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História Herdeiros - O Passado Nunca Morre


Escrita por: Lolita_Rhys

Capítulo 2 - O Passado Nunca Morre


As montanhas desapareciam à medida que o escurecer avançava, deixando o céu, outrora cheio de cores, manchado de cinza-azulado que logo se transformaria em negro. As primeiras estrelas já podiam ser vistas no leste, onde a escuridão já dominava as planícies baixas ao sul. A floresta escondia-os bem, embora não oferecesse uma proteção tão boa quanto a caverna que Lena achara três noites antes. Tinham deixado lá boa parte dos suprimentos, para que pudessem avançar para o sul rapidamente sem ter que levar consigo muitas coisas, e tinham um lugar para onde voltar caso as coisas não corressem bem.

                Thomas dizia que o homem era bastante bruto para alguém tão velho, e que tinha mais filhos do que dentes na boca, embora nenhum deles vivesse com o pai. Violet dizia que um homem era um homem, e nenhum homem lhes era ameaça.

                - Ele dirá algumas palavras rudes – Violet admitiu naquela tarde. – No ano passado chegou a tentar nos expulsar, mas colocamos uma pedra sobre esse assunto.

                - Sim, uma pedra bem colocada. Ele perdeu três dentes naquele dia – Thomas sussurrou, com um sorriso de deboche nos lábios finos.

                Lena conseguia ver as luzes da casa de onde estavam, com a pequena placa da loja que havia no andar térreo balançando suavemente com a brisa do crepúsculo. Os brumorianos chamavam aquela hora de ‘Hora dos Fantasmas’, e era isso que teriam de ser agora, pois o lugar era frequentado por gente deste e daquele lado da Cordilheira Altrok, a grande fronteira que separava Ronar do Império; outros tipos iam ali também, em busca de noticias, à procura de armas, venenos, e trabalhos fáceis. Os melhores mercenários e assassinos podiam ser encontrados através daquele lugar e do homem que o comandava, e era este homem que agora procuravam.

                Thomas também observava a casa. Havia vários homens do lado de fora, e archotes ardendo em arandelas de ambos os lados da porta, mas fora esta luz, o mundo ao redor da casa começava a se tornar negro.

                - Quando iremos? – Thomas perguntou. Ele era alto, com cabelos finos, negros e cacheados que desciam até a nuca. Os olhos eram engraçados, de um tom castanho-carmesim que parecia quase vermelho quando o sol tocava a íris. Tinha a espada atada às costas, e no cinto trazia a adaga briamaria que ganhara no aniversario de dezesseis anos.

                - Vocês não irão – Violet tinha a voz firme, e mesmo o olhar duro não fraquejou quando Lena e Thomas começaram a protestar juntos. Violet calou-os com aquele mesmo olhar. – Ele fez muitas perguntas quando Thomas me acompanhou, e ele sabe quem eu sou, por mais que negue isso. Se sabe quem eu sou, quanto tempo demorará para descobrir quem são vocês? – A voz dela era desdenhosa e dura, cheia de verdades. – Thomas é parecido demais comigo para que ele não note que somos parentes. E todos os ronari ouviram falar da princesa exilada de olhos azuis. Ficarão aqui e me esperarão.

                - Quanto tempo demorará? – Quis saber Thomas.

                - O tempo que for necessário – Violet respondeu, prendendo o cinto com os punhais à cintura. Estava vestida com roupas simples, de cor escura, e sobre elas tinham um grande sobretudo que escondia boa parte do corpo. Os cabelos curtos seguiam a linha do maxilar, e os olhos negros e intensos se assemelhavam a carvão antes deste se incendiar. – Ficarão escondidos e não virão. Se algo acontecer, seguirão para casa imediatamente.

                - Algo nunca acontece – Thomas reclamou, e Lena deu-lhe uma cotovelada nas costelas para que se calasse.

                - Nem todas as vezes são iguais – Violet disse. Aproximou-se primeiro de Lena e deu-lhe um beijo terno na testa. Violet era uma mulher alta, com quase um e setenta e cinco de altura; Thomas teve que se curvar para que Violet pudesse beija-lo na face, pois era ainda mais alto do que a tia. Lena não passara do seu metro e sessenta e seis desde os dezesseis anos, e não tinha esperanças de crescer agora. – Recuem dez metros floresta adentro e subam. Não sejam desleixados.

