contaram a Jaci Jaterê suas aventuras.
E Jaci Jaterê fez uma especial homenagem a Jaci, Deusa da Lua, a quem reverenciou com humildade. E Jaci demonstrou seu carinho para com ele, o carinho especial que a todos dispensava.
Despediram-se por fim, e voltaram a andar, parando vez ou outra para comer uma refeição preparada por Mapinguari, com frutos e plantas que ele e Yorixiamori escolhiam e colhiam.
Até que por fim chegaram a seu destino, o ponto de partida, de onde Sypave fora sequestrada por Taubymana, início da grande aventura de Rupave.
E ali passaram alguns dias agradáveis que serviram para consolidar a amizade que nutriam uns pelos outros.
E Mapinguari ensinou para Rupave e Sypave os segredos das raízes, das folhas e dos frutos, como preparar uma refeição, quais serviam para plantar e colher e a melhor época para fazê-lo.
E Anhangá lhes falou tudo sobre os animais do ar, da terra e da água, suas características e temperamentos, os que serviam para o trabalho, para a caça, para companhia, e os que deveriam ser evitados.
E Yorixiamori lhes mostrou quais as plantas que serviam como remédios e como utilizá-las. Quais doenças combatiam, qual dosagem deveriam usar, como reconhecê-las.
E Jaci lhes falou tudo sobre a Natureza. Suas estações, seus relevos, seu equilíbrio e harmonia e como utilizar os recursos que oferecia sem agredi-la ou esgotá-la. E sobre as coisas que podiam construir e operar com esses recursos.
E por fim, chegou a hora de partir. A despedida foi saudosa, mas não foi triste. Cada um ali carregaria os demais em seus espíritos e em seus corações. Haviam aprendido muito uns com os outros, e, de certa forma, faziam parte uns dos outros.
E Jaci ascendeu aos céus, na direção de uma Lua Cheia iluminada. Mapinguari e Anhangá embrenharam-se na floresta e logo sumiram de vista. E Yorixiamori levantou vôo, também desaparecendo rapidamente no firmamento.
Restaram Rupave e Sypave, juntos e prontos para começar seus próprios caminhos.
Sypave e Rupave
Sypave e Rupave construíram muitas coisas: uma casa ampla, em forma de choupana, conforme Jaci lhes ensinara. Ferramentas para arar a terra e para plantar, utensílios para cozinhar os alimentos, instrumentos para fazer e conservar os remédios, e uma infinidade de outras coisas úteis que suas criatividades inatas imaginaram e realizavam.
E o amor entre eles só floresceu e cresceu com o passar dos dias, semanas e meses.
E sempre se lembravam de seus amigos - às vezes, recebiam suas visitas - mas essas foram escasseando com o tempo, pois cada um tinha seu próprio caminho a trilhar. Mas seus espíritos sempre estavam presentes, na terra, nas plantas, nos animais e no firmamento.
E sempre reverenciavam Iamandu, que lhes sussurrava segredos e lições em sonhos, em imagens e em suas imaginações.
E tiveram vários filhos, que deram origem a odisséia da humanidade.
Mas esta, já é uma outra história.
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