Eva se levantou ainda sonolenta, mal se lembrava em qual momento havia simplesmente dormido pelo cansaço, mas havia ao menos descansado seu corpo e as dores pareciam ter diminuído.
Seu olhar recaiu sobre o horário, notando que faltava pouco para às 7 horas. Em um sobressalto se lembrou da conversa com Íris e de que o seu jogo logo começaria. A mulher precisava se preparar para vencer.
Em um pulo deixou sua cama, a adrenalina despertando pouco a pouco as células de seu corpo. Primeiro, enfaixou suas mãos e dedos como faria em uma luta oficial frente a frente, em seguida colocou o maior número de adagas possíveis em pontos estratégicos de seu corpo.
Assim que se encontrava aparamentada e com todas as armas que julgava necessário, inclusive seu punho inglês que usara no dia anterior, Eva deixou seu quarto e seguiu vigilante pelo prédio. Sem nem ao menos pedir licença, abriu o cômodo onde Matteo ficava, encontrando a cama vazia assim como todo o interior.
— Onde ele se meteu? — questionou tornando a fechar a porta e se dirigindo para o segundo lugar em que poderia encontrá-lo: na sala que utilizava para seus estudos e criações.
Contudo, a encontrou trancada e mesmo após muita insistência e batidas contra a madeira não teve resposta, era como se ele não estivesse ali. E desistiu de encontrá-lo depois de alguns bons minutos esperando.
Logo seguia pelo prédio em busca de qualquer sinal do moreno, precisava de alguns elementos a mais para poder pegar Íris e vencer o jogo, aos quais não saberia fazer, nem por onde começar.
Ao descer para a pequena cozinha compartilhada que ficava no térreo do prédio abandonado, Eva encontrou Gael sentado a mesa folheando um livro com atenção.
— Neko, você viu o Kitsune hoje? Não o encontrei em lugar nenhum — perguntou a de fios azulados se aproximando de onde o outro estava.
— Ele saiu fazem algumas horas.
— Certo... 'Pra onde ele foi?
— Não sei, ele não disse.
— Você não perguntou?
— Não. Deveria ter perguntado?
— Não, tudo bem, talvez ele nem contasse mesmo se perguntasse. O que está lendo?
— O conde de Monte Cristo... Kitsune disse que eu poderia ficar com ele para entender como funcionam os sentimentos. — A mulher deu uma olhada para a capa do objeto, e assentiu em silêncio.
— Claro que ele te daria logo um sobre vingança... Tenho um para te emprestar, é menor que esse e acho que você vai gostar. Chama "o papel de parede amarelo".
— É sobre o quê?
— Sobre uma mulher e como seus sentimentos, sua saúde mental e física se transformam enquanto permanece confinada em seu quarto tendo somente o papel de parede amarelo para observar.
— Vocês acordam tão cedo por aqui... — comentou Íris entrando na pequena cozinha, seus inseparáveis sapatos com rodinhas a aproximando dos dois o mais rápido que podia. — Você quer entender sobre sentimentos? Está falando com a pessoa certa.
— Acho que seu conceito sobre sentimentos é um pouco exagerado e demais para ele — pontuou a de madeixas azuis, seus dedos puxando uma das adagas até sua palma disfarçadamente, esperando o momento certo para atacá-la.
— Claro que não. Pareço exagerada para você? — perguntou a de fios rosados, suas mãos espalmando sobre a mesa em um baque forte e animado, seu sorriso se alargando mais e seus olhos grandes focados no homem impassível.
— Não, creio que não. Pessoas são diferentes e reagem de formas diversas aos sentimentos — disse o homem associando a conversa que tivera com Matteo na noite anterior com o que falavam naquele momento.
— Viu? Ele é um cara esperto e entendido. Primeiro vou te ensinar o básico: a sorrir — explicou a rosada, seus dedos tocando no canto dos lábios do outro repuxando-os para cima. — Assim você demonstra que está feliz. Tente sozinho dessa vez.
— Desse jeito? — Gael forçou levemente os cantos da boca para cima em um sorriso apático, os lábios grudados um no outro.
— Quase isso... Já sei, tente mostrar os dentes, assim. — Íris apontou para o próprio rosto onde um iluminado sorriso se delineava.