                Thomas sorriu seu sorriso perverso.

                - Lembro que Dalla disse algo sobre não escalar.

                Lena olhou feio para ele, mas Violet limitou-se a sorrir.

                - Lembro que Dalla disse para Lena não sair de casa, e olhe onde estamos.

                - Você é a pior tutora do mundo – Thomas comentou, pegando a mochila e colocando-a no ombro.

                - Sou a melhor delas – Violet sorriu para eles antes de lhes dar as costas. Puxou sobre a cabeça o capuz do sobretudo e começou a avançar na direção da casa.

                Lena e Thomas recolheram as suas coisas e começaram a andar para dentro das trevas da floresta. Aquela altura, a escuridão já reclamara o mundo, embora a noite estivesse estrelada e uma lua minguante se pendurasse sobre eles como uma lasca cor de gelo.

                - Dez metros – Thomas disse, escolhendo uma arvore para si.

                - Vamos subir vinte, a menos que esteja com medo de cair – Lena postou-se de frente a um pinheiro e começou a subir, fincando as adagas profundamente ali, içando o corpo para cima a medida que os pés raspavam no tronco, achando apoios próprios, e espetava as adagas, até os galhos mais baixos, que ficavam a sete, talvez oito, metros, sem esperar qualquer resposta do irmão.

                - Antes de cair, derrubo você – ouvi Thomas a sua esquerda, mas não parou de subir.

                Quando alcançou o primeiro galho sentou-se, enfiando as adagas nas bainhas, e voltando a se levantar para alcançar o próximo galho. Tinha as mãos ardendo e os dedos trêmulos, mas tudo naquele momento era familiar, desde as mãos buscando apoio ao peso das facas de arremesso pesando no forro interno das botas, e sentia o frenesi da adrenalina pulsando nas veias a cada metro vencido, e então estava acima das copas das arvores mais baixas, rodeada por outros pinheiros que se erguiam a quase trinta metros do chão. O ar frio da noite penetrava suas roupas agora, mais frio e selvagem do que fora embaixo, e o céu estava tão próximo que pensava que se esticasse a mão poderia alcançar uma estrela. Thomas apareceu a sua esquerda, escalando seu pinheiro com a adaga entre os dentes. Subiram mais alguns metros antes de olharem juntos para o sul. A casa ainda estava lá, mas os homens do lado de fora tinham sumido, provavelmente entrado.

                O mundo retumbava em silêncio, exceto pelo barulho das folhas que eram remexidas pelo vento a medida que este corria em direção ao oeste. Ao longe, muito ao longe, no leste, podiam distinguir a longa silhueta do horizonte onde este encontrava o mar. O mundo estendia-se abaixo agora, todo ele um tapete negro varrido pelo vento, arvores espalhadas, montanhas e a cordilheira ao sul e o que Lena só podia definir como casa mais ao norte, em seu pequeno vale perto do mar. Lá crescera e aprendera a lutar. Lá fora acolhida pela única família que conseguia lembrar, e fora amada. Nunca chamou Violet de mãe, tinha-a mais como uma tia ou uma irmã muito mais velha, mas à Thomas chamava irmão, e era para ele que corria quando se machucava quando era pequena. Chegara a eles com quatro anos, e Thomas naquela época já tinha sete. Acolheu-a e ensinou-lhe então a ler em brumoriano, enquanto Lena ensinava a ela a falar ronari da melhor maneira que uma criança conseguia, mandando-o repetir as palavras. Acostumaram a treinar juntos depois que Violet começou a ensina-los, e quando ela saia, eles mesmos iam para a floresta escalar, para o rio a alguns quilômetros de casa nadar ou apenas correr. Treinavam com as armas quando Dalla ou seus soldadinhos não estava por perto, e isso era tudo. Violet raramente levava-os para uma de suas incursões, mas daquela vez ela garantira que precisaria de apoio, e que seria como o batismo de sangue deles.

                Lena não tinha medo, e sabia que Thomas também não tinha. Não cabe a brumorianos sentir culpa, remorso ou medo, então vocês também não devem ter. Treinaram como brumorianos, e era isso que eram, mesmo que fosse a ultima coisa que quisessem ser.

                Thomas ergueu os olhos para Lena, apontando para a casa. Deviam ter se passado vinte minutos, talvez meia hora. Distinguiram um vulto envolto em capa se aproximando e sumindo sobre a copa das arvores. Thomas manteve os olhos embaixo deles, olhos atentos como os de um falcão, então o som encheu o ar. Era como um assobio fino e agudo, que perdurava e perdurava. Thomas guardou a adaga na bainha e começou a descer, escolhendo seu caminho com cuidado em meio a escuridão, e Lena fez o mesmo.

                Mantinha as mãos seguras enquanto os pés procuravam apoio, e os pés firmes enquanto as mãos desciam para agarrar o próximo galho. Desceram rápido em comparação com a subida. Lena pulou os últimos cinco metros, caindo com os pés seguros antes de rolar de lado. Thomas também pulou, e ambos ergueram-se para encontrar Violet. O rosto estava serio e bravio, e os olhos ardiam com algo que beirava a fúria.

                - O que houve? – Lena perguntou.

                - Eles sabem quem eu sou – ela repetiu, olhando por sobre o ombro. – E há algo acontecendo, contarei depois. O Fidalgo não me deu mais do que ameaças e meias palavras, e havia soldados brumorianos lá, não apenas mercenários. Yara contou-me que soldados estavam vindo para o norte a minha procura, mas havia muitos ouvidos lá, muitos homens do Império...

                - Viram você – Thomas não perguntava. Lena viu que ele levava a mão para o punho da espada ao mesmo tempo que ela encontrava o cabo da adaga.

                - Sim, mas não me reconheceram – Violet olhou por sobre o ombro mais uma vez. – Precisamos do que o fidalgo sabe.

                - Batismo de Sangue, então – Thomas puxou a espada para fora da bainha, os olhos vaguearam de Violet para o rosto de Lena. – Está pronta?

                Lena engoliu em seco, olhando para Violet e depois para o irmão. Não sentia nervosismo pelo que viria, ou mesmo medo. Não sentia nada.

                - Sempre – ela respondeu, puxando as adagas para fora da bainha.

                Violet alcançou a ambos com os olhos negros, tristes. Atirou o sobretudo para o lado e disse-lhes para fazer o mesmo com as mochilas, elas só atrapalhariam o que estava por vir.

 

                A partida deles fora adiada durante duas semanas, o tempo que levou para A Graça Cinzenta vir dos Portões de Pedra e de Fire subir rumo ao norte de Forte Rubro. Felícia Fly chegou primeiro, com uma comitiva de quase cem homens, entre eles soldados, escravos, serventes e os filhos dela, que permaneceriam na cidade até o seu retorno na companhia da própria Imperatriz. Diz-se que ganhou o apelido de Graça Cinzenta depois de acorrentar Graças e traze-las para o Império. Foi a primeira vez que os brumorianos viram as tão misteriosas mulheres aladas das Cidades Gêmeas. Estavam quebradas quando chegaram ali, mas a visão ainda era impressionante. Elas usavam branco, e suas assas também eram de um branco imaculado, tão grandes que erguiam-se acima de suas cabeças e roçavam no chão quando estas caminhavam com os pés. Felícia Fly deveria ter uma idade próxima de Mex, mas já tinha os cabelos cinzentos desde que conseguiam se lembrar, e olhos escuros e rudes, que fariam qualquer homem desviar o olhar.

                Fire chegou com uma comitiva mais simples, acompanhada apenas de três outros soldados e um único escravo a quem chamava de Beau. Fire não podia ter mais do que vinte anos, com longos cabelos castanhos e pele clara maculada pelo árduo treinamento, com cicatrizes expostas nos braços e ombros. Era uma menina bonita mesmo assim, com profundos olhos azul-escuros que podiam ser comparadas à joias das profundezas do oceano.

                 Seus companheiros de viagem eram homens igualmente marcados, moldados pelo treinamento oferecido por Diana, uma Ama do Império, em Forte Rubro. Todos eram parecidos, embora tivessem um jeito próprio que os distinguia uns dos outros a primeira vista. Alyn tinha olhos amarelados, pele morena e dizia ser neto de uma Graça chamada Tristana de Tiarri, embora isso provavelmente fosse mentira. Denir era poucos centímetros mais alto do que os outros, mais velho cinco ou seis anos, com olhos frios e negros e uma língua afiada para respostas rápidas. Causara três mortes no dia em que chegara, e depois disso os soldados aprenderão a deixa-lo em paz. Christopher era sorridente e galanteador, e possuía cabelos cor de mel e belos olhos castanho-esverdeados.