O maior a imitou, mostrando mais os dentes em um sorriso evidentemente artificial e se manteve assim por um tempo sem se mover, o que fez as duas mulheres o encararem e rirem, Íris de uma maneira alta e graciosa, enquanto Eva riu discreta e silenciosa, sua mão seguindo para seus lábios fingindo um bocejo.
— Com o tempo e a prática você pega o jeito.
— E o que faz as pessoas normais felizes para sorrirem? — questionou Gael, suas mãos repousando o livro fechado sobre a madeira.
— No meu caso, doces me fazem feliz, ouvir uma boa música, velocidade, conhecer pessoas, jogos, conhecimento, assassinatos — enumerou a mulher baixinha, os dedos se erguendo conforme listava o que dizia. Em seguida seu olhar recaiu sobre a mulher mais alta, seu corpo se inclinando mais sobre a mesa. — E você, corvinha? O que te faz feliz?
— Eu? Hm... Lutar me deixa feliz, dormir, comer e beber... No geral é isso... A sensação de se estar à beira da morte... O perigo...
— A felicidade parece muito complexa... Como se descobre o que nos deixa feliz?
— Quando algo nos deixa feliz, a gente tem vontade de fazer de novo e de novo. Já sei, como girar assim. — A mulher se afastou em um impulso da mesa e girou movendo levemente seus pés. — Você tem vontade de não parar mais.
— Já está me dando tontura... — murmurou Eva, sua mão segurando com ainda mais firmeza na adaga ao notar que a mulher parecia distraída.
— Deveriam tentar também — pontuou a de fios rosados se aproximando novamente e os puxando para ficarem em pé. — Vamos, gatinho, mova suas pernas para me acompanhar.
Íris voltou a rodar no meio da cozinha e algum tempo depois, Gael a imitou, girando em um início lento e progressivo.
— Parece normal... Deveria sentir algo?
— Já sei, falta uma música para animar — comentou a rosada, logo começando a cantoria, a mesma música inicialmente tranquila, mas que aos poucos ganhava batidas mais fortes e intensas, um ritmo mais frenético em sua melodia.
Íris segurou as mãos do maior e as ergueu e abaixou em alternância, seus pés se movendo para frente e para trás. Eva revirou levemente os olhos para aquela cena e mirou de forma rápida sua adaga, a lançando sem pensar duas vezes quando ela começou a dançar e cantar de olhos fechados.
Abruptamente a menor inclinou seu corpo pouco antes da adaga lhe acertar, cantando empolgada o refrão da canção, balançando o próprio corpo e o de Gael no processo.
Um som quase inaudível e contrariado deixou os lábios de Eva, sua mão tornando a pegar outra adaga e mirando, se atentando ao ritmo da música e a movimentação da menor. Em seguida, lançou mais uma vez e com precisão a lâmina afiada, mas Íris girou e desviou com sua dança.
A adaga recaiu no chão, tilintando enquanto rodava pelo local. Eva estava prestes a pegar outra quando Íris a interditou e a puxou para se mover consigo, balançando seus braços acompanhando o ritmo de sua voz doce.
— Se solte mais, corvinha, um pouco de malemolência ajuda na luta — afirmou enquanto puxava uma das mãos da mulher, tentando fazê-la girar pela sala.
— Dançar não é comigo, eu passo — mencionou Eva, tentando escapar daquele momento estranho e um pouco embaraçoso. Afinal, estava no meio da sala sendo obrigada a acompanhar a pessoa que deveria pegar, enquanto ela cantarolava sorridente.
Sem contar que Gael estava ao lado delas, imitando a sua maneira dura e mecanizada os movimentos da rosada. Até mesmo tentava reproduzir os movimentos da boca, a maneira como se moviam conforme a menor cantarolava.
O som da porta principal do prédio se abrindo não fez a de madeixas rosadas alterar nada em suas ações, continuando a dançar e cantar mesmo que os passos seguissem naquela direção.
— Kitsune... Que bom que chegou. Estive te procurando a manhã toda — comentou Eva conseguindo escapar das mãos da menor e se adiantando até o moreno. — Preciso de ajuda com um plano e... O que trouxe nessa sacola? É comida?
— Não sei se deveria perguntar o que está acontecendo aqui... — disse Matteo, sua mão robótica segurando o saco que trazia consigo. — Nada demais, apenas algumas peças e restos.
— Estávamos explicando para o gatinho como era a sensação de ser feliz — explicou a de fios rosas se aproximando e tentando alcançar o saco para observar seu conteúdo, entretanto Matteo o afastou, mantendo-o atrás de seu corpo. — Ao menos conte o que pretende construir dessa vez.