                Moira reuniu-se com todos os soldados que participariam da missão à portas fechadas, e Mex não ousou perguntar a Melissa o que fora dito lá. Ela tornara-se cautelosa quanto a falar com ele sobre tudo que desrespeito a missão, mas duas noites depois de Ketty visita-la, ela veio ter com ele.

                - Oria sempre disse que minha mãe era uma verdadeira princesa, que não era uma mulher ruim – as palavras delas eram secas, fracas e cheias de ressentimento. – Queria poder vê-la assim, mas lembro-me de pouco e ainda menos a respeito dela. Não me pareço com ela. Não sei como ela era. O que acha que devo esperar quando a encontrarmos?

                Mex então suspirou profundamente e cerrou os punhos.

                - Há muito que você não sabe, Melissa – disse, embora parecesse pouco para tudo que escutara dela.

                - Há muito que eu não sei sobre ela – insistiu a filha. – Ela me reconheceria? E diga a verdade, pai.

                - Você tinha cinco anos quando ela foi embora – Mex sentia-se cansado, e receoso por Kobba, Winn e Saise. – Não foi uma decisão fácil para a sua mãe, mas foi a decisão certa. Você tem muito dela e muito de mim para que ela não a reconheça, mas não pode esperar que ela se arrependa de imediato. Ela...

                - Ela não era disso? – Melissa deu um sorriso amargo antes de sair, e Mex sentiu-se ainda pior quando a filha fez isso.

                Melissa estava confusa sobre isso, mas mesmo assim não desistira de ir, por isso naquela manha envergara as roupas claras da Grande Guarda e reuniu-se aos outros na sala do trono. Mex chegou pouco depois da filha e postou-se ao lado de Medona, na base dos degraus que levavam ao trono. Moira entrou logo depois que o arauto anunciou-a, precipitando-se pela galeria com as roupas negras que a Guarda usava na cidade, a coroa de ferro brilhando no meio dos cabelos escuros. Doreen vinha logo atrás, imponente em roupas negras semelhantes à da mãe, embora não tivesse nada dela. Puxara ao pai quase que completamente, com os olhos castanhos e profundos e os cabelos de um castanho-dourado belíssimo que caiam pelas costas. Não tinha mais do que quinze anos, mas já podia-se ver que era uma verdadeira princesa. Postou-se do lado direito da mãe, tão dura e inerte que Mex teve dificuldade em assemelha-la à menina sorridente e alegre que normalmente era.

                - Diga que entrem – Moira disse, e o arauto bateu seu cajado no chão uma vez e outra.

                Garret entrou primeiro, seguido por Fly, Alyn, Melissa, Christopher, Ketty, Denir, Liota, Fire e Leto, erguendo-se acima de todos os outros, todo ele ombros e músculos. Apresentaram-se lado a lado, fazendo uma reverencia profunda à Imperatriz.

                - Foi-lhes atribuída uma tarefa de suma importância – Moira disse. – Que cumpram seu dever com força e destreza, e não me falhem.

                Muitos outros falaram, incentivando-os e dizendo-lhes que fossem bravos e corajosos, e quando tudo acabou um grito firme ecoou dos lábios dos dez ali, e então chegou a hora do cálice.

                Uma faca fina e delgada foi trazida, e Moira pegou-a com mãos habilidosas, abrindo um profundo talho no pulso, sem qualquer hesitação. Doreen entregou o cálice a mãe, e Moira deixou que o sangue escorresse pelo pulso fino para dentro dele.

                - Que a minha força seja a de vocês – ela proferiu com uma voz grave e sonora. – Que a minha sabedoria seja a de vocês. Que a minha determinação seja a de vocês. E que suas dores futuras sejam minhas. Somos um só sangue agora, e sangro por vocês assim como sangrarão por mim.

                Moira passou o cálice para Doreen, e então um sacerdote apressou-se para estancar o sangramento com linho, poções e suturas. Moira sentou-se no trono e deixou que ele fizesse seu trabalho. Ali não havia sacerdotes com magia, os primeiros Stag mataram a todos nos primeiros séculos do mundo, e desde então a magia se fora.

                Garret pegou o cálice primeiro, levando-o aos lábios e bebericando um gole, o lábio superior estava vermelho quando o afastou, oferecendo-o para Fly. Ela fez o mesmo, e todos os outros depois dela, um por um. Melissa lançou um olhar para o pai quando chegou sua vez de beber, mas não afastou o cálice. Pegou-o com mãos firmes e bebeu, e então o passou para Christopher.

                - Loucura – Mex ouviu Medona sussurrar quando chegou a vez de Ketty beber.

                Leto era o irmão mais velho de Ketty, mas em nada lembrava a menina. Podia até ter os cabelos pretos dos Stag e os olhos escuros da mãe, mas tinha mais do pai nos traços rudes do rosto, nos fortes braços e nos largos ombros. Era capaz de matar um homem com as mãos se não tivesse arma consigo, Mex não duvidava. Moira abandonou o sacerdote assim que Leto bebeu, levantando-se para suas ultimas palavras, com sangue escorrendo do pulso meio suturado.

                - Vão agora e sirvam-me com lealdade e fúria – ela disse. – E levam a justiça do Império e a fúria de Brumor com vocês.

                Garret e os outros curvaram-se novamente, e então saíram. A galeria começou a esvaziar-se depois disso. Medona esperou até que a galeria estivesse vazia para falar, e suas palavras eram tão furiosas quanto venenosas.

                - Não precisa incentivá-los ainda mais, meus filhos já provaram que morreriam por você...

                - Assim como matariam por mim – Moira olhou com olhos severos para a irmã. – Seus filhos tem lealdade e fúria, e a sede de glória que falta aos jovens de hoje em dia.

                - Mãe, posso ir? – Doreen tinha uma voz quase angelical, doce e tímida, embora firme. – Quero falar com Liota antes que parta.

                - Então corra atrás dela e suplique que fique – Moira olhou com desprezo para a filha. – Sei que é isso que quer fazer.

                Doreen não discutiu. Saiu a passos largos da sala do trono, correndo os últimos metros para alcançar as portas.

                - Ela é doce e boa, por que a trata...

                - Não a criei para ser doce – Moira cortou a irmã, e então virou os olhos para Mexus. – Sua filha tambem é doce, mas fará o que é preciso quando a hora chegar.

                Mex fechou as mãos em punho, visto que não podia fazer mais do que isso.

                - O que quer dizer?

                - Quero dizer que ela está confusa, sim, mas não me falhará – Moira levantou-se enxotando o sacerdote depois de a sutura ser finalizada e enrolando ela mesmo o linho no pulso. – Tem o Sangue da Serpente correndo nas veias, mais furioso do que nunca. Uma coisa que deveria saber sobre a nossa família, Mexus, é que somos rancorosos. Meu avô matou o irmão porque este tentou levar sua esposa para a cama. E depois dois dos primos de meu pai o mataram por isso, mas meu pai nunca procurou vingança. Esses primos hoje são velhos e tem conflitos seus para lidar, e meu pai está morto.

                - Diz-se com frequência que o passado morre com cada um nós – Mex fitava os olhos de Moira.

                - É aí que se engana – ela disse. – Minha irmã chorona aqui lhe dirá que o passado nunca morrerá, pois alguém sempre se lembrará dele, mas eu digo que não é assim. Não se mata o passado, embora ele também não perdure enquanto for lembrado. Ele morre quando escolhemos mata-lo e esquece-lo, como Violet fez. Ela matou à mim, à você, à chorona aqui, à Melissa e a todos os demais. Ela escolheu esquecer, e foi isso que fez, então peço agora que sejam leais a mim.

                - Mas agora o passado corre atras dela, é isso que está tentando me dizer? – Mex sentia a fúria dominando-o. Sabia que ela estava fazendo aquilo de proposito. Que fazer Melissa ir atrás da mãe fora ideia dela, embora tenha usado Ketty para ocultar a própria culpa. Somos todos peças no jogo doentio dela, tinha lhe dito Vassala certa vez, quando era muito mais nova do que Melissa era agora. Ela já foi minha irmã, e eu a amei, mas aquela mulher morreu. O que vejo hoje é uma estranha. Uma serpente.