— Nada que seja de seu interesse — respondeu a girando para o outro lado e a empurrando sutilmente para longe. — Você é muito xereta e curiosa.
— E esse não deveria ser o princípio básico de um cientista?
— Talvez... Mas cientistas e gatos têm isso em comum... A curiosidade pode matá-los — mencionou Matteo, seu olhar recaindo sobre Gael que havia parado agora que a mulher não mais cantarolava e dançava, os cantos de seus lábios se erguendo em um sorriso duro e estranho, o que fez o moreno se controlar para não rir da estranheza daquilo. — Bakeneko... O que... Está fazendo?
— Sorrindo. É assim, não é? — O maior abriu um pouco mais a boca, deixando parte de seus dentes a mostra naquela espécie de tentativa falha de sorrir.
— Ela estava te ensinando a sorrir? — questionou Matteo dando uma risada baixa e se aproximando. — Seu olhar não acompanha seu sorriso, quando levantamos essa parte aqui da boca, automaticamente fechamos um pouco os olhos. Desse jeito parece que só está alucinado e psicótico.
— Você está adiantando a aula 2, raposinha, um passo de cada vez — falou Íris, seus pés a fazendo girar pela pequena cozinha. — Talvez se acharmos algo que o faça feliz, ele possa sorrir de verdade.
— E se não acharmos? Neko não parece ter sentimentos, ao menos não que fiquem aparentes — ressaltou Eva. — Pode ser só uma forma de perdermos tempo em algo que não vai mudar.
— Eu suponho que ele tenha algum sentimento, algo mínimo e reprimido — comentou Íris, seus olhos amendoados passando de Eva para Gael e, em seguida, retornando a mulher. — E talvez só precise do gatilho certo para despertar.
— Você conviveu com ele por poucas horas... Não acho que tenha base o suficiente para supor qualquer coisa.
— A ciência é feita de suposições, corvinha, se no final chegar a outra conclusão faz parte do processo, mas temos que partir de algum pressuposto para nos guiar.
A de madeixas azuis não a respondeu, apenas caminhou pelo local pegando suas duas adagas e as ajeitando no lugar de antes.
Um curto período de silêncio se estendeu entre eles, só sendo quebrado quando Íris tornou a cantarolar, acompanhando o ritmo com sua cabeça, movendo-a de um lado para o outro.
— Kitsune... O que te faz feliz? — Quis saber Gael como uma forma de tentar compreender melhor aquele sentimento e imaginar se as respostas do outro se encaixariam em si, criando um conceito ampliado e assimilado sobre a felicidade.
— O que me faz feliz? Eu não diria exatamente que me fazem feliz, mas acho que chega perto... As primeiras vezes do dia... — Eva e Íris pararam o que faziam para voltar sua atenção para o moreno, se atendo a sua resposta que parecia sem sentido. — Como a primeira vez que se abre o olho depois de acordar e com isso vem a noção de que eu sobrevivi mais um dia. O primeiro gole de uma bebida forte, quanto a boca ainda não está amortecida pelo álcool e dá para sentir o sabor por completo... Ou quando caem as primeiras gotas de chuva contra a pele em um dia quente... Acho que essas pequenas sensações, mesmo que não as enquadre tanto assim no sentido de felicidade, são o que tornam a vida um pouco mais... Agradável.
Os outros três pensaram a respeito do que o moreno dissera, concentrados em suas próprias reflexões silenciosas, o que deixou o moreno apreensivo sobre o que acabara de dizer. Não que não fosse verdade tudo o que falara, mas a reação alheia dava um peso a mais, a dúvida se havia dito algo errado ou a mais pairando sobre seus ombros.
— Pensei que fosse falar algo como: ficar quieto, não ser incomodado, ficar trancado pesquisando — comentou Eva, um leve deboche presente em sua voz.
— Deveria ter respondido isso... Voltem ao que estavam fazendo, eu tenho mais o que fazer.
— Ei, raposinha, espera. O que você disse foi bem poético e mesmo que tenha dito que não tem a ver totalmente com te fazer feliz, soou algo como a essência da felicidade...
— Não dá para se sentir totalmente feliz quando se é uma maldição... — comentou o moreno mais para si. — Esqueçam isso. Há coisas mais importantes a se fazer.
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