                - O passado e o futuro – Moira disse, saboreando as palavras, sorrindo consigo mesma quase com demasiada satisfação. – Acha que ela reconhecerá a própria filha, Mexus, ou pensará nisso depois que tirar a vida da menina?

                - Como pode pensar em uma coisa dessas, Moira? – Medona estava furiosa. – Foi para isto que mandou a menina, para quebrar Violet antes de tirar-lhe a vida? Não tem coração...

                - Eu tinha um – ela rosnou. – Killian o quebrou, e depois Violet. Ele ainda está aqui, sim, mas em cacos.

                Ela tinha um olhar amargo depois que falou sobre o primeiro marido, o homem que realmente amou e que a amou, o pai do filho que perdera.

                - Tenho assuntos mais importantes a tratar. Peço... Ordeno que sejam leais a mim. Eu não me esqueci de vocês. Não estão mortos para mim – ela então se retirou, com os guardas de sua escolta pessoal a segui-la perto dos calcanhares. Mex ficou fitando as portas duplas muito depois de ela desaparecer.

                - Violet nunca faria mal a sua filha – Medona disse, pousando uma mão no ombro dele.

                Minha filha, não. Nossa filha, minha e dela. Violet nunca faria mal a nossa filha, quis dizer, embora Medona não tivesse culpa de nada.

                - Eu sei que não – respondeu, mas não sabia, e tinha medo do que podia acontecer caso Violet não percebesse quem era a figura loura de olhos de esmeralda. Será que se lembrará do que deixou para trás naquele dia, Val, ou apagou-nos da memória?

                A dúvida corroía-o quase tanto quanto o desejo de que Kobba encontrasse Vassala. Vassala sempre fora esperta e destemida, e sempre teve uma admiração profunda por Violet.

                - As crianças devem partir logo – Medona disse, afagando seu ombro. – Vamos. Tenho que ver se acho o troglodita do meu marido para que ele veja os filhos uma ultima vez antes que acabem se matando em nome da minha irmã.

 

                Tudo acabara rápido demais.

                Havia cinco membros da Grande Guarda ali, dois mercenários contratados pelo dono do lugar e um menino metido à soldado que não devia ter mais do que onze anos. Mataram apenas os membros da Grande Guarda. Dois deles caíram perante Violet, e Lena acertara os outros três com as facas de arremesso, mas quem dera cabo deles no final foi Thomas. Um dos membros da Guarda conseguiu chegar até ela e dera-lhe um soco na lateral do corpo que a jogara uns bons três metros, até a parede, e foi esse que Thomas abateu primeiro. Os mercenários fugiram quando eles entraram. Descobriram o menino no segundo andar, com uma espada curta nas mãos infantis.

                - Largue isso e fuja – Violet lhe disse, mas ele manteve-se ali. – Volte para a sua mãe.

                - Não há mãe alguma – ele disse. Agarrava o punho da espada com ambas as mãos, os braços muito retos e tensos enquanto os olhos corriam de Lena para Violet para Thomas. – Não passarão daqui. Vão embora.

                - Eu e ela somos órfãos também – disse Thomas, apontando para Lena.- Não queremos mal algum a você.

                - Mentiras! – Insistiu o menino. Ele era alto para a idade, da altura de Lena, com cabelos castanhos e olhos amendoados que pareciam grandes demais para o rosto infantil. – Não os deixarei...

                A espada voou de sua mão quando Violet acertou o garoto no peito. Não chegou a machuca-lo de verdade, mas ele gritou com o susto.

                - Thomas, mantenha-o aqui e longe de problemas – Violet tinha a voz muito dura. Passou pelo garoto como se ele não estivesse ali, e Lena a seguiu.

                Encontraram o homem escondido dentro do armário de roupas. Violet puxou-o para fora com apenas uma mão, jogando-o no chão com tamanha violência que ouviu-se um som nauseante quando sua cabeça atingiu o chão. Não parecia alguém que fazia ameaças. Era baixo e gordo, com um nariz redondo e perdendo cabelos.

                - Por favor – suplicava ele, tonto e cambaleante, segurando o ferimento da cabeça enquanto o sangue começava a escorrer pelo queixo, manchando o peito da blusa de carmim. – Por favor, não contarei. Não direi nada. Não sabem que está aqui. Eu não disse. Por favor, por favor, por favor!

                - Sabe quem eu sou – Violet erguia-se sobre ele como uma sombra negra. – Desde quando?

                - Dois anos depois da sua primeira visita, quando trouxe o garoto – ele tinha a voz tremula, e estava claro que era suficientemente fluente em brumoriano para se comunicar sem qualquer problema. – Fui ao Império muitas vezes, sempre ouvia falar da Princesa Exilada e do pequeno príncipe que ela roubara. “O sangue da serpente é forte”, eles dizem, e tive a honra de ver a Imperatriz...

                - Fale rápido – o homem guinchou como um rato quando ouviu o tom de Violet.

                - O garoto tem muito dela, e você também – ele disse. – Vi toda a família real quando estava lá, quando houve a Noite Vermelha. A Imperatriz estava lá, tal como a irmã, os sobrinhos, os cunhados... Vi seu marido. Estava no meio da multidão com um Amo qualquer do Império. Esbarrou em mim, mas foi educado depois, pediu-me desculpas. Vi a menina também, sua...

                - Chega – o humor de Violet tornara-se negro. – Conhece-nos então, e sabe que minha cabeça valeria cem peças de ouro imperial, mas ainda a tenho sobre os meus ombros.

                - Não é da minha conta – ele respondeu.

                - Parecia cheio de si quando vim mais cedo – Violet sorriu para ele. – O que está acontecendo em casa?

                O homem olhou para a porta, onde Lena continuava parada, olhando-o com tanto interesse quanto Violet o fazia.

                - Olhos em mim – Violet sibilou. – Dá próxima vez que olhar para aquela porta, esta jovem vai atirar uma faca em uma das suas mãos. Se eu notar que está mentindo para mim ou escondendo alguma coisa, eu mesma vou esfaquear você.

                - Os homens vêm e vão, falam coisas... – Ele fechou os olhos, parecia desorientado, e não era para menos. O ferimento da cabeça ainda vertia sangue, lentamente, deixando os dedos do homem rubros, escorrendo pelas bochechas lentamente, pingando como uma pequena fonte carmim. – Diz-se que a jovem princesa viaja para Lagoa Profunda, a pequena, filha da Imperatriz. Dizem que enviados árcades ancoram na costa com novos navios a cada dia. Uma esquadra! Formada por navios árcades e os poucos brumorianos, navios piratas do Arquipélago Lunar e navios de Enora. Dizem que chegam soldados, armas, mapas... E dizem que alguns deles percorrem a cordilheira para o norte, em tuneis e na estrada através da Garganta.

                - Os túneis foram selados a anos, e a Estrada da Montanha é vigiada de ambos os lados – Lena tinha a voz firme, embora sentisse as mãos fracas e frias. – Eles não chegariam tão longe.

                O homem não chegou a olhar para ela, levara a ameaça de Violet á serio, mas baixou os olhos para o próprio colo e falou:

                - Há caminhos secretos através das montanhas, menina. Você é jovem, mas eu me lembro bem de ver os soldados indo e vindo sempre. Como acha que os membros da Grande Guarda chegaram aqui? Estamos a norte da Cordilheira, em território ronari, e mesmo assim havia soldados brumorianos na minha estalagem, assim como mercenários brumorianos.

                - Para que eles vêm? – Violet perguntou, mas o homem limitou-se a baixar os olhos novamente. – Não me faça repetir a pergunta, não gostará disso, garanto-lhe.

                - Eles vêm por poder, por glória e por dever.

                - A Imperatriz os mandou – não era uma pergunta, - para quê?

                - Ouço conversar sussurradas e devaneios de homens bêbados, não sou digno de partilhar com eles os assuntos do Império.

                - Mas parece-me bastante digno de compartilhar tais sussurros e devaneios comigo.

                Ela manteve os olhos sobre o homem por alguns momentos, olhos negros e cheios de fúria.

                - Eles vem por você – respondeu finalmente. – Para leva-la. Pode ser que não seja assim...

                - Não, não é – Violet levantou-se. – Quem é o garoto que tem aqui?

                - Joseph – o nome veio com certo desprezo, e o homem fungou. – Matou-o?

                - Não, mas sabe que não posso deixar que você viva – Violet tinha uma voz dura, embora ainda olhasse para ele como um ser humano, enquanto os soldados do Império olhariam apenas como se fosse um objeto falante que perdeu a utilidade.

                - Ele é um bom garoto, prestativo e feroz como o pai. Cuide dele se puder, ou deixe-o ir se não o quiser. Ele foi forte a vida toda, saberá lidar também com o que vier. - disse o homem. Tirou a mão do ferimento da cabeça e examinou os dedos grossos e cobertos de sangue. Ficou de joelhos. - Trate disso rápido, e lhe serei grato.

                - Lena, diga a Thomas para se preparar... E diga a Joseph para pegar o que quiser levar, ele vai conosco. – Lena assentiu, dando as costas para a tutora. Ouviu o som suave de aço contra couro e madeira quando ela desembainhou a adaga curva, e ouviu-a sussurrar a prece brumoriana que precede a morte, antes de fechar a porta. – Que encontre a glória no descanso eterno.

                Thomas estava sentado no chão, de pernas cruzadas, de olhos no garoto Joseph. O menino também olhava para Thomas, de olhos cerrados. Lena sabia do que estavam brincando, então sorriu e observou.

                - O terceiro, vermelho – disse Joseph finalmente. – Está com o terceiro. Não tem como ter pegado as outras.

                Thomas sorriu, tirando as mãos das costas e exibindo os três pequenos lenços. Joseph olhou-o desconfiado, incrédulo, e deveria estar a ponto de perguntar como Thomas conseguira apanhar os três lenços escondidos em dez segundos quando encontrou Lena. Os olhos grandes e amendoados viraram-se para ela, mas Thomas não precisou de nem um relance por sobre o ombro para saber que era ela quem estava ali, e não Violet.

                - E então, para onde vamos agora? – Só então ele olhou por sobre o ombro.

                - Para casa – a ultima palavra pesou em seu peito, e um bocado de cabelos escuros veio a memória, junto com olhos intensos e igualmente negros. Sean. Desviou os olhos azuis para Joseph. – Pode vir conosco, se quiser.

                - Oh, quero! – Ele levantou-se de um salto. – Thomas me ensinará a falar brumoriano, prometeu-me!

                - Pegue suas coisas, e eu lhe ensinarei a escalar arvores tão alta quanto o céu – o garoto sorriu para ela antes de descer as escadas.

                - Doreen? – Thomas não olhava para ela quando perguntou, e tinha a voz pesada de angustia, embora ele próprio não soubesse por que. Doreen era sua irmã mais nova, mas ele nunca a vira. Não a conhecia, e mesmo assim temia por ela. Ele é uma pessoa melhor do que eu. Sempre foi.

                - Ela está bem – Lena disse, com um sorriso fraco nos lábios. – Ele disse que ela está a caminho de Lagoa Profunda.

                - O nome me é familiar – Thomas inclinou suavemente a cabeça para a esquerda, como fazia quando tentava lembrar-se de algo a respeito da vida que vivera apenas vagamente.

                - Ele também disse que eles estão vindo.

                Thomas pôs-se de pé, caminhando com passos suaves na direção dela e pegando-lhe uma mão. O sorriso de escárnio estava ali, mas ele tinha os olhos tristes, olhos de um marrom avermelhado que pareciam quase tão rubros quanto sangue quando o sol iluminava a íris.

                - Estaremos prontos. Estamos prontos. Preparamo-nos para isso por todas as nossas vidas, e sabíamos que eles viriam, por mim e por ela. Eles não são minha família, você e Violet são. Minha tia bruta e minha pequena e idiota irmã mais nova – ele pousou a mão na cabeça de lena, bagunçando os cabelos, fazendo-a sorrir. – Não a tomarão de mim.

                - Digo o mesmo sobre o meu estúpido irmão mais velho – Lena afastou a mão dele com uma tapa. – Protegerei você com a minha vida, e seguirei você até o fim do mundo.

                O sorriso de Thomas naquela noite aqueceu-a nos dias seguintes, enquanto voltavam para casa, e a verdade daquela ultima frase instalou-se no seu coração. Sei que ele faria o mesmo por mim, dizia a si mesma todas as vezes que pensava naquilo, e sabia que esse pensamento também era verdade.



